sociedade civil

José Antonio Segatto: Estado e sociedade civil

A relação Estado e sociedade civil no Brasil, desde a fundação do Estado nacional, foi sempre infausta e discrepante, adversa e de sujeição. Essa realidade foi objeto de análise de intelectuais de variadas linhagens do pensamento social. Exemplares são as obras antinômicas de Oliveira Vianna e Raymundo Faoro.

O primeiro, ao constatar que a sociedade civil era amorfa e frágil, propugnava um Estado forte, centralizado e autoritário para (re)criá-la — um Estado demiurgo. Já o segundo, ao inverso, entendeu que o Estado foi organizado como aparato de poder exclusivo e restrito, burocrático e patrimonial — o Estado é tudo, a sociedade civil, nada; seriam necessários, portanto, a reordenação das estruturas estatais e o deslocamento de parte de seus poderes para a sociedade civil.

Traços tanto do estatismo de Oliveira Vianna quanto do liberalismo de Raymundo Faoro podem ser encontrados em toda a História brasileira. O estatismo é patente ao longo de quase todo o regime imperial, quando o Estado precede a sociedade civil, inexistente mesmo nos seus estertores, como revelou um testemunho da época: “O que há de organizado é o Estado, não a nação” (Tobias Barreto). Na Primeira República (1889-1930) — quando se enceta um esboço de sociedade civil —, tem-se um liberalismo mitigado pelo domínio oligárquico e pelas práticas patrimonialistas e clientelistas. Nos anos 1930, o estatismo e o autoritarismo ganham proeminência, sobretudo durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), acoplando agora o corporativismo — o Estado, sob o governo Vargas, (re)fundou ou instituiu a sociedade civil, subordinada aos seus desígnios (sindicatos, organizações estudantis, etc.).

Com a democratização de 1945 foi instaurado um regime liberal, limitado, porém, pelos resquícios de autoritarismo e corporativismo — não obstante isso, nos anos 1950-60, teve início um processo de criação de pressupostos favoráveis ao encorpamento e ao dinamismo da sociedade civil, favorecido pela vigência de determinadas liberdades democráticas e pela forma como se compôs o poder estatal. Essas condições foram abortadas pelo golpe de Estado e pela instauração da ditadura civil-militar (1964-1985), que radicalizou os elementos antidemocráticos, centralizadores e estatistas.

No processo de transição democrática, de fins dos anos 1970 e ao longo da década de 1980, houve a emergência de uma sociedade civil revigorada, que teve papel relevante na democratização, mas foi sendo contida pelos resíduos históricos extemporâneos. Ressalta-se que nessa quadra política, de resistência e combate à ditadura, se propagou, com muita força, o entendimento de uma sociedade civil virtuosa, portadora da liberdade e da justiça, versus um Estado autoritário e controlador, pervertido e iníquo — esse fenômeno está mesmo na origem do PT e do PSDB. O breve governo de Itamar Franco e, em especial, os governos de Fernando Henrique Cardoso — que prometiam o desmonte do estatismo e do populismo varguista — deram seguimento a um projeto político eclético, mesclando liberalismo e social-democracia com elementos conservantistas e/ou tradicionalistas. A seguir, nos governos petistas, retomou-se a política varguista, setores consideráveis da sociedade civil foram cooptados ou mesmo estatizados, além de revigorar-se o estatismo e o patrimonialismo, o clientelismo e o corporativismo.

Desse conciso painel histórico, em que se alternam períodos de predomínio de estatismo ou de liberalismo nunca completos ou exclusivos, podem-se extrair algumas ilações:

1) Tanto num como no outro, a relação entre Estado e sociedade civil foi impregnada de patrimonialismo, clientelismo e fisiologismo;

2) houve, no decorrer dessa História, uma disjunção entre Estado e sociedade civil, entre sociedade civil e política e suas instituições mediadoras, em particular, os partidos políticos;

3) essa relação disjuntiva, aparentemente paradoxal, de tutela e sujeição foi executada por agentes da política e da própria sociedade civil, objetivando estabelecer a dominação e o controle do aparato estatal e nele materializar e maximizar seus interesses privatistas e particularistas;

4) dessa relação instável e assimétrica, resultou um Estado parcamente público e insuficientemente democrático e uma sociedade civil atomizada e difusa, sem capilaridade e organicidade, com diminutas autonomia e identidade societal.

Tais condições adversas, evidentemente, não constituem simples elementos e fatos pretéritos. Eles foram perpetuados e continuamente reatualizados. Assim sendo, essas relações têm de ser repostas e levadas em sua devida conta nas análises e na práxis política dos protagonistas empenhados em remover os bloqueios à ativação da sociedade civil, em rechaçar a complacência dos Poderes com a cultura política autoritária, em superar os obstáculos ao livre exercício dos direitos de cidadania e à ampliação das normas e instituições democráticas.

Obviamente, isso não implica a contração dos poderes do Estado e o esvaziamento de suas atribuições e/ou prerrogativas (Estado mínimo) e sua transferência para uma sociedade civil supostamente autogovernada pelos interesses e pelo livre mercado – seria retroagir à incivilidade ou mesmo à barbárie. Ao contrário, implica, sim, a construção de um Estado público e desprivatizado, democrático e expurgado do patrimonialismo e do cartorialismo, do clientelismo e do fisiologismo, do corporativismo e do populismo; demanda, por outro lado, uma sociedade civil autônoma e ativa, acoplada e conexa a uma esfera pública consoante com aspirações e demandas democráticas.

Desse modo, a discussão e a implementação de reformas — política e eleitoral, trabalhista e previdenciária, fiscal e/ou tributária, etc. — não podem estar desvinculadas das complexas relações entre Estado e sociedade civil.


* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp.

Próximo Relatório de Desenvolvimento Humano nacional terá atividades físicas e esportivas como tema

Encontro para instalação do Conselho Assesssor do RDH reuniu no PNUD representantes de setor público, iniciativa privada, sociedade civil, além de atletas de renome internacional.

Eram mais de 20 pessoas, todas atentas e prontas a discutir a nota conceitual que serve de ponto de partida para a construção do próximo Relatório de Desenvolvimento Humano nacional, que neste ano terá atividades físicas e esportivas como tema. Deverá ser o primeiro do gênero no mundo e contará com apoio de um Conselho Assessor, instalado na quarta-feira (25) em reunião no escritório do PNUD em Brasília.

reuniao_rdh2O representante residente do PNUD no Brasil, Niky Fabiancic, abriu a reunião, que contava com expoentes do esporte, como a presidente da ONG Atletas pelo Brasil e ex-jogadora da Seleção Brasileira de Vôlei, Ana Moser; o deputado federal, presidente da Frente Parlamentar Mista do Esporte e ex-judoca muitas vezes campeão em sua categoria, João Derly; o também ex-judoca e numerosas vezes campeão Flávio Canto; a ex-jogadora de vôlei, medalhista olímpica e hoje secretária de Esportes do Distrito Federal, Leila Barros, entre outros.

“Este relatório será uma agenda positiva e propositiva para o país”, destacou Fabiancic, para quem “o desenvolvimento não é só riqueza”, mas também o processo pelo qual pode-se melhorar a vida das pessoas. Para a representante residente assistente para programas do PNUD Brasil, Maristela Baioni, o tema do relatório “faz parte de nosso novo ciclo programático, que se baseia nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”.

Após as saudações e falas iniciais, o professor Fernando Jaime González, coordenador acadêmico do RDH nacional 2016, explicou a nota conceitual e colocou-se à disposição dos presentes para sugestões, perguntas, críticas. Teve início, então, o debate, do qual todos participaram com evidente concentração.

Ana Moser foi a primeira a falar. Elogiou a iniciativa e apresentou sugestões. Representando o Comitê Intertribal, principal organizador dos I Jogos Mundiais dos Povos Indígenas no ano passado, Carlos Terena chamou a atenção para a importância de se considerar o fato de que, para sua cultura, o esporte transcende o conceito de competitividade, pois representa a própria cultura de seu povo e contém forte componente espiritual.

O presidente da Associação Brasileira dos Secretários Municipais de Esportes e Lazer e secretário municipal de Esportes de Indaiatuba, Humberto Panzetti, alertou para o fato de que “duas mil cidades do país não têm orçamento atrelado ao esporte, 95% dos municípios têm menos de 5% do orçamento atrelado ao esporte”. Em sua opinião, “há pouco dinheiro, e gastamos mal.” Indagou ainda: “De que forma a gente está usando o termo ‘política pública’?”. Lamentou, por fim, que “cinco estados brasileiros já desfizeram suas secretarias de esporte”.

A Consultora em Desenvolvimento Humano, Adriana Velasco, salientou a importância do novo RDH nacional por dar a oportunidade de se analisar a realidade e se proporem mudanças. O Diretor Institucional do Comitê Paraolímpico Brasileiro, Luiz Carlos, seguiu a mesma linha. Elogiou a escolha dos integrantes do Conselho Assessor do RDH nacional 2016 e ressaltou a necessidade de se buscarem soluções para os problemas de hoje. Em sua opinião, isso significa “mais informação, mais capacidade para enfrentar as dificuldades, mudar a realidade,  a percepção, a cultura do país em relação ao esporte.”

O professor de educação física e apresentador de TV Márcio Atalla, que participou da reunião por meio de sistema de teleconferência, lembrou que “por mais que as políticas políticas de saúde pública contemplem a atividade física, elas acabam atingindo um parcela pequena da população”. Sugeriu, então, que se estabeleçam padrões mínimos de atividade física cotidiana.

O diretor da revista digital colombiana Razón Pública, Hernando Gomez, afirmou que “este é o primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano que aborda o esporte”. Destacou a vasta experiência do Brasil na área, mas chamou a atenção para o sedentarismo voluntário. “Atividade física, para muitos, é um meio, não um fim. Para muita gente, isso é algo que não interessa”, afirmou. Participando a distância também, Gomez alertou ainda para a importância da nutrição e da dieta. Para ele, a pesquisa deve dar atenção a esse aspecto.

A secretária de Esportes do DF, Leila Barros, observou que é preciso haver uma maior conscientização do poder do esporte. “O avanço (nessa área) depende da política”, afirmou. Para ela, ainda não há suficiente percepção, por parte dos gestores públicos, do poder que o esporte tem e da relevância da parceria entre esporte e educação.

O presidente do Conselho Federal de Educação Física, Jorge Steinhilber, por sua vez, destacou que a educação física vem diminuindo nas escolas e em outras instituições onde essa prática era comum. “A aula de educação física não é vista como contributo da prática cognitiva”, alertou.

A coordenadora do RDH nacional, do PNUD Brasil, Andréa Bolzon, lembra que a nota conceitual apresentada ao Conselho Assessor é “viva”, portanto sujeita a mudanças conforme as sugestões dos Conselheiros. O próprio Conselho poderá receber mais membros. A ideia é que esse documento-base oriente o RDH de maneira que os resultados espelhem sua construção democrática e a diversidade de posicionamentos do mundo das atividades físicas e esportivas.