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El País: Supremo manda prender deputado Daniel Silveira, e Lira tem primeiro teste institucional na Câmara

Deputado divulgou vídeo com ataques à Corte e foi detido em flagrante no inquérito das ‘fake news’, após ordem do ministro do STF Alexandre de Moraes. Câmara decide se o manterá preso e presidente da Casa diz que irá se guiar pela Constituição

Rodolfo Borges, El País

A batalha entre os Poderes em Brasília ganhou um novo front nesta quarta-feira. Quase no início da madrugada, o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) recebeu uma visita da Polícia Federal em sua casa, por instrução do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. “Polícia Federal na minha casa neste momento cumprindo ordem de prisão, ilegal, do ministro Alexandre de Moraes”, publicou em suas redes sociais o deputado, dando início a uma série de vídeos em que divulgaria os passos de sua detenção. Horas antes, o parlamentar havia publicado outro vídeo com duras críticas e ataques aos ministros do Supremo que foram consideradas por Moraes como parte das “condutas criminosas” de Silveira. O vídeo, de acordo com o ministro, configurou ”flagrante delito”, o que justificou a ordem de prisão inafiançável do deputado no âmbito do polêmico inquérito das fake news, aberto pelo próprio STF, sem pedido da Procuradoria Geral da República, para investigar ameaças à Corte Suprema. Silvera é um dos investigados. Caberá à Câmara, contudo, a última palavra sobre a prisão. Os deputados podem decidir soltar o colega após uma votação com maioria absoluta ―257 dos 513 votos da Casa.

O recém-empossado presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou convocação de reunião extraordinária da Mesa para as 13h desta quarta-feira. Na sequência, ocorre encontro do Colégio de Líderes. “Vamos, em conjunto, avaliar e discutir a prisão do deputado Daniel Silveira.” Na madrugada, ele já havia comentado via redes sociais que “a Câmara não deve refletir a vontade ou a posição de um indivíduo, mas do coletivo de seus colegiados, de suas instâncias e de sua vontade soberana, o Plenário”. “Nesta hora de grande apreensão, quero tranquilizar a todos e reiterar que irei conduzir o atual episódio com serenidade e consciência de minhas responsabilidades para com a Instituição e a Democracia”, escreveu Lira, que chegou ao comando da Casa legislativa com o apoio do presidente Jair Bolsonaro. “Para isso, irei me guiar pela única bússola legítima no regime democrático, a Constituição. E pelo único meio civilizado de exercício da Democracia, o diálogo e o respeito à opinião majoritária da Instituição que represento”, finalizou.

No vídeo que desencadeou a reação de Alexandre de Moraes, Silveira, que ficou mais conhecido no país após quebrar uma placa em homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco, diz que por várias vezes já imaginou o ministro Luiz Edson Fachin “levando uma surra”. “Quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa Corte aí. Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra. O que você vai falar? Que eu  fomentando a violência? Não, só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda assim não seria crime, você sabe que não seria crime”, diz o deputado em um trecho da gravação, que Moraes mandou o Facebook tirar do ar. “Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível. Então qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência após a refeição, não é crime”, completa Silveira, ainda em referência a Fachin.

O fio desse novelo de fim desconhecido começou a ser puxado em 2018, quando o então comandante do Exército Eduardo Villas-Bôas comentou nas redes sociais o julgamento de um pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Villas-Bôas escreveu em seu perfil no Twitter que o Exército brasileiro compartilhava do “anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”, numa mensagem que foi interpretada como manifestação indevida de um chefe militar, ainda que não mencionasse diretamente o caso de Lula, que seria julgado pelo STF naquele mesmo dia. Villas-Bôas comenta esse episódio em livro recém-lançado, no qual detalha que aquela manifestação foi discutida previamente com o Alto Comando do Exército.

O ministro Fachin divulgou nota nesta terça-feira para dizer, à luz do que o general detalhou em seu livro, que a manifestação de Villas-Bôas foi uma “intolerável e inaceitável” pressão das Forças Armadas no Judiciário. Foi contra esse comentário de Fachin que o deputado Daniel Silveira se insurgiu. “Vá lá, prende Villas-Bôas”, provocou o deputado no vídeo, sempre se dirigindo a Fachin. “Seja homem uma vez na tua vida, vai lá e prende Villas-Bôas. Seja homem uma vez na tua vida, vai lá e prende Villas-Bôas. Fala pro Alexandre de Moraes, o homenzão, o fodão, vai lá e manda ele prender o Villas-Bôas. Vai lá e prende um general do Exército. Eu quero ver, Fachin. Você, Alexandre de Moraes, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes, o que solta os bandidos o tempo todo. Toda hora dá um habeas corpus, vende um habeas corpus, vende sentenças”, acusa o deputado na gravação, incluindo outros ministros do STF em seus ataques.

“Fachin, um conselho pra você. Vai lá e prende o Villas-Bôas rapidão, só pra gente ver um negocinho”, provoca Silveira em outra passagem do vídeo, quando também inclui provocações ao ministro Luís Roberto Barroso.. “Se tu não tem coragem, porque tu não tem culhão pra isso, principalmente o Barroso que não tem mesmo. Na verdade ele gosta do culhão roxo. Gilmar Mendes... Barroso, o que é que ele gosta: culhão roxo. Mas não tem culhão roxo. Fachin, covarde. Gilmar Mendes... [esfrega os dedos no sinal de dinheiro] é isso que tu gosta né Gilmarzão? A gente sabe.” Em outro trecho, o ataque fica mais generalizado: “Eu sei que vocês vão querer armar uma pra mim pra poder falar ‘o que é que esse cara falou no vídeo sobre mim, desrespeitou a Supremo Corte’. Suprema Corte é o cacete. Na minha opinião, vocês já deveriam ter sido destituídos do posto de vocês e uma nova nomeação convocada e feita de onze novos ministros. Vocês nunca mereceram estar aí. E vários que já passaram também não mereceram. Vocês são intragáveis”.

A prisão de Silveira pôde ser acompanhada por seus seguidores por meio do Facebook. No último vídeo que divulgou, o deputado aparece no Instituto Médico Legal (IML) batendo boca com uma agente sobre a obrigação de usar máscara para evitar a disseminação do novo coronavírus. Após resistir, Silveira acaba colocando uma máscara. Seus perfis nas redes sociais seguem sendo abastecidos após a detenção. “Aos esquerdistas que estão comemorando, relaxem, tenho imunidade material. Só vou dormir fora de casa e provar para o Brasil quem são os ministros dessa suprema Corte. Ser preso sob estas circunstâncias, é motivo de orgulho”, diz uma das mensagens.

O PSL, partido do parlamentar, afirmou em nota que o parlamentar deve ser afastado do partido, e informou que “repudia com veemência os ataques proferidos pelo deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) a ministros do Supremo Tribunal Federal”. A direção nacional da legenda pela qual o presidente Jair Bolsonaro foi eleito ―mas do qual ele saiu em novembro de 2019 para fundar um partido próprio, ainda não consolidado― também defendeu o STF, que classificou como “guardião da Constituição Federal e, como tal, um dos pilares do Estado Democrático de Direito”. A nota de repúdio do PSL é uma explícita tentativa de afastar o partido do viés golpista das mensagens divulgadas pelo parlamentar. “A Executiva Nacional do partido está tomando todas as medidas jurídicas cabíveis para a afastamento em definitivo do deputado dos quadros partidários.”

Resta saber como a Câmara, enquanto instituição, irá se manifestar. “Foi uma fala gravíssima contra a ordem democrática e contra a autonomia dos Poderes, e [o deputado] deve ser duramente reprimido. Mas para ser preso não basta que ele tenha cometido um crime”, comentou o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), 1º vice-presidente da Câmara, em entrevista ao programa Sua Excelência, o Fato, dos jornalistas Luis Costa Pinto e Eumano Silva. “Se a Câmara tivesse dado exemplo desde o primeiro caso [de ataques ao STF], não estaríamos passando por este momento. Se não tivesse sido leniente com outras declarações, não estaríamos nisto”, comentou.


Pedro Dória: Prisão de deputado bolsonarista põe Arthur Lira em xeque

Com a prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), já no fim da noite de terça-feira, o Supremo colocou o presidente da Câmara, Arthur Lira, em xeque. E, simultaneamente, enviou um forte aviso ao Exército Brasileiro e ao Palácio do Planalto. A situação toda é muito delicada.

Para Lira, o problema é simples: Silveira foi preso por ameaçar o Supremo. Por ele ser deputado, o plenário da Câmara precisa confirmar a prisão — ou negá-la. Se nega, o Legislativo manda ao Judiciário uma mensagem. Considera normal que parlamentares ameacem outro Poder. Aquilo que o presidente Jair Bolsonaro passou o primeiro semestre de 2020 fazendo — ameaçar o Supremo — passa a ser prerrogativa também dos deputados. Se, porém, permite a prisão, Lira entra em conflito com o próprio Planalto e a base ideológica do presidente.

O centrão, do qual Lira é líder, tem duas características. Uma é de que troca favores no Parlamento por espaço no Executivo e verbas para os deputados. Outra é que é ideologicamente amorfo e evita se definir. O gesto de Silveira — em seu vídeo o deputado essencialmente desafiou o Supremo a prendê-lo — obriga o centrão a se posicionar para defender um discurso bolsonarista radical. Ou, então, se afastar.

Ocorre que o Planalto ainda não liberou as verbas e mal distribuiu cargos no ministério. O acerto de contas para ser feito pela eleição de Lira ao comando da Câmara não ocorreu. É cedo para ter este desgaste na relação — mas o centrão vai ter de se posicionar. E não é simples. Muitos deputados precisam estar nas graças do STF. Como precisam estar nas graças do Planalto.

De sua parte, o STF agiu claramente dentro da lei para efetuar a prisão. O ataque foi a Edson Fachin, o relator da Lava-Jato, num momento em que a operação está sob fogo cerrado. E, indiretamente, mostra uma resposta da Corte à pressão que sofreu em 2018, só agora se sabe, não apenas do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas. Mas de todo o Alto Comando da Arma. Afinal, quando atacou o Tribunal no vídeo que motivou sua prisão, Silveira desafiava os ministros a prenderem Villas Bôas — ou se abaixar perante a pressão. Com seu gesto, ofereceu à Corte uma terceira saída. Prendê-lo e assim mostrar um gesto forte.


Eliane Cantanhêde: Ruído entre STF e Forças Armadas, enquanto Bolsonaro se aproxima de antilavajatistas

Ruído entre STF e Forças Armadas, enquanto Bolsonaro se aproxima de antilavajatistas

O novo foco político está no mal-estar entre as Forças Armadas e o Supremo, após o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas confirmar, em livro-entrevista da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o que me disse em 4 de abril de 2018 e publiquei no Estadão: suas mensagens no Twitter contra um habeas corpus para o ex-presidente Lula sair da prisão não foram pessoais, foram combinadas com o Alto Comando do Exército.

Na reportagem, depois da forte repercussão à sua manifestação pelas redes sociais, ele me disse que a sua fala “expressa a posição do Alto Comando do Exército e é exclusivamente a da Força”. Ou seja, o general não foi ao Twitter por conta própria, e sim pelo Exército. Só fez uma ressalva: que não combinou com Aeronáutica e Marinha.”

No livro Villas Bôas: conversa com o comandante (Editora FGV, 2021, 244 págs), de Celso Castro, o general detalhou em setembro de 2019: “O texto teve um ‘rascunho’ elaborado pelo meu staff e pelos integrantes do Alto Comando residentes em Brasília. No dia seguinte, remetemos para os comandantes militares de área. Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo expediente, até por volta das 20 horas, momento que liberei (para divulgação)”.

O Alto Comando reúne os generais-de-Exército, de quatro-estrelas, que chefiam as regiões militares e os principais departamentos e secretarias da Força. Foram eles quem produziram os dois textos que Villas Bôas publicou em 3/4/2018, véspera do julgamento do Supremo sobre manter ou não Lula preso – o que faria, como fez, toda a diferença na eleição presidencial, meses depois.

Primeiro tuíte do general: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?” Em seguida: “Asseguro à Nação que o Exército julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia (...)”.

Assim como Villas Bôas não falou sozinho, a reação do decano do STF também não foi pessoal. Celso de Mello, hoje já aposentado, não citou o comandante, mas classificou a manifestação dele como “claramente infringente do princípio da separação de Poderes” e criticou “insurgências de natureza pretoriana que, à semelhança do ‘ovo da serpente’, descaracterizam a legitimidade do poder civil instituído e fragilizam as instituições democráticas”. Em nota de ontem, na mesma linha, o ministro Edson Fachin considerou “intolerável e inaceitável qualquer forma ou modo de pressão injurídica sobre o Poder Judiciário”.

À FGV, Villas Bôas, que é da reserva e sofre de ELA, uma doença degenerativa, disse que sua manifestação foi “um alerta, antes que uma ameaça”. Ele, porém, repetiu o que também já me dissera em sua primeira entrevista como comandante do Exército, publicada no Estadão em dezembro de 2016, um ano e quatro meses antes do julgamento do HC de Lula. Segundo ele, “tresloucados e malucos” batiam às portas das Forças Armadas (FA) pedindo a volta dos militares ao poder. Algo, dizia, que tinha “chance zero”.

O livro de Villas Bôas vem numa hora de noticiário desfavorável às FA e em que Bolsonaro, contrário a Celso de Mello, Fachin e Alexandre de Moraes, já identificou um elo no Supremo: o antilavajatismo. Por essas ironias da história, ou espertezas da política, o presidente que usou Sérgio Moro como troféu se une aos algozes de Moro e defensores de Lula para proteger filhos e Centrão. E que, eleito com um empurrão dos militares, usa símbolos das FA e libera o uso do nome delas, em vão, para insinuar golpes. Podem ser meras bravatas. Ou não.


Elio Gaspari: Villas Bôas contou, reviu e errou

O tempo e novas memórias do período lapidarão as lembranças de Villas Bôas. Num caso, porém, sua memória (revista) falhou feio.

Está nas livrarias “General Villas Bôas: Conversa com o comandante”. É o resultado de 13 horas de entrevistas do professor Celso Castro com o general Eduardo Villas Bôas, que comandou o Exército de 2015 a 2019. O texto foi revisto pelo general até maio de 2020 e devolvido com acréscimos que engordaram o livro em 30%.

“VB”, como é chamado pelos colegas, rememora sua vida, da infância de Cruz Alta aos dias tensos do impedimento de Dilma Rousseff e da eleição de Jair Bolsonaro.

Ele tratou do seu famoso tuíte de 2018, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula pelo Supremo Tribunal Federal (“um alerta, muito antes que uma ameaça”) e do agradecimento que Bolsonaro lhe fez pouco depois de ter sido empossado:

“Meu muito obrigado, comandante Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por estar aqui. Muito obrigado, mais uma vez.”

O general explicou: “Morrerá entre nós! Garanto que não foi um tema de caráter conspiratório.”

O tempo e novas memórias do período lapidarão as lembranças de Villas Bôas.

Num caso, porém, sua memória (revista) falhou feio. Ele conta:

“O presidente Sarney relata que, após a morte de Tancredo Neves, houve uma reunião para deliberar como se processaria a nova sucessão. O deputado Ulysses Guimarães tentou impor sua posição que consistia na realização de um novo pleito. O ministro Leônidas (general Leônidas Pires Gonçalves) posicionou-se no sentido de que, conforme a legislação vigente, o cargo de presidente caberia ao senador Sarney (que havia sido eleito para a vice-presidência). Ato contínuo, voltou-se para ele, prestando uma continência disse: ‘Boa noite, presidente.’ Com seu arbítrio, o fato estava consumado, o que assegurou uma transição sem percalços”.

Sarney nunca relatou isso. Ele vestiu a faixa na manhã de 15 de março de 1985, e Tancredo só morreu no dia 21 de abril.

As incertezas com relação à posse do dia 15 foram desencadeadas na noite da véspera, quando Tancredo foi levado para o Hospital de Base de Brasília, para uma cirurgia de emergência. A posse estava marcada para horas depois.

Sarney chegou ao hospital às 21h30m.

Nas suas palavras:

“Lá encontro Ulysses. Tenho os olhos marejados. Rasga-me a alma o sofrimento de Tancredo. Ulysses me desperta ríspido: ‘Sarney, não é hora de sentimentalismos. Nossa luta não pode morrer na praia. Temos de tomar decisões. Você assume amanhã, como manda a Constituição, na interinidade do Tancredo.’

‘Não, Ulysses, assume você. Só assumo com Tancredo.’

‘Você não pode acrescentar problemas aos que estamos vivendo. É a democracia que temos de salvar.’”

O general Leônidas, ministro do Exército escolhido por Tancredo, jantava na Academia de Tênis quando soube que o presidente eleito estava no hospital. Foi para lá defendendo a posse de Sarney. Conseguiu uma gravata emprestada e seguiu com uma pequena comitiva de políticos para um encontro com o chefe da Casa Civil, professor Leitão de Abreu. Sarney ficou no hospital e depois foi para casa.

Leitão estava em dúvida (ou fingia estar em dúvida), se deveria ser empossado o vice ou o presidente da Câmara (Ulysses). Nesse encontro Ulysses e Leônidas queriam a posse do vice-presidente. Fernando Henrique Cardoso testemunhou a cena. Ela aconteceu nas primeiras horas da madrugada do dia 15. Àquela altura, achava-se que em alguns dias Tancredo estaria recuperado.

Às 3h da madrugada tocou o telefone na casa de Sarney. Era o general Leônidas, que começou a conversa com um “boa noite, presidente”. Sarney repetiu que não queria assumir, e Leônidas disse-lhe que “não temos espaço para erros”. Despediu-se com outro “boa noite, presidente.”

A cena contada por Villas Bôas nunca aconteceu. Tancredo não estava morto. Ulysses nunca quis uma nova eleição e sempre defendeu a posse de Sarney. O general Leônidas era formal, mas não dava continência falando ao telefone.

O Lavajatismo de Bretas

Enquanto o Supremo Tribunal Federal resolvia o destino das conversas promíscuas de procuradores de Curitiba, algumas das quais envolvem o ex-juiz Sergio Moro, o ministro Gilmar Mendes dava uma entrevista a Felipe Recondo e Fábio Zambeli. Nela, descascou as impropriedades praticadas durante a Operação Lava-Jato e perguntou:

“Como nós chegamos até aqui? (...) O que nós fizemos de errado para que institucionalmente produzíssemos isso que se produziu. (....) Sabiam que estavam fazendo uma coisa errada, mas fizeram.”

Gilmar reconheceu as limitações do Judiciário, condenou a “blindagem” com que a imprensa protegeu a turma da Lava-Jato e foi ao essencial: “O que nós devemos fazer para evitar que esse fenômeno se repita?”

Nesse mesmo dia, o juiz Marcelo Bretas, lavajatista do Rio de Janeiro, ouvia o ex-governador Luiz Fernando Pezão. A certa altura, Pezão disse ter certeza de que seu parceiro Sérgio Cabral e dois de seus colaboradores haviam combinado as versões de suas delações enquanto estavam na cadeia.

Pezão estava no meio do seu raciocínio quando o procurador Carlos Aguiar interrompeu-o, dizendo que ele estava fazendo “juízo de valor sobre as colaborações”.

Vá lá, porque é conhecido o espírito de corpo do Ministério Público, mas o juiz Bretas entrou no diálogo, informando a Pezão que não lhe cabia, como testemunha, avaliar se a colaboração “é justa ou correta”. Vá lá, juízes adoram dar aulas, mas Bretas foi adiante:

“É preciso ter cuidado quando se afirma que certa irregularidade aconteceu, porque é preciso provar.”

Em seguida, Pezão mudou o tom.

O repórter Athos Moura noticiou o fato. O que aconteceu?

Nadinha, pois, tomando cuidado, chegara-se àquilo.

Faz tempo que se chega.

Em 1974, quando Elzita Santa Cruz de Oliveira procurava seu filho Fernando, escreveu cartas a chefes militares contando seu caso, e um tenente-coronel acusou-a de caluniar o Exército, pois “seria desonrar todo nosso passado de tradições, se nos mantivéssemos calados diante de injúrias ora assacadas contra nossa conduta de soldados da Lei e da Ordem que abominam o arbítrio, a violência e a prepotência”.

Meses depois, o mesmo tenente-coronel estava na sala do comandante do II Exército, general Ednardo D’Avila Mello, quando o ministro Sylvio Frota interpelou-o por que um oficial da Polícia Militar de São Paulo “tinha sido insultado e agredido a socos durante um interrogatório” no DOI.

Nas palavras de Frota:

“Não é possível, Ednardo, que isso aconteça! Você deve tomar enérgicas providências. É preciso mudar, logo, alguns dos oficiais que trabalham no DOI; substituí-los, porque estão ocorrendo exageros que não podemos admitir.”

Fernando, filho de Elzita, era o pai de Felipe Santa Cruz, atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Nunca foi encontrado.


Cacá Diegues: Uma nova adolescência

Deixem o esquecimento em paz, ele é a garantia de uma existência mais alegre para idosos feito nós

Estamos perdidos, o Supremo acaba de proibir o esquecimento. Não sei se a sábia decisão inclui questões de foro privado, como fracassos pessoais e amores insanos, essas coisas que fazem de nossa vida inevitável sequência de frustrações dolorosas. Vou ler o documento com atenção, deve haver um parágrafo redentor dizendo que, a partir de certa idade, temos o indiscutível direito de não mais lembrar tristes momentos.

Em vez de nos condenar à memória, bem que o Supremo podia nos ajudar no suplício do que preferíamos que não tivesse acontecido. Valorizar nosso empenho em esquecer por respeito a nós mesmos. Não temos mais como reparar o desastre da juventude. Mas temos o direito de não darmos atenção aos que, nos salões, balbuciam nosso nome com trejeitos e risadas. Esquecer é uma bênção dos céus; rejeitá-la é um grave pecado masoquista de orgulho e pretensão.

Em certo momento adiantado da vida, começamos a nos conformar com o que somos. Seguimos vivendo a combinação patética de euforia e depressão, marca da existência, mas sabemos que o que somos dificilmente deixará de ser o que é. Ninguém vai nos reavaliar. O que foi já foi, não temos como consertar. Para que lembrar de tudo, mesmo que tenhamos sido campeões do mundo ou namorados de princesas? Sempre haverá algo de desagradável, em cada um desses sucessos.

Para a nova humanidade, não existem mais “velhos”, coisas gastas e desnecessárias. Agora somos “idosos”. O que, convenhamos, é muito mais conveniente e impõe um certo respeito. Outro dia, li na internet um post, encaminhado por meu amigo Walter Lima, o cineasta baiano, dizendo que os jovens estão achando nos idosos sinais de adolescência. Somos uma nova faixa social, idolescentes vivendo de um jeito peculiar, inventivo e agitado, capaz de renovadas provocações civilizatórias. A adolescência foi uma invenção de meados do século XX, para dar identidade demográfica e cultural a um desabrochar humano original, depois da Segunda Guerra Mundial. O desabrochar dos idosos é uma invenção desse século XXI, posterior à Guerra Fria, sei lá pra quê.

Como muitos de minha idade, esses que chamo de idolescentes, faço exercícios físicos para manter certa forma. Meu mestre em fisioterapia e shiatsu, o doutor Sashide, me garantiu que o idoso pode fazer tudo que um jovem faz. A diferença é que o idoso tem que fazer uma coisa de cada vez, concentrado no que está fazendo. Se você estiver subindo uma escada, por exemplo, se concentre só nisso, esqueça para onde vai, quem está a seu lado ou que música está tocando mais adiante. Preste atenção apenas a cada degrau, ao espaço em que, no próximo, você vai colocar o pé. A vida talvez fique mais lenta e mais chata, mas certamente mais segura e comprida.

Um amigo meu, cuja jovem filha morreu recentemente de mal incurável, me disse que, mesmo aos 79 anos de idade, só depois desse evento trágico começou de fato a envelhecer. Ele não desejou morrer por causa da morte da jovem e bela menina, a vida apenas perdeu para ele grande parte de sua graça. Agora estou tentando transformar esse meu amigo, com todo o respeito por sua dor, num idoso disposto a viver. Mas, para isso, ele precisa esquecer. Não necessariamente tudo. O rosto de sua filha sem vida, por exemplo, nunca mais deixará sua memória.

Por favor, senhores ministros do Supremo, defendam com ardor a liberdade e a democracia, deem a vida pelas duas. Mas deixem o esquecimento em paz, ele é a garantia de uma existência mais alegre para idosos feito nós.


O Estado de S. Paulo: Supremo rejeita pedido de reconhecimento de ‘direito ao esquecimento’ no País

Por nove votos a um, ministros seguiram entendimento que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição por atingir a liberdade de expressão e o acesso a informações

Paulo Roberto Netto, O Estado de S. Paulo

Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou por nove votos a um o pedido de reconhecimento do chamado ‘direito ao esquecimento’, no qual uma pessoa poderia pedir à Justiça para proibir a publicação ou exibição de um fato antigo, ainda que verdadeiro, sob justificativa de defesa da intimidade. O entendimento cria precedentes que devem modular decisões sobre o tema em todo o País.

O julgamento foi iniciado na semana passada e concluído na tarde desta quinta, 11, com a fixação da tese de que direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição e que eventuais abusos e excessos da liberdade de expressão devem ser analisados caso a caso.

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A proposta foi elaborada a partir do voto do ministro Dias Toffoli, que foi acompanhado nesta sessão pelos ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e o presidente do STF, Luiz Fux. Na quarta, os ministros Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Rosa Weber votaram contra o direito ao esquecimento. O único que divergiu foi o ministro Edson Fachin.

Em seu voto, Cármen Lúcia destacou que um ‘direito ao esquecimento amplo’ como se buscava no Supremo seria um ‘desaforo’ para a sua geração.

“Em um país de triste desmemória como o nosso, discutir e julgar o esquecimento como direito fundamental neste sentido aqui adotado – de alguém poder impor o silêncio e até o segredo de fato ou ato que poderia ser de interesse público – pareceria, se existisse essa categoria no Direito, um desaforo para a minha geração”, afirmou a ministra. “Minha geração lutou pelo direito de lembrar”.

Ricardo Lewandowski, por sua vez, afirmou que o chamado direito ao esquecimento jamais correspondeu a um instrumento jurídico, mas sim a uma ‘aspiração subjetiva de uma pessoa que sente desconforto psíquico com fatos ocorridos no passado’. “A humanidade ainda que queria suprimir o passado, a todo momento é obrigada a revivê-lo”, afirmou.

O decano do Supremo, ministro Marco Aurélio Mello também acompanhou o entendimento da maioria, frisando que a Constituição não permite restrições à liberdade de expressão, pensamento e informação. “Não cabe numa situação como essa simplesmente passar a borracha e partir-se para um verdadeiro obscurantismo”, afirmou.

O presidente da Corte, ministro Luiz Fux, também votou contra o reconhecimento do direito ao esquecimento, afirmando que o instrumento ‘não pode reescrever o passado e nem obstaculizar o acesso à memória, o direito de informação ou a liberdade de imprensa’.

O recurso em discussão envolve uma ação movida pela família de Aída Curi, assassinada em 1958 no Rio de Janeiro. O crime teve ampla cobertura midiática à época e, em 2004, foi reconstituído pelo programa Linha Direta, da TV Globo. Inicialmente, a família de Curi solicitou que o episódio não fosse ao ar e, após a sua exibição, acionou a Justiça em busca de indenizações e pelo ‘direito ao esquecimento’ do caso. A justificativa é que a lembrança do episódio causou sofrimento aos familiares de Aída.

No caso concreto, os ministros também formaram maioria para negar indenizações à família Curi. Os únicos votos proferidos a favor da reparação partiram dos ministros Kassio Nunes Marques e Gilmar Mendes. Apesar de não reconhecerem o direito ao esquecimento, os dois ministros vislumbraram violação à intimidade de Aída Curi por parte da reportagem do Linha Direta.

Na semana passada, o ministro Dias Toffoli votou contra o direito ao esquecimento por considerá-lo incompatível com a Constituição ao restringir ‘direitos da população de serem informados sobre fatos relevantes da história social’.

“É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento assim entendido como o poder de obstar, em razão do tempo, a divulgação de fatos verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação análogos ou digitais”, afirmou Toffoli, ao propor a tese que baseia seu voto. “Eventuais excessos ou abusos da liberdade de expressão devem ser analisados caso a caso a partir dos parâmetros constitucionais relativos à proteção da honra, imagem, privacidade e personalidade em geral”.

Toffoli foi acompanhado por Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Rosa Weber, que votaram na sessão d quarta, 10. Os ministros frisaram que um eventual reconhecimento ao direito ao esquecimento aumentaria o risco de censura no País.

“A liberdade de expressão é ampla e não pode ser limitada previamente. Não vislumbro nenhuma possibilidade de se extrair do texto da Constituição norma, seja sob que determinação for, que proíba a veiculação da notícia em si ou que exija autorização prévia dos envolvidos”, frisou Nunes Marques.

Alexandre de Moraes foi enfático ao afirmar que a existência de um ‘genérico, abstrato e amplo direito ao esquecimento’ seria equivalente à ‘censura prévia’. “Como e quem seria o órgão responsável para estipular se aquelas informações são verídicas, foram desvirtuadas ou são degradantes? Nós teríamos um controle preventivo das informações a serem divulgadas? Isso claramente configura censura prévia. Não há permissivo constitucional que garanta isso”, disse.

A ministra Rosa Weber, que votou por último na sessão de quarta, afirmou o julgamento não busca colocar a liberdade de expressão em suposta posição de supremacia ao direito à privacidade, mas sim ‘delimitar os campos próprios a cada posição’.

“Além de inconstitucional, a exacerbação do direito ao esquecimento é o tipo de mentalidade que, revestida de verniz jurídico, direta ou indiretamente contribui para, no longo prazo, manter um país culturalmente pobre, a sociedade moralmente imatura e a nação economicamente subdesenvolvida”, apontou Rosa, “No Estado Democrático de Direito , a liberdade de expressão é a regra”.

Divergência

Isolado na divergência, o ministro Edson Fachin foi o único que reconheceu a existência do direito ao esquecimento. No entanto, destacou que o caso de Aída Curi não se enquadraria neste contexto pois a reportagem do Linha Direta apenas registrou a trágica realidade da época e do crime.

“Eventuais juízos de proporcionalidade, em casos de conflitos ao direito ao esquecimento e a liberdade de expressão, devem sempre considerar a posição de preferência que a liberdade de expressão possui, mas também devem preservar o núcleo essencial dos direitos da personalidade”, afirmou Fachin.

Especialistas divergem sobre decisão

Juristas ouvidos pelo Estadão divergiram sobre o entendimento da Corte em relação ao direito ao esquecimento. Segundo alguns especialistas, a Constituição já prevê instrumentos que podem ser acionados em casos semelhantes ao de Aída Curi, enquanto outros alegam que o direito ao esquecimento é algo fundamental para o século XXI.

O advogado Carlos Affonso Souza, sócio da Rennó Penteado Sampaio Advogados e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), afirmou que os ministros foram enfáticos em ressaltar que ninguém tem o poder de controlar o próprio passado e as lembranças alheias.

“A ideia de direito ao esquecimento é tentadora, pois parece dar controle sobre as informações que circulam sobre todos nós. Essa tentação é igualmente perigosa e ilusória”, alertou. “É perigosa porque em nome do direito ao esquecimento poderiam ser apagadas ou restringidas informações de interesse público. É igualmente ilusória porque nenhuma ordem judicial pode fazer com que a sociedade se esqueça de alguma informação. Não raramente acontece o justo oposto”.

O ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, Belisário dos Santos Júnior, afirmou que segue o que disse o ministro Alexandre de Moraes, que votou destacando o risco de censura prévia no direito ao esquecimento. “O direito ao esquecimento não é garantido em nosso direito. A liberdade de expressão, embora não seja absoluta, não está sujeita à censura prévia. Os seus excessos podem ser punidos civil e criminalmente”, afirma.

Por outro lado, Ernesto Tzirulnik, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, afirma que o ‘mundo midiático’ tem seus benefícios sociais, mas também ‘tem a sua face perversa’, quando há invasão da privacidade alheia ou quando se ‘banaliza e transforma em coletivo ou atribui falsa relevância àquilo que é irrelevante para as pessoas e principalmente para o conjunto da sociedade’. Sendo assim, ele defende que o ‘direito ao esquecimento, nestes casos, protege os cidadãos contra os danos dessas perversidades’.


Juan Arias: O angustiante dilema de Lula ao final de sua vida política

Os grandes estadistas se consagram ou se destroem quando são incapazes de compartilhar a liderança e de decidir, nos momentos mais dramáticos, de mãos dadas com todos os que desejam o bem nacional

Lula sempre foi e continua sendo um animal político, com seus acertos e desacertos. Poucos como ele carregam a política no próprio sangue. E agora, ao final de seu caminho, vive a maior encruzilhada de sua vida.

É possível que o Supremo lhe ofereça a possibilidade de disputar no ano que vem as eleições contra o nazifascista e genocida Bolsonaro. Não cabe dúvida que seu sonho seria derrotá-lo. É seu último sonho político. Mas sabe também que, no caso de uma derrota, jogaria tristemente por terra seu passado político, que é o oxigênio de sua vida.

Lula, que é um estrategista político indiscutível, talvez já esteja pensando que não lhe convém brincar de roleta-russa, mesmo que o Supremo dê luz verde à sua candidatura.

E talvez por isso já antecipou que, caso não possa ou não queira se arriscar a perder, o candidato dele e do seu partido será Fernando Haddad, e lhe pediu que prepare sua campanha e movimente as ruas.

É uma solução acertada ou se trata de um erro político?

Não que Haddad não seja um bom candidato ―que é―, mas porque já perdeu de Bolsonaro, e porque desta vez Bolsonaro voltará à arena com apoios políticos maiores que da vez anterior, se não for apeado do poder antes disso.

Há anos o presidente que disputa o segundo turno vence as eleições. Foi assim com Fernando Henrique Cardoso, com Lula e com Dilma. Pois nesse caso eles dispõem de toda a máquina do Estado ao seu dispor para a campanha.

Mas tem mais. Essa antecipação em escolher pessoalmente Haddad sem uma ampla consulta ao seu partido só faz enfraquecê-lo. O primeiro alarme foi dado pelo PSOL, onde Guilherme Boulos, que desponta como o líder de uma nova esquerda, já criticou delicadamente que o Brasil vive o perigo de chegar novamente à próxima eleição presidencial com as forças progressistas divididas e ameaçadas de serem derrotadas por Bolsonaro e por aqueles que serão seus novos aliados.

Há muitos anos a esquerda e a social-democracia parecem mais frágeis no tabuleiro político nacional e internacional. E concretamente o PT de Lula não está em seus melhores tempos. Foi derrotado nas últimas eleições municipais e não passou de coadjuvante na disputa pelas presidências da Câmara e do Senado.

Para as forças democráticas, a única chance de derrotar a extrema direita fascista, à qual parece se somar o DEM, é esquecer as brigas domésticas e se apresentarem unidas com um pacto no qual, embora possa haver mais de um candidato para enfrentar Bolsonaro, já cheguem às eleições com um acordo de que na segunda volta se comprometam a apoiar um único candidato, seja ou não do PT.

Por isso acredito que foi um erro que Lula, com sua impulsividade, tenha querido se antecipar em consagrar o seu candidato sem um diálogo prévio não só com seu partido, que já está perdendo força e se encontra dividido, e sim com todos os partidos da chamada frente ampla, esquecendo-se dos cálculos meramente pessoais.

Entende-se que, ao final de seu caminho político, Lula, sempre acostumado a ser obedecido e a decidir imperialmente em seu partido, não queira acabar com a maior derrota da sua história.

Mas Lula sabe muito bem que, diante de problemas graves como os que está vivendo o Brasil, se quiser ganhar as próximas eleições presidenciais terá de estar junto com os outros, e não pensando só em seu partido e em si mesmo.

Os grandes estadistas se consagram ou se destroem quando são incapazes de compartilhar a liderança e de decidir, nos momentos mais dramáticos de um país, de mãos dadas com todos os que desejam o bem nacional, acima de seus interesses pessoais.

O resto é política provinciana e mesquinha, e não a Política com maiúscula, que é aquela à qual pertence Lula, e que poderia acabar perdendo-a melancolicamente.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.


El País: STF ratifica acesso de Lula a diálogos vazados da Lava Jato, mas adia debate sobre validade como prova

Ministros garantiram o pedido da defesa do ex-presidente. Gilmar Mendes usa voto para atacar frontalmente operação e chamar revelações de “maior escândalo da história”

Regiane Oliveira, El País

Por 4 votos a 1, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) seguiu o relator, Ricardo Lewandowski, e garantiu à defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva o acesso às mensagens do Telegram entre procuradores da força-tarefa da Lava Jato e o ex-juiz Sergio Moro apreendidas pela Operação Spoofing―que investiga as invasões por hackers de contas de autoridades brasileiras. Apenas o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato, votou conforme pedido dos procuradores para impedir que os advogados do petista pudessem utilizar o material.

Com essa vitória, a defesa de Lula avança um passo em sua meta de tentar anular os processos do ex-presidente, e não só aqueles julgados por Sergio Moro, na Operação Lava Jato. Mas segue à espera de que o STF julgue se as mensagens podem ou não ser usadas como provas. “Isso é matéria para outra ação”, afirmou Ricardo Lewandowski, que já havia autorizado, em decisão solitária, o acesso da defesa do ex-presidente às mensagens. A questão da autenticidade das mensagens deve ser resolvida no âmbito dos processos em que elas forem juntadas aos autos, quer em petições da defesa de Lula ou de outros réus da Lava Jato. E não há prazo definido para que isso aconteça.

Seriam os hackers de Araraquara ficcionistas?

O julgamento também serviu para medir a humor de ministros do Supremo com os protagonistas da Lava Jato. Os sempre críticos como ministros Lewandowski e Gilmar Mendes, mas também o novato Kássio Nunes Marques, indicado por Jair Bolsonaro, e até Carmen Lúcia, que costuma defender as teses da operação, não aceitaram a petição feita por sete procuradores da força-tarefa, como parte interessada no caso, de que o compartilhamento das mensagens pode afrontar o direito à intimidade das pessoas que tiveram seus celulares invadidos e dados compartilhados.

Os ministros da Segunda Turma estavam alinhados em não discutir a validação dos diálogos como provas, inclusive o presidente, Gilmar Mendes. Ainda assim, ao menos dois ministros deixaram transparecer suas avaliações. “A pequena amostra do material já se figura apta a evidenciar, ao menos em tese, uma parceria indevida entre o órgão julgador e a acusação”, disse Lewandowski. Último a votar, o ministro aproveitou para fazer uma longa explanação e criticar frontalmente a Lava Jato. Fez questão de frisar a gravidade do revelado ―em primeiro lugar, pela investigação Vaza Jato, liderada pelo site The Intercept Brasil e com participação de vários veículos de imprensa, entre eles o EL PAÍS. Recheada por trechos de diálogos entre os procuradores e Sergio Moro, alguns deles apontados por juristas como claramente violadores do princípio de neutralidade dos juízes nos processos prevista na Constituição, também deixaram claro sua posição sobre a questão.

Gilmar citou por exemplo, uma conversa entre o então chefe da força-tarefa Deltan Dallagnol e Moro, em que o procurador explica que estariam apurando sobre as palestras do ex-presidente: “Estamos trabalhando com a colaboração de Pedro Correa, que dirá que Lula sabia da arrecadação via PRC”, referindo-se ao ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa. “Isto tem a ver com o processo penal? Ou esses fatos não existiram ou, se existiram, eles são de uma gravidade que comprometem a existência da Procuradoria-Geral da República”, afirmou. “Se esses diálogos não existiram, os hackers de Araraquara são notáveis ficcionistas”, disse. Caso seja realmente ficção, afirma o ministro, “é preciso que se prove”.

Em outro trecho, Mendes destacou uma conversa em que a procuradora Jerusa Viecili criticava Moro. “Russo tá de sacanagem”, afirmou utilizando o codinome do ex-juiz nos chats dos procuradores. Ela reclamava para o procurador Januário Paludo que o ex-juiz havia dado vistas à defesa e solicitado um pedido do MPF antes do prazo, pois iria viajar. “Essa eu não tinha visto ainda... mas no cpp russo, tudo pode....”, afirmou, referindo-se ao que seria o Código de Processo Penal de Moro.

“É isto que produziu, ministro Fachin, a famosa República de Curitiba. É este o legado jurídico. Isto envergonha. Os sistemas totalitários não tiveram tanta criatividade”, afirmou Mendes, citando a União Soviética e a Alemanha oriental. “Vamos ser julgados pela história se formos cúmplices com este tipo de situação. Nós montamos um modelo totalitário ou alguém é capaz de dizer que há algo de democrático neste CPP Russo”, destacou o ministro do STF, que nem sempre foi um crítico tão ácido da Lava Jato ou de Moro como agora. Em março de 2016, por exemplo, Gilmar Mendes decidiu em julgamento monocrático (solitário) suspender a nomeação de Lula como então ministro do Governo Dilma Rousseff, acusando o petista de tentar fugir de uma ordem de prisão de Moro. Nenhuma palavra de crítica foi feita à divulgação dos áudios entre Lula e Dilma feita pelo juiz. A decisão final do plenário sobre a nomeação de Lula só aconteceria anos depois, já pós-impeachment do Governo petista.

Em seu voto nesta terça-feira, Mendes também criticou o papel do ex-auditor da Receita Federal Roberto Leonel, conhecido colaborador da Lava Jato, que fez inclusive serviços de investigação e coleta de dados fora das petições formais. “Vocês sabem que vivi na Alemanha, e acompanhei a história da Stasi. Muito provavelmente replicamos essa história com a Receita Federal fazendo investigação à sorrelfa”, afirmou, apontando Leonel como “um verdadeiro homem da Stasi na Receita Federal”. O auditor foi indicado pelo então ministro da Justiça Sergio Moro para a presidência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) em janeiro de 2019. Leonel deixou o cargo e se aposentou após o órgão ser transferido para o Ministério da Economia, em setembro de 2019.

A origem do julgamento

Os advogados de Lula ainda não protocolaram uma petição ao STF para que essas mesmas mensagens sejam incluídas nos autos do habeas corpus que pede a suspeição de Moro, um julgamento que o ministro Gilmar Mendes promete colocar de volta em pauta ainda neste semestre.

O julgamento no Supremo teve como origem uma petição ligada a ação penal do caso do Instituto Lula, em tramitação na 13ª Vara Federal de Curitiba.No processo, o ex-presidente é acusado de ter recebido vantagens indevidas do Grupo Odebrecht, como um imóvel em São Paulo para nova sede do Instituto e um apartamento em São Bernardo do Campo, na região metropolitana da capital paulista. Inicialmente, a defesa pediu acesso ao acordo de leniência da Odebrecht, bem como aos documentos correlatos, como perícia nos sistemas da companhia, e documentos trocados entre a força-tarefa e organizações internacionais, como o FBI e o Departamento de Justiça dos EUA (DOJ). As sucessivas negativas tanto dos procuradores como dos magistrados da primeira instância em liberar o acesso fizeram com que a defesa de Lula recorresse ao Supremo. Em agosto de 2020, a Segunda Turma concedeu o acesso aos autos do acordo de leniência da Odebrecht que digam respeito ao petista, que foi atendida de forma restrita. A alegação dos procuradores era de que não havia novos materiais para serem compartilhados. Mas as mensagens divulgadas pela Vaza Jato mostravam que isso não era verdade. Por isso, a defesa voltou ao Supremo pedindo acesso às conversas apreendidas pela Spoofing, e conseguiram.

“A polícia tem acesso aos autos, a Justiça tem acesso aos autos, mas a defesa não tem acesso aos autos? Não é direito fundamental da defesa ter acesso aos autos?”, afirmou a ministra Carmén Lúcia no julgamento. “Não houve nenhum movimento intempestivo deste relator (...) foi uma sequência de decisões para fazer cumprir aquilo que foi determinado e pela [Segunda] Turma desde agosto, de algo que vem sendo sonegado à defesa há quase três anos e que agora, parece, vem a lume”, afirmou Lewandowski ao justificar seu voto.


Merval Pereira: Verdades escondidas

Uma disputa domina os bastidores do Supremo Tribunal Federal (STF), relacionada ao processo politicamente delicado de declaração de parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro na condenação do ex-presidente Lula pelo triplex do Guarujá. Trata-se da permissão à defesa do ex-presidente Lula pelo ministro Ricardo Lewandowski  de ter acesso aos diálogos entre o então juiz Moro e os procuradores da Lava-Jato de Curitiba, notadamente Deltan Dallagnol, roubados por hackers.

Nesta terça-feira, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal toma uma decisão fundamental para o desenrolar do julgamento, que deve ser finalizado ainda nesse primeiro semestre. Os ministros Carmem Lucia e Edson Fachin já votaram a favor de Moro, considerando que não há provas de ilegalidades no processo. Restam os votos de Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que votam em conjunto contra a Lava-Jato, e o de Nunes Marques, cujo voto pode revelar qual é a posição do presidente Bolsonaro.

Só que essa questão, que precede a principal, deveria ser definida pelo plenário do STF, de acordo com decisão anterior do ministro Edson Fachin, que é o relator dos casos da Lava-Jato. O ministro Ricardo Lewandowski, por uma manobra dos advogados de Lula, e falha da secretaria-geral do Supremo, recebeu o habeas-corpus sobre as mensagens roubadas e autorizou o que Fachin anteriormente negara. Pretende levar o caso para a  2ª Turma, onde, acredita ter maioria contra Moro, antes que o plenário decida.

Embora o que esteja em pauta na 2ª Turma seja apenas o caso do triplex, já há um movimento para que a eventual anulação atinja todos os processo contra Lula. O que está por trás dessa disputa é a tentativa de suplantar a Lei da Ficha-Limpa, permitindo que ele concorra à presidência em 2022. Não seria nem preciso que os próprios ministros antilavajatistas pedissem a extensão da anulação, pois bastaria que os advogados de Lula requeressem essa extensão para abrir-se uma nova disputa judicial sobre  os efeitos da anulação.

A outra condenação em segunda instância de Lula foi pelo caso do sítio de Atibaia, mas com um detalhe específico: embora Moro tenha começado o processo, saiu antes do fim para assumir o ministério da Justiça do governo Bolsonaro, e quem condenou Lula foi a juíza Gabriela Hardt. Mas há quem defenda a tese de que se Moro orientou o processo, ele também tem que ser anulado.

Até agora, todas as acusações contra o juiz são baseadas nos diálogos roubados por hackers, o que tornaria essas provas inválidas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já definiu que elas não podem ser usadas, mas a defesa de Lula recorreu ao STF. Em contraponto, a defesa do ex-ministro Sérgio Moro recorreu diretamente ao ministro Edson Fachin, contra a decisão de Lewandowski de liberar os diálogos, considerando que ele não é o “juiz natural” do caso.

Fachin faz parte da 2ª Turma, e deve reivindicar na terça-feira que seja cumprida sua decisão de levar o tema a plenário. O uso retórico dos diálogos como base da acusação de parcialidade de Moro está sendo feito há muito tempo, desde que foram revelados pelo site The Intercept Brazil, mas até agora não houve uso formal. Se o plenário do STF reafirmar que provas conseguidas ilegalmente não podem ser usadas, os ministros da 2ª Turma que votam contra Moro perderão seus argumentos. Terão apenas a primeira acusação da defesa de Lula, de que aceitar de ser ministro de Bolsonaro denotaria sua parcialidade, o que é muito frágil.

Caso prevaleça a tese de que provas ilegais podem ser usadas em favor do condenado, haverá uma avalanche de anulações, e não apenas dos casos de Lula. A “suspeição” de Moro poderá ser arguida por vários condenados por ele que porventura apareçam nos diálogos,  ou que se julguem prejudicados por relações indiretas com outros processos, o que nos levaria a uma situação paradoxal: anular as prisões?  Tornar sem efeito várias, ou todas, as delações premiadas? O que fazer do dinheiro devolvido pelos condenados? O que fazer com os escândalos de corrupção confessados minuciosamente durante os processos do “petrolão”? Jogá-los para baixo do tapete? Fingir que nada aconteceu?


O Globo: Partidos se articulam para barrar indicação de Bia Kicis à CCJ da Câmara

Aliados de Lira acreditam que deputada terá dificuldade de ser eleita pelos futuros integrantes da comissão

Natália Portinari, Bruno Góes e Paulo Cappelli, O Globo

BRASÍLIA — Em meio à reação negativa em torno da escolha da deputada Bia Kicis (PSL-DF) para assumir a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, partidos se articulam para derrubar a indicação ou derrotar a parlamentar no voto.

Veja:Em dez pontos, quem é Bia Kicis, a extremista que vai comandar a comissão mais importante da Câmara

Seu nome foi definido para o cargo em um acordo no PSL, a quem cabe a indicação, mas já há resistência entre parlamentares até no próprio partido. Segundo a deputada, Arthur Lira (PP-AL), o novo presidente da Câmara, ajudou a costurar a combinação que levou à indicação de seu nome.

Aliados de Lira, porém, acreditam que Bia Kicis terá dificuldade de ser eleita pelos futuros integrantes da CCJ. Avaliam, em conversas reservadas, que ela cometeu um equívoco ao anunciar que seria presidente um mês antes da instalação da comissão e que, pelo histórico polêmico, sofrerá resistência.

Presente em atos considerados antidemocráticos nos quais os manifestantes atacavam o Congresso, e ela mesma uma crítica daquilo que aliados de Bolsonaro chamavam de “velha política”, a parlamentar não tem boa relação com líderes partidários. A previsão do entorno de Lira é de que ela seja derrotada por uma candidatura avulsa caso insista.

O PSL tem a prerrogativa de indicar o comandante da CCJ por ter 53 deputados, tendo sido a maior bancada do maior bloco na eleição de Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência da Câmara em 2019. As comissões seguem a proporcionalidade da primeira eleição da legislatura.

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Em geral, pela praxe parlamentar, o designado é eleito sem disputas em votações. Mas essa tradição pode ser rompida, alertam parlamentares, caso o PSL mantenha o nome de Kicis. Ela é investigada em dois inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF): o das fake news e o dos atos antidemocráticos.

Nesse último, Bia Kicis teve seus sigilos bancário e fiscal quebrados por ordem do ministro Alexandre de Moraes. Ela negou à PF ter feito manifestações de apoio ao fechamento do STF e disse que sugeriu aos grupos bolsonaristas que não aderissem a essa pauta. A PGR apontou que ela gastou R$ 6,4 mil de sua cota parlamentar para contratar uma empresa para promover nas redes sociais apoio a manifestações antidemocráticas.

Possíveis adversários

O deputado João Bacelar (Podemos-BA) lançou sua candidatura à presidência da CCJ. “Precisamos de equilíbrio, aqui nesta Casa. Chega de disputas acirradas, conflitos e pressões do governo”, disse, em nota.

Marcelo Ramos (PL-AM), vice-presidente da Câmara e aliado de Arthur Lira, frisa que Bia precisará fazer um “trabalho de diálogo”:

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) é a de maior destaque, tanto da Câmara quanto do Senado, porque a grande maioria das propostas precisa ser apreciada pelo colegiado. É considerado um controle preventivo da constitucionalidade e do ordenamento jurídico.

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Dentro do próprio PSL, há dirigentes e deputados que estimulam o lançamento de outra candidatura para enfrentar Bia Kicis. O mais cotado para a tarefa é Marcelo Freitas (PSL-MG), visto com um parlamentar com bom diálogo com a ala de Luciano Bivar (PSL-PE), presidente do partido, e com o núcleo bolsonarista.

Ao GLOBO, Bivar disse que a bancada é quem deve escolher o nome e evitou responder se apoia Kicis:

— O partido hoje tem novo líder, Vitor Hugo. Então o partido tem o direito a indicar o presidente da CCJ. Mas é preciso ser eleito na comissão.

O acordo costurado por Lira no PSL envolve ceder a Bivar a primeira secretaria na Mesa Diretora. Os bolsonaristas, que pertencem à outra ala do partido, ficariam com a CCJ e poderiam indicar o líder, Vitor Hugo.


O Estado de S. Paulo: 'Não quero o STF interferindo nas minhas funções', diz Bia Kicis

Deputada critica o que considera interferência da Corte no Parlamento e defende fim da CPI das Fake News

Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Indicada para comandar a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a principal da Câmara, a ex-procuradora da República e deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) pretende colocar em votação um projeto para acabar com o que ela chama de "ativismo judicial". Ela é alvo de um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) sob suspeita de organizar atos antidemocráticos no ano passado. "Não quero o STF interferindo nas minhas funções de parlamentar", afirmou Kicis em entrevista ao Estadão/Broadcast.

A parlamentar contou já ter conversado com o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), um dos líderes da bancada evangélica na Câmara, autor de um projeto que inclui na lista dos crimes de responsabilidade a "usurpação de competência do Congresso Nacional" por parte de ministros do Supremo. A proposta está parada na CCJ desde 2016.

Uma das principais apoiadoras do atual governo, a deputada tem a bênção do novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para ser a primeira mulher da história a comandar a CCJ. O colegiado deve ser retomado após o carnaval, depois de ficar um ano parado devido à pandemia do novo coronavírus. Embora formalmente haja eleição para o comando da comissão, o nome do presidente é definido previamente por acordo.

Na entrevista, ela afirma ainda que suas prioridades à frente da CCJ devem ser a reforma administrativa, enviada pelo governo à Câmara no ano passado, as pautas de costumes, como o ensino doméstico (homeschooling), e projetos que barrem a obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19.

O governo passou uma lista de projetos prioritários para o Congresso votar e incluiu medidas da pauta de costume. A sra. vai dar prioridade a essa agenda?

Claro, porque as pautas de costume ficaram completamente obstruídas nos últimos dois anos. É preciso avançar nisso também, buscando equilíbrio. Falei com o deputado Sóstenes (Cavalcante, do DEM, um dos principais líderes evangélicos da Câmara) sobre uma pauta para combater a usurpação de poder do Legislativo, para podermos usar medidas de freio e contrapeso e não permitir ativismo judicial, avançando nas nossas pautas.

A sra. participou, divulgou e convocou pessoas para participar de protestos onde havia pessoas carregando cartazes e pedindo o fechamento do STF, a volta da ditadura...

Mas eu nunca carreguei esses cartazes. Vamos ser muito honestas aqui. Tem uma manifestação com 10 mil pessoas de verde e amarelo, bandeira do Brasil, cantando o Hino, apoiando o presidente. Ai, você tem um grupinho de uma ou duas pessoas ali com um cartaz. Qual é a responsabilidade que temos sobre isso?

A sra. é contra o fechamento do STF?

Óbvio que sou contra, sou uma jurista. Quero um Supremo que funcione cumprindo seu papel constitucional. Eu sou contra o ativismo judicial do STF. Agora, como parlamentar, não quero o STF interferindo nas minhas funções de parlamentar. É muito diferente. E outra, relatório da PF já disse que não tem nenhum elemento para indiciar a mim ou qualquer outra pessoa no inquérito. Eu não sou investigada em nenhum crime.

E na investigação da CPI da Fake News?

Essa CPI da Fake News teria de acabar, ela é uma vergonha e foi uma armação.

Por quê?

Primeiro que não existe conceito de fake news. Segundo que pegaram pessoas que expressam sua opinião nas redes para dizer que é fake news. Os fatos que disseram que eu teria espalhado fake news, eu ganhei na Justiça por provar que o que eu falei era verdade. Um atestado de óbito de um borracheiro que dizia que ele morreu de covid-19.

A sra. é uma das principais aliadas do governo na Câmara e associada ao bolsonarismo mais radical. Acha possível fazer acordos com a oposição para que projetos importantes para o País avancem na CCJ?

Me sinto perfeitamente apta, tanto com capacidade jurídica para isso, como com capacidade política. Existe muita narrativa que não se sustenta, na realidade, quem conhece meu trabalho, sabe que eu sou uma pessoa de diálogo, de negociar.

A sra. vai sentar à mesa com o PT para conversar?

Fiz isso por um ano e meio como vice-líder do governo no Congresso, conversei com todos da oposição e tivemos um excelente relacionamento.  

A Câmara discute medidas que podem dificultar a punição a políticos corruptos, como uma revisão da Lei de Improbidade, afrouxar a lei de lavagem e restringir o compartilhamento de dados por órgãos de investigação. Pelo seu histórico de ativismo anticorrupção, a sra. vai combater essa agenda?

Estava assistindo um debate sobre a Lei de Improbidade com vários advogados dizendo que existe um projeto no Congresso que é muito bom, que vai avançar muito. Então, pretendo ver esse projeto. Mas a primeira coisa que preciso fazer é tomar pé do acervo que está na CCJ. 

São mais de mil projetos parados.

Mas tem muito projeto irrelevante que eu não pretendo pautar como, por exemplo, dar nome de rua. Acho que não é isso que temos de fazer agora, não é o que o País precisa, precisamos focar nas reformas. Administrativa é prioridade absoluta e também pautas de costume, temos ai homeschooling.

Reforma administrativa vai ser o primeiro projeto que a senhora vai pautar?

Chegando na CCJ, sim, vai ser o primeiro. Mas preciso ver em que pé  está. Ainda não tem relator nem nada. Mas será prioridade assim que chegar lá.

Existe possibilidade de algum projeto para barrar a obrigatoriedade da vacina?

Eu sou autora de um projeto, mas não existe só o meu. Sou favorável para que tenha vacina para todo mundo. Meu pai já tomou vacina. Ele tem 90 anos e tomou a primeira dose da Coronavac, está esperando a segunda.

Como as bandeiras de Bolsonaro devem avançar agora nesse novo Congresso?

Falei com Lira sobre isso e ele disse que a intenção é pautar junto com os líderes. Ele me disse: "nosso Congresso é conservador". Então, pautas conservadoras andarão. (O ex-presidente da Câmara, Rodrigo) Maia (DEM-RJ) sentava em cima, ele não dava chance de ir para o voto.

O que sra. fará se chegar um processo de impeachment na CCJ?

Isso seria absolutamente enterrado, porque é preciso ter crime do presidente Bolsonaro. Mas acredito que não chega até a CCJ, antes é necessário que processo seja admitido pela presidência da Casa e ele (Lira) não deve admitir. Não há indícios que sustentem um pedido.

Existe a chance de a senhora não ser a presidente da CCJ?

Só se houver uma quebra de acordo, o que vai ser muito ruim para o Congresso. Isso iria desmoralizar uma gestão que chegou com o compromisso de acordo.

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Na primeira metade de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro não conseguiu emplacar suas pautas de costumes. A expectativa dele era que, a partir deste ano, com as duas casas comandadas por seus aliados, o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a situação mudasse. Mas não é o que parece que ocorrerá. Nesta quarta-feira, na abertura do ano legislativo, Lira e Pacheco se comprometeram a pautar temas ligados ao crescimento da economia, mas não com a agenda ultraconservadora do presidente.

Em uma relação enviada aos parlamentares pela Secretaria de Governo, Bolsonaro citou que gostaria que nos próximos anos fossem debatidos temas como a permissão para mineração em terras indígenas, alterações no estatuto do índio, a ampliação do porte de armas para a população em geral, a licença para militares matarem quando estiverem em operações de garantia de lei e ordem (as GLOs), além da permissão para o ensino escolar domiciliar, o homeschooling.

Mais cedo, contudo, os presidentes de Câmara e Senado assinaram um documento no qual se comprometem a se empenhar em pautar medidas para o combate à pandemia de covid-19, a reforma tributária e às propostas de emendas constitucionais dos fundos infraconstitucionais e a emergencial. Essas duas últimas tratam da destinação de recursos da União para Estados e Municípios.

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Apesar de um aparente descompasso inicial, o presidente Bolsonaro disse estar confiante na relação com os dois parlamentares. “O clima [é o] melhor possível. Imperará harmonia entre nós”, declarou após um encontro com Lira e Pacheco na manhã de quarta-feira. O Governo ainda pediu dedicação do Parlamento na análise da reforma administrativa e da privatização da Eletrobrás. Algo que, inicialmente, não estava necessariamente no radar de prioridades do Congresso.

Na relação enviada pelo Executivo também constam propostas feitas para agradar os ruralistas, como os projetos de lei que pretendem alterar a regularização fundiária, o licenciamento ambiental e a concessão de áreas florestais.

No ato de abertura do ano legislativo, o presidente foi vaiado por deputados do PSOL, que fazem oposição ao seu Governo. Eles o chamaram de “genocida” e “fascista”. Em tom de deboche, o mandatário disse que em seus 28 anos de parlamentar sempre respeitou as autoridades que frequentaram o plenário da Câmara. E retrucou: “Nos vemos em 22”. Era uma alusão à eleição presidencial prevista para ocorrer em outubro do ano que vem na qual ele deve ser candidato à reeleição.

Reforma à vista

A relação inicial entre o Executivo e o Legislativo servirá de teste para Bolsonaro começar a pagar a fatura com o Centrão, responsável pela eleição de Lira para a presidência da Câmara. Auxiliares do presidente relataram que, ao invés de entregar os prometidos quatro ministérios já neste mês, o presidente pretende fazer uma reforma ministerial a conta-gotas. Seria uma estratégia para não deixar tão evidente o toma-lá-dá-cá que foi a eleição no Parlamento. Duas pastas da Cidadania e do Desenvolvimento Regional seriam entregues nas próximas semanas ao Centrão e ao grupo de Davi Alcolumbre (DEM-AP), que apadrinhou a candidatura de Pacheco. O presidente ainda estuda como iria acomodar os atuais ministros, Onyx Lorenzoni e Rogério Marinho, respectivamente. Lorenzoni deve ir para a Secretaria-Geral da Presidência. O destino de Marinho é incerto.

Numa segunda etapa, o presidente poderia recriar o Ministério da Previdência e o do Esporte, para alocar indicados do Centrão. Ainda há a possibilidade de dar as pastas ou da Saúde ou da Educação para os neoaliados. Outra troca deve ocorrer no Itamaraty. Mas essa seria uma indicação pessoal de Bolsonaro e um aceno ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já que o atual ministro, Ernesto Araújo, foi um dos que mais empenhou na relação com Donald Trump.

As mudanças ocorreriam conforme os neobolsonaristas passassem a fazer a sua parte, ou seja, a aprovar os projetos de interesse do Planalto. Ainda não está claro para o Governo qual é o tamanho real de sua bancada. Na Câmara, 302 dos 513 deputados votaram no candidato de Bolsonaro, Lira. Mas sabe-se que houve traições entre parlamentares que os partidos oficialmente apoiavam Baleia Rossi (MDB-SP). No Senado, entre os 57 votos de Pacheco (entre 81 possíveis) houve apoios do PT, da Rede e do PDT, que são declaradamente opositores e tentam emplacar uma CPI da Saúde, para investigar a atuação do Governo na pandemia de coronavírus.

A ocupação de espaços internos da Câmara e do Senado também demonstrarão qual é o real tamanho do empenho dos bolsonaristas. O primeiro teste de fogo será a disputa pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Esse é o principal colegiado da Casa, por onde passam todos os projetos de lei. Em tese, o cargo seria de direito do PSL, que indicou a deputada Bia Kicis (PSL-DF). Em seu primeiro mandato, ela é defensora de um golpe militar, é aliada de primeira hora do presidente e foi apontada como uma das principais disseminadoras de desinformação da Câmara. Há uma tentativa de demovê-la da ideia de assumir o cargo. Apesar da indicação do partido, a escolha de presidentes de comissões depende da votação dos membros de cada colegiado. A derrota de Kicis seria a derrota de Bolsonaro.