sociedade civil

Projeção feita por ativistas da US Network for Democracy in Brazil | Foto: divulgação/Manuela Lourenço

Projeção em prédio da ONU em Nova York chama Bolsonaro de 'vergonha brasileira'

Fernanda Mena*, Folha de São Paulo

Horas antes de o presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) chegar à sede da ONU em Nova York para o discurso de abertura da 77ª Assembleia-Geral, era possível ver imagens gigantescas suas projetadas na lateral do prédio ladeadas por expressões como "Brazilian shame" (vergonha brasileira).

A intervenção no edifício das Nações Unidas, de 39 andares e 155 metros de altura, foi iniciativa da US Network for Democracy in Brazil (Rede nos Estados Unidos pela Democracia no Brasil), que reúne acadêmicos de mais de 50 universidades americanas, ativistas e organizações da sociedade civil, como a Coalizão Negra por Direitos e a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), entre outras.

As imagens projetadas nas primeiras horas desta terça (20) trazem palavras como "vergonha", "desgraça" e "mentira" em quatro das línguas oficiais da ONU —inglês, francês, espanhol e mandarim—, além do português.

"Somos opositores ferrenhos desse governo brasileiro por todas as atrocidades que ele representa", diz Mariana Adams, organizadora nacional do US Network for Democracy in Brazil. "Nossa ação comunica ao mundo que Bolsonaro está apoiado em um sistema de fake news para avançar seu projeto pessoal de poder e de enriquecimento, não um projeto nacional de desenvolvimento do Brasil."

Segundo ela, as aparições internacionais de Bolsonaro "desmantelaram, de maneira sistemática, a imagem do Brasil no exterior, seja pela desastrosa política externa brasileira, seja pelas aparições internacionais que visam benefícios políticos eleitorais".

Exemplo recente, afirma ela, foi a passagem do presidente pelo Reino Unido para participar do funeral da rainha Elizabeth 2ª. Em meio às cerimônias solenes, o brasileiro usou a viagem para fazer campanha eleitoral, discursando a apoiadores.

"A ideia é retomar e subverter o palanque de que ele tem feito as instituições internacionais. Para nós, isso é vergonhoso", diz Adams, que afirma que os integrantes da rede atuam de forma voluntária e não são ligados a partidos políticos ou a ONGs. O grupo coletou fundos para a ação a partir da doação coletiva de seus membros.

Relembre as passagens de Bolsonaro pela Assembleia-Geral da ONU

Os ativistas elaboraram as combinações de imagens com palavras e contrataram um projetor capaz de lançá-las na empena cega do edifício a cerca de 1 quilômetro de distância.

"No momento em que o Brasil está sendo discutido de maneira tão fervorosa no cenário internacional, queremos que a comunidade internacional e os brasileiros que vivem fora do país não sejam enganados pelas tentativas de legitimação que Bolsonaro faz de seu projeto, que não é de país."

A menos de duas semanas das eleições presidenciais, em um momento em que aparece em segundo lugar nas pesquisas, Bolsonaro passará menos de 24 horas em Nova York. Ele chegou à cidade pouco antes das 20h, no horário local (21h em Brasília), desta segunda (19).

Nesta terça, o presidente abre os discursos da Assembleia-Geral antes de almoçar, em uma churrascaria brasileira, com apoiadores que viajaram em esquema de caravana de outras cidades americanas.

Além da intervenção desta madrugada, os arredores do prédio da ONU —projetado pelo arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer e pelo franco-suíço Le Corbusier e inaugurado em 1952—, podem virar campo de batalha entre bolsonaristas e ativistas, que devem protestar contra a passagem e o discurso de Bolsonaro.

Passagens anteriores de Bolsonaro por Nova York para o evento das Nações Unidas também contaram com intervenções com críticas ao presidente. No ano passado, um caminhão com telões o chamou de criminoso climático.

*Texto publicado originalmente no portal da Folha de São Paulo.


O Brasil tem a terceira maior população carcerária do planeta | Foto: Jefferson Botega/Agência RBS

Revista online | Eleições atrás das grades

João Marcos Buch*,especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro de 2022)

– Sim, se vocês votassem, provavelmente a condição degradante da prisão chamaria mais a atenção das autoridades!

Eu estava em inspeção na unidade prisional e, ao passar por uma galeria com presos sem acesso a trabalho e estudo, alguns me questionaram sobre reformas legislativas e políticas governamentais para o encarceramento. Respondi que, infelizmente, não havia política consistente na atualidade, já que a ótica é apenas a do encarceramento. Acrescentei, porém, que uma eleição se avizinhava e era importante saber o que os candidatos propunham. Um deles lembrou que os condenados não podem votar e que os presos provisórios até podem, mas não conseguem.

De fato, o artigo 15, inciso III, da Constituição Federal, estabelece que a perda ou suspensão dos direitos políticos se dá no caso de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos.

Daí se retiram duas situações: (1ª) os condenados, com sentença transitada em julgado, têm seus direitos políticos suspensos – lembre-se de que há condenados por determinados crimes, como os de improbidade, que têm os direitos políticos suspensos por tempo maior, para além do cumprimento da pena –; e (2ª) os presos em caráter provisório, inclusive aqueles que recorreram das condenações, mas que já iniciaram o cumprimento provisório da pena, mantêm os direitos políticos, ou seja, o direito de votar.

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Quanto à primeira situação, do condenado em definitivo, o que se deve ter em conta é que a norma constitucional não pode ser interpretada de maneira literal. Em uma hermenêutica constitucional consistente, respeitados entendimentos contrários, o certo é que a suspensão dos direitos políticos não pode ser automática e genérica. Por isso, precisa seguir o princípio da culpabilidade, da individualização da pena. A questão não é nova, e até mesmo o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no caso Hirst c. Reino Unido, de 2005, entendeu que viola a Convenção Europeia de Direitos Humanos a restrição automática e genérica ao direito ao voto enquanto presentes os efeitos da condenação penal.  

Entretanto, como a matéria está longe de ser pacificada, passa-se à segunda situação. Esta, sim, sem conflito interpretativo. Efetivamente, o preso provisório tem direito de votar. Acontece que essa realidade ainda está distante. 

Tomem-se os dados do pleito de 2018, por exemplo. Naquele ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou que os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) disponibilizassem seções eleitorais nos estabelecimentos penais, a fim de que os presos pudessem exercer sua cidadania por meio do voto (Resolução TSE n.23.554/2018). Neste ano de 2022, a Resolução TSE n.23.669/2021, art.27, regulamenta a matéria. Entretanto, na época, pouquíssimos foram os presos que efetivamente conseguiram votar.

Não existem dados qualificados, mas, pelo que se extrai de indicativos do TSE, das mais de 1.400 unidades prisionais do país, pouco mais de 200 instalaram seções eleitorais, e, nestas, um percentual muito pequeno de presos votou.

Como dito alhures, os dados sobre a população prisional brasileira não são qualificados. Os números não equivalem. Enquanto os dados extraídos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam para mais de 900.000 presos no país, os do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) indicam menos de 700.000. E, na separação entre condenados em definitivo e provisórios, os percentuais ficam ainda mais inconclusivos. Acredita-se que do total da população prisional, cerca de 1/3 é de presos provisórios.

Confira, abaixo, galeria de imagens:

Diálogo entre João Buch e presos | Foto: divulgação/acervo pessoal
Detentos enfileirados | Foto: Reprodução/Jornal da USP
João Buch conversa com detenta em sua cela | Foto: divulgação/acervo pessoal
Juiz João Marcos Buch durante visita a presídio | Foto: divulgação/acervo pessoal
Penitenciária masculina | Foto: Reprodução/Agência Brasil
Juiz João Marcos Buch fazendo inspeção em presídio | Foto: divulgação/acervo pessoal
Superlotação em presídios | Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
Juiz Marcos Buch e colaboradores em presídio | Foto: divulgação/acervo pessoal
Diálogo entre João Buch e presos | Foto: divulgação/acervo pessoal
Detentos enfileirados | Foto: Reprodução/Jornal da USP
João Buch conversa com detenta em sua cela | Foto: divulgação/acervo pessoal
Juiz João Marcos Buch durante visita a presídio | Foto: divulgação/acervo pessoal
Penitenciária masculina | Foto: Reprodução/Agência Brasil
Juiz João Marcos Buch fazendo inspeção em presídio | Foto: divulgação/acervo pessoal
Superlotação em presídios | Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
Juiz Marcos Buch e colaboradores em presídio | Foto: divulgação/acervo pessoal
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Diálogo entre João Buch e presos | Foto: divulgação/acervo pessoal
Detentos enfileirados | Foto: Reprodução/Jornal da USP
João Buch conversa com detenta em sua cela | Foto: divulgação/acervo pessoal
Juiz João Marcos Buch durante visita a presídio | Foto: divulgação/acervo pessoal
Penitenciária masculina | Foto: Reprodução/Agência Brasil
Juiz João Marcos Buch fazendo inspeção em presídio | Foto: divulgação/acervo pessoal
Superlotação em presídios | Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
Juiz Marcos Buch e colaboradores em presídio | Foto: divulgação/acervo pessoal
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Desta forma, descobrir o montante de presos aptos a votar e o número que efetivamente votará é algo muito difícil.

Para se ter uma ideia, o Presídio Regional de Joinville (SC) possui cerca de 1.200 presos. Destes, aproximadamente 500 ainda não foram julgados, e, talvez, cerca de 200 estão cumprindo provisoriamente suas penas, com recursos pendentes. Pois bem, apenas 70 presos foram considerados aptos a votar no pleito deste ano. 70 presos de 700: 10% do total.

Esse percentual, quer parecer, repete-se em todo o Brasil, e o motivo, em uma análise empírica, pode ser encontrado na precariedade das unidades prisionais. As prisões desta nação estão superlotadas, com pessoas amontoando-se em cubículos, sem acesso a direitos mínimos, que garantam alguma dignidade. Há locais até mesmo com falta de água corrente e energia elétrica, sem fornecimento de alimentação suficiente, sem acesso à saúde e a um colchão para dormir. As violações aos direitos humanos são tantas que não se torna leviano comparar as prisões com "navios negreiros".

Já quanto aos recursos humanos, estes são parcos, diminutos. Encontram-se unidades com mais de 1.000 mil encarcerados sendo cuidadas por cinco ou dez policiais penais.
Some-se a tudo isso a miserabilidade dos presos, selecionados que são para o encarceramento, a partir da necropolítica e necrojurisdição reinante neste país e que, portanto, já não gozavam de plena cidadania quando livres.

Então, falar em voto do preso, com regularização de seus documentos e estrutura para alocação de urna eletrônica – que, diga-se de passagem, é símbolo do avanço democrático, exemplo para o mundo, sendo de inquestionável segurança e fiscalização e à prova de fraudes, em uma nação impregnada de preconceitos e insuflada por discursos de ódio – soa irreal. Mas não deveria.

É plenamente factível garantir ao preso o direito ao voto. Basta, para isso, estabelecerem-se acordos de cooperação técnica entre os diversos protagonistas do estado e da sociedade civil organizada, começando por órgãos como Conselho Nacional de Justiça, Tribunal Superior Eleitoral, Tribunais Regionais Eleitorais, Ministério Público, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do Brasil, Conselhos da Comunidades, Ministério da Justiça, Departamento Penitenciário Nacional e Secretarias Estaduais de Administração Prisional.

 Se houver vontade política, os encarcerados regularizarão seus documentos, urnas eletrônicas serão colocadas em todas as unidades prisionais, e o preso votará. Quem sabe, assim, com o voto atrás das grades, a cidadania chegue junto com tudo que historicamente ela significa.

Ao menos foi isso que eu tentei transmitir aos presos, ao menos foi isso que os presos pediram para mim.

*João Marcos Buch é juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Beatriz Della Costa: A sociedade civil tem que pautar a política

Umas semanas atrás fui entrevistada por uma jornalista que me perguntou assim: “Como mudar a situação do Brasil?”. Minha primeira reação foi partir para o óbvio: lockdown, vacina e auxílio emergencial. “Mas o que podemos fazer hoje para transformar esse cenário amanhã?”, ela insistiu. Fiquei aflita, pois não tenho a resposta. O que pude dizer foi que não há solução imediata, que a ideia do impeachment se esvai a cada dia e que já está bem claro que somos triplamente reféns: do vírus, do Governo negacionista e de políticos fisiologistas.

A conversa me deixou reflexiva. Primeiro pela essência da pergunta em si, que enfatiza o quanto estamos todos ansiosos para sair do buraco. Depois, pela constatação da inexistência de uma saída rápida. O bolsonarismo está por aí desde antes de 2018 e, de uma forma ou de outra, vai persistir para além de 2022 ou 2026. Ele representa um pensamento com o qual 30% da população de certa maneira se identifica. Então, querer mudar o futuro é, primeiro, ser capaz de olhar para este presente e entendê-lo a partir das heranças do passado, boas ou ruins. Precisamos lembrar que o bolsonarismo apenas vocaliza o comportamento de um país que se desenvolveu a partir do autoritarismo, da escravidão, da violência, do extrativismo.

E o que a gente sente é que ninguém, seja no governo ou na oposição, está preocupado em fazer isso, em delinear um projeto de país. Os partidos e os políticos, os tais fisiologistas de que falei, estão ali travando uma disputa de cabo de guerra que nada tem a ver com você ou comigo. De onde, então, pode vir a esperança? A que podemos nos apegar?

Sou cética no que diz respeito a uma oposição que, sem propostas, busca a união pela via do “anti”, mas confesso que aquele primeiro discurso de Lula depois de seu retorno ao jogo político, em março, me fisgou. Vi ali uma chance de enfim fugirmos destes tempos com sabor de 1964. A questão que fica é: para que futuro Luiz Inácio nos levaria? Chegaríamos finalmente à terceira década do século XXI? Ou iríamos para o futuro de 2010, numa continuidade direta de seu segundo mandato? Seja como for, a escolha entre 1964 e 2010 não é nada difícil.

Não tenho dúvidas, entretanto, de que a única maneira de entrarmos de vez no século XXI é nos livrando por completo da ideia de salvadores da pátria. Não existe mágica, não existem personificações puras do bem e da mudança. Qualquer pessoa que se proponha a botar o país nos eixos, a nos reinserir numa linha do tempo próxima à realidade, deve governar pelo diálogo com os mais diferentes grupos da população. Lula talvez esteja dando umas dicas de que está disposto a fazer isso (anda falando de imprensa livre, segurança, relações internacionais, pandemia e de vez em quando até de meio ambiente), mas já conhecemos suas limitações: além de representar um grupo político com visões enraizadas no fim do século XX, também é, de certa forma, parte do problema que vivemos.

No meio disso tudo, a sociedade civil tem a grande missão de começar a pautar a política de maneira menos centralizada e dependente. Precisamos disseminar o diálogo construtivo entre o poder público e, também, entre a população. Desde já, as organizações precisam ouvir brasileiros de todos os tipos, brasileiros que pensam de muitas maneiras, brasileiros que votam em pessoas diferentes. Isso vai decifrar insatisfações e, o mais importante, desvendar os pontos de convergência que podem fomentar um projeto de país e repavimentar a estrada para um Brasil justo e humano. Poucos países têm uma sociedade civil tão sólida, é hora de usarmos isso a nosso favor.

Sei que estamos resolvendo emergência atrás de emergência. Quando o encanamento se rompe e tudo fica debaixo d’água, vamos pensar em chamar um bombeiro hidráulico ou na reforma da casa? É possível lidar com a urgência e ao mesmo tempo se dedicar à construção de um futuro? Só há uma resposta: tem que ser. Estamos diante do grande desafio desta geração, a reconstrução do nosso tecido social. E chegou o momento de enfrentarmos nossos medos e as sombras do nosso passado, estabelecermos conversas, praticarmos a tolerância e sairmos Brasil adentro para construir nossos sonhos para o século XXI.

Beatriz Della Costa é cientista social, cofundadora e diretora do Instituto Update, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que lançou em 2020 o projeto Eleitas: Mulheres na Política (www.eleitas.org.br), que mapeou mais de 600 mulheres e entrevistou mais de 100 para mostrar como elas vêm transformando a política, a sociedade e a democracia na América Latina.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-05/a-sociedade-civil-tem-que-pautar-a-politica.html


Ascânio Seleme: Lula parte para o terceiro mandato

Ao confirmar suspeição de Moro, STF reabilitou política e moralmente o ex-presidente autorizando-o a se candidatar e muito provavelmente se eleger outra vez em 2022

Ao confirmar a suspeição do ex-juiz Sergio Moro depois de tê-lo considerado incompetente para julgar Lula, o Supremo Tribunal Federal reabilitou política e moralmente o ex-presidente autorizando-o a se candidatar e muito provavelmente se eleger outra vez em 2022. Não, não haverá tempo para que uma candidatura de centro ou centro-direita surja e cresça a ponto de superar Lula e conseguir vaga no segundo turno. Apenas João Doria pode surpreender. Luciano Huck ficou no espaço. Luiz Mandetta não se consolidou. Moro se dissolveu. E os demais pré-candidatos que apareceram neste espectro eram apenas balões que nem sequer ensaiaram uma alternativa.

A centro-esquerda e esquerda tinham Fernando Haddad e Ciro Gomes. Haddad é Lula. Ciro não deve ser páreo para um Lula que volta revigorado pelo STF. À direita o candidato será mesmo Bolsonaro? Talvez sim. Talvez não. A direita liberal pode encontrar em Lula argumentos para fugir do capitão que muito prometeu em 2018 e pouco entregou. As reformas neste governo não avançaram. Mesmo a reforma da Previdência, aprovada em 2019, foi muito mais mérito de Rodrigo Maia e da Câmara do que de Bolsonaro e do Palácio. Além disso, as constantes ameaças às instituições atrapalham o capitão muito mais do que o ajudam.

O presidente ficará com a extrema-direita, isso com certeza. Neste espaço, só resta ele. Trata-se de uma área tão árida do campo que somente olavistas convictos e puxa-sacos rematados conseguem por ela transitar à vontade. Com eles seguirá parte do eleitorado que se enrola em bandeiras do Brasil e pede o fechamento do Congresso, do Supremo. São minoria, mais velhos e saudosistas ou mais ignorantes e menos informados. Serão acompanhados também pelos que ainda olham para Lula e para o PT e só enxergam corrupção. São muitos, mas as pesquisas revelam que a maioria já percebeu que a alternativa é pior.

O cenário não deixa muita dúvida. O desgaste de Bolsonaro, que deve seguir e ser ainda ampliado pela CPI da Covid, o debilitará política e eleitoralmente, mas dificilmente a ponto de tirá-lo do segundo turno. Esta talvez seja a única forma de Lula não conquistar um terceiro mandato. Se houver um segundo turno entre ele e qualquer outro candidato que não seja o capitão, suas chances de vencer diminuem muito. Como é pouco provável que isso ocorra, Lula e Bolsonaro deverão ir para o segundo turno. E aí, antes de dizer com quem vai o eleitor, é importante observar como se guiarão as forças políticas, os partidos e seus líderes.

Mesmo os partidos que hoje apoiam o governo no Congresso terão de fazer cálculos para decidir com que seguir num segundo turno entre os dois. Se Bolsonaro não estiver muito isolado em 2022, talvez tenha uma meia dúzia de partidos coligados em sua campanha. Mas nesta contabilidade, não se pode dar por certo nem mesmo o apoio do PSL, que só existe por obra do presidente. O Centrão, de DEM, PP, MDB e outros, sabe muito bem para qual canoa deve pular se a sua estiver fazendo água. E a canoa de Lula já abrigou o Centrão antes. Os partidos que formam esta amálgama podem se dividir até o limite do primeiro turno, depois seguem com quem for vencer.

À esquerda, nenhuma dúvida. Talvez Ciro Gomes viaje outra vez a Paris, como já disse que fará na hipótese de ter como opção o PT. Ciro vai, mas o seu partido, o PDT, fica. Seus eleitores também, ou alguém imagina que na ausência de Ciro pedetistas votarão por descuido em Bolsonaro? Os demais partidos que contam, PSOL, PSB, Rede, PCdoB, devem ir com Lula já no primeiro turno. Os demais desaguarão no PT em seguida. Mesmo que Doria anteveja um provável fracasso e prefira disputar um segundo mandato em São Paulo, o PSDB deve ter candidato próprio. Mas no segundo turno não piscará ao emprestar seu apoio à Lula contra Bolsonaro.

Ninguém, a não ser as forças mais retrógradas do país, quer dar mais um mandato ao capitão baderneiro. A experiência foi desastrosa politicamente e trágica do ponto de vista sanitário. O Brasil precisa recuperar sua saúde, sua economia, sua autoestima, o prestígio que um dia teve no mundo. Estes objetivos certamente seriam alcançados, em escalas diferentes, por Doria, Ciro ou Haddad. Os três são melhores, muito melhores do que Bolsonaro, sob qualquer ângulo que se olhe, e o derrotariam num segundo turno. Mas pelo que se desenhou com a decisão do STF, caberá a Lula a tarefa.

A BELEZA DA CPI

Há muitos céticos quanto ao resultado da CPI da Covid. Tantas deram em nada e a coisa agora pode ir pelo mesmo caminho, dizem. Acho que esta não, sobretudo porque o objeto da investigação são os inequívocos malfeitos do presidente e de ministros. As que ficaram no caminho, até sem relatório final, não tinham a gravidade desta. Mesmo que fique menor do que o esperado, a beleza desta CPI é a abundância de luz que ela jogarásobre a tragédia patrocinada pelo governo Bolsonaro. De terça-feira em diante este será o assunto número 1 do país. Os olhos da Nação estarão virados para o Senado. A exposição sobre os membros da comissão será de uma grandeza solar. Qualquer bobagem será anotada. Todos os acertos serão contabilizados. A CPI é política. Seus membros também.

O QUERIDINHO

Engana bem o general Braga Netto.

No período em que comandou as forças de intervenção no Rio, em 2018, foi tratado como o queridinho da cidade por empresários, políticos e mesmo alguns jornalistas. Braga já tinha feito amigos civisem 2016, quando chefiou a segurança da Olimpíada. Aos olhos de muitos parecia um general arejado, moderno, gente dos novos tempos. Bagagem, aquilo era apenas uma fantasia que o general usou temporariamente no lugar da farda.

RESPEITO É BOM

O ex-queridinho disse no nefasto discurso feito na posse do novo comandante do Exército que “o projeto escolhido pelos brasileiros merece respeito”. Boa general, correto. O problema é que o projeto escolhido foi abandonado pelo governo que radicalizou para atender apenas aquela parcela de malucos embandeirados que vão para a rua pedir a intervenção militar. Para que serviriam os ditados se não houvessem verborragias como esta do general? Por isso, caro Braga Netto, “não merece respeito quem não se dá ao respeito”.

LIBERDADE

Além da ameaça dissimulada à CPI da Covid, o general Braga Netto voltou a falar em liberdade. Disse estarem enganados os que acreditam que podem “colocar em risco a liberdade conquistada por nossa Nação”. Se não tivesse outro destino, diria que a mensagem de Braga foi acertada,

já que o Brasil não está disposto a devolver a liberdade que conquistou quando se livrou de outros generais que tomaram o poder pela força.

DOUTOR ZERINHO

Flávio Bolsonaro botou banca. Vai advogar no Distrito Federal. Uma maravilha, gente. Seu primeiro cliente poderia ser a rede LavLev, que em Brasília tem filiais na Asa Norte, no Sudoeste, na Octogonal e no Cruzeiro.

MARINA E A PERERECA

Lula tem razão. Ele e Gleisi assinaram artigo na “Folha” mostrando sua preocupação com o meio ambiente e batendo na política criminosa de Bolsonaro para o setor. Mas é bom não esquecer que o maior ícone ambientalista nacional, a ex-senadora Marina Silva, pediu demissão do Ministério do Meio Ambiente no governo Lula por falta de “sustentação política” para tocar sua pauta. Também não custa lembrar que Lula sempre se queixou da “poderosa máquina de fiscalização” ambiental. Por isso disse, no longínquo 2010, que o Brasil não podia “ficar a serviço de uma perereca”. Criticava a paralisação das obras do Arco Metropolitano do Rio em favor da preservação de um anfíbio que habitava um charco por onde passaria a estrada.

BLABLABLÁ

De qualquer modo, não dá para comparar os pecados ambientais de Lula com os crimes que os vilões mentirosos Jair Bolsonaro e Ricardo Salles cometem diariamente contra o meio ambiente brasileiro. Por isso, aliás, pouca gente levou a sério o discurso hipócrita do presidente na Cúpula do Clima. Na prática, o governo faz exatamente o contrário do blablablá pronunciado. Anitta tem razão, difícil explicar no exterior esse que ela chamou de “desgoverno de bosta”.

CHAUVIN

Se o assassinato de um homem negro por sufocamento tivesse sido cometido no Brasil há um ano, o policial Derek Chauvin a esta altura já estaria de volta à ativa ou, no máximo, cumprindo alguma função burocrática numa delegacia ou num quartel. Logo após o crime, sobretudo se ele tivesse sido filmado, Chauvin seria afastado das ruas e mantido em casa ou detido no quartel, mas com remuneração garantida. Mesmo que a nossa bondosa Justiça visse dolo na ação do policial, se o assassino tivesse bons advogados, usaria os inúmeros recursos disponíveis e permaneceria na boa até o crime prescrever.

QUESTÃO DE AGENDA

Ernesto Araújo alegou ter um “compromisso inadiável” para não participar de uma live organizada na quarta-feira por olavistas notáveis, se é que isso existe. Talvez tivesse que buscar um filho no colégio ou restaurar uma obturação. Fora isso, agenda vazia.

NÃO MANDA NADA

Em razão de nota publicada aqui na semana passada, o presidente executivo da Fetranspor, Armando Guerra, ligou para explicar que a entidade não manda patavina nenhuma na desordem do setor no Rio. Se mandasse, 20 empresas não teriam fechado as portas entre março e dezembro do ano passado, não teria havido R$ 2,8 bi em perda de receitase R$ 1,5 bi de prejuízos no mesmo período.


Ricardo Noblat: Falta dinheiro para tudo, menos para Bolsonaro ir atrás de votos

Em dia de cortes no Orçamento de 2021, presidente sai em campanha pela reeleição

Menos de 24 horas depois de Bolsonaro  ter anunciado na Cúpula de Líderes sobre o Clima que mandaria duplicar os recursos destinados a ações de fiscalização ambiental no Brasil, o Diário Oficial da União publicou o Orçamento de 2021 assinado por ele que cortou RS 240 milhões da verba do Ministério do Meio Ambiente. A duplicação não tem mais data para acontecer.

Na quinta-feira, em live nas redes sociais, Bolsonaro apareceu ao lado de Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, convidado por ele para falar sobre a vacina brasileira contra a Covid-19 que está sendo desenvolvida por cientistas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Ontem, Bolsonaro vetou R$ 200 milhões que seriam usados para financiar a vacina.

 “Marcão, vamos lá. Como é que ‘tá’ a nossa vacina brasileira? Essa é 100% brasileira, não é aquela ‘mandrake’ de São Paulo, não né”, perguntou Bolsonaro a Pontes na live. Referia-se à Butanvac, a vacina apresentada pelo Instituto Butantan de São Paulo como sendo 100% nacional e que está em fase de testes. A vacina patrocinada pelo governo federal ficará para depois.

Jamais faltou e jamais faltarão recursos para combater a pandemia, Bolsonaro repete como se fosse um mantra. Mesmo com a crise sanitária do coronavírus batendo novos recordes nos primeiros quatro meses deste ano, o Orçamento de 2021 reservou menos recursos para o Ministério da Saúde do que no ano passado. Foram R$ 210 bilhões em 2020. Agora serão R$ 157 bilhões.

Foi praticamente zerada no Orçamento deste ano a verba para dar continuidade às obras da faixa 1 do programa Minha Casa, Minha Vida, rebatizado pelo governo de Casa Verde e Amarela. Houve um corte de R$ 1,5 bilhão nas despesas que estavam reservadas ao Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), que banca as obras do programa habitacional voltadas às famílias de baixa renda.

Ao jornal O Estado de S. Paulo, o presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção, José Carlos Martins, classificou de “loucura” o corte total nas verbas para a continuidade das obras do programa habitacional do governo e disse que quem ordenou o veto “não tem noção do que está fazendo”. O corte, segundo ele, põe em risco 250 mil empregos diretos no setor da construção.

Para não ouvir choro nem ranger de dentes, Bolsonaro manteve-se distante de Brasília durante boa parte da sexta-feira. Saiu em campanha para reeleger-se com tudo pago pelo governo, naturalmente. Em Manaus, inaugurou um centro de convenções inacabado com capacidade para 10 mil pessoas, reuniu-se com evangélicos e entregou cestas básicas aos seus devotos.

Fez um discurso de apenas cinco minutos, o suficiente para exaltar o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde demitido por ele, que passou a acompanhá-lo em viagens; repetiu a ladainha de que o país “começou a sair das garras nefastas da esquerda brasileira”; e disse que se Haddad (PT) tivesse sido eleito haveria um lockdown nacional. “Graças a Deus não aconteceu”.

Foi a primeira vez que Bolsonaro visitou Manaus desde o colapso do sistema local de saúde em janeiro devido à segunda onda da epidemia. Nada comentou sobre a morte, ali, de 6.600 pessoas no primeiro trimestre deste ano, um dos índices de óbito per capita mais altos do mundo. Muitos morreram asfixiados porque não havia cilindros de oxigênio disponíveis.

De Manaus, Bolsonaro foi a Belém entregar 468 mil cestas básicas do programa Brasil Fraterno para serem distribuídas em todo Estado. Dezenas de pessoas com fome o aguardavam desde cedo. A solenidade foi na Base Aérea. Apoiadores de Bolsonaro, carregando bandeiras, chegaram ao local em ônibus escuros com logotipo do Primeiro Comando Aéreo Regional.

Outra vez, Bolsonaro discursou como se tivesse em um comício, e de fato estava. Cercado de deputados, disse: “Estamos atendendo essas pessoas, diferente daqueles que retiraram os empregos e não fizeram quase nada por aqueles que estão desempregados e passando fome”. O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), recepcionou Bolsonaro na descida do avião, mas logo foi embora.


Pablo Ortellado: Revisão da Lei de Segurança Nacional é necessária, mas traz riscos

A Lei de Segurança Nacional é um entulho autoritário que precisa de revisão urgente. Leis desse tipo deveriam ser usadas apenas em momentos extraordinários, quando o regime é ameaçado, e talvez não seja por acaso que nossa lei de 1983 tem sido bastante usada —por Bolsonaro, para perseguir dissidentes, e pelo STF, para investigar atividades antidemocráticas.

Por isso, o Supremo e o Congresso aparentemente acertaram uma revisão acelerada da lei que pode melhorar nosso arcabouço jurídico, mas pode também trazer novos problemas num caminho cheio de riscos e percalços.

A estratégia adotada pelo presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira, foi propor um substitutivo ao projeto de lei de 1991 de Hélio Bicudo, que definia crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Lira designou como relatora a deputada Margarete Coelho (PP-PI), que está conduzindo um amplo processo de consulta a diferentes atores da sociedade, o que levou o substitutivo a acumular 10 revisões.

A mera revogação da Lei de Segurança Nacional, com seus muitos dispositivos autoritários, já seria motivo para celebração. Mas o substitutivo da deputada tem alguns méritos. Ele se concentra em crimes como golpe de Estado, insurreição, sabotagem, traição, espionagem e atentado contra a integridade do território nacional, sem aberturas muito explícitas que permitam o enquadramento de atividades regulares de protesto como crimes contra a democracia.

Mas detalhes de redação e possibilidades de emendas de parlamentares, assim como vetos seletivos do presidente da República, trazem enormes riscos à empreitada.

O crime de insurreição, caracterizado como o impedimento do exercício de um poder mediante ameaça, poderia ser usado para enquadrar manifestantes que ocupam um escritório (do Ibama ou do Incra, por exemplo) exigindo direitos. O mesmo acontece com o crime de sabotagem, definido como a inutilização de meios de comunicação ou transporte, que poderia ser usado para enquadrar manifestantes indígenas ou caminhoneiros que bloqueiem uma via.

Ainda que se possa questionar a licitude de uma ocupação de escritório governamental ou do fechamento de uma via, a reivindicação de um direito não é o mesmo que uma tentativa de alteração da ordem democrática. Protesto não pode ser tratado como se fosse subversão do regime.

Um artigo específico do substitutivo diz isso explicitamente, mas há o temor de que ele possa ser seletivamente vetado pelo presidente, para permitir que a lei seja usada para perseguir manifestantes contrários ao governo.

Há também preocupação com o artigo que trata da “comunicação enganosa em massa”, que se baseia no escorregadio conceito de disseminação de fatos sabidamente inverídicos. Ele poderia ser mais restrito e mais efetivo se se concentrasse não em notícias “falsas”, mas na difusão de conteúdos, mesmo que “verídicos”, que promovem crimes contra o Estado de Direito, o que atingiria em cheio as atividades de propaganda no WhatsApp que diariamente convocam a população contra o Congresso e o Supremo.


Hélio Schwartsman: Como vão as instituições?

Bolsonaro jamais teve ascendência sobre o Parlamento nem excedeu 40% de aprovação

Li nos jornais da quinta-feira (22) dois bons artigos dizendo mais ou menos o contrário um do outro. Na Folha, Fernando Schüler sustenta que Jair Bolsonaro foi enquadrado pelo sistema político (um pedacinho das famosas instituições) e se encontra agora em modo sobrevivência, sem constituir ameaça maior ao regime democrático.

Em O Estado de S. Paulo, Eugênio Bucci afirma não estar tão seguro de que o presidente não tentará um golpe, mas, mesmo que não promova nenhuma ruptura formal, ele, comendo pelas beiradas, já provocou tamanha deterioração em tantas instituições e esferas do Estado que a democracia brasileira está hoje bem pior do que no passado.

Por paradoxal que pareça, acho que os dois têm razão. Bolsonaro se vê politicamente enfraquecido, com pouca chance de desferir com êxito um golpe, mas já causou um estrago tão grande em tantas áreas que, se tudo der certo, levaremos anos para nos recuperar.

Mas por que Bolsonaro não deu um golpe, seja no estilo clássico, tão ao gosto dos militares, seja à moda húngara, desfigurando as instituições de controle até que elas percam a função original? Não foi por falta de pendor autoritário. Isso ele tem de sobra. O que não teve foi apoio político para aventuras mais ousadas.

Com efeito, a maioria dos autocratas modernos, como Viktor Orbán, Vladimir Putin, Recep Erdogan, chegou a essa condição porque soube aproveitar momentos de alta popularidade, em geral proporcionados por bonanças econômicas, para aprovar leis que lhes permitiram consolidar o poder.

Bolsonaro nunca chegou nem perto dessa situação. O presidente jamais teve ascendência sobre o Parlamento (agora é refém dele) nem excedeu os 40% de aprovação popular. Não há milagre econômico à vista para redimi-lo. Com seu arsenal, Bolsonaro consegue baixar decretos, segurar verbas, mover pessoal.

Dá para fazer um estrago formidável, mas não para redesenhar o Estado.


Rubens Barbosa: O Brasil e a diplomacia epistolar

Cartas não definirão a política externa dos EUA com o Brasil; mas terão influência quando as negociações bilaterais começarem

Nos últimos dois anos, a ausência de uma política externa atuante que acompanhasse as mudanças que estão acontecendo no mundo deixou um vazio que rapidamente foi ocupado por agentes subnacionais, como governadores, pelo Congresso, presidentes das duas Casas e presidentes da Comissão de Relações Exteriores e pela sociedade civil.

Nunca antes na história deste país verificou-se quase semanalmente troca de correspondência de brasileiros e americanos (Congressistas, ex-ministros e sociedade civil) com Joe Biden e com autoridades de seu governo e do Congresso, em Washington, tendo como foco a política ambiental brasileira, e tratando de temas de interesse da relação bilateral.

 Além da correspondência entre os presidentes Bolsonaro e Biden, a maioria das cartas, críticas às política ambientais e de direitos humanos na Amazônia, pediu para o governo americano não levar adiante a cooperação em todas as áreas, inclusive de Defesa (Base de Alcântara), com o Brasil, enquanto o governo brasileiro não mudar a narrativa e as medidas internas que estão permitindo o aumento dos ilícitos na Amazônia pelo desmatamento, pelas queimadas, pelo garimpo e pelo tratamento dispensado às comunidades indígenas.

Nos últimos dias, com a aproximação da cúpula do clima, multiplicaram-se as manifestações de artistas, personalidades nacionais e estrangeiras, mostrando o grau de interesse fora do Brasil sobre o futuro da Amazônia. 

Na área oficial, Bolsonaro escreveu uma carta a Biden antecipando sua fala no dia 22 com algum avanço na narrativa seguida até aqui, mas com a referência ao apoio financeiro em troca de promessa de redução de desmatamento em 2030. John Kerry reconheceu a mudança de tom do governo brasileiro, mas cobrou resultado de curto prazo, dando oportunidade para o embaixador dos EUA, em conversa em grupo fechado, pedir resultados concretos e verificáveis.

As cartas não definirão a política externa dos EUA em relação ao Brasil, pois há muitos outros interesses econômicos, políticos e comerciais em jogo. Certamente, contudo, elas terão influência quando as negociações bilaterais começarem efetivamente, já que até aqui o que ocorreu foram diálogos em nível técnico, evitando qualquer confrontação direta.

A inusitada troca de missivas entre a sociedade civil brasileira e personalidades internacionais sobre a Amazônia mostra a urgência de o Brasil voltar a ter uma política externa com foco no meio ambiente e na mudança de clima, como ocorreu até fins de 2018. A apresentação de Bolsonaro amanhã talvez seja a última oportunidade para o Brasil voltar a apresentar-se como protagonista na discussão global sobre mudança de clima e para indicar uma mudança séria e profunda de rumo na política ambiental.

*Foi Embaixador do Brasil nos EUA e atualmente é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)


Merval Pereira: Lockdown emergencial

Centenas de economistas, entre eles quatro ex-ministros da Fazenda (Marcilio Marques Moreira, Pedro Malan, Mailson da Nóbrega e Rubem Ricupero), cinco ex-presidentes do Banco Central (Afonso Celso Pastore, Arminio Fraga, Gustavo Loyola, Ilan Goldfajn e Pérsio Arida), ex-presidentes do BNDEs (Edmar Bacha, Eleazar de Carvalho) dentre outros, abrangendo diversas gerações de economistas, pessoas da academia, do mercado financeiro, ex-membros de governos diversos, e empresários lançaram uma Carta intitulada “País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo”, a propósito da atual crise brasileira, com sugestões concretas do que deve ser feito para tentarmos superar a pandemia da Covid-19.

Diante de situação econômica e social “desoladora”, e de um governo que “subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia”, eles sugerem até mesmo a possibilidade de adoção de um lockdown nacional. Calculam que a redução do nível da atividade nos custou menos do que o atraso na vacinação:

“Uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em dois trimestres”.

Segundo os economistas, “o efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social” e, além do auxílio emergencial, “não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais”.

O documento destaca que “a experiência internacional com programas de aval público para financiamento privado voltado para pequenos empreendedores durante um choque negativo foi bem-sucedida na manutenção de emprego, gerando um benefício líquido positivo à sociedade”. A retomada de linhas avalizadas pelo Fundo Garantidor para Investimentos e Fundo de Garantia de Operações é uma medida importante de transição entre a segunda onda e o pós-crise.

As medidas imediatas seriam:

1 - Acelerar o ritmo da vacinação, usando a política externa para apoiar a obtenção de vacinas, seja nos grandes países produtores, seja nos que têm ou terão excedentes em breve.

2 - Incentivar o uso de máscaras, tanto com distribuição gratuita quanto com orientação educativa. O Brasil poderia distribuir máscaras à população de baixa renda, explicando a importância do seu uso na prevenção da transmissão da Covid. Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Center for Disease Control do EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial.

3 - Implementar medidas de distanciamento social no âmbito local, com coordenação nacional. As decisões devem ser de responsabilidade das autoridades locais. É urgente que os diferentes níveis de governo estejam preparados para implementar um lockdown emergencial, definindo critérios para a sua adoção.

O fechamento de escolas no Brasil atingiu de forma mais dura as crianças mais pobres e suas mães. Portanto, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir em um esquema de distanciamento social.

4 - Criar mecanismo de coordenação do combate à pandemia em âmbito nacional – preferencialmente pelo Ministério da Saúde e, na sua ausência, por consórcio de governadores – orientada por uma comissão de cientistas e especialistas.

“O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos em que o país incorre”.

Integra da carta:

O País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo

Carta Aberta à Sociedade Referente a Medidas de Combate à Pandemia

O Brasil é hoje o epicentro mundial da Covid-191, com a maior média móvel de novos casos.

Enquanto caminhamos para atingir a marca tétrica de 3 mil mortes por dia e um total de mortes acumuladas de 300 mil ainda esse mês, o quadro fica ainda mais alarmante com o esgotamento dos recursos de saúde na grande maioria de estados, com insuficiente número de leitos de UTI, respiradores e profissionais de saúde. Essa situação tem levado a mortes de pacientes na espera pelo atendimento, contribuindo para uma maior letalidade da doença.

A situação econômica e social é desoladora. O PIB encolheu 4,1% em 2020 e provavelmente observaremos uma contração no nível de atividade no primeiro trimestre deste ano². A taxa de desemprego, por volta de 14%, é a mais elevada da série histórica, e subestima o aumento do desemprego, pois a pandemia fez com que muitos trabalhadores deixassem de procurar emprego, levando a uma queda da força de trabalho entre fevereiro e dezembro de 5,5 milhões de pessoas.

A contração da economia afetou desproporcionalmente trabalhadores mais pobres e vulneráveis, com uma queda de 10,5% no número de trabalhadores informais empregados, aproximadamente duas vezes a queda proporcional no número de trabalhadores formais empregados³.

Esta recessão, assim como suas consequências sociais nefastas, foi causada pela pandemia e não será superada enquanto a pandemia não for controlada por uma atuação competente do governo federal. Este subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia. Sabemos que a saída definitiva da crise requer a vacinação em massa da população. Infelizmente, estamos atrasados. Em torno de 5% da população recebeu ao menos uma dose de vacina, o que nos coloca na 45ª posição no ranking mundial de doses aplicadas por habitante.

O ritmo de vacinação no país é insuficiente para vacinar os grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI) no 1º semestre de 2021, o que amplia o horizonte de vacinação para toda a população para meados de 2022.

As consequências são inomináveis. No momento, o Brasil passa por escassez de doses de vacina, com recorrentes atrasos no calendário de entregas e revisões para baixo na previsão de disponibilidade de doses a cada mês. Na semana iniciada em 8 de março foram aplicadas, em média, apenas 177 mil doses por dia.

No ritmo atual, levaríamos mais de 3 anos para vacinar toda a população. O surgimento de novas cepas no país (em especial a P.1) comprovadamente mais transmissíveis e potencialmente mais agressivas, torna a vacinação ainda mais urgente. A disseminação em larga escala do vírus, além de magnificar o número de doentes e mortos, aumenta a probabilidade de surgirem novas variantes com potencial de diminuir a eficácia das vacinas atuais.

Vacinas são relativamente baratas face ao custo que a pandemia impõe à sociedade. Os recursos federais para compra de vacinas somam R$ 22 bilhões, uma pequena fração dos R$ 327 bilhões desembolsados nos programas de auxílio emergencial e manutenção do emprego no ano de 2020.

Vacinas têm um benefício privado e social elevado, e um custo total comparativamente baixo. Poderíamos estar em melhor situação, o Brasil tem infraestrutura para isso. Em 1992, conseguimos vacinar 48 milhões de crianças contra o sarampo em apenas um mês.

Na campanha contra a Covid-19, se estivéssemos vacinando tão rápido quanto a Turquia, teríamos alcançado uma proporção da população duas vezes maior, e se tanto quanto o Chile, dez vezes maior. A falta de vacinas é o principal gargalo. Impressiona a negligência com as aquisições, dado que, desde o início da pandemia, foram desembolsados R$ 528,3 bilhões em medidas de combate à pandemia, incluindo os custos adicionais de saúde e gastos para mitigação da deteriorada situação econômica. A redução do nível da atividade nos custou uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em 2 trimestres.

Nesta perspectiva, a relação benefício custo da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na sua aquisição e aplicação. A insuficiente oferta de vacinas no país não se deve ao seu elevado custo, nem à falta de recursos orçamentários, mas à falta de prioridade atribuída à vacinação.

O quadro atual ainda poderá deteriorar-se muito se não houver esforços efetivos de coordenação nacional no apoio a governadores e prefeitos para limitação de mobilidade. Enquanto se busca encurtar os tempos e aumentar o número de doses de vacina disponíveis, é urgente o reforço de medidas de distanciamento social. Da mesma forma é essencial a introdução de incentivos e políticas públicas para uso de máscaras mais eficientes, em linha com os esforços observados na União Europeia e nos Estados Unidos.

A controvérsia em torno dos impactos econômicos do distanciamento social reflete o falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável. Na realidade, dados preliminares de óbitos e desempenho econômico sugerem que os países com pior desempenho econômico tiveram mais óbitos de Covid-19. A experiência mostrou que mesmo países que optaram inicialmente por evitar o lockdown terminaram por adotá-lo, em formas variadas, diante do agravamento da pandemia – é o caso do Reino Unido, por exemplo. Estudos mostraram que diante da aceleração de novos casos, a população responde ficando mais avessa ao risco sanitário, aumentando o isolamento voluntário e levando à queda no consumo das famílias mesmo antes ou sem que medidas restritivas formais sejam adotadas.15 A recuperação econômica, por sua vez, é lenta e depende da retomada de confiança e maior previsibilidade da situação de saúde no país.

Logo, não é razoável esperar a recuperação da atividade econômica em uma epidemia descontrolada.

O efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social. Em particular, os trabalhadores informais, que constituem mais de 40% da força de trabalho, não têm proteção contra o desemprego. No ano passado, o auxílio emergencial foi fundamental para assistir esses trabalhadores mais vulneráveis que perderam seus empregos, e levou a uma redução da pobreza, evidenciando a necessidade de melhoria do nosso sistema de proteção social. Enquanto a pandemia perdurar, medidas que apoiem os mais vulneráveis, como o auxílio emergencial, se fazem necessárias. Em paralelo, não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais. Uma proposta nesses moldes é o programa de Responsabilidade Social, patrocinado pelo Centro de Debate de Políticas Públicas, encaminhado para o Congresso no final do ano passado.

Outras medidas de apoio às pequenas e médias empresas também se fazem necessárias. A experiência internacional com programas de aval público para financiamento privado voltado para pequenos empreendedores durante um choque negativo foi bem-sucedida na manutenção de emprego, gerando um benefício líquido positivo à sociedade.

O aumento em 34,7% do endividamento dos pequenos negócios durante a pandemia amplifica essa necessidade. A retomada de linhas avalizadas pelo Fundo Garantidor para Investimentos e Fundo de Garantia de Operações é uma medida importante de transição entre a segunda onda e o pós-crise.

Estamos no limiar de uma fase explosiva da pandemia e é fundamental que a partir de agora as políticas públicas sejam alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica. Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive.

Medidas indispensáveis de combate à pandemia: a vacinação em massa é condição sine qua non para a recuperação econômica e redução dos óbitos.

1 - Acelerar o ritmo da vacinação. O maior gargalo para aumentar o ritmo da vacinação é a escassez de vacinas disponíveis. Deve-se, portanto, aumentar a oferta de vacinas de forma urgente. A estratégia de depender da capacidade de produção local limitou a disponibilidade de doses ante a alternativa de pré-contratar doses prontas, como fez o Chile e outros países. Perdeu-se um tempo precioso e a assinatura de novos contratos agora não garante oferta de vacinas em prazo curto. É imperativo negociar com todos os laboratórios que dispõem de vacinas já aprovadas por agências de vigilância internacionais relevantes e buscar antecipação de entrega do maior número possível de doses. Tendo em vista a escassez de oferta no mercado internacional, é fundamental usar a política externa – desidratada de ideologia ou alinhamentos automáticos – para apoiar a obtenção de vacinas, seja nos grandes países produtores seja nos países que têm ou terão excedentes em breve.

A vacinação é uma corrida contra o surgimento de novas variantes que podem escapar da imunidade de infecções passadas e de vacinas antigas. As novas variantes surgidas no Brasil tornam o controle da pandemia mais desafiador, dada a maior transmissibilidade.

Com o descontrole da pandemia é questão de tempo até emergirem novas variantes. O Brasil precisa ampliar suas capacidades de sequenciamento genômico em tempo real, de compartilhar dados com a comunidade internacional e de testar a eficácia das vacinas contra outras variantes com máxima agilidade. Falhas e atrasos nesse processo podem colocar em risco toda a população brasileira, e também de outros países.

2 - Incentivar o uso de máscaras tanto com distribuição gratuita quanto com orientação educativa. Economistas estimaram que se os Estados Unidos tivessem adotado regras de uso de máscaras no início da pandemia poderiam ter reduzido de forma expressiva o número de óbitos. Mesmo se um usuário de máscara for infectado pelo vírus, a máscara pode reduzir a gravidade dos sintomas, pois reduz a carga viral inicial que o usuário é exposto. Países da União Europeia e os Estados Unidos passaram a recomendar o uso de máscaras mais eficientes – máscaras cirúrgicas e padrão PFF2/N95 – como resposta às novas variantes. O Brasil poderia fazer o mesmo, distribuindo máscaras melhores à população de baixa renda, xplicando a importância do seu uso na prevenção da transmissão da Covid.

Máscaras com filtragem adequada têm preços a partir de R$ 3 a unidade. A distribuição gratuita direcionada para pessoas sem condições de comprá-las, acompanhada de instrução correta de reuso, teria um baixo custo frente aos benefícios de contenção da Covid-1923. Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Center for Disease Control do EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial. Embora leis de uso de máscara ajudem, informar corretamente a população e as lideranças darem o exemplo também é importante, e tem impacto na trajetória da epidemia. Inversamente, estudos mostram que mensagens contrárias às medidas de prevenção afetam a sua adoção pela população, levando ao aumento do contágio.

3 - Implementar medidas de distanciamento social no âmbito local com coordenação nacional. O termo “distanciamento social” abriga uma série de medidas distintas, que incluem a proibição de aglomeração em locais públicos, o estímulo ao trabalho a distância, o fechamento de estabelecimentos comerciais, esportivos, entre outros, e – no limite – escolas e creches. Cada uma dessas medidas tem impactos sociais e setoriais distintos. A melhor combinação é aquela que maximize os benefícios em termos de redução da transmissão do vírus e minimize seus efeitos econômicos, e depende das características da geografia e da economia de cada região ou cidade. Isso sugere que as decisões quanto a essas medidas devem ser de responsabilidade das autoridades locais.

Com o agravamento da pandemia e esgotamento dos recursos de saúde, muitos estados não tiveram alternativa senão adotar medidas mais drásticas, como fechamento de todas as atividades não-essenciais e o toque de recolher à noite. Os gestores estaduais e municipais têm enfrentado campanhas contrárias por parte do governo federal e dos seus apoiadores. Para maximizar a efetividade das medidas tomadas, é indispensável que elas sejam apoiadas, em especial pelos órgãos federais. Em particular, é imprescindível uma coordenação em âmbito nacional que permita a adoção de medidas de caráter nacional, regional ou estadual, caso se avalie que é necessário cercear a mobilidade entre as cidades e/ou estados ou mesmo a entrada de estrangeiros no país. A necessidade de adotar um lockdown nacional ou regional deveria ser avaliado. É urgente que os diferentes níveis de governo estejam preparados para implementar um lockdown emergencial, definindo critérios para a sua adoção em termos de escopo, abrangência das atividades cobertas, cronograma de implementação e duração.

Ademais, é necessário levar em consideração que o acréscimo de adesão ao distanciamento social entre os mais vulneráveis depende crucialmente do auxílio emergencial. Há sólida evidência de que programas de amparo socioeconômico durante a pandemia aumentaram o respeito às regras de isolamento social dos beneficiários. É, portanto, não só mais justo como mais eficiente focalizar a assistência nas populações de baixa renda, que são mais expostas nas suas atividades de trabalho e mais vulneráveis financeiramente.

Dentre a combinação de medidas possíveis, a questão do funcionamento das escolas merece atenção especial. Há estudos mostrando que não há correlação entre aumento de casos de infecção e reabertura de escolas no mundo26. Há também informações sobre o nível relativamente reduzido de contágio nas escolas de São Paulo após sua abertura.

As funções da escola, principalmente nos anos do ensino fundamental, vão além da transmissão do conhecimento, incluindo cuidados e acesso à alimentação de crianças, liberando os pais – principalmente as mães – para o trabalho. O fechamento de escolas no Brasil atingiu de forma mais dura as crianças mais pobres e suas mães. A evidência mostra que alunos de baixa renda, com menor acesso às ferramentas digitais, enfrentam maiores dificuldade de completar as atividades educativas, ampliando a desigualdade da formação de capital humano entre os estudantes.

Portanto, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir em um esquema de distanciamento social. Há aqui um papel fundamental para o Ministério da Educação em cooperação com o Ministério da Saúde na definição e comunicação de procedimentos que contribuam para a minimização dos riscos de contágio nas escolas, além do uso de ferramentas comportamentais para retenção da evasão escolar, como o uso de mensagens de celular como estímulo para motivar os estudantes, conforme adotado em São Paulo e Goiás.

4 - Criar mecanismo de coordenação do combate à pandemia em âmbito nacional – preferencialmente pelo Ministério da Saúde e, na sua ausência, por consórcio de governadores – orientada por uma comissão de cientistas e especialistas, se tornou urgente. Diretrizes nacionais são ainda mais necessárias com a escassez de vacinas e logo a necessidade de definição de grupos prioritários; com as tentativas e erros no distanciamento social; a limitada compreensão por muitos dos pilares da prevenção, particularmente da importância do uso de máscara, e outras medidas no âmbito do relacionamento social. Na ausência de coordenação federal, é essencial a concertaçãoentre os entes subnacionais, consórcio para a compra de vacinas e para a adoção de medidas de supressão.

O papel de liderança: Apesar do negacionismo de alguns poucos, praticamente todos os líderes da comunidade internacional tomaram a frente no combate ao Covid-19 desde março de 2020, quando a OMS declarou o caráter pandêmico da crise sanitária. Informando, notando a gravidade de uma crise sem precedentes em 100 anos, guiando a ação dos indivíduos e influenciado o comportamento social.

Líderes políticos, com acesso à mídia e às redes, recursos de Estado, e comandando atenção, fazem a diferença: para o bem e para o mal. O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos que o país incorre.

O país pode se sair melhor se perseguimos uma agenda responsável. O país tem pressa; o país quer seriedade com a coisa pública; o país está cansado de ideias fora do lugar, palavras inconsequentes, ações erradas ou tardias. O Brasil exige respeito.

Assinam esta carta (até às 15.30hs de sábado (20/03):

1 - Affonso Celso Pastore
2 - Alexandre Lowenkron
3 - Alexandre Rands
4 - Alexandre Schwartsman
5 - Álvaro de Souza
6 - Amanda de Albuquerque
7 - Ana Carla Abrão
8 - André de Castro Silva
9 - André Luis Squarize Chagas
10 - André Magalhães
11 - André Portela
12 - Andrea Lucchesi
13 - Angélica Maria de Queiroz
14 - Aod Cunha
15 - Armínio Fraga
16 - Beny Parnes
17 - Bernard Appy
18 - Bráulio Borges
19 - Braz Camargo
20 - Carlos Alberto Manso
21 - Carlos Ari
22 - Carlos Brunet Martins Filho
23 - Carlos Góes
24 - Carolina Grottera
25 - Cassiana Fernandez
26 - Christiano Penna
27 - Claudia Sussekind Bird
28 - Claudio Considera
29 - Cláudio Frischtak
30 - Claudio Ribeiro de Lucinda
31 - Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt
32 - Daniel Cerqueira
33 - Daniel Gleizer
34 - Danielle Carusi Machado
35 - Danilo Camargo Igliori
36 - Demósthenes Madureira de Pinho Neto
37 - Dimitri Szerman
38 - Edmar Bacha
39 - Eduardo Amaral Haddad
40 - Eduardo Augusto Guimarães
41 - Eduardo Mazzilli de Vassimon
42 - Eduardo Pontual
43 - Eduardo Souza-Rodrigues
44 - Eduardo Zilberman
45 - Eduardo Zylberstajn
46 - Eleazar de Carvalho
47 - Elena Landau
48 - Fabiana Rocha
49 - Fábio Barbosa
50 - Fabio Giambiagi
51 - Felipe Salto
52 - Fernando Genta
53 - Fernando Postali
54 - Fernando Veloso
55 - Flávio Ataliba
56 - Francisco Ramos
57 - Francisco Soares de Lima
58 - Gabriella Seiler
59 - Genaro Lins
60 - Giovanna Ribeiro
61 - Guilherme Irffi
62 - Guilherme Tinoco
63 - Guilherme Valle Moura
64 - Gustavo Gonzaga
65 - Gustavo Loyola
66 - Helcio Tokeshi
67 - Helena Arruda Freire
68 - Henrique Félix
69 - Horácio Lafer Piva
70 - Humberto Moreira
71 - Ilan Goldfajn
72 - Isacson Casiuch
73 - Joana C.M. Monteiro
74 - Joana Naritomi
75 - João Mário de França
76 - José Augusto Fernandes
77 - José Monforte
78 - José Olympio Pereira
79 - José Roberto Mendonça de Barros
80 - José Tavares de Araujo
81 - Josué Alfredo Pellegrini
82 - Juliana Camargo
83 - Juliano Assunção
84 - Laísa Rachter
85 - Laura de Carvalho Schiavon
86 - Laura Karpuska
87 - Leandro Piquet Carneiro
88 - Leane Naidin
89 - Leany Barreiro Lemos
90 - Leonardo Monteiro Monasterio
91 - Leonardo Rezende
92 - Lucas M. Novaes
93 - Lucia Hauptmann
94 - Luciano Losekann
95 - Luciene Pereira
96 - Luís Meloni
97 - Luis Terepins
98 - Maílson da Nóbrega
99 - Manoel Pires
100 - Manuel Thedim
101 - Marcela Carvalho Ferreira de Mello
102 - Marcelo André Steuer
103 - Marcelo Barbará
104 - Marcelo Cunha Medeiros
105 - Marcelo de Paiva Abreu
106 - Marcelo F. L. Castro
107 - Marcelo Fernandes
108 - Marcelo Justus
109 - Marcelo Kfoury
110 - Marcelo Leite de Moura e Silva
111 - Marcelo Pereira Lopes de Medeiros
112 - Marcelo Trindade
113 - Marcílio Marques Moreira
114 - Márcio Garcia
115 - Márcio Holland
116 - Márcio Issao Nakane
117 - Marco Bonomo
118 - Marcos Lederman
119 - Marcos Ross Fernandes
120 - Maria Alice Moz-Christofoletti
121 - Maria Cristina Pinotti
122 - Maria Dolores Montoya Diaz
123 - Mário Ramos Ribeiro
124 - Marisa Moreira Salles
125 - Maurício Canêdo Pinheiro
126 - Mauro Rodrigues
127 - Miguel Nathan Foguel
128 - Mônica Viegas Andrade
129 - Naercio Menezes Filho
130 - Natália Nunes Ferreira-Batista
131 - Nilson Teixeira
132 - Octavio de Barros
133 - Otaviano Canuto
134 - Patrícia Franco Ravaioli
135 - Paula Carvalho Pereda
136 - Paula Magalhães
137 - Paulo Hartung
138 - Paulo Hermanny
139 - Paulo Ribeiro
140 - Paulo Tafner
141 - Pedro Bodin de Moraes
142 - Pedro Cavalcanti Ferreira
143 - Pedro Henrique Thibes Forquesato
144 - Pedro Malan
145 - Pedro Moreira Salles
146 - Persio Arida
147 - Priscilla Albuquerque Tavares
148 - Rafael B. Barbosa
149 - Rafael Dix-Carneiro
150 - Regina Madalozzo
151 - Renato Fragelli
152 - Renê Garcia Jr.
153 - Ricardo de Abreu Madeira
154 - Ricardo Markwald
155 - Roberto Bielawski
156 - Roberto Iglesias
157 - Roberto Olinto
158 - Rodrigo Menon S. Moita
159 - Rogério Furquim Werneck
160 - Ruben Ricupero
161 - Ruy Ribeiro
162 - Sabino da Silva Porto Júnior
163 - Samira Schatzmann
164 - Samuel Pessoa
165 - Sandra Rios
166 - Sérgio Besserman Vianna
167 - Sergio Margulis
168 - Silvia Matos
169 - Solange Srour
170 - Stephanie Kestelman
171 - Synthia Santana
172 - Thomas Conti
173 - Tiago Cavalcanti
174 - Tomás Urani
175 - Vagner Ardeo
176 - Vilma da Conceição Pinto
177 - Vinicius Carrasco
178 - Vinícius de Oliveira Botelho
179 - Vitor Pereira
180 - Walter Novaes
181 - Wilfredo Leiva Maldonado


Paulo Fábio Dantas Neto: O abismo das esquinas - Conexões entre indignação e política

Na coluna da semana passada procurei economizar em análises para fazer uma exortação a quem ocupa um lugar na sociedade civil e não apenas no eleitorado. Ela foi no sentido de não permitir que a vontade política de se livrar de um presidente extremista e inimigo da república desconecte-se da prudência recomendada pelas urnas de 2020, pelas quais os eleitores indicaram rotas de responsabilidade administrativa e despolarização política.

Hoje retorno a um esforço mais analítico, com argumentos ancorados em dois pontos de observação. O processo sucessório nas duas casas do Congresso Nacional e os movimentos de forças governistas. A intenção é fazer conexões entre eles para avaliar a distância entre o desenrolar de certos fatos e a percepção que motivou a exortação da semana passada.

Sobre as sucessões no Congresso os prognósticos predominantes são de vitória do governo na Câmara e de um acordo interpartidário no Senado, que vai bem além do governismo e inclui não só independentes, como a oposição. Tende a acontecer no Senado uma convergência política maior do que a prometida pela frente partidária que lançou, há pouco mais de um mês, a candidatura do deputado Baleia Rossi (MDB) na Câmara.

O senador Rodrigo Pacheco (DEM) caminha para a eleição, tendo ao seu lado um arco de forças centrado nos maiores partidos, indicando que sua virtual gestão será marcada por equilíbrio e não, como se propala, por governismo ou submissão institucional. A candidatura oponente, da senadora Simone Tebet (MDB), noves fora seus méritos pessoais, terminou circunscrita a uma minoritária convergência entre antigos “cardeais” do Senado, partidos médios e políticos outsiders. Dentre eles o grupo defensor da CPI da Lava Toga, que faz o discurso da “nova política” emergente das eleições de 2018, relevante na ascensão de Davi Alcolumbre à presidência, há dois anos. Entre os “cardeais” destaca-se Renan Calheiros (MDB), que passou a ver em Tebet e nos órfãos do pragmático Alcolumbre, a chance de dar o troco a esse último e recuperar o Senado para um outro MDB, paralelo ao da Câmara. Essa compreensão do processo diverge da que ganhou a mídia, ou seja, a de que Tebet foi “traída” pelo MDB. Na verdade, ela se tornou pré-candidata por apoios fora do seu partido, por isso quase foi acolhida por ele, mas perdeu a queda de braço. Sua candidatura começou avulsa e terminou avulsa porque o MDB é um partido relevante. Ao apoiar Pacheco, terminou seguindo, apesar do paralelismo de suas bancadas, o rumo seguido na Câmara, aliando-se ao DEM, PSDB e PT.  A política tem uma proficiência que a razão proficiente desconhece. O Senado, que teve dois terços de sua composição alterados no ambiente extremado das eleições de 2018, parece que seguirá, no próximo biênio, script oposto ao daquelas eleições. Enquanto isso, na Câmara, onde prosperou, desde 2019, sob a liderança de Rodrigo Maia, uma estratégia prudencial de política positiva que obteve claro aval nas urnas de 2020, no momento da sucessão de Maia, em que essa política poderia se consolidar, cedeu espaço à lógica polarizadora de 2018, tendo como pano de fundo dessa guinada, o mantra do impeachment.

A princípio, a de Baleia Rossi era candidatura em defesa do Legislativo, voltada a mobilizar a maioria dos deputados para isolar a tentativa de sua instrumentalização pelo Executivo, sinalizada pela candidatura de Artur Lira. Formou-se ampla frente partidária para preservar a independência da casa, que se mostrara essencial no enfrentamento - objetivo e não apenas retórico - da pandemia e das ameaças à democracia. Tudo a ver com o script vitorioso nas urnas de 2020. Mas a campanha seguiu a rota da polarização e, em vez de isolamento do governismo, provocado por energias agregadoras, assistiu-se à ampliação de sua margem de manobra, graças a lógicas centrífugas que marcaram a conduta de vários setores da frente. Paulatinamente forjou-se uma imagem de Baleia como candidato de oposição. A guinada significou o abandono de uma estratégia promissora.

É compreensível a dificuldade de políticos se conservarem “maricas” num contexto em que a indignação comanda. De fato, com os desmandos políticos e administrativos cometidos pelo governo no contexto da pandemia, dramatizados pela falta de vacinas e pela crise de Manaus, o medo geral e a indignação começaram a comandar os sentimentos públicos na sociedade civil, cutucando a vontade política da oposição e criando uma sinergia contestatória que se apresentou como capaz de comover também o eleitorado e criar condições para um impeachment.  Pode ser que mais adiante se chegue a isso, mas essa perspectiva não se concretizaria a tempo de interferir na solução da sucessão na Câmara em favor da alternativa independente. Essa é tributária da persistência da estratégia maricas, que os sentimentos públicos difusos na sociedade civil demonizaram como de conivência com o crime. Nada tinha disso, mas e daí? Cada vez mais vozes somaram-se contra ela entre os apoiadores de Baleia e aos poucos o próprio Rodrigo Maia inclinou-se mais a ouvi-las. Parecendo cansado do modo Tancredo de ser, ele entrou no modo Ulisses de 1973, quando o futuro Senhor Diretas foi anticandidato contra o Gal. Geisel, no Colégio Eleitoral.  Fazer campanha nesse tom, quando os eleitores reais são um corpo político em que a oposição é minoria, explica boa parte das dificuldades eleitorais da candidatura.

A farra de emendas e cargos que o governo promove na Câmara responde, é verdade, pela outra parte da explicação.  Mas o que há mesmo de inédito nisso?  Temer não agiu assim para conseguir se blindar no Congresso? Dilma, que não conseguiu, acaso fez diferente? A pergunta não é por que o governo usa essas armas pois a resposta é óbvia. A pergunta é por que, ao que parece, está tendo sucesso? A resposta, aparentemente óbvia também, de que tem sucesso porque a maioria da Câmara apoia os crimes de Bolsonaro é escapatória ideológica tosca. O bom senso manda buscar e contar outra. Arrisco-me a dizer que o virtual êxito de Lira decorre de que quem opera em seu favor, dentro do governo, já não opera como agente de Bolsonaro. E desse modo chego ao segundo ponto de observação que anunciei na abertura deste texto: os movimentos das forças governistas, a saber, o Presidente e a militância-milicia que o sustenta nas redes, os militares que o cercam no palácio, os políticos e os empresários que apoiam um governo que é cada vez menos seu.

Minha atenção está cada vez mais concentrada no general Hamilton Mourão. Insinua-se, em torno dele, a tortuosa e duvidosa construção de uma saída conservantista para a crise. Se essa percepção for verossímil, Artur Lira, se realmente vencer a disputa pela Presidência da Câmara, trabalhará por essa saída. Em vez de biombo de Bolsonaro seria ele o encarregado da missão de colocar, sobre o pescoço do presidente, uma espada ou uma guilhotina que podem fazer dele um Dâmocles ou um Robespierre.  Faltaria a um herdeiro da política positiva de Rodrigo Maia poder de persuasão para que o capitão se retirasse com medo da sua espada civil e maioria qualificada para mandá-lo à guilhotina do Senado.  Artur Lira, como bom político do chamado centrão, não tem nem uma arma nem outra, assim como é desprovido de linha política. Mas terá, nas retaguardas do presidente, quem lhe empreste uma espada para dissuadir suas resistências. E não lhe faltarão na Câmara os votos para fazê-lo sair por mal. Afinal, se o start vier do próprio centrão, - diria Silvio Lamenha - ser contra quem há de?

A suposta saída conservantista passaria pela derrota de Baleia Rossi, pela implosão da frente que Maia articulou - e não se sabe se ainda lidera -, pelo derramamento espetacular de Leite Moça em telas de variados tamanhos, pela persistência do impasse econômico, pelo agravamento da crise sanitária, e, por fim, pelo impeachment. Muita coisa para uma estratégia só, daí ser ela tortuosa, duvidosa e obrigada a contar, inclusive, com reações anticapitolianas da turma do capitão. Mas, ao mesmo tempo, torna-se crível pela cada vez mais nítida percepção de que Bolsonaro é muito forte para um primeiro turno em 2022, mas um azarão para o segundo turno. Considero improvável que quem divide com ele o palácio resigne-se a cair com ele, nas urnas, a via que existe hoje para oposições o derrotarem. A do impeachment depende de adesão de parte relevante do governismo.  Essa última é o atalho que poderia nos livrar mais cedo da serpente e ao mesmo tempo, a brecha pela qual poderemos herdar os ovos em nosso ninho, por tempo indeterminado.

Se a lógica permite, sigamos na especulação de cenários, já que nos falta a faculdade da adivinhação.  Uma “fase 2” começaria pelo clássico "voto de confiança", que se deveria ao tampão para tirar o país do caos. Prosseguiria em acomodações regionais de apetites políticos, criando a base nacional para a conversão do tampão em candidato à reeleição. O processo poderia ser coroado e abençoado nas eleições de 2022 se o primeiro turno fosse, mais uma vez, um cemitério de alternativas fragmentadas, restando dentre elas a de uma esquerda afirmativa, adversário ideal no segundo turno. Eis o preço político possível do "alívio geral" resultante do cartão vermelho a Bolsonaro. Depois que tirarem o bode da sala, a formação de uma frente conservantista, em torno de Mourão. O centro se dispersaria de novo e quem ficará contra isso? A esquerda. Estará refeita a polarização e com ela, a reeleição de um governo. É pra esse leito que iremos se a sinergia entre oposição política e sociedade civil montar no cavalo da indignação e não no da pacificação.

Claro, isso que acabo de alinhavar não é o futuro. Mas é o tipo de projeto de futuro cujo quartel general só pode ser o palácio. Além desse projeto, só prospera, no momento, como alternativa ao capitão, o "Fora Bolsonaro" que ecoa na sociedade civil. Mas esse caminho, na falta de resposta mínima a uma pergunta (“para que?”) feita pelo jornalista Élio Gáspari, termina sendo, apesar da sua aparência contestadora, um apêndice do pré-projeto que parece se desenhar no palácio.

Uma de várias objeções que podem ser legitimamente levantadas contra essa especulação é a de que seria necessário combinar com o soberano, sem cujo voto, em 2022, a estratégia seria engenhosa, mas inócua. É possível que muitas pessoas imaginem que, nem se todas as vacas tossirem durante os próximos dois anos, o general Mourão se tornará popular a ponto de se eleger. Em tese, há também muitos outros óbices.  A começar pela farda mal lavada dos crimes do passado que já se vê implicada, nos de agora. Segue pelas desconfianças da banca quanto à firmeza liberal desse militarismo planaltino sempre afeito a “projetos estratégicos” e ávido por dirigismo estatal e prebendas do erário. Vai mais longe com a urticária que políticos civis e oficiais militares provocam uns nos outros. Com a imprensa, que deve saber de onde podem partir tentativas de cerceá-la. Por fim, com a pecha de traidor e golpista que lhe seria imputada em todos os espaços que o bolsonarismo pudesse alcançar, com o agravante de que o grito não seria só militante, como foi o do PT, mas teria capacidade de inquietar quarteis pela subversão da disciplina.  

Longe de mim enfrentar essa pauta ainda neste texto. Por ora, vou apenas anunciar que procurarei, na próxima coluna, por em questão a premissa de que o atual vice não poderá se tornar um candidato competitivo. Farei isso partindo da imagem que hoje ele tem, segundo uma pesquisa do Atlas Político, recentemente divulgada. Pelo que até aqui pude analisar dessa pesquisa, ele e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta são as personalidades políticas cujas imagens públicas mais facilitam que se tornem candidatos competitivos numa eleição em dois turnos.

Por hoje, fico no seguinte: Mandetta e Mourão são nomes emblemáticos da esquina política em que o país se encontra. Se pensados como candidatos presidenciais, e não apenas como personalidades políticas, o primeiro é compatível com a estratégia independente, ou oposicionista moderada, que manda levar o barco devagar até 2022. O segundo é a encarnação do impeachment.  Quem força a barra para essa via deve contar com a hipótese de que Mourão não será apenas um tampão. Na dobrada imprudente da esquina, um tiro ao alvo aleatório entre interesses arrivistas e vontades indômitas fará da Constituição de 88 uma candidata a ser a próxima vítima.  

*Cientista político e professor da UFBa.


Paulo Fábio Dantas Neto: Povo e sociedade civil - Prudência e vontades; voto e palavras de ordem

Permitam-me, essa semana, fazer pouca análise. Há momentos em que de tão abundantes, elas se tornam contraproducentes, em seu objetivo de criar uma base racional comum para a discussão política. Quero, como muitos de nós neste instante, fazer uma exortação. Parto da premissa de que a mensagem pode se dirigir tanto a governantes quanto a governados, sem minimizar a óbvia diferença de papeis de uns e outros. Numa república democrática, todos fazem escolhas políticas, embora sejam bem distintas suas aplicações.

Faz menos de dois meses que brasileiros e brasileiras foram às urnas e deixaram um claro recado. Valorizaram bom governo em suas cidades e a política da moderação. Puseram em segundo plano a retórica e as performances populistas, bem como a polarização ideológica.

O que fazer diante disso? Seguir o recado ou tentar modificá-lo? Ambas as opções são possíveis e têm sua legitimidade e sua justificação racional.  Seguir o recado das urnas tem como argumento o respeito a um senso comum, que deve orientar a conduta de qualquer democrata genuíno e dotado de bom senso. Tentar modificá-lo pode ter como argumento a razão fundada num dever ser alternativo a tudo isso que aí está a exigir mais contestação que moderação, e o objetivo, derivado dessa razão, de mobilizar a sociedade para essa luta.

Optar por um caminho ou outro depende, é claro, de circunstâncias. Mas não só. Existem diferentes modos de encarar a política que, uma vez adotados por uma pessoa, ou por uma organização, levam essa pessoa, ou organização, a tender para esse ou aquele caminho. Há quem deseje realizar suas ideias no mundo e, assim, encara a política como instrumento de uma causa projetada ao futuro, como alternativa abrangente aos males do presente. Há quem assume, como causa, a preservação do nosso mundo construído em comum, sendo a política uma atividade mais contida, capaz, porém, de aperfeiçoá-lo, de modo sustentável. Para os primeiros a palavra-chave é vontade. Para os segundos, prudência. O que não quer dizer que toda vontade política é imprudente nem que todo prudente abdica da vontade.

Para entender isso, distingamos o que são visões sobre a política (como instrumento de uma causa ou como ferramenta de melhoria), do que são atitudes políticas - modos, prudente ou voluntarista, de intervir politicamente, decidindo ou influindo sobre decisões. Assim, a visão política pode ser cheia de vontade, no sentido forte do progressismo e isso levar, de fato, a uma atitude voluntarista, mas é possível que um progressista adote uma atitude prudente, submetendo sua vontade a uma gradação, para mudar construindo. Já uma visão política de conteúdo prudencial pode assumir um sentido conservantista, até reacionário, o que constitui atitude política imprudente quando uma situação clama por mudanças. E pode ser prudencial no sentido moderado, acolhendo a mudança sustentável, aquela que não destrói o edifício, caso em que se combinam visão e atitude prudentes.   

Imaginemos a diferença que faz a escolha entre essas duas atitudes (prudente e voluntarista) ser feita por quem governa e por quem faz oposição, não vindo ao caso aqui se cada um dos dois pode ser classificado como de direita, de esquerda ou de centro. É intuitivo esperar de quem governa uma atitude mais prudente e da oposição uma atitude mais animada pela vontade política. Mas é próprio da atividade e da vocação política, em ambos os campos, buscar o equilíbrio entre os dois impulsos. Pois nada muda, sempre que a vontade política da oposição é anulada. E nada funciona, sempre que a prudência falta no palácio.  O recado das urnas de 2020 foi exatamente no sentido desse equilíbrio. Oposição sim, polarização forte não, para que as coisas mudem sem pararem de funcionar.

Prometi pouca análise, logo, não discutirei aqui se as elites políticas (governo e oposições) estão atendendo ao recado das urnas ou tentando alterar o script. No caso do governo, porque é óbvio, no das oposições, porque é controverso e espicharia demais a conversa. Vou tratar é de outra grande diferença que há em a atitude prudencial ou voluntarista ser adotada, não por políticos, de governo ou oposição, mas por cidadãos comuns, que pertencem à classe dos governados, em seu papel bem mais limitado de influir sobre decisões políticas. Sendo ainda mais preciso, vou me referir ao caso da opção por uma das duas atitudes ser feita por cidadãos quase comuns, isto é, governados que não são apenas eleitores - como todos os demais governados são – mas que, além disso, possuem situação social, e/ou informação cultural, e/ou organização política que lhes permitem tomar parte da chamada sociedade civil. É a essas pessoas que a exortação se dirige. Antes dela, porém, vamos pensar em mais um aspecto do problema da decisão sobre qual das atitudes tomar.

É intuitivo, mais uma vez, que se espere mais prudência dos governantes do que dos governados, pelo fato óbvio de que na mão dos governantes é que estão os principais instrumentos de poder. O fato de que numa democracia esse poder é legitimado pelo voto e limitado por uma Constituição só aumenta essa expectativa quanto à atitude política de quem governa. Mas, ai da república democrática que se fiar apenas nessa expectativa racional! É preciso que instituições constranjam a vontade política e obriguem os políticos a serem prudentes, do ponto de vista das atitudes. A vontade dos governos precisa ser sempre contida para que as de todos os governados sejam respeitadas. E a vontade das oposições também limitadas pela lei, para que a vontade da maioria seja cumprida. 

Por fim, é intuitivo também que o mundo dos governados seja a residência das vontades saídas do livre pensar e do agir sem a responsabilidade de governar. E é bom que assim seja. Por ter sido delegado poder a representantes, a cidadania consiste em lembrá-los sempre desse laço original da representação, para que representantes não se sintam donos do poder político, não natural nem hereditário, mas criatura histórica da República. A mobilização de vontades, no eleitorado comum ou na sociedade civil (relembro aqui a distinção, que devo ao professor Cícero Araújo), não é alvo dos mesmos freios institucionais. Sua liberdade é regrada também, mas aí as regras são para assegurar seu exercício, não para limitá-lo.  O que limita é outra coisa, chamada pluralidade social, aliada a pluralismo político, que todos são obrigados a respeitar, para que nenhuma organização social ou visão de mundo possa legitimamente pretender o timbre de estatal, ou oficial.

De tudo isso resulta legítimo e mesmo vital que eleitores e sociedade civil se manifestem com ampla liberdade e de modos distintos daqueles, mais forçosamente moderados, que se deve impor a políticos e mais ainda aos que ocupam governos. A radicalidade das manifestações não pode variar segundo o desejo de quem representa e governa e sim de acordo com o grau de satisfação dos governados. Se satisfeitos, calam; contrariados, reclamam; indignados, gritam. Contudo, todos os cidadãos, sem exceção, precisam ter responsabilidade social e lei como limites, a segunda comparecendo para coagir, caso falte a primeira. Vale tanto para crimes ambientais de empresas, como para greves selvagens.

A responsabilidade social varia também de acordo com a capacidade, de quem se manifesta, de afetar a vida e a opinião dos demais e de influir sobre decisões políticas. Participantes da sociedade civil têm uma responsabilidade a mais do que o eleitor comum. Esse algo mais tem um significado político que não é institucional, mas é importante como contribuição ao fomento de uma atitude cívica prudencial ou voluntarista, na medida em que são, ou podem ser, formadores de opinião.  Não no sentido hierárquico, ultrapassado pela horizontalidade das redes, mas no de uma interação onde níveis de informação e experiências de organização podem ser trocados, em benefício maior de quem, a princípio, possua menos de ambas as coisas. Aqui começa, enfim, a prometida exortação.

Retorno ao recado das urnas, que é o meio primordial, senão o único, pelo qual o eleitor comum pode se manifestar. Penso ser animador que, em 2020, ele tenha valorizado a experiência política e administrativa, ao lado do equilíbrio e da moderação política. O desgoverno federal - que a pandemia escancarou - e a polarização extrema que grassava no país desde 2014, cobraram seus mais altos preços sobre o cotidiano dos cidadãos comuns, dentre eles os mais pobres, que são também pretos. Historicamente desprivilegiados no acesso a políticas financiadas pelo fundo público, distantes de redes de autoproteção social difusas na sociedade civil, são eles que morrem mais de Covid e são eles os que mais sofrem com as lacunas de ação resultantes do desvio de energias da política para embates ideológicos e guerras culturais.  É racional que queiram mudanças na saúde, no emprego e na segurança e que esse seja um querer pragmático, próprio de quem, prudentemente, quer preservar seu mundo comum, tão duramente sustentado por uma labuta cotidiana, em ambiente inóspito. E que sua indignação cívica mais genérica se oriente menos a conflitos institucionais e mais a temas como desigualdade social e racial.  

Sabemos que esse modo do mundo popular sentir a crise que atravessamos não coincide em muitos pontos com aquele que predomina na chamada sociedade civil. Mais uma vez nos pouparei de análise e me aterei ao explicitamente óbvio. No mundo da sociedade civil o que mais conta é o dever ser. Visões de mundo alternativas alimentadas por mentalidades progressistas, bastante inclinadas a ver política como vontade. Sentem os políticos e seu pragmatismo como adversários, ou melhor, concorrentes bem estabelecidos que não deixam os projetos alternativos vingarem. Gente empoderada que chegou antes e maneja os instrumentos que poderiam – imaginam - concretizá-los. Trata-se de conflito de interesses, mas a sociedade civil é também uma usina ideológica e, assim, nas universidades e em outras agências, vigoram teorias de que se trata só de bem comum.

Nesse terreno ativo e imaginativo, que se encontra a uma distância mediana e não a anos-luz dos centros de decisão, prospera, no momento, a ideia de que as 200 mil mortes que a incúria programada do governo provocou exigem a remoção imediata do chefe da organização criminosa. Acompanho sem ressalvas o diagnóstico, embora não essa conclusão política que dele vem sendo deduzida. Aqui não farei a discussão desse ponto porque não faltará oportunidade, uma vez que a palavra impeachment e o comando “Fora Bolsonaro” (ambos acompanhados do advérbio já) demorarão, pouco ou muito, na agenda do debate nacional.  O que quero enfatizar neste texto é o desencontro entre essa leitura política da conjuntura, que avança na sociedade civil e busca pressionar a sociedade política, e o recado moderado das urnas, ainda fresco, de menos de dois meses atrás.  Em si mesmo esse desencontro preocupa, ainda que seja possível e legítimo contra-argumentar que a posição do eleitorado pode mudar, seja pelo agravamento da crise, seja pelas luzes de uma sociedade mobilizada. Preocupa porque a experiência brasileira ensina que esse tipo de desencontro costuma dar em soluções autoritárias. É o tipo do jogo bruto, entre poderosos e desvalidos, no qual não se deve pagar para ver, muito menos blefar.

Friso (não devia ser preciso, mas é) que simpatizo muito com a ideia de impedir Bolsonaro de prosseguir destruindo e matando. Mas se ele me responder “e daí?”, não sei como poderia treplicar sem ser bravata. Ainda assim não me fecho à possibilidade de que o aceno, hoje inconsequente, possa vir a ser consequente amanhã. Mas aqui se trata de exortar, não de especular e a minha exortação é para que não se queime as pontes entre a vontade política que esquenta seus motores e o recado prudencial que recebemos das urnas. Que venham carreatas, mas não em detrimento da energia pacificadora que precisa ser prioritariamente carreada para a decisiva eleição, daqui a pouco mais de uma semana, da Mesa da Câmara dos Deputados, palco aliás de um virtual início de processo de impeachment. Quem disser que é briga de branco ou, mais educadamente, trabalho para a política “tradicional” e não para cidadãos ativos, está cego à alma participativa da democracia brasileira pós 88, comprovada em vários episódios cruciais. E quem candidamente disser que não há risco de uma coisa empatar a outra, pois, ao contrário, a campanha pelo impeachment só pode ajudar a vitória da frente democrática na Câmara, respondo com um “depende”.  A justificativa dessa resposta é o arremate da exortação.

Carreatas estão programadas para esse final de semana. Se forem grandes e unitárias, na composição e no sentido das mensagens deixadas no trajeto, podem mesmo ajudar, de algum modo. Se forem pequenas, apenas deixarão de ajudar, mas não farão mal. Mas há uma hipótese em que podem atrapalhar não apenas ajudando a encalhar a baleia no seco como armando nuvens no horizonte que as eleições de 2020 começaram a desanuviar.

Manifestações por impeachment atrapalharão se essa palavra der lugar a gestos políticos paralelos ou concorrentes, manifestações da “esquerda” e da “direita”, tal como cogitado na imprensa. Implicará em que o restante das palavras proferidas, bem como as intenções comunicadas pelos gestos permaneçam opostas. Os discursos sobre o presente são ambos ácidos, mas não se entendem sequer sobre o passado, recente ou remoto, muito menos sobre o futuro. Os dois campos ideológicos exibirão suas feridas. Mas irão à rua como água e óleo, como se estivessem medindo forças para um confronto entre si, daqui a pouco.

Que País resultará disso senão o da reiteração da tragédia que vivemos hoje? País ao molde de estádios de futebol que só se pode frequentar conferindo a cor da camisa de quem se senta ao lado. Mundos demarcados por paralelas, sem ângulos, vértices, intersecções. Cada qual procura sua turma e grita, não importa se o grito lhe une ou lhe separa do irmão, do filho, do vizinho, do colega de trabalho, do conterrâneo, do concidadão. Do outro enfim, sem o qual você não pode viver.

Vacina, emprego, liberdade, sossego. Essas palavras criam pontes e derrubam muros. É preciso elegê-las, priorizá-las, ao nos comunicar, responsavelmente, com o público mais amplo, seja usando um microfone, apertando uma tecla ou participando de uma carreata. São palavras mais eficazes que o “Fora Bolsonaro” para nos livrar do desgoverno. Com a vantagem de que não só nos libertam, mas constroem algo bom para o lugar da tragédia.

*Cientista político e professor da UFBa.


Dom Odilo Pedro Scherer: Pela vida e pelo Brasil

É hora de encarar as medidas necessárias para tornar o País mais justo e solidário

Diversas entidades de expressiva credibilidade firmaram e divulgaram recentemente um “pacto pela vida e pelo Brasil”. Entre as entidades signatárias figuram a Conferência Nacional dos Brasil (CNBB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O pacto versa sobre dez questões relevantes e tem o estilo de um apelo a toda a sociedade brasileira, especialmente aos governantes e políticos, aos agentes sanitários, econômicos e financeiros.

Mas também é dirigido a toda a população e às lideranças da sociedade civil, com o propósito de mobilizar todos os brasileiros no enfrentamento da pandemia de covid 19, na prevenção contra o contágio e na colaboração solidária para o socorro das pessoas mais golpeadas pelo alastramento da doença.

Princípios orientadores do pacto são a defesa da vida, a cidadania ativa, a dignidade humana, a solidariedade e o diálogo maduro e corresponsável na busca conjunta de soluções para o enfrentamento da pandemia. O pacto destaca vários pontos: a necessidade da união de esforços e a superação dos discursos negacionistas e personalistas desorientadores, a preservação e a proteção da vida e da saúde de todos, a oferta de soluções sanitárias emergenciais e o fortalecimento do sistema público de saúde e a necessidade de direcionar esforços e recursos econômicos para o enfrentamento dos efeitos da pandemia. Apela-se à solidariedade social na sociedade civil para a promoção de iniciativas pontuais e locais de socorro às populações mais vulneráveis. E também não faltou o apelo para que a vida política e a econômica sejam orientadas decididamente para a superação da profunda desigualdade social persistente em nosso país.

O pacto foi firmado no início de abril e conserva toda a sua atualidade. Por isso, na celebração do Dia da Pátria a Igreja Católica em todo o Brasil, por meio das organizações ligadas à CNBB, às dioceses e outras instituições, promoveu uma divulgação ampla do pacto, visando a potencializar os seus efeitos em favor da população. As preocupações manifestadas no pacto foram confirmadas nos meses sucessivos à sua publicação. A pandemia já atingiu mais de 4 milhões de pessoas e as vidas perdidas para o novo coronavírus foram cerca de 130 mil em todo o Brasil.

Confirmou-se também a previsão de que os mais atingidas seriam as pessoas social e economicamente mais vulneráveis. A pandemia deixou mais visível a profunda desigualdade ainda existente em nosso país, que também foi confrontado com a importância social do sistema público de proteção à saúde e, ao mesmo tempo, com a evidente fragilidade e a insuficiência desse sistema. A crise sanitária, além disso, deixou ainda mais fragilizados os brasileiros que não estão suficientemente inseridos na vida econômica e, bem depressa, os subempregados somaram-se aos desempregados. A situação só não foi pior até agora porque o auxílio emergencial do governo aliviou temporariamente o sofrimento desses brasileiros.

Muitos apelos contidos no pacto encontraram eco no coração dos brasileiros. Apesar da escassez de clareza e liderança do governo federal no enfrentamento da pandemia, o povo em geral aprendeu a levar bastante a sério os cuidados com a saúde, para evitar o contágio. E foram imensos os esforços da sociedade civil, somando com o poder púbico, para socorrer as vítimas. Alguém conseguirá dizer quanto significou a dedicação incansável dos profissionais da saúde às vítima da pandemia? Quem somará todas as ações solidárias promovidas em todo o País por inumeráveis organizações e pessoas físicas para socorrer os necessitados de ajuda concreta, até mesmo para se alimentarem ou suprirem as necessidades básicas da vida diária?

Atualmente, ao que tudo indica, começamos a respirar um pouco mais aliviados, diante da perspectiva de queda na transmissão do vírus e também de menor número de pessoas falecidas. E existe a fundada esperança da chegada de vacinas, que poderão cortar de vez o avanço da pandemia e reduzir o número de vítimas. Mas isso não será para breve, nem permite desconsiderar os riscos ainda existentes. Os cuidados e medidas preventivas precisam continuar. E a vacinação de toda a população necessitará de mais uma esforço concentrado de todos.

Ao lado disso, a vitória sobre a covid-19 não significará ainda a superação da pobreza e da vulnerabilidade social, presentes em todo o Brasil, como ficou claro durante estes meses de pandemia. O esforço solidário precisa continuar. E seria hora de encarar seriamente, em âmbito de governo e de sociedade civil, as medidas necessárias para tornar o Brasil um país efetivamente mais justo e solidário em suas estruturas econômicas e sociais.

Vem a propósito um pensamento repetido várias vezes nestas últimas semanas pelo papa Francisco: vencido o novo coronavírus, também é preciso enfrentar e vencer um outro vírus, ainda pior e mais virulento: o egoísmo e a indiferença diante do sofrimento do próximo. Seria um grande aprendizado deste tempo de crise e sofrimento!

*Cardeal-Arcebispo de São Paulo