STF

Luiz Carlos Azedo: O tempo fechou

Há algumas semanas, num jantar com militares, Janot havia revelado que algo muito grave ainda estava por acontecer na Operação Lava-Jato

Enquanto um temporal atípico desabava de nuvens negras sobre Brasília, os irmãos Joesley e Wesley Batista, alvos mais recentes da Operação Lava-Jato, lançaram uma bomba que ameaça implodir o atual governo. Entregaram ao ministro Edson Fachin, em seu gabinete no Supremo Tribunal Federal (STF), a gravação de diálogo comprometedor com o presidente Michel Temer, no qual ele avalizaria o pagamento de uma mesada ao ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ), para que permanecesse em silêncio quanto à Operação Lava-Jato. A notícia deixou o mundo político perplexo. Senadores e deputados esvaziaram as sessões do Congresso em busca de mais informações.

O presidente Michel Temer estava reunido com governadores do Nordeste quando a informação foi divulgada; comemorava a aprovação pelo Senado da renegociação das dívidas dos estados. Uma multidão de prefeitos ainda pululava pelos corredores da Câmara e do Senado, muitos com dificuldade de deixar o Congresso por causa da chuva. No Palácio do Planalto, a tropa de choque da Polícia do Exército, que agora guarnece suas dependências, buscava abrigo da chuva nas marquises e descansava os escudos, apoiados nos cassetetes, com capacetes sob o braço. Parecia apenas mais uma tarde chuvosa, num dos raros momentos em que o governo previa a chegada da bonança.

Segundo o jornalista Lauro Jardim, do jornal O Globo, que divulgou parte da gravação, a conversa teria sido nas seguintes condições: Joesley relatou a Temer que estava dando mesada a Eduardo Cunha e Lúcio Funaro para que ambos não contassem os segredos de dezenas de casos escabrosos envolvendo a cúpula do PMDB e o próprio presidente da República. Temer mostrou-se satisfeito com o que ouviu. Neste momento, segundo a matéria, teria diminuído o tom de voz, mas deu o seu aval: “Tem que manter isso, viu?”

Na delação premiada, Joesley teria afirmado que não foi Temer quem determinou que a mesada fosse dada, mas o presidente tinha pleno conhecimento da operação. Joesley teria pagado R$ 5 milhões para Eduardo Cunha após sua prisão, que corresponderia a um saldo de propina que o peemedebista tinha com ele. Disse ainda que devia R$ 20 milhões pela tramitação de lei sobre a desoneração tributária do setor de frango. Os donos da JBS afirmaram que Temer indicou o deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR) para resolver um assunto da J&F (holding que controla a JBS). Informada do fato, a Polícia Federal filmou Rocha Loures recebendo uma mala com R$ 500 mil enviados por Joesley. O Palácio do Planalto distribuiu nota negando a declaração atribuída a Temer.

Na mesma delação, o presidente do PSDB, Aécio Neves (MG), teria sido gravado pedindo R$ 2 milhões a Joesley. O dinheiro teria sido entregue a um primo do presidente do PSDB, que teria depositado o valor na conta de uma empresa do senador Zeze Perrella (PSDB-MG). Joesley relatou também que, supostamente, o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega negociava o dinheiro da propina destinado ao PT e seus aliados, inclusive os interesses da JBS no BNDES.

A operação

No jargão das investigações, foram realizadas “ações controladas”, nas quais a Polícia Federal deixou de realizar prisões em flagrante para não prejudicar as investigações, mas filmou a cena do crime, rastreou malas e carimbou cerca de R$ 3 milhões em propina. Ao contrário das longas negociações com a Odebrecht e a OAS, a delação premiada da JBS foi feita em tempo recorde e rompe a blindagem constitucional do presidente da República, que não pode ser investigado por fatos anteriores ao mandato. Ocorre que as gravações foram feitas durante o exercício do mandato, o que pode ser razão para o impeachment de Temer e/ou a abertura de investigações pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O procurador-geral Rodrigo Janot comandou pessoalmente a operação, que teve procedimentos incomuns, pois o delator entrava na garagem da Procuradoria-Geral da República no seu próprio carro, sem se identificar. Simultaneamente, a JBS contratou o escritório de advocacia Trench, Rossi e Watanabe para tentar um acordo de leniência com o Departamento de Justiça dos EUA (DoJ). A JBS tem 56 fábricas nos EUA, onde lidera o mercado de suínos, frangos e o de bovinos. O ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo, já homologou a delação: os sete delatores não serão presos nem usarão tornozeleiras eletrônicas. Será paga uma multa de R$ 225 milhões para livrá-los das operações Greenfield e Lava-Jato, que investigam a JBS há dois anos.

Esse é o resumo da ópera, mas os bastidores começam a aparecer. Há algumas semanas, num jantar com militares, Janot havia revelado que algo muito grave ainda estava por acontecer na Operação Lava-Jato, mas não abriu o jogo. Imaginava-se que poderia estar relacionado à delação premiada do ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci, ou seja, que seria algo mirando os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e a ex-presidente Dilma Rousseff, que atingisse o sistema financeiro ou os fundos de pensão. Na verdade, a bomba mirava o presidente Michel Temer e estava sendo construída a muitas mãos, ou seja, com a participação proativa da Polícia Federal e da Procuradoria-Geral da República.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista.

 


Fernando Henrique Cardoso: Apelo ao bom senso

Devemos rever as regras eleitorais em pleno auge da Lava Jato. O momento é agora

Sei que vivemos um momento de desânimo e que o ódio substitui certa bonomia que parecia própria dos brasileiros. É preciso cuidado com cada palavra. Quando eu disse o trivial, que delitos diferentes devem ser apenados de forma diferente, alguns me tomaram como “mais um” que quer acabar com a Operação Lava Jato. Nada disso!

A despeito desse clima, há sinais de vida em nossa economia que mostram que o governo Temer está apontando na direção certa, na área econômica, ao enfrentar temas que são tabus, como as reformas, casas de marimbondo que só podem ser propostas por quem não está visando às próximas eleições. Reconhecer tais avanços não significa desconhecer a enorme quantidade de problemas a enfrentar. Muito menos imaginar que as “condições de governabilidade” serão repostas ao se passar um apagador no quadro que a Lava Jato mostrou. As pessoas só aceitarão a autoridade quando sentirem que a Justiça está atuando e saberá separar o joio do trigo. Pois que existe trigo, existe.

Há terreno para melhorar as coisas ao longo do tempo, permitindo que visões hoje discrepantes convirjam. Uma boa oportunidade para a construção de uma nova agenda é a chamada “reforma política”. Os mais prudentes dirão: não é o melhor momento para mexer em questão tão delicada. Respondo, como dizia a meus colaboradores do Plano Real quando alegavam que a fragilidade do governo da época e o tormento dos parlamentares com a CPI dos “anões do Orçamento” seriam impedimentos para a estabilização monetária: como as forças tradicionais estão desorganizadas, o momento é agora.

Devemos rever as regras eleitorais em pleno auge da Lava Jato. Convém, contudo, qualificar os passos requeridos para aperfeiçoar o sistema político-eleitoral, olhando para o horizonte e tendo as convicções como norte. Política, porém, não é fé: os propósitos não se efetivam ao serem proclamados; precisam convencer, motivar e construir rotas de aproximação entre as diferenças.

Estou convencido de que o parlamentarismo e o voto distrital misto são o melhor caminho para fortalecer as instituições democráticas. Como instalá-los numa conjuntura política em que os partidos se dissolveram e se multiplicaram como siglas que visam mais a obter acesso aos recursos públicos (Fundo Partidário, programa eleitoral, posições vantajosas no Poder Executivo, etc.) do que pregar e construir a “boa sociedade”? Implantar o voto distrital misto e o parlamentarismo neste momento é pouco viável. É preciso reconstituir a confiança nos partidos e para isso eles não deveriam agir como simples máquinas de amealhar votos. Talvez seja conveniente admitir no ínterim candidaturas independentes e discutir a obrigatoriedade do voto.

Enquanto isso, há o que fazer. Alguns propõem o voto em “lista fechada”, pelo qual o eleitor escolhe um partido, e não um candidato, nas eleições para a Câmara dos Deputados. Adotada essa modalidade, cada partido terá o número de cadeiras proporcional ao número de votos obtido por sua legenda. Se um partido tiver direito a dez cadeiras, por exemplo, elas serão ocupadas pelos dez primeiros candidatos da lista partidária. Inconveniente: o eleitor elegeria “em bloco” quem as oligarquias partidárias mais desejassem. A não interferência do eleitor na escolha de nomes pode ser amenizada dando a ele a faculdade de reordenar a lista; esse, entretanto, é procedimento difícil de ser executado e computado.

O propósito da proposta é saudável: fortalecer os partidos, sem os quais não há “democracia representativa”. Além disso, ela torna viável o financiamento público das campanhas eleitorais, porque facilitaria a fiscalização no uso dos recursos, uma vez que as campanhas seriam feitas por alguns partidos, e não por milhares de candidatos.

O enunciado das dificuldades desenha o longo caminho a percorrer. Melhor sermos realistas e começarmos com mudanças menos ambiciosas. Em livro recente de Jairo Nicolau – Representantes de Quem? – há sugestões úteis (algumas em curso no Congresso Nacional) na fase de transição em que nos encontramos. Como há limites de prazo para definir novos procedimentos eleitorais (eles devem ser aprovados até setembro para terem vigência em 2018), creio que o indispensável é aprovar logo a “cláusula de barreira”. Neste caso seriam necessários x por cento de votos, distribuídos por um número mínimo de Estados, para que os partidos pudessem ter representação institucional no Legislativo (menos para o Senado, no qual o voto é no candidato), acesso ao Fundo Partidário e ao tempo de televisão. Também é indispensável aprovar a proibição de coligações nas eleições proporcionais, para evitar que ao votar num deputado de um partido se eleja alguém de outro.

Resta a questão do financiamento. Os partidos precisam de um fundo público, dada a proibição de contribuição das empresas feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Entretanto, por que dá-lo a não partidos, como são as siglas sem voto? Deve-se adotar o mesmo critério da cláusula de barreira: o acesso aos fundos públicos deve restringir-se a quem obtenha o quórum nacional mínimo de eleitores. E, sobretudo, podem-se baratear as campanhas, começando pela proibição de “marquetagem” nos programas de TV.

As convicções devem ser mantidas. Essas medidas deveriam vir no bojo de duas outras mais: uma, a aprovação da emenda do senador José Serra que estabelece o voto distrital para as próximas eleições de vereador. Outra, generalizando o voto distrital misto com eleição em 2022 de metade dos deputados por escolha direta dos eleitores e metade a partir de uma “lista fechada”. É o que, aliás, propõe o relator da reforma eleitoral na Câmara dos Deputados.

O momento é já!
*Fernando Henrique Cardoso é Sociólogo, foi presidente da República
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Fonte: http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2017/04/apelo-ao-bom-senso-fernando-henrique.html

Miguel Reale Júnior: O Supremo em xeque

Publicado no O Estado de S. Paulo em 04/03/2017

É hora de atuar em inquéritos e ações penais contra deputados e senadores

Independentemente da discussão sobre o cabimento ou a limitação do foro privilegiado, debatendo-se sua eliminação total ou restrição, há de se ver, com absoluto pragmatismo, a existência de problema extremamente grave para a Justiça brasileira: a tramitação, neste momento, de elevado número de inquéritos policiais e de processos criminais no Supremo Tribunal Federal (STF) tendo por investigados ou réus deputados e senadores.

Recentemente, na Ação Penal 937/ RJ, o ministro Luís Roberto Barroso, em despacho, destacou: “As estatísticas evidenciam o volume espantoso de feitos e a ineficiência do sistema. Tramita atualmente perante o Supremo Tribunal Federal um número próximo a 500 processos contra parlamentares (357 inquéritos e 103 ações penais)”.

A demora na instauração da ação penal ou no arquivamento de inquérito policial e, posteriormente, a longa tramitação do julgamento têm conduzido a um descrédito da Justiça. O Supremo em Números, da FGV Direito Rio, mostra que de janeiro de 2011 a março de 2016 apenas 5,8% das decisões em inquéritos no STF foram desfavoráveis aos investigados – com a abertura da ação penal. Ainda segundo a pesquisa, o índice de condenação de réus na Corte é inferior a 1%.

Conforme indicam informações do próprio Supremo Tribunal, cerca de 30% dos processos contra parlamentares perduram dez anos sem julgamento e outros 40% estão faz mais de seis anos à espera de ser apreciados.

Grande é o número de feitos que tem extinta a punibilidade pela prescrição. A morosidade se dá não apenas no âmbito do Supremo Tribunal Federal, mas na atuação da Procuradoria-Geral da República e da própria Polícia Federal no exame dos inquéritos policiais e no cumprimento de diligências requeridas. Tal demora denota a ausência de maior entrosamento entre os partícipes da persecução penal no âmbito da instância máxima.

Esse distanciamento entre o Judiciário, a Procuradoria e Polícia Federal pode explicar a falta de agilidade na complementação de inquéritos policiais e na abertura de ações penais ou pedido de arquivamentos em tempo razoável.

Esse quadro conspira contra o Poder Judiciário, fazendo crer na existência de vantagem dos poderosos perante a Justiça Criminal. A evidente não alteração constitucional, em breve, do foro privilegiado exige, portanto, a tomada urgente de medidas emergenciais.

Assim, é imprescindível um esforço conjunto de todos os partícipes da Justiça Criminal da instância superior para enfrentar a avalanche de inquéritos e processos já existentes e os que hão de surgir em vista das delações homologadas e a serem homologadas envolvendo parlamentares e ministros em práticas delituosas.

Para tanto, como sugere em voto apresentado no Instituto dos Advogados de São Paulo, sobre a matéria do foro privilegiado, o conselheiro Luiz Antônio Sampaio Gouveia, cabe o Supremo Tribunal valer-se do permitido pelo artigo 21A do Regimento Interno, segundo o qual, “compete ao relator (no STF) convocar juízes ou desembargadores para a realização do interrogatório e de outros atos da instrução dos inquéritos criminais e ações penais originárias, na sede do tribunal ou no local onde se deva produzir o ato, bem como definir os limites de sua atuação”.

O § 1.º diz que “caberá ao magistrado instrutor, convocado na forma do caput: I – designar e realizar as audiências de interrogatório, inquirição de testemunhas; II – requisitar testemunhas e determinar condução coercitiva; III – expedir o cumprimento das cartas de ordem; IV – determinar intimações; V – decidir questões incidentes; VI – requisitar documentos ou informações existentes em bancos de dados; VII – prorrogar prazos para a instrução; VIII – realizar inspeções judiciais; IX – requisitar, junto aos órgãos locais do Poder Judiciário, o apoio de pessoal, equipamentos e instalações; X – exercer outras funções delegadas pelo Relator”.

Cumpre, então, (e é o mais importante) serem constituídas duas forças-tarefa. A primeira, no âmbito interno do próprio STF, para se empreender esforço no sentido de acelerar a instrução dos feitos em que são réus deputados e senadores. De outra parte, manter a competência do Supremo caso os réus renunciem ou por outro motivo percam os cargos parlamentares. Essa força-tarefa deve contar, nos termos do artigo 21A do Regimento Interno, com o concurso de desembargadores para conduzirem os feitos, sempre sob o controle de ministro do Supremo. Cabe programar a entrada em pauta de julgamento pelas turmas de um processo por semana.

A segunda força-tarefa, formada pelos desembargadores designados, há de ser constituída em conjunto com a Procuradoria da República e a Polícia Federal, visando à efetivação imediata das investigações determinadas em inquéritos sob a égide do Supremo Tribunal.

A Nação reclama uma resposta dos dirigentes da administração da justiça à notícia de cometimento de crimes contra a administração por agentes políticos, seja para iniciar, com dados concretos, os processos criminais, ou, na ausência de elementos de prova, serem arquivadas as delações infundadas.

Sugiro que órgãos como o Instituto dos Advogados de São Paulo, onde esta análise já se iniciou, a OAB, o Movimento de Defesa da Advocacia, a Associação dos Advogados de São Paulo, entidades da magistratura e do Ministério Público, ao lado de movimentos como o Vem Pra Rua, venham, em sintonia com a sociedade, se unir para levar esse pleito ao Supremo, à Procuradoria e à Polícia Federal.

A omissão será cobrada pela população. É, portanto, a hora de pôr mãos à obra e atuar em inquéritos e ações penais contra deputados e senadores com os meios existentes para salvaguardar a credibilidade do próprio Supremo.


* Advogado, professor titular senior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

Luiz Carlos Azedo: O andar da Lava-Jato

O programa de algoritmo do STF foi elaborado de tal forma que os ministros com menos processos têm mais chances de serem sorteados

O Andar do Bêbado (Zahar), do físico americano Leonard Mlodinow, é uma boa leitura para começar a semana na qual o novo relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Edson Fachin, iniciará o trabalho. O sorteio de seu nome ensejou uma série de teorias conspiratórias porque era o preferido da presidente da Corte, Cármem Lúcia, para substituir o ministro Teori Zavasvki, que morreu em um trágico acidente de avião. Denise Rothenburg, aqui no Correio, antecipou a manobra regimental feita no STF para que Fachin pudesse ser o relator.

Mlodinow explica por que as pessoas custam a aceitar o acaso e a compreendê-lo. E como muitas pessoas, por não compreendê-lo, acabam tomando as decisões erradas. O livro trata da aleatoriedade, da sorte e da probabilidade. Nos ajuda a compreender certas coisas que parecem acaso, mas são previsíveis como o próximo passo de um bêbado depois de uma noitada. Obra de divulgação científica, O andar do bêbado associa a matemática à física, à sociologia, à psicologia e à economia e analisa vários casos de sucesso pessoal nos esportes, no cinema e na ciência.

Um dos mais emblemáticos é o do ganhador do prêmio Nobel de Economia de 2002, o psicólogo Daniel Kahneman, autor do livro Duas formas de pensar; rápido e devagar (Objetiva), no qual o psicólogo analisa a relação entre o pensamento rápido, intuitivo e automático (Sistema 1) e a reflexão, a racionalização e a solução de problemas complexos (Sistema 2, mais lento e um preguiçoso nato). Muitas vezes, as respostas automáticas são certeiras, mesmo que fujam à lógica.

Durante o treinamento de um grupo de instrutores de voo, Kahneman disse aos alunos que deveriam ser elogiados quando conseguissem um resultado positivo. A plateia reagiu dizendo que, sempre que isso acontecia, os alunos pioravam de desempenho. Kahneman concluiu que estava havendo uma “regressão à média”: os alunos têm momentos bons e ruins, mas a média de desempenho era constante. Quando o desempenho é particularmente bom, é natural que os resultados seguintes não sejam tão bons. Os elogios não têm nada a ver com isso. Essa aleatoriedade era despercebida e rendeu o Prêmio Nobel a Kahneman.

A intuição falha quando trata das probabilidades. Mlodinow foi diagnosticado com HIV, mas o médico havia cometido um erro clássico da Teoria de Bayes: confundiu a probabilidade condicionada de o exame dar positivo se o paciente não for HIV positivo (que é muito baixa) com a probabilidade de ele não ser HIV positivo mesmo se o exame der positivo (que não é tão baixa assim). É preciso levar em conta as outras variáveis, como a probabilidade de uma pessoa do mesmo grupo do autor (hábitos, uso de drogas, comportamento sexual) ter HIV. Isso muda o cálculo.

Cada um de nós é um ser complexo e independente, mas em sociedade, porém, nosso comportamento é matematicamente previsível. O número de acidentes de trânsito pode ser previsto pela estatística, assim como as taxas de natalidade e mortalidade e até mesmo o nível de infestação das epidemias de dengue e chicungunha. A probabilidade condicionada aumenta essa previsibilidade. Por exemplo, um baralho tem 52 cartas. Ao retirar uma carta, a probabilidade de sair um rei é de 4/52, ou 1/13. No entanto, se alguém retira uma carta e nos diz que é uma figura, a probabilidade de ser um rei é de 4/12, ou seja, 1/3.

Como Bruce Willis
No velório de Teori Zavascki, em Porto Alegre, a conversa entre ministros do Supremo, advogados e políticos era sobre o novo relator da Lava-Jato, como nos revelou Denise Rothenburg. Havia um consenso de que o nome de perfil mais suave para substituí-lo era do ministro Fachin, mas para isso era preciso que ele trocasse de Turma. Para passar da Primeira para a Segunda Turma, Fachin precisou apenas da concordância dos colegas mais antigos, que tinham precedência caso desejassem fazê-lo. A presidente do STF, ministra Cármem Lúcia, ajudou Fachin ao fazer o sorteio da relatoria da Lava-Jato entre os integrantes da Segunda Turma e não do pleno do Supremo. Nenhum deles, a rigor, se consideraria impedido; mas, com isso, a probabilidade de Fachin ser sorteado mudou de 1/11 para 1/5.

Deu Fachin. Muitos acham que houve “armação”, mas não é o caso. Três assessores da presidência da Corte acompanharam o sorteio, que será auditado em junho. O que aconteceu? O programa de algoritmo do STF foi elaborado de tal forma que os ministros com menos processos têm mais chances de serem sorteados. Fachin foi beneficiado pela lei da probabilidade condicionada, quase de 1/1, pois Teori estava sem receber processos por causa da relatoria da Lava-Jato. A decisão estratégica foi a troca de Turma. Fachin era o cara certo, na hora certa, no lugar certo. Como Bruce Willis longe Broadway, ao fazer o teste para substituir o ator coadjuvante da série norte-americana de televisão A gata e o rato (Moonlighting), numa cidadezinha da California. Dos 17 aos 30 anos, o ator venceu a gagueira como ator de teatro. Seu sonho era brilhar em Hollywood.


Fernando Gabeira: Para chegar a 2018

O caminho é fortalecer a economia e tentar reconciliar a política com a sociedade

Começou o fim do mundo com a delação da Odebrecht. Temer, creio, deu uma resposta adequada, pedindo celeridade nas investigações para poder tocar o barco da reconstrução econômica.

Ele pode não ter sido sincero, porque, segundo a imprensa, no Planalto se falou na anulação do depoimento do diretor da empresa. Mas a celeridade, respeitando simultaneamente direito de defesa e ritmo de uma investigação séria, é a melhor saída para libertar o processo econômico dos sobressaltos políticos. Para almejar essa celeridade, porém, é preciso primeiro responder a uma pergunta: se não existiu até agora, por que passaria a existir de uma hora para outra?

Ela é necessária também para o processo político em 2018. Muitos investigados vão querer se reeleger. Mas nem todos têm êxito em situação pós-escândalo. Lembro-me da CPI dos sanguessugas, deputados que ganhavam propina para emendas de compras de ambulâncias superfaturadas. A maioria foi derrotada nas urnas, em 2006.

Sem julgamento, contudo, o abismo entre sociedade e eleições em 2018 pode se aprofundar ainda mais. As ruas têm se manifestado, mas não se pode esperar delas a solução final do problema. No meu entender, ela está nas mãos do Supremo, que precisa fazer um extraordinário esforço de adaptação às necessidades do momento.

O Supremo parece-me perdido em suas prioridades. As duas últimas intervenções, proibição da vaquejada e descriminalização do aborto, posições com as quais posso concordar, não trilharam o bom caminho.

Existe uma diferença entre uma sentença e uma política para enfrentar os temas. No caso da vaquejada, um processo adequado seria definir o que os americanos chamam de phase out, para que todo o universo econômico que gira em torno da vaquejada se adaptasse. Pelo que vi, seu núcleo central é a criação e o comércio de cavalos de raça. No caso do aborto, o processo político se dá de outra forma. Discussão no Parlamento e referendo popular.

Embora o panorama político seja desolador, quando juízes assumem decisões que deveriam nascer no Parlamento ou nas urnas, eles são obrigados a pensar como categorias políticas. Apesar de ter desaguado no STF, na longa luta política para banir o amianto foi preciso negociar e até formular um projeto de adaptação.

O fim do mundo não é o fim de tudo. Se o Supremo, creio eu, se dedicar integralmente a julgar com rapidez e se reorganizar para a tarefa, pode se queimar menos do que buscando saída para tensões políticas.

As manifestações de rua conseguem fixar alvos. Hoje Cunha, amanhã Renan. Elas não trazem a saída: são contra a corrupção e, em alguns cartazes, pelo fim do cheque em branco dos governos, alusão ao ajuste fiscal.

Mas o nó só pode ser desatado pelas instituições. Agora, por exemplo, o Supremo vai entrar em recesso. Com a situação tão delicada, os responsáveis vão sair de cena. Creio que isso nasce do equívoco de subestimar o alcance da Lava Jato.

Gilmar Mendes, quando esteve no Senado, foi bastante explícito, as operações policiais existem todos os anos. Naquele momento, a Odebrecht fechava o maior acordo de leniência do mundo, pagando cerca de R$ 6, bilhões de multa. E a delação do fim do mundo começava.

Se o Supremo decidir trabalhar a fundo na sua tarefa específica, vai ajudar, indiretamente, a economia e também a política, na tarefa de buscar algum tipo de renovação que a aproxime da sociedade.

É uma difícil travessia. Nela o comandante Temer tem de enfrentar a tempestade e jogar alguns corpos ao mar. E evitar que ele próprio tenha de se jogar na água.

Mas são essas as circunstância e não é possível enfrentá-las suprimindo pedaços da realidade. A maior investigação da História do Brasil chega ao coração do atual governo, que era apenas a costela do governo petista. Agora, ele tem nas mãos a tarefa de conduzir a economia em frangalhos, sob suspeita e com baixa popularidade.

Temer disse que era preciso coragem para governar o Brasil e que ele teria essa coragem. Talvez seja preciso também um pouco de resignação diante do futuro pessoal.

A tarefa de conduzir a reconstrução econômica é decisiva, sobretudo, para os 12 milhões de desempregados. Temer e o mundo político não têm outro caminho exceto continuar trabalhando, enquanto a terra treme sob os seus pés.

Num mundo ideal, nem o Supremo nem os políticos entrariam em férias neste ano de 2016. Talvez todos nós precisemos de umas férias do Supremo e dos próprios políticos.

Mas assim que voltarem, a realidade pedirá respostas mais rápidas e complexas. Se houvesse um projeto de trânsito para 2018, o ritmo de julgamentos seria mais rápido, os vazamentos seriam evitados e o processo de renovação na política seria posto na agenda.

Existem forças poderosas tentando deter ou deturpar a Lava Jato. Elas se aproveitam da confusão, dos impasses. É uma tática que existe nos mínimos detalhes, como a atuação dos advogados de Lula, discursos no Parlamento, notícias inventadas.

Digam o que quiserem das ruas. Não houve violência nas manifestações contra a corrupção. Elas cumprem o seu papel. No fundo, acreditam nas instituições e na possibilidade de que encontrem uma saída.

Algumas instituições entraram em férias. Durante o recesso poderiam pensar no ano que entra. É possível fazer melhor e mais rápido.

É uma ilusão supor que o Brasil não mudou, que será governável com as mesmas práticas do passado. Hoje será menos doloroso avançar do que recuar no projeto de fortalecer a economia e dar à política uma chance de reconciliação com a sociedade. No meio de tanta confusão, na qual estou também envolvido, é assim que vejo o caminho imediato e os dois objetivos principais.

Deve haver centenas de outras visões. Seria salutar discutir como chegar a 2018, e não apenas o clássico quem comprou quem, quem é a bola da vez... A bola da vez é a ameaça de caos.

*Fernando Gabeira: Jornalista


Fonte: opiniao.estadao.com.br


Maurício Huertas: Vaquejada – cultura popular ou pura ignorância?

Instalou-se mais uma polêmica daquelas no estilo Fla-Flu: quem é contra e quem é a favor as vaquejadas. Não há meio termo. Modalidade esportiva? Evento cultural? Ou simplesmente uma herança bárbara de pura maldade, crueldade e desrespeito aos animais?

Segundo seus admiradores, vaquejada é uma “atividade cultural” do Nordeste brasileiro, na qual dois vaqueiros montados a cavalo têm de derrubar um boi, puxando-o pelo rabo.

O Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional uma lei cearense que procurava disciplinar a prática como modalidade esportiva e evento cultural, sob o argumento de que a vaquejada impõe sofrimento aos animais e, portanto, manifestações culturais não se sobrepõem ao direito de proteção ao meio ambiente, consagrado no artigo 225 da Constituição Federal.

Muito popular na segunda metade do século XX, a vaquejada passou a ser questionada por ativistas dos direitos dos animais justamente em virtude dos maus-tratos aos bois, que muitas vezes têm o rabo arrancado ou sofrem fraturas na queda.

Pois então, isso pode ser chamado de esporte? Ser contra a vaquejada é ir contra as tradições nordestinas? É o que dizem seus defensores, entre eles inúmeros políticos do norte e nordeste do país. Ora, mas até a escravatura foi uma tradição no Brasil. Vamos mantê-la?

Ah, mas atletas se machucam por acidente em qualquer esporte, dizem os defensores das vaquejadas. Mas os “atletas”, neste caso, são homens e mulheres conscientes dos riscos que correm na prática de suas atividades esportivas. Não são animais irracionais sofrendo maus tratos para a diversão do público.

Outro argumento: vaquejada é o ganha-pão de muito brasileiro. Proibir a sua prática é tirar o sustento de famílias que dependem dessa atividade para sobreviver. Ok, com esse argumento podemos oficializar até o tráfico de drogas, certo?

Enfim, somos contra qualquer atividade que cause sofrimento aos animais. Simples assim. Se isso nos torna impopulares diante dos defensores desta “tradição”, lamentamos. Não é por isso que vamos defender vaquejada, rinha de galo, farra do boi, tourada ou até animais em circo (que, diga-se, também já é proibido por lei no Brasil).

Mauricio Huertas, jornalista, é secretário de Comunicação do PPS/SP, diretor-executivo da FAP e apresentador do #ProgramaDiferente


Fonte: pps.org.br


Dora Kramer: Um fantasma na ópera

Eduardo Cunha não foi o primeiro nem será o último político de destaque a ser preso pela operação Lava Jato. Sequer pode ser apontado como aquele que maior poder e/ou volume de informações reuniu na República. As presenças de José Dirceu e Antônio Palocci em Curitiba – chefões da era em que o PT mandava (e principalmente desmandava) no País – dão por si tal testemunho. Pode ser que ele venha a fazer uma delação devastadora que comprometa do baronato ao cardinalato da política? Pode ser que haja vida em Marte. No terreno das possibilidades criam-se, entre outras coisas, fantasmas. Tudo é possível embora nem tudo seja provável.

Para dirimir quaisquer dúvidas, o melhor método é o exame das condições objetivas. A principal delas esteve registrada no placar eletrônico da Câmara no dia 12 de setembro último, quando o então deputado afastado de suas funções legislativas pelo Supremo Tribunal Federal teve o mandato cassado por 450 votos a favor e 10 contra. No início, quando o processo foi aberto no Conselho de Ética, a avaliação preponderante era a de que Eduardo Cunha sairia ileso. Segundo essa versão, teria poderes ilimitados para impedir o andamento dos trabalhos e um embornal de informações a respeito de seus pares tóxico o suficiente para garantir votos a favor da manutenção de seu mandato. No campo da suposição, isso parecia fazer sentido. Mas a realidade tem componentes menos esquemáticos.

No caso, a opinião pública, a revelação de novas e cada vez mais contundentes acusações, o comportamento excessivamente ousado de Cunha, a decisão do STF de afastá-lo do cargo, a impossibilidade de contar com ajuda do governo, o instinto de sobrevivência eleitoral dos deputados, uma série de fatores que desmontou a presunção inicial e produziu um resultado surpreendentemente desfavorável a ele. A prisão menos de quarenta dias depois provocou alvoroço, não obstante fosse algo esperado, líquido e certo. Fez-se o silêncio em Brasília. Pudera, dizer o quê? Lamentar, comemorar? O governo e mundo político em geral não poderiam fazer uma coisa nem outra. Até o PT se manteve discreto, dada sua impossibilidade de falar de corda em casa de enforcado.

Enquanto na capital federal a palavra de ordem era não passar recibo, no restante do País estabeleceu-se a gritaria em torno dos presumidos efeitos de uma delação premiada. Por ora apenas um fantasma nessa ópera composta pela operação Lava Jato. Não que seja um equívoco supor que Cunha faça delação e provoque com ela uma devastação em massa. Mas é preciso medir e pesar as circunstâncias. E estas não lhe são necessariamente favoráveis. Não é ele quem dita as regras muito menos o rumo dos acontecimentos como, de resto, já ficou demonstrado. A faca e o queijo estão nas mãos do Ministério Público e da Justiça.

Ainda que o ex-deputado tenha disposição de delatar não significa que os procuradores se interessem pela contrapartida ou que as condições estabelecidas em lei para a obtenção de benefícios se apliquem a Eduardo Cunha. A força tarefa da Lava Jato trabalha há mais de dois anos, período em que reuniu uma montanha de informações a respeito das quais seguramente o País ainda não sabe da missa a metade. De onde é possível que o ex-deputado não tenha dados que os investigadores considerem novos e/ou necessários ao esclarecimento dos fatos.

Se não pôde controlar seu destino quando presidente da Câmara nem se utilizar do arsenal intimidador de maneira eficiente, não será preso que Eduardo Cunha terá êxito no manejo da figura de assombração. Ademais, terá de ter muito cuidado com o que disser para não piorar sua já sofrível situação.(O Estado de S. Paulo)


Fonte: pps.org.br


Luiz Carlos Azedo: “Rouba, mas faz!”

O ex-presidente Lula e seus aliados acreditam que suas convicções estão acima do bem e do mal

Fui buscar na estante de casa, empoeirado, o velho Dicionário Universal de Citações, de Paulo Rónai, de 1985 (Editora Nova Fronteira). Minha curiosidade era saber se o famoso bordão “Rouba, mas faz!”, de Ademar de Barros, constava do verbete corrupção. Foi uma frustração, a citação mais recente era dos tempos do Império, nas Máximas do Marques de Maricá (1773-1848): “um povo corrompido não pode tolerar governo que não seja corruptor”.

Havia outras citações mais antigas: “Ah, se as propriedades e títulos e cargos/ Não fossem fruto da corrupção! E se as altas honrarias / Se adquirissem só pelo mérito de quem as detém / Quantos, então, não estariam hoje melhor do que estão? / Quantos, que comandam não estariam, entre os comandados?”, de Shakespeare (1564-1616), no Mercador de Veneza. “A corrupção do melhor é a pior das corrupções”, de São Gregório, o Grande (540-604), nas Considerações Morais. E “Em Roma tudo está à venda”, de Salústio (86?-35 a.C.), na Guerra de Jugurta.

Nenhuma delas se equipara à máxima de Ademar de Barros, uma síntese da velha tradição patrimonialista da política brasileira no regime republicano. Apadrinhado do chefe de polícia de Getúlio Vargas, Filinto Müller, foi nomeado interventor de São Paulo, em abril de 1938, logo após a implantação da ditadura do Estado Novo. Médico, cultivou a imagem de administrador competente, realizador de grandes obras públicas e político de preocupação social. Construiu as rodovias Anchieta, iniciada em 1939, e Anhanguera, em 1940, e do Hospital das Clínicas, que começou em 1938. O Aeroporto de Congonhas foi iniciado em 1936, mas passou como se fosse de sua iniciativa.

Denúncias de peculato e enriquecimento ilícito, porém, levaram Vargas a afastá-lo da interventoria em junho de 1941, mas as suspeitas não impediram que fosse eleito governador, em 1947, cargo que exerceu até 1951. Uma série de reportagens intitulada “O meu destino é o Catete”, de autoria do jornalista Paulo Duarte, tornou famoso o “rouba, mas faz!”, frase atribuída ao próprio Ademar. Em 1949, teria comprado em benefício próprio, com dinheiro público, 11 automóveis e 20 caminhões da General Motors. O Ministério Público abriu um processo e pediu sua prisão preventiva. Em março de 1956, Ademar foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a dois anos de reclusão e perdeu os direitos políticos por cinco anos. Mas, em maio do mesmo ano, foi absolvido por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal.

Ética na política

Livre das denúncias, Ademar foi eleito prefeito de São Paulo em 1957. Em três eleições — prefeitura de São Paulo (1953), governo do estado (1955) e Presidência da República (1960) —, foi vencido por Jânio Quadros (1917-1992), seu maior rival político. Perdeu para Juscelino Kubitschek (1902-1976) na disputa pela Presidência, em 1955. Em 1962, finalmente, Ademar superou Jânio, que havia renunciado à Presidência, na eleição para o governo do estado. Em 1969, a ex-presidente Dilma Rousseff planejou e participou do roubo do cofre de Ademar de Barros, numa mansão de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, onde vivia a ex-amante do político, Ana Capriglioni, uma ação armada da Var Palmares, organização guerrilheira liderada pelo ex-deputado Carlos Araújo, seu ex-marido.

É impossível não resgatar a memória de Ademar de Barros, em razão de um trecho do discurso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na quinta-feira em São Paulo, quando se defendeu das acusações dos procuradores da Operação Lava-Jato. “A profissão mais honesta que existe é a de político, sabe por quê? Porque, por mais ladrão que ele seja, de 4 em 4 anos, ele está suando e pedindo voto, o concursado não! O concursado faz a faculdade, passa num concurso e tem o seu emprego pelo resto da vida, sem precisar se preocupar”. A frase pode não ser digna do dicionário de Rónai, mas é uma pérola. Mostra uma concepção de governo na qual o Estado foi tomado de assalto e saqueado, verbalizada por quem ocupou a Presidência por 8 anos.

Lula quis agradar os políticos que querem acabar com a Operação Lava-Jato e anistiar todos os envolvidos no escândalo da Petrobras, mas essa esperteza choca os cidadãos e os servidores públicos concursados, principalmente a alta burocracia federal. Max Weber, em sua famosa palestra A política como vocação (Munique, em 1919), foi enfático ao destacar a tensão entre a ética da responsabilidade e a ética das convicções. A Operação Lava-Jato é uma síntese disso: enquanto auditores, corregedores, delegados, promotores e juízes zelam pela legitimidade dos meios empregados na política, o ex-presidente Lula e seus aliados acreditam que suas convicções estão acima do bem e do mal. (Correio Braziliense – 18/09/2016)


Fonte: pps.org.br


Perdas e danos

Em dez anos, Lei de Drogas superlotou presídios e foi incapaz de reduzir as redes de tráfico

Há dez anos o Brasil aprovava um novo marco legal para o combate às drogas. A Lei 11.343/2006 nascia com a perspectiva de intensificar penas para o crime de tráfico e reduzir a criminalização dos usuários. Seu efeito, porém, mostrou-se desastroso: cadeias superlotadas, mais mulheres nas prisões e criminalização da população negra e pobre. Por outro lado, não há nenhum indicador de que as redes de tráfico tenham sido coibidas.

De 2005 até dezembro de 2014, segundo dados do Ministério da Justiça, a população carcerária teve um salto vertiginoso de 111,4%, ultrapassando a marca de 620 mil presos. Isso colocou o Brasil na vergonhosa posição de quarto país com a maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos EUA, China e Rússia.

Em 2005, o porcentual de pessoas incriminadas por tráfico de drogas correspondia a 11% da população carcerária. Em 2014, segundo dados do Infopen, esse número alcançou 27%. Se considerarmos apenas as mulheres, o impacto foi ainda mais cruel: 64% das presas no Brasil respondiam por tráfico de drogas.

O grande responsável por essa desastrosa situação foi o aumento da pena mínima de três para cinco anos, mesmo para pequenos traficantes. Soma-se a isso a relutância dos juízes em aplicar a diminuição de pena para réus primários e a insistência no encarceramento, muito embora o Supremo Tribunal Federal já tenha decidido que a equiparação a crime hediondo não impede a aplicação de penas alternativas, como ocorre para outros crimes não violentos como o furto.

O resultado é uma distorção racista e classista, já enraizada na cultura brasileira, mas bastante escancarada no sistema prisional: embora não existam dados sociodemográficos específicos dos presos por tráfico de drogas, o perfil geral da população prisional brasileira é composto majoritariamente por negros (61,6%) e de baixa escolaridade (oito em cada dez estudaram, no máximo, até o ensino fundamental). O foco da atuação policial no combate à venda de drogas no varejo e ao transporte feito por "mulas" faz com que um contínuo fluxo de jovens desempregados sejam levados ao sistema prisional mesmo sem praticar qualquer ato violento, enquanto as grandes organizações têm seu complexo sistema de comércio e corrupção inalterado.

Política antidrogas vem promovendo um violento massacre às populações mais vulneráveis.

A lógica militar de combate às drogas faz com que 90% das prisões por tráfico sejam em flagrante e por pequenas quantidades. Esta pessoa provavelmente passará todo o processo no regime fechado de prisão por suposto "perigo à ordem pública" - pautado não na violência da pessoa, mas na ideia abstrata do "inimigo traficante" produzida pela mídia. A guerra às drogas é a grande responsável por manter em prisão provisória, ou seja, sem julgamento definitivo, 40% dos atuais presos do Brasil.

Em uma década, o Brasil acumulou conhecimento e dados suficientes para deixar claro que sua política antidrogas vem promovendo um violento massacre às populações mais vulneráveis e tornado cada vez mais insustentável o sistema prisional. Existe uma demanda crescente dentro e fora do país para a revisão da abordagem proibicionista e tratamento da questão dentro de seu devido lugar, que é a saúde pública.

Nesse sentido, o STF (Supremo Tribunal Federal) tem em suas mãos uma oportunidade histórica. Ainda nesse semestre deve ser retomado o julgamento sobre o Recurso Extraordinário nº 635.659, da Defensoria Pública de São Paulo, que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal.

Esperamos que os ministros do Supremo assumam para a si a responsabilidade de corrigir essa distorção, deixando de punir usuários e abrindo caminho para uma política de drogas menos violadora, menos encarceradora e menos seletiva.

Jessica Carvalho Morris e Henrique Apolinário, respectivamente diretora-executiva e assessor do programa de Justiça da ONG Conectas Direitos Humanos.


Fonte: El País


Fernando Henrique Cardoso: A história ensina

A política requer desprendimento e grandeza

Em julho passado André Franco Montoro faria cem anos. Em um país desmemoriado é bom recordar: Montoro foi dos raros políticos capazes de, sendo realistas, não deixar de lado os sonhos, as crenças, os valores. Em época de pouco caso ao meio ambiente, Montoro exortava as pessoas a plantarem hortas, a darem preferência à navegabilidade dos rios, a deixarem de lado os egoísmos nacionais e olharem para a América Latina, a dizer não à bomba atômica. E principalmente, a entender que a política requer desprendimento e grandeza. Foi assim quando, quase sozinho, impôs ao antigo PMDB um comício pelas eleições diretas-já na Praça da Sé, em 1984. E outro exemplo nos deu quando, lidando com outros gigantes, apoiou Tancredo Neves para a disputa no Colégio Eleitoral.

Conto um episódio. Nos preparativos para a eleição indireta do novo presidente, a Veja publicou uma entrevista de Roberto Gusmão, então chefe da Casa Civil de Montoro, em que este, falando por São Paulo, lançava o nome de Tancredo Neves para concorrer pela oposição. Na época, além de muito ligado a Ulysses Guimarães, eu era presidente do diretório do PMDB de São Paulo. Ulysses, como fazia habitualmente, passou na manhã subsequente à publicação da entrevista pelo casarão que então sediava o partido. Perguntou-me de chofre: "isso é coisa do Gusmão ou do Montóro"? Como ele pronunciava. Confirmei que era opinião do governador de São Paulo. "E você, o que acha?" Disse-lhe: "O senhor sabe dos laços de respeito e amizade que nos unem, mas nas circunstâncias é a opção para ganharmos no Congresso". Redarguiu: "quero ouvir isso do Montóro".

E assim, uma noite jantamos Montoro, Ulysses, Gusmão e eu, e cada um de nós, sob o olhar severo de Ulysses, confirmou nossas opiniões. Ulysses, não teve dúvidas: chefiou a campanha pela eleição de Tancredo. De fato, eleitoralmente quem poderia concorrer com Tancredo era Montoro, dado o volume de votos de São Paulo, que pesariam em eleições diretas. Tancredo, entretanto, teria vantagens táticas no convencimento de um Colégio Eleitoral composto por congressistas. Realista, Montoro logo propôs o nome mais viável. Vencemos.

Então estava em jogo a redemocratização do país, a convergência era necessária. Ela teve que ser ampliada para englobar os que antes eram adversários. Assim atravessamos o Rubicão e fomos, pouco a pouco, reconstruindo a democracia. Escrevo isso não só para valorizar a trajetória política e humana de gigantes como Montoro, Ulysses e Tancredo, mas para fazer paralelo com o presente.

Para o Brasil poder reconstruir-se, depois do tsunami lulopetista, ingloriamente culminado com quem talvez menos culpa tenha no cartório, a ainda presidente Dilma, é preciso grandeza. Não nos iludamos: estamos atravessando uma pinguela, a ponte é frágil. Sempre fui renitente a processos de impeachment porque, mesmo quando bem embasados, como o atual, implicam em destronar alguém que teve o voto popular e entregar o poder a quem também o recebeu, mas de forma mediata, em comparação com o presidente (a) a ser destronado. Contudo, a Constituição deve ser respeitada. Não adianta sonhar sem realismo com um plebiscito que talvez nos levasse a novas eleições. O mais provável é que nos levasse a uma escolha precipitada, se não à via indireta do Congresso pela impossibilidade de se obter a renúncia da incumbente e do vice. Mesmo que a destituição de ambos viesse por ordem do Supremo Tribunal Eleitoral, isso só ocorreria no próximo ano, quando a Constituição manda que a eleição seja indireta.

Logo, o que de melhor temos a fazer é fortalecer a pinguela, caso contrário caímos na água, e quem sabe, fortalecida, a pinguela se transforme mesmo em ponte para o futuro. Não é tarefa fácil e não cabem hesitações, nem ambições pessoais. A desorganização da economia, da política e da vida do povo causada pelos desatinos dos governos petistas vai requerer serenidade, firmeza, objetivos claros e muita persistência. Não é momento para exclusões. O PT e seus aliados são partes da vida nacional. Que se reconstruiam, que desistam das hegemonias e se habituem à competição democrática e à alternância no poder.

Precisamos fixar algumas prioridades, aliás, sabidas. Primeiro consertar a economia, começando pelas finanças públicas e por aceitar que, gastar sem haver recursos, não é política "de esquerda", é erro; quem paga as consequências dos erros (desemprego, inflação e desinvestimento) é o povo. Segundo, que não dá para governar com dezenas de "partidos" que são meras letras justapostas para obter vantagens financeiras. A cláusula de desempenho e a proibição de coligações nas eleições proporcionais se impõem. Terceiro, não basta o equilíbrio fiscal, é preciso alcançá-lo de modo favorável ao crescimento e à redistribuição de renda. O crescimento, em nosso caso, vai depender de o Estado bem desempenhar seu papel de regulador (por exemplo, nas parcerias público/privadas e nas concessões) e se abster de abarcar tudo. Quarto, que algum sinal na Previdência (por exemplo, a fixação progressiva de uma idade mínima para as aposentadorias) e no mercado de trabalhos (por exemplo, apoiar a sugestão do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo que dá maior peso às negociações) será importante. Por fim, é preciso entender que a agenda do atraso, preconizada por setores fundamentalistas, que se opõem aos direitos sociais e às políticas de identidade (de gênero, cor, comportamento sexual etc.) e equalizadoras (as cotas, as bolsas e etc.) é tão perniciosa quanto a paixão pela hegemonia voluntarista.

Há que aceitar as diferenças e conciliar pontos de vista olhando para o horizonte. É hora de mais Montoros e dos demais gigantes que nos tiraram do autoritarismo e nos levaram à democracia.


Fonte: El País