STF
Merval Pereira: 1 a 7
Chama-se tecnicamente “pedido de vista obstrutivo” o que o ministro Dias Toffoli fez ontem no julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a restrição ao foro privilegiado dos parlamentares federais. Seguindo um roteiro previamente organizado, depois de encontro com o presidente Michel Temer fora da agenda, Toffoli impediu que a decisão majoritária do plenário do Supremo se materializasse. Nesse caso, ele ganhou de 1 a 7, como se a seleção brasileira pudesse reverter o resultado do jogo contra a Alemanha na Copa do Mundo pedindo vista.
A votação já estava 6 a 1 quando Toffoli pediu vista, alegando que o Congresso estava tratando do assunto com a tramitação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC). O ministro Celso de Mello adiantou seu voto mesmo assim, ampliando o placar para 7 a 1. O mais grave é que esse comportamento tem sido recorrente, colocando ministros do Supremo como partícipes do jogo político.
O ex-ministro Sepúlveda Pertence criticava o recurso à obstrução, alegando que ele atende a uma lógica parlamentar que não deveria ser utilizada numa Corte Judiciária. A ideia de que temos 11 Supremos, lançada em estudos da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio, fica reforçada cada vez que um ministro resolve assumir sozinho uma decisão, mesmo depois que o colegiado já se manifestou majoritariamente sobre o tema.
Muito pior é quando um ministro toma uma decisão alegando que a questão não está resolvida pelo plenário. Foi o caso de Ricardo Lewandowski, que devolveu à Procuradoria-Geral da República (PGR) os termos do acordo de delação premiada de Renato Pereira, marqueteiro do ex-governador do Rio Sérgio Cabral.
O STF já havia decidido que não cabe ao relator questionar os termos do acordo do Ministério Público na homologação, mas apenas verificar seus aspectos formais. O questionamento deve ser feito no final do processo, à luz da eficácia do acordo. Não obstante, Lewandowski devolveu o acordo, questionando diversos aspectos, e foi apoiado publicamente pelo ministro Gilmar Mendes, que alega que não houve uma definição da Corte sobre o caso. Ele diz, ironicamente, que nem mesmo o ministro Fachin sabe o que foi decidido naquele julgamento.
O fato, a corroborar o que Gilmar Mendes diz, é que ninguém questionou a atitude de Lewandowski. É diferente da decisão de ministros que, sorteados relatores de um recurso contra a prisão depois da segunda instância, soltam os réus porque são contra a decisão do plenário. Neste caso, como o que houve foi uma permissão para, a critério do juiz, prender o condenado em segunda instância, é perfeitamente normal que um juiz que considere que só depois do trânsito em julgado é possível prender alguém não autorize a prisão.
O pedido obstrutivo tem mais uma característica: o ministro, para atingir seu objetivo, fica com o processo vários meses, na tentativa de tornar inútil ou anacrônica a decisão da maioria. O próprio Toffoli fizera anteriormente um pedido extemporâneo de vista de outro processo, o que definia que políticos na linha de substituição do presidente da República não podem ser réus.
Essa decisão já tinha maioria em plenário, mas Toffoli pediu vista e, passadas nove sessões, não devolveu o processo, embora o regimento do STF seja expresso quando diz que o processo deve ser devolvido até a segunda sessão ordinária subsequente.
Nesse caso, deu certo, pois alguns votos foram reformulados na volta do julgamento, ou explicados melhor, como alguns ministros alegaram, e, por pressão do Congresso, o senador Renan Calheiros saiu da linha de substituição presidencial, mas pode terminar seu mandato sem problemas.
No STF já houve casos em que um processo ficou anos com um dos ministros, alguns continuam mofando em gavetas, outros, mais recentemente, estão há anos aguardando uma decisão. O ministro Gilmar Mendes levou um ano e cinco meses com um pedido de vista da ação que questionava o financiamento empresarial de campanhas eleitorais, e só liberou o processo um dia após a Câmara aprovar as doações de empresas a políticos.
O Projeto de Lei 5.735/2013 limitava as contribuições a 2% do faturamento bruto da companhia no ano anterior à eleição até o teto de R$ 20 milhões — medida já prevista pela lei atual. Além disso, os repasses feitos a um mesmo partido não poderiam ultrapassar 0,5% desse faturamento.
No entanto, a maioria dos ministros manteve a interpretação de que o financiamento empresarial é inconstitucional, e ele está proibido até que o Congresso consiga maioria para fazer uma emenda constitucional que o autorize. Mesmo assim, o STF pode considerar que não é possível o Congresso autorizar uma inconstitucionalidade. No caso atual, tudo indica que o Congresso assumiu a tarefa para não decidir nada e não deixar o STF decidir. A PEC está em tramitação do Senado para a Câmara há seis meses e não deverá progredir no ano eleitoral.
Merval Pereira: Foro pode ser adiado
Mais uma vez, pode ser que manobras regimentais impeçam que o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre restrições ao foro privilegiado se conclua hoje, até mesmo por novo pedido de vista. A justificativa dos que não querem uma decisão definitiva é que o Congresso está tratando do assunto e não caberia ao STF legislar, se imiscuindo em um assunto que diz respeito ao Congresso.
Foi assim em maio, quando o ministro Luís Roberto Barroso, relatando o caso de um prefeito, propôs alterações no regime de foro especial por função. Já havia uma emenda constitucional tramitando no Senado, e a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo, não colocou o assunto na pauta antes, esperando uma decisão do Congresso.
Como a tramitação da emenda constitucional não progredia, pois, além da análise da Comissão de Constituição e Justiça, seriam necessárias duas votações para encaminhar o projeto para o Senado, a presidente do Supremo recolocou-o na pauta daquele mês.
A proposta afinal aprovada no Senado é bem mais ampla que a decisão que o STF poderá tomar, pois o caso em pauta apenas restringe o foro privilegiado, mas não o extingue no processo em que o relator, ministro Luís Roberto Barroso, aproveitando o caso de um prefeito de Cabo Frio, defendeu a interpretação restritiva do foro privilegiado.
Imediatamente, o Senado colocou em discussão uma proposta de emenda constitucional muito mais rigorosa do que a defendida por Barroso. Enquanto o ministro propôs que o foro privilegiado só abrangesse crimes cometidos durante o mandato, e em decorrência do mandato, a proposta do senador Álvaro Dias, relatada por Randolfe Rodrigues, acaba com o foro privilegiado, sendo exceções o presidente da República e seu vice, o presidente do Supremo Tribunal Federal e os presidentes da Câmara e do Senado.
Como muitos desconfiavam, a intenção dos senadores ao aprovar em primeiro turno o fim do foro privilegiado para todos os níveis não era resolver a questão através de uma emenda constitucional, mas fazer o Supremo Tribunal Federal (STF) retirar de sua pauta o tema e ganhar tempo para controlar o processo decisório.
No julgamento do STF, o recém-chegado ministro Alexandre de Moraes pediu vista, mas três ministros anteciparam seus votos — a própria presidente Cármen Lúcia, a ministra Rosa Weber e o ministro Marco Aurélio Mello, todos acompanhando o relator, com pequenas alterações. Queriam demonstrar que não concordavam com o pedido protelatório de Moraes.
Somente agora o ministro devolveu o processo, que voltou à pauta para a sessão de hoje. Não por acaso, a proposta de emenda constitucional que está na Câmara, depois de passar no Senado seis meses, deu o primeiro passo ontem, ao ser aprovada na Comissão de Constituição e Justiça. Terá ainda que passar por uma Comissão Especial para depois ir a plenário, em duas votações.
Embora o deputado Efraim Filho, relator da PEC na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, tenha comemorado a aprovação por unanimidade, é previsível que outros seis meses, pelo menos, serão gastos na tramitação do projeto, sem contar com os meses de recesso de fim de ano e o Carnaval. Com o início das campanhas eleitorais, provavelmente este assunto não será tratado pela Câmara no próximo ano, mas é provável que hoje, na reunião do plenário do Supremo, algum dos ministros peça vista novamente, alegando justamente que o Congresso já está tratando do assunto.
Enquanto isso, tudo continuará como dantes no quartel de Abrantes. Com a possibilidade de que o foro privilegiado seja até ampliado para os ex-presidentes, num acordão suprapartidário para beneficiar diretamente Luiz Inácio Lula da Silva e Michel Temer.
Merval Pereira: Contenção de danos
Mais um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) se pronunciou sobre a decisão da Assembleia Legislativa do Rio de soltar seu presidente, deputado Jorge Picciani e outros dois deputados estaduais condenados pelo Tribunal Regional Federal da 2 ª Região (TRF- 2). Uma decisão “lamentável, vulgar e promíscua” na definição do ministro Luiz Fux, que fala com o peso de quem vai presidir o Tribunal Superior Eleitoral ( TSE) no ano que vem, o da eleição geral brasileira.
OTRF- 2 vai tratar do assunto novamente hoje, e é praticamente certo que os deputados estaduais serão, pelo menos, mantidos afastados de seus mandatos enquanto durarem as investigações, como pede o Ministério Público.
A interpretação de que os deputados estaduais têm a mesma imunidade que os federais é contestada pelos ministros do Supremo, mesmo que os regimentos de diversas Assembleias façam essa correlação, com base na Constituição, que nunca foi diretamente contestada, mas será desta vez, pois a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) já entrou com uma ação no Supremo contestando a possibilidade de as Assembleias poderem determinar a soltura de presos, o que só pode ser feito pela Justiça.
Quer também a AMB que os deputados continuem afastados dos seus mandatos, pois parece pacífico que a decretação da prisão para deputados, mesmo estaduais, só pode ser definida com a aprovação da Assembleia, mesmo em caso de flagrante de crime inafiançável.
A interpretação corrente de que, pelo artigo 27, os deputados estaduais têm automaticamente as mesmas regalias que os federais é contestada porque certas decisões são pontuais, como a em relação a medidas cautelares diversas da prisão, não estão previstas na Constituição, tendo sido objeto de análise específica em relação aos parlamentares federais.
Todos os deputados estaduais que foram soltos nos últimos dias, devido a uma interpretação equivocada da decisão do Supremo em relação a medidas cautelares impostas pela Justiça a deputados federais e senadores, estão em situação ilegal.
No caso dos deputados estaduais do Rio, somente o TRF- 2 poderia ter determinado a soltura, e é o que seus componentes — que condenaram os três por unanimidade dos cinco membros da Turma que julgou o caso — vão reafirmar na sessão de hoje.
A indignação do ministro Luiz Fux seguiu-se à afirmação de outro colega seu, Marco Aurélio Mello, que se disse abismado com a interpretação das Assembleias Legislativas. As expressões duras refletem o sentimento da maioria, se não da unanimidade, dos ministros, que estão se sentindo usados pelas Assembleias e não querem ficar diante da opinião pública como responsáveis pela impunidade de políticos estaduais. Trata- se de uma contenção de danos da mais alta Corte, colocada em xeque pela opinião pública.
A decisão, que acabou sendo utilizada para liberar o senador Aécio Neves ( PSDB) do afastamento do mandato definido pela Primeira Turma, já causou bastante desgaste ao Supremo Tribunal Federal, e seus componentes não querem mais esse fardo sobre os seus ombros.
Mesmo tendo pedido licença de seus mandatos, numa aparente manobra para evitar prováveis punições, os deputados estaduais do Rio serão suspensos, caso o TRF- 2 assim decida, como tudo indica. O recurso ao Supremo fará com que a última instância se pronuncie, e é possível que, diante do que está sendo considerado abuso da interpretação legal, a maioria do plenário do Supremo decida que as medidas cautelares diversas da prisão não necessitam da aprovação das Assembleias, diferentemente do caso dos parlamentares federais, que foram beneficiados por uma interpretação alargada da imunidade prevista na Constituição, que só aborda a prisão.
Com essa confusão toda, o julgamento de quinta- feira sobre a limitação do foro privilegiado ganha importância política reforçada, já que o tema da impunidade de parlamentares, em qualquer nível da representação, está na ordem do dia da cidadania.
Merval Pereira: Confusão jurídica
Para STF, decisão do caso Aécio não vale para Alerj. Vamos entrar agora na fase de amplo debate jurídico-político para definir com quem está a razão no caso dos deputados de vários Estados, os mais notórios os do Rio de Janeiro, que se utilizaram de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) para se verem livres de medidas cautelares impostas pela Justiça, como a suspensão dos mandatos.
Vários ministros do Supremo, abertamente como é o caso de Marco Aurélio Mello, ou veladamente, como a maioria, anunciam que o acórdão sobre essa decisão do Supremo deixará claro que ela só se refere a parlamentares federais, ou seja, deputados e senadores, e não pode ser estendida aos deputados estaduais e vereadores.
A Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) vai recorrer ao STF para anular a decisão da Assembleia do Rio de Janeiro e de outros Estados que utilizaram uma interpretação ampliada da decisão do Supremo, que consideram equivocada.
Mesmo que o artigo 27, parágrafo 1º da Constituição Federal defina que “será de quatro anos o mandato dos deputados estaduais, aplicando-se-lhes as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas”, segundo a direção da AMB o STF em outras situações já definiu que a imunidade dos deputados estaduais e de vereadores não tem a mesma extensão da imunidade de deputados federais e senadores.
Isto quer dizer, segundo especialistas, que as regras de inviolabilidade e imunidade de que desfrutam deputados federais e senadores não são tão amplas para os deputados estaduais, que são protegidos apenas “por qualquer de suas opiniões, palavras e votos”, conforme o artigo 53 da Constituição.
Por outro lado, o Supremo já decidiu que (...) “O Poder Judiciário dispõe de competência para impor aos parlamentares, por autoridade própria, as medidas cautelares a que se refere o art. 319 do Código de Processo Penal, seja em substituição de prisão em flagrante delito por crime inafiançável, por constituírem medidas individuais e específicas menos gravosas; seja autonomamente, em circunstâncias de excepcional gravidade”.
Portanto, a suspensão do mandato a que os três deputados estaduais foram condenados pelo TRF-2 poderia ser aplicada sem precisar de autorização da própria Assembleia, pois a decisão do Supremo se refere apenas aos parlamentares federais, que, condenados a medidas cautelares, precisam do aval da Casa Legislativa a que pertencem.
Já a prisão, mesmo que em flagrante por crime inafiançável, esta seria proibida também em relação aos deputados estaduais e vereadores, só podendo se concretizar se a Assembleia Legislativa ou a Câmara de Vereadores autorizar, como consta da Constituição.
É evidente que, dessa confusão política, deve-se tirar a lição de que as decisões do Supremo, por sua repercussão, precisam ficar claras antes mesmo que o acórdão seja divulgado, pois os julgamentos são televisionados. Ao mesmo tempo, parece indevida uma decisão de repercussão geral sem que o acórdão esteja publicado.
Os deputados estaduais e vereadores que se beneficiaram de uma interpretação apressada da decisão do Supremo estão ilegalmente soltos, pois não é uma ação das Assembleias e Câmaras de Vereadores que determina a soltura dos presos.
No caso dos três do PMDB do Rio, a decisão deveria ter sido do TRF-2, que determinou as penas. O tribunal de recursos deveria ter recebido o comunicado sobre o resultado da votação da Assembleia e, a partir dela, decidir, com base na sua interpretação, e não na dos deputados estaduais, o que determina a legislação em vigor. Pelo visto, a Assembleia Legislativa do Rio deveria ter votado sobre a prisão dos deputados, e não sobre o afastamento do mandato.
Merval Pereira: Lewandowski contra o STF
Ao devolver à Procuradoria-Geral da República, sem homologar, a delação premiada do marqueteiro Renato Pereira, o ministro Ricardo Lewandowski está indo de encontro a uma decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) em que ficou derrotado pela maioria. Ele está, monocraticamente, se rebelando contra uma decisão final da própria Corte da qual faz parte.
No julgamento que definiu que os acordos gerados pelas delações premiadas só podem ser revistos caso seja constatada alguma ilegalidade, com base no §4º, artigo 966 do Código de Processo Civil, a maioria do plenário decidiu que o STF deveria avaliar a eficácia pura e simplesmente do acordo firmado, e não seu mérito.
Foi o decano Celso de Mello quem melhor definiu a postura do Supremo, afirmando durante os debates que o STF não pode recusar homologação de acordo de delação premiada aprovado pela Procuradoria-Geral da República, como fez agora Lewandowski, sob o risco de arquivar a investigação.
Pelo entendimento vitorioso no plenário, a legislação em vigor não permite a intervenção do magistrado nessa fase do processo. A homologação só deve levar em conta aspectos formais da delação, como definiu no voto que liderou a divergência o ministro Luís Roberto Barroso: os acordos fechados pela Procuradoria-Geral são analisados em um primeiro momento pelo relator dos processos, apenas sob o prisma da voluntariedade, espontaneidade e legalidade, e num segundo momento, pelo colegiado, na hora de dar a sentença, pela eficácia das denúncias.
Pelo texto aprovado por sugestão do ministro Alexandre de Moraes e assumido pelo relator, Edson Fachin, somente quando forem encontradas ilegalidades fixadas no Código de Processo Civil os acordos poderão ser anulados.
De maneira geral, será preciso que a sentença tenha sido fruto de “prevaricação, concussão ou corrupção do juiz”; “resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei”; “violar manifestamente norma jurídica; “for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória”.
Ou que fatos supervenientes sejam descobertos “posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável”.
A tese vencedora, explicitada pelo decano Celso de Mello, foi a de que o Ministério Público não pode ser surpreendido por um “ato desleal” do Judiciário, sendo “dever indeclinável” do Estado “honrar o compromisso assumido no acordo de colaboração”, desde que o colaborador cumpra a sua parte.
“Não há sentido que, homologado o acordo e cumpridas as obrigações assumidas, venha o colaborador a ser surpreendido por um gesto desleal do Estado representado pelo Poder Judiciário.”
Ao devolver para a PGR a delação de Renato Pereira, marqueteiro de Sérgio Cabral, Ricardo Lewandowski criticou a competência do Ministério Público para negociar acordos de colaboração premiada, tentando reavivar uma tese que foi derrotada meses antes no plenário do STF.
Caso prevalecesse a tese do ministro Gilmar Mendes de que o STF poderia analisar e mudar os acordos feitos entre a Procuradoria-Geral e os delatores, a delação premiada estaria em risco, e é o que está acontecendo neste momento com a decisão do ministro Lewandowski. Na ocasião, autor da tese derrotada, o ministro Gilmar Mendes declarou que a partir daquela decisão as homologações dificilmente seriam feitas monocraticamente, e que pretendia aproveitar a brecha que vislumbrava para analisar os acordos para além de sua eficácia.
Ele se referia ao final do processo, quando o plenário do Supremo tem que analisar a eficácia da delação premiada já homologada para conferir se ela produziu os efeitos previstos. Mas o ministro Lewandowski, ao devolver para a PGR a delação e, mais que isso, retirar seu sigilo, ainda na fase de homologação, está assumindo uma posição contrária à decisão da maioria dos seus pares, com isso criando uma insegurança jurídica que pode colocar em xeque as delações premiadas em negociação.
Dependendo do desfecho desse caso, muitos delatores não se sentirão garantidos para negociar com o Ministério Público.
Merval Pereira: Defesa da democracia
Dois anos e quatro meses depois de ter tomado a já famosa decisão a favor da liberdade de expressão, liberando as biografias não autorizadas com a frase de uma brincadeira infantil — “Cala a boca já morreu, quem disse foi a Constituição” — para garantir um dos mais importantes direitos humanos, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármem Lúcia, outra vez assumiu posição de vanguarda democrática.
O ponto central era o mesmo, a possibilidade, negada pela ministra, de uma censura prévia, desta vez no caso das redações do Enem, cujo edital repetia uma determinação que há anos vigora, a partir de governos petistas, que afinal foi derrubada na Justiça. Anular, dando nota zero a redações cuja abordagem pelo candidato fosse considerada atentatória aos direitos humanos.
Diversos movimentos consideram que, por ser uma decisão subjetiva, essa determinação constrangia os candidatos, impedindo-os de defender pontos de vista que pudessem ser criticados pela banca examinadora. Assim como impedindo o “cala boca” governamental, a ministra decidiu que biografias não podem ser previamente censuradas por qualquer cidadão ou autoridade, pois exigir prévia autorização seria o mesmo que impor censura, também agora a ameaça de impugnação anterior à realização da prova deixou de existir.
O sentido da decisão de Cármem Lúcia foi o mesmo nos dois casos: a liberdade de expressão — tanto de informar quanto de ser informado — tem na Constituição uma proteção, como exigência para a manutenção de uma democracia pluralista.
O ex-presidente do Supremo, ministro aposentado Ayres Brito, havia se pronunciado anteriormente na mesma direção, afirmando que a decisão de dar nota zero às redações que fossem consideradas atentatórias aos direitos humanos representava uma censura prévia. Para o ministro, a banca examinadora, caso a caso, pode decidir se uma redação merece ser impugnada por ofender os direitos humanos.
O mesmo argumento foi usado por Cármem Lúcia: “Não se desrespeitam direitos humanos pela decisão que permite ao examinador a correção das provas e a objetivação dos critérios para qualquer nota conferida à prova. O que os desrespeitaria seria a mordaça prévia do opinar e do expressar do estudante candidato”, afirmou a presidente do STF.
Ela atendeu a liminar concedida pelo desembargador Carlos Moreira Alves, do TRF da 1ª Região, que suspendia esse trecho do edital a pedido da Associação Escola Sem Partido, para a qual o critério não é “objetivo” e tem “conteúdo ideológico”. O caso foi levado ao Supremo em recursos da Advocacia Geral da União e da Procuradoria Geral da República.
A norma do Inep, que já existia há anos, foi adotada pelo governo Temer, e o próprio ministro da Educação, Mendonça Filho, chegou a fazer um apelo aos candidatos para que não desrespeitassem os direitos humanos em suas redações no Enem. Embora fosse um apelo correto, o sentido de apoiar a portaria do Inep dava à tentativa de censura prévia um endosso governamental na mesma linha de governos anteriores.
Para Cármem Lúcia, o cumprimento da Constituição da República “impõe, em sua base mesma, pleno respeito aos direitos humanos, contrariados pelo racismo, pelo preconceito, pela intolerância, dentre outras práticas inaceitáveis numa democracia e firmemente adversas ao sistema jurídico vigente. Mas não se combate a intolerância social com maior intolerância estatal. Sensibiliza-se para os direitos humanos com maior solidariedade até com os erros pouco humanos, não com mordaça.”
O tom didático da decisão da presidente do STF ficou claro: “O que se aspira é o eco dos direitos humanos garantidos, não o silêncio de direitos emudecidos. Não se garantem direitos fundamentais eliminando-se alguns deles para se impedir possa alguém insurgir-se pela palavra contra o que a outro parece instigação ou injúria. Há meios e modos para se questionar, administrativa ou judicialmente, eventuais excessos. E são estas formas e estes instrumentos que asseguram a compatibilidade dos direitos fundamentais e a convivência pacífica e harmoniosa dos cidadãos de uma República.”
Depois de decisões polêmicas na judicialização da política, que provocaram muitas críticas, Cármem Lúcia voltou a assumir a defesa da democracia em questões que afetam o dia a dia do cidadão comum, uma boa maneira de valorizar o pluralismo democrático.
Helena Chagas: A agenda oculta de Michel
A agenda pública de Michel Temer hoje é aprovar reformas no Congresso que ajudem a alimentar o clima de recuperação da economia e passar à história como um presidente reformista.
A agenda não declarada, mas prioritária, é uma só: não ir parar na cadeia a partir de 1 de janeiro de 2019, quando passa a presidência ao sucessor e, teoricamente, perde a proteção constitucional e a prerrogativa de foro inerentes ao cargo.
É real a possibilidade de Michel e seus auxiliares mais próximos no Planalto, como Eliseu Padilha e Moreira Franco, irem parar nas mãos de juízes como Sérgio Moro, Marcelo Bretas ou Vallisney Oliveira, dependendo do caso, para serem investigados e processados. Só para lembrar: o presidente já foi alvo de duas denúncias, temporariamente arquivadas, por corrupção, obstrução de Justiça e organização criminosa, e é investigado no inquérito que apura irregularidades no Porto de Santos.
A fogueira ganhou mais lenha com a decisão desta quarta do ministro do STF Edson Fachin de enviar a Moro as acusações por organização criminosa contra os demais personagens citados na segunda denúncia de Rodrigo Janot: Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Henrique Eduardo Alves e Rodrigo Rocha Loures. A leitura nos meios políticos e jurídicos é de que se trata de um aviso aos navegantes, e o ministro usa a palavra "suspensas" ao se referir às denúncias contra Temer, Padilha e Moreira, rejeitadas pelo plenário da Câmara.
Aliás, o argumento de que estavam apenas "suspendendo" o andamento do processo contra o presidente, a fim de preservar a economia do país, foi amplamente utilizado pelos deputados que votaram com o Planalto. Nos microfones, os que tiveram coragem de falar algo a mais do que a palavra "sim", explicavam que, encerrado o mandato, Temer será investigado.
Tudo indica que para valer, e pelo pessoal das prisões preventivas, das buscas e apreensões, das delações premiadas e dos julgamentos rigorosos da primeira instância.
É uma perspectiva suficiente para assombrar os 405 dias de governo que restam a Michel. Uma preocupação que já deflagrou, entre os mais íntimos, uma articulação para tentar resolver o assunto antes do fim do mandato. Como?
Só há dois jeitos de Michel manter o foro privilegiado do STF quando deixar a presidência - o que não lhe garante absolvição nem clemência, mas provavelmente o resguardaria de medidas extremas como a prisão preventiva e outras humilhações:
1) Sair candidato à reeleição ou a outro cargo eleitoral em 2018. Com popularidade de 3%, a reeleição não chega a ser uma hipótese. A candidatura poderia até ser um recurso para o presidente não virar o saco de pancadas de todos os candidatos presidenciais - ou, ao menos, ter espaço na campanha para se defender. Mas, como não seria reeleito, continuaria com o mesmo problema de perda do foro privilegiado - que, por outro lado, poderia ser mantido caso o Michel se elegesse para outro cargo, como deputado ou senador. Nesse caso, a eleição seria possível, tendo por trás a caneta e a máquina do PMDB. Mas há um sério problema: para concorrer em qualquer eleição que não seja para o mesmo cargo, ele teria que se desincompatibilizar, ou seja, deixar a Presidência da República, em abril do próximo ano. Quase impraticável.
2) Mudar a Constituição. Nada fácil para quem vê sua base minguar. Mas a ideia é incluir um rabicho no texto da PEC aprovada pelo Senado e em tramitação na Câmara limitando o foro privilegiado, que não valeria mais para crimes comuns de parlamentares e autoridades, com exceção dos presidentes da República, da Câmara, do Senado e do STF. A intenção seria incluir, entre vírgulas, os ex-presidentes da República na lista dos que vão manter a prerrogativa.
De quebra, beneficiaria todos os demais ex-presidentes da República, notadamente o ex-presidente Lula, o que poderia assegurar os votos do PT e de seus aliados a favor da mudança na PEC. Se aprovada, Lula sairia das mãos de Moro para as dos onze ministros do STF, alguns deles nomeados pelos governos do PT. Não é garantia alguma, mas pode fazer uma grande diferença - por exemplo, aquela que lhe daria a condição de ser candidato.
A discussão está restrita a poucos interlocutores, mas é nesse rumo que as coisas caminham. Michel pode ter virado pato manco, mas ainda tem alguma tinta na caneta e uma baita estrutura partidária. É incapaz de eleger o sucessor, mas pode influir e atrapalhar a vida de muita gente, sobretudo dentro da base aliada. É bom prestar atenção, porque todos os seus movimentos a partir de agora serão impulsionados pelas necessidades prementes dessa agenda oculta.
* Helena Chagas é jornalista desde 1983. Exerceu funções de repórter, colunista e direção em O Globo, Estado de S.Paulo, SBT e TV Brasil. Foi ministra chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência (2011-2014). Hoje é consultora de comunicação
Murillo de Aragão: Ainda vai levar um tempo
A Operação Lava-Jato parece o Rock in Rio. Ocorre simultaneamente em vários palcos. Oferece espetáculos para todos os gostos. Alguns palcos agradam o mais radical ativista jurídico, em especial aqueles que querem que tudo acabe logo em uma cena com um político na cadeia.
Outros shows, bem menos numerosos, empolgam aos garantistas. Garantistas são aqueles que seguem os ritos e as normas. Reconhecem o benefício da dúvida e que todo mundo é inocente até prova em contrário. Os ativistas não gostam disso. Acham que os garantistas usam as leis para proteger os cretinos.
O populacho, que gosta de drama e novela, torce o nariz para os garantistas. Eles são tachados de coniventes com “tudo isso de ruim que está por aí". Talvez para a maioria a vida política deveria ser jogada como um jogo de futebol, no qual com o cartão vermelho expulsaríamos todos os ladrões e desleais. De preferência, do time do adversário.
Para piorar, temos duas heranças perversas. O regime militar nos legou o desprezo pela autoridade. Que, lamentavelmente, confundimos com autoritarismo. Terminamos repelindo os dois. Já a redemocratização nos trouxe uma profunda ojeriza à política. Em geral, achamos que ela não presta, é coisa de corruptos. Também repelimos os dois.
A tendência à generalização ofusca nossa visão de mundo, desconsidera a importância daquilo que outras sociedades construiram, deixa de levar em conta as boas experiências. Ou seja, nega o próprio modelo de país que pusemos em prática num passado bem recente.
Eis o caminho do fracasso para um país: não acreditar nas leis, nos direitos, nas garantias, na autoridade e na política. Sobretudo, não participar conscientemente da política.
Lamentavelmente, trilhamos esse caminho sem perceber que ora a maré está a favor de nossos interesses e ora está contra. Não dá para ser a favor do foro privilegiado quando o STF condena José Dirceu e ser contra quando o tribunal alivia alguém de quem não gostamos.
Viver de torcida, em todos os sentidos, não é um bom caminho a seguir. Torcer faz parte, mas não deve ditar o ritmo das coisas. Deturpar os argumentos e estressar a lei para fazer justiça a qualquer preço, tampouco é uma alternativa.
O caminho do fracasso tem que ser evitado a partir de uma postura menos eloquente e mais racional, com base no legado que a humanidade nos deixou: ordem, autoridade, respeito às leis e honestidade.
Idealmente, caberia à sociedade buscar tais caminhos a partir de princípios e não de preferências nem de interesses. Porém, como disse, Lulu Santos, “ainda vai levar um tempo, para curar o que feriu por dentro".
* Murillo de Aragão é cientista político
- Blog do Noblat
Míriam Leitão: País dos privilégios
O Brasil cria mais privilégios a cada semana. Na quarta-feira, o STF demonstrou que, se for o senador Aécio Neves que estiver em questão, pode-se ter uma interpretação ambígua até sobre os poderes do Supremo. Na sexta-feira, o Planalto pediu ao STF para revogar a prisão após a condenação em segunda instância, um dos raros avanços nos últimos anos sobre o velho problema do país.
O tratamento desigual é o centro dos erros brasileiros, mas isso é reafirmado constantemente. Pobres e anônimos vão presos após qualquer condenação, ou passam anos detidos sem sequer culpa formada. Ricos e famosos só iam para a prisão após a longa tramitação do processo. O caso Pimenta Neves é o exemplo. Um dos muitos. Assassino confesso, em crime premeditado, ficou anos fora da prisão — mesmo após dupla condenação — pela força das estratégias recursais dos seus advogados. No ano passado, o STF decidiu que, após ser condenado por um órgão colegiado, portanto em segunda instância, o réu começa a cumprir a pena. Isso, hoje, ameaça diretamente muitos integrantes da elite política brasileira processados pela Lava-Jato. Alguns ministros do STF ficaram inconformados com a decisão e iniciaram o bombardeio para que o entendimento fosse revisto. Agora, a Advocacia-Geral da União enviou ao STF manifestação a favor da revisão.
No Brasil, se o criminoso fez ensino superior tem direito à cela especial. Se for político, pode cometer crime comum porque é protegido por imunidade parlamentar. Se for militar, cumpre pena e fica ao abrigo da Justiça Militar, aquela mesma que ameaçou e condenou civis durante a ditadura, mas que protege os seus na democracia. O almirante Othon Luiz Pinheiro, ex-presidente da Eletronuclear, condenado a 43 anos por corrupção, exigiu ficar preso em estabelecimento militar e conseguiu. Agora, já está solto na onda recente que houve de liberação de condenados nos vários processos contra a corrupção que o país tem assistido.
O que houve no STF na quarta-feira mostrou até que ponto pode chegar o contorcionismo jurídico no país para se confirmar a ideia da “A revolução dos bichos”, de George Orwell, de que todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que os outros. Parlamentares já foram afastados de seus mandatos por decisão do STF, como Delcídio Amaral e Eduardo Cunha, como deve ser. Nessa semana, um Supremo dividido decidiu de maneira diferente. Se a medida cautelar, mesmo que não seja a prisão, afetar o mandato, o Congresso tem que ser ouvido antes. A última palavra cabe ao Congresso e não ao Supremo Tribunal Federal.
A ideia de que “o mandato é o que está sendo protegido e não o parlamentar" é balela. O voto é para que o político represente o seu estado ou sua região, e não para que cometa crimes. A imunidade foi pensada para proteger a atividade parlamentar. Por isso tudo, o que se relaciona ao exercício dessa representação está protegida. E assim foi escrito na Constituição, porque, em períodos autoritários, os parlamentares eram cassados por suas palavras, ideias, e atividades de representação. Quando se escreveu na Constituição o princípio da imunidade parlamentar, não se pensava, evidentemente, em crime comum.
A questão da quarta-feira não era sobre o senador Aécio Neves oficialmente, mas de fato era. Com ele em mente, e o voto da presidente do Supremo, o STF errou. Minas Gerais votou para que o senador representasse os interesses do estado, e defendesse as ideias que apresentou na campanha. Ele não foi eleito para pedir dinheiro a um investigado em cinco operações anticorrupção. Dinheiro que seria entregue em espécie a um enviado especial, desses que “a gente mata antes". Não foram esses os poderes que Minas delegou ao senador quando o elegeu. A tese de que “o mandato é do povo, e o povo, soberano” só pode ser defendida se vier com a pergunta: qual poder foi delegado pelo povo ao seu representante? Certamente não foi o de cometer crimes.
Esse tem sido nosso vício desde o início. O país dos fidalgos, do “sabe com quem está falando", não aceita o “erga omnes". A revolução que está sendo feita no processo de combate à corrupção é a de que a lei é universal. Mas o velho país dos privilégios resiste.
Eliane Cantanhêde: Aécio, uma batata quente
Aécio não está livre, Senado não resolveu problema, e Supremo tem muito o que julgar
O senador Aécio Neves, presidente licenciado do PSDB, virou uma batata quente para o Judiciário e o Legislativo. Por ora, deixou de ser um problema imediato do Supremo para ser o principal problema do próprio Senado, que, ao dizer “não” ao seu afastamento e à Primeira Turma do STF, na próxima terça-feira, estará obrigado a ter sua própria solução para Aécio. No Conselho de Ética? O histórico das decisões ali é claramente corporativo.
A manobra para transformar a votação no plenário do Senado nem parece uma tentativa desesperada de mudar o resultado, mas apenas para “proteger” os senadores dos seus próprios votos. Vão deixar as evidências contra Aécio por isso mesmo? Eles se acertam entre eles e não querem que seus eleitores fiquem sabendo como votam?
Apesar disso, a roda continua girando: Aécio sobrevive agora, mas tem um encontro inexorável com a Justiça; o Senado está livre da acusação de confrontar o Supremo, mas é justamente a casa dos três campeões de inquéritos com foro privilegiado; e o Supremo rachou ao meio para resolver o impasse com o Senado, mas, mais cedo ou mais tarde, vai ter de julgar não só Renan Calheiros, Romero Jucá e Aécio Neves, mas os demais parlamentares investigados.
O que esteve, e está, em discussão no Supremo é se os fins justificam os meios. Há ministros que, como a sociedade em geral, cansaram da confusão entre imunidade parlamentar e impunidade – como disse o relator da Lava Jato, Edson Fachin – e da velha tradição brasileira de “prender os miúdos e proteger os graúdos” – como acrescentou, em bom e claro português, o ministro Luís Roberto Barroso. De certa forma, tentam um atalho rápido para punir quem eles julgam que deva ser punido. No caso de Aécio, o atalho é o artigo 319 do Código de Processo Penal.
Do outro lado, há ministros “garantistas”, como o novato Alexandre de Moraes, defendendo que as leis se submetem à Constituição, não o contrário. Ela, a Carta Magna, só prevê prisão de parlamentares em caso de flagrante delito inafiançável, como o Supremo julgou e o Senado acatou quando o senador Delcídio Amaral foi gravado acertando dinheiro e alternativas de fuga para potenciais delatores. Para esses ministros, a ordem jurídica está acima de tudo. Não há atalhos, há o caminho constitucional.
É uma discussão importante, num País que efetivamente vive um eterno “pacto oligárquico” (outra expressão de Barroso) que se ramifica por todas as regiões, Estados, cidades e setores e está na mente de cada um. Aos poderosos, tudo; aos pobres e desvalidos, a lei – e as prisões fétidas, as humilhações, as condições vis, a renda precária, a pior educação, a pior saúde.
A Lava Jato, porém, já tem quebrado esse pacto, ao desvendar a corrupção e investigar presidentes da República, líderes dos principais partidos, banqueiros, donos das maiores empreiteiras e produtoras de carne, altos executivos de estatais e empresas privadas. É um avanço, uma herança e tanto para as futuras gerações, desde que não se use o bom pretexto de acabar com a impunidade dos poderosos para “dar um jeitinho” na Constituição e nas leis, “quando necessário”.
Mal comparando, quando se acha que “um pouquinho de inflação não faz mal a ninguém”, a inflação dispara, implode os indicadores macroeconômicos e quem acaba pagando o maior preço é o mais fraco. Achar que atalhos jurídicos fazem bem à sociedade e mal aos corruptos pode ter um efeito oposto: favorecer os corruptos e prejudicar a sociedade, com efeito danoso sobre todo o fantástico trabalho da Lava Jato. Aécio não é santo, mas precisa ser investigado e julgado à luz da Constituição. Os fins, por mais nobres que sejam, não justificam os meios.
Eliane Cantanhêde: Corte evita crise com Senado, mas atrai raios e trovões
Aécio Neves é o grande vitorioso do 'voto médio' da presidente Cármen Lúcia e do julgamento confuso do Supremo Tribunal Federal
O senador Aécio Neves (PSDB-MG) é o grande vitorioso do “voto médio” da presidente Cármen Lúcia e do julgamento confuso do Supremo Tribunal Federal, que põe panos quentes, pelo menos por ora, na crise entre o Senado e a Corte. O grande derrotado foi o relator Edson Fachin, acompanhado por Roberto Barroso, Luiz Fux, Rosa Weber e, no final, pelo decano Celso de Mello.
Ao decidir que pode aplicar medidas cautelares contra deputados e senadores, mas admitindo que os plenários da Câmara e do Senado têm de dar o aval quando há ameaça ao mandato, o Supremo deu sobrevida a Aécio. Na próxima terça-feira, 17, o plenário do Senado negará o afastamento do senador e o seu recolhimento noturno, em nome da “independência entre os Poderes”.
Foram dois times em campo no Supremo. O de Fachin, baseado no refrão de que “imunidade não pode significar impunidade”, defendeu que as medidas previstas no artigo 319 do Código do Processo Penal, como as de Aécio, são aplicáveis a parlamentares e dispensam o aval do Congresso.
O outro, que estreou com o voto do ministro Alexandre de Moraes, se pautou no “estado de direito” e no artigo 53 da Constituição, que prevê prisão de políticos só com mandato em caso de flagrante delito de crime inafiançável. Votaram assim Moraes, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli.
Toffoli, porém, abriu uma janela para o “voto médio” de Cármen Lúcia, ao propor que não cabem medidas cautelares que interfiram no exercício do mandato... a não ser em casos de “superlativa excepcionalidade”. Essa solução carrega um alto grau de subjetividade, mas foi uma forma de deixar o Supremo bem, pois mantém a aplicação das medidas a Aécio, e o Senado igualmente bem, porque vai votar contra as punições ao tucano sem estar confrontando a alta Corte do País.
O Supremo está dividido exatamente ao meio e a presidente Cármen Lúcia, ao comandar uma solução salomônica, atraiu para si os raios e trovões, tanto de quem apoia o afastamento de Aécio quanto dos que defendem o contrário. Mas ela sabia exatamente o preço a pagar.
Ricardo Noblat: Vergonha!
Fica decidido que a partir de hoje a última palavra em matéria de lei não mais será do Supremo Tribunal Federal (STF), mas sim do Congresso no caso de punição de parlamentar acusado por crime comum. Revogam-se as disposições em contrário – inclusive o Código de Processo Penal. Publique-se de imediato. Valendo.
Assim quis o STF por 6 votos contra 5 ao julgar ação indireta de inconstitucionalidade que acabou por beneficiar o senador Aécio Neves (PSDB-MG), afastado do mandato pela Primeira Turma do tribunal e proibido de sair de casa à noite. O voto decisivo foi dado pela ministra Cármen Lúcia, presidente do STF.
Celso de Mello, decano da Corte, disse em seu voto que ao parlamento não cabe o papel de órgão revisor de decisões do STF. Defendeu que o tribunal tem e deveria continuar tendo o monopólio da última palavra quando se trata da aplicação e interpretação das leis. Cármen Lúcia preferiu uma saída à mineira, o que rebaixou o STF.
Sim, o STF poderá aplicar a parlamentares medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal aprovado pelo Congresso em 2011. Mas uma vez que aplique, a decisão deverá ser submetida ao Congresso que poderá confirmá-la ou suspendê-la. Era tudo o que o Congresso queria, especialmente o Senado, disposto a devolver o mandato a Aécio.
Foi uma votação histórica. Que marcará o momento em que o STF se rendeu a um Congresso repleto de criminosos. Guardem a data: 11 de outubro de 2017, véspera do Dia das Crianças e de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil.