Samuel Pessôa

Samuel Pessôa: É hora de acabar a greve no Congresso

Somente o Congresso tem a legitimidade de gerir nosso conflito distributivo

O Congresso Nacional assumiu. Rodrigo Maia ficou na presidência da Câmara. Após duas longas e tumultuadas sessões, sexta e sábado, Davi Alcolumbre passou a ser presidente do Senado e do Congresso. Começou o ano na política.

Esse Congresso tem uma tarefa dificílima pela frente. Terá que promover o ajuste fiscal estrutural.

O setor público brasileiro tem obrigações na forma de pagamento de salários, aposentadorias e pensões para servidores ativos e inativos; de benefícios previdenciários e pensões do INSS; de seguro-desemprego; de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez; de abono salarial e seguro-defeso; entre tantas outras.

Adicionalmente, é necessário haver verbas para manter os serviços básicos de saúde, educação, Justiça e segurança pública, além de recursos para o investimento público —rodovias, ferrovias, aeroportos, portos, metrôs nas grandes cidades, saneamento básico etc.

Também é preciso dinheiro para apoio às atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico e às universidades.

Vale lembrar que somente nos últimos meses uma ponte e um viaduto na cidade de São Paulo ficaram inutilizados, causando enormes transtornos para todos os que utilizam as marginais. Ou seja, o investimento não tem sido suficiente nem para cobrir a depreciação do capital público existente.

Quando me refiro a ajuste fiscal estrutural, significa que o Congresso nas legislaturas passadas determinou obrigações ao Estado —salários, benefícios previdenciários e programas sociais, além de desonerações e programas de incentivo ao setor produtivo— que não conversam com as fontes de receitas que esse mesmo Congresso estabeleceu para o setor público.

O gasto público é estruturalmente maior do que a receita de impostos. E esse desequilibro não resulta de a economia estar deprimida ou de algum motivo cíclico. É por esse motivo que se emprega o adjetivo estrutural para qualificar o déficit público.

Saímos de nossa grande depressão no primeiro trimestre de 2017 —há dois anos, portanto— e continua a haver um enorme rombo nas contas públicas.

Crescemos no último biênio muito pouco, pouco menos de 2,5%, mas o próprio desequilíbrio fiscal estrutural impede a recuperação. Quem irá investir em uma sociedade em que os políticos não se entendem e constroem um setor público estruturalmente insolvente?

Tapar esse rombo não é tarefa do Ministério da Fazenda; nem mesmo do presidente. Tapar esse rombo é tarefa do Congresso. Somente o Congresso tem a legitimidade de gerir nosso conflito distributivo e estabelecer bases tributárias e obrigações ao setor público que conversem entre si.

O presidente coordena esse processo. Mas a palavra final é do Congresso. O melhor que o Executivo pode fazer é apresentar um plano de ajustes das contas públicas e a partir dele negociar no Congresso.

Tudo pode ser conversado, inclusive aumento de carga tributária, se o Congresso assim o quiser. Os economistas e demais técnicos palpitam com relação aos impactos sobre o desempenho da economia
—crescimento, desigualdade e pobreza— desta ou daquela medida. Mas a decisão é política e somente pode ser tomada pelo Congresso.

Em razão da crise política, o Congresso está em greve desde 2015. Recusa-se a arbitrar nosso conflito distributivo. Enquanto isso, a dívida se acumula e o abismo inflacionário se aproxima.

Novo governo. Congresso muito renovado. Chegou o momento de acabar a greve.

*Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Paulo Guedes falou

Ele deixou claro que volta para casa se o Congresso continuar a fazer greve da política

Se o presidente falou pouco no discurso de posse, menos de dez minutos, o pronunciamento do ministro da Economia, Paulo Guedes, foi longo, de quase 50 minutos.

Disse muito. Fez a ligação entre as seguidas crises brasileiras e o problema fiscal. Reafirmou o diagnóstico correto de que o equilíbrio com juros elevados e câmbio valorizado resulta de o gasto público aumentar sistematicamente além do crescimento da economia.

A reforma mais importante é a da Previdência, que é o maior item do gasto público.

Loading
O governo enviará no início de fevereiro uma proposta de reforma constitucional, uma PEC, com a reforma da Previdência.

Segundo Paulo Guedes, a aprovação da reforma da Previdência garantirá dez anos de crescimento. Entendo a ênfase do ministro no tema, mas outras reformas serão necessárias. De qualquer forma, o ministro está coberto de razão com relação à centralidade da reforma.

E se a reforma não for aprovada? Foi aí que Paulo Guedes reservou a maior surpresa. Disse que enviaria uma nova PEC, que desvincularia as receitas da União e, se entendi corretamente, desindexaria o gasto da União.

A ideia é devolver ao Congresso Nacional o poder de discutir o que fazer com o Orçamento. Com a receita e com a despesa. Devolver a política aos políticos.

Guedes explicou que o engessamento de todo o Orçamento em regras constitucionais era compreensível após um regime militar que deu pouca atenção ao gasto social. Mas já se passaram 30 anos. Já é possível os políticos chamarem para si a sua atribuição precípua de alocar os recursos públicos.

Essa ideia faz parte de um caminho que nosso presidencialismo tem tomado desde o inicio dos anos 2000. Trata-se do enfraquecimento da Presidência da República, que se nota em eventos como a aprovação do Orçamento impositivo, que retirou do Poder Executivo a capacidade de executar ou não as emendas dos parlamentares, e em seguidas reduções no poder das medidas provisórias.

Se a Presidência tem ficado mais fraca, a responsabilidade pelo equilíbrio macroeconômico, especialmente pelo equilíbrio fiscal, tem que passar a ser uma atribuição do Congresso Nacional.

Paulo Guedes foi específico: afirmou que os políticos têm muitos privilégios e poucas atribuições, pois não se debruçam sobre o Orçamento. Disse que jogar a decisão para o Congresso era um pedido de ajuda.

Reiterou: “Se a gente aprovar a reforma de Previdência, teremos ainda dez anos de crescimento. Se não aprovarmos, teremos que desindexar e desvincular tudo ou não haverá solução. O bonito é que, se der errado, pode dar certo. Se der errado a aprovação da reforma [da Previdência], é provável que a classe política assuma o comando do Orçamento”.

E se não derem certo a desvinculação e a desindexação? Isto é, e se o Congresso Nacional continuar a fazer greve da política e jogar a economia no abismo inflacionário? Guedes deixou claro que volta para casa.

Mas fica a dúvida. Se até hoje nosso sistema político funcionou com o Executivo sendo responsabilizado pelo eleitor pela estabilidade macro —daí que o interesse pelas reformas é sempre do Executivo, e não do Legislativo—, e o Legislativo, por suas agendas locais, por que agora seria diferente?

Paulo Guedes não oferece resposta a essa pergunta. Sugere que o elevado grau de renovação das Casas legislativas será suficiente para alterar as práticas.

Fica a pergunta para a ciência política: funcionará?

*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Os erros de Krugman

Melhor que o Nobel estude mais antes de escrever sobre economia da qual nada entende

Em artigo publicado no dia 9 no jornal The New York Times e reproduzido pela Folha, o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman argumentou que a crise brasileira é fruto de três fatores: queda dos preços das commodities, excesso de endividamento das famílias e política monetária e fiscal contracionista.

Concordando com os economistas heterodoxos brasileiros, a crise é essencialmente culpa do ajuste fiscal de Joaquim Levy.

A atual crise representa a maior perda de PIB, a segunda maior de PIB per capita e a recessão mais longa dos últimos 120 anos. No atual episódio, os termos de troca caíram 11%, se consideramos a média para os quatro anos findos no ano da crise em comparação aos quatro anos posteriores.

Nos outros quatro episódios, a queda equivalente foi de 44% para a crise de 1914, 32% em 1930, 32% em 1981 e 7% em 1990. Adicionalmente, o nível dos termos de troca no atual episódio, após a queda, ainda se manteve historicamente elevado.

Finalmente, esse foi um período de juros internacionais extremamente baixos, condição muito favorável para uma economia que importa capitais.

Houve uma elevação do endividamento das famílias, mas muito pior foi o endividamento das empresas —por exemplo, a Petrobras, que, sozinha, chegou a ser responsável por 8% de todo o investimento nacional, atingiu um nível de dívida equivalente a cinco vezes a geração de caixa. Na prática, estava quebrada.

Evidentemente, o investimento foi cortado.

Histórias com essa aplicam-se para indústria naval, toda a cadeia de óleo e gás, setor sucroalcooleiro e para diversas construtoras que se prepararam para atender os ambiciosos e irrealistas cronogramas do Minha Casa, Minha Vida.

Adicionalmente houve claros sinais de sobreinvestimento na indústria automobilística e toda sua cadeia produtiva.

O diagnóstico heterodoxo de crise keynesiana clássica de carência de demanda é incompatível com juros reais elevados e inflação também.

A política fiscal esteve longe de ser particularmente contracionista. As taxas de crescimento real do gasto primário nos anos de 2012 até 2016 foram respectivamente de 5,8%, 7,7%, 6,0%, -3,2% e 2,1%. Note que em nenhum ano o gasto primário cresceu abaixo do PIB. Estranho uma queda em cinco anos produzir esse estrago.

Finalmente, considerar a política monetária muito contracionista não faz o menor sentido, dada a experiência brasileira. As estimativas indicam que a taxa de juros neutra no Brasil era, em 2015,
da ordem de 5,5%.

O ciclo de alta das taxas de juros iniciou-se no primeiro semestre de 2013, após a inflação do tomate, e terminou em meados de 2015, com a taxa a 14,25%. Na média de 2015, a taxa real, considerando a inflação futura, rodou em torno de 7,5%, dois pontos percentuais acima da taxa neutra.

Para termos uma comparação com episódios passados, em 2003 a taxa de crescimento do gasto público foi de -3,7%, e o juro real foi de 13%. O crescimento foi 1,1%, e não a queda de 3,5% que tivemos em 2015.

Se Krugman tivesse olhado a evolução da inflação de serviços, o componente que responde à demanda, notaria que ela rodou em torno de 9% ao ano até o fim de 2016.

Achar que uma crise que se inicia no segundo trimestre de 2014, com queda de investimento desde o quarto trimestre de 2013 e tendo serviços rodando a 9% até o fim de 2016, se deve à carência de demanda agregada é verdadeira estultice.

Melhor que, da próxima vez em que Krugman for escrever sobre uma economia da qual ele nada entende, estude um pouco mais.

*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Mercadores de ilusão

Oxalá Paulo Guedes, economista muito respeitado, não entre nessa categoria

Tudo o que um político deseja é que um técnico com credenciais acadêmicas tenha diagnóstico simples para problemas complexos.

Paulo Guedes, com a ênfase na privatização e, possivelmente, na redução das reservas internacionais como políticas para reduzir o endividamento público, pode se prestar a esse papel. O de mercador de ilusão.

Os políticos, felizes da vida, empurram os problemas para a próxima legislatura e para as próximas gerações. O país não sai do lugar.

Privatização e redução do nível de reservas podem ser políticas auxiliares importantes para reduzir o endividamento público e o custo da dívida, mas somente após haver caminho definido que solucione o problema fiscal.

É esse caminho que recuperará a confiança e o valor do patrimônio público.

Nos últimos anos, os economistas de “esquerda” têm sido pródigos em vender ilusões aos políticos. Um caso recorrente é a tese do “moto perpétuo” na política fiscal: a elevação do déficit público para financiar o aumento do investimento público gera impacto tão elevado sobre o crescimento e, portanto, sobre a arrecadação de impostos que, no fim do processo, a dívida pública como proporção do PIB cai.

No momento, o verdadeiro ornitorrinco representado pela coligação entre a extrema direita e a esquerda na Itália se prepara para testar essa tese.

Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI e pesquisador do Peterson Institute for International Economics, apontou, em recente post com colegas, que o impacto negativo sobre o crescimento da Itália da elevação dos juros de mercado, em consequência da maior percepção de risco pela piora fiscal, mais do que compensa possível efeito expansionista dos gastos sobre o crescimento.

Tese comum entre os economistas de “esquerda” é que impostos sobre ricos podem resolver o problema fiscal. A técnica é superestimar em muito —em até dez vezes mais— os ganhos de arrecadação com alguma modalidade de imposto sobre os ricos.

Os profissionais que fazem conta corretamente e, portanto, não inflam os números são tachados de “contrários aos pobres”.

No dia 3, Pochmann e Feldmann afirmaram que eu não gosto “do sentido de nossas (deles) propostas”, no caso um imposto de 50% sobre o lucro dos bancos que arrecadaria R$ 55 bilhões, pois o lucro do setor neste ano será de R$ 110 bilhões.

Tratei da importância de elevar a tributação sobre os mais ricos em minha coluna de novembro de 2015 na revista Conjuntura Econômica, bem como neste espaço em 8 de abril.

Novamente os mercadores de ilusão erraram as contas. O lucro dos bancos líquido de impostos foi em 2018 algo próximo de R$ 80 bilhões.

Os bancos já foram tributados em 45%. Descontando o abatimento do JCP, a alíquota foi de 36%, ou seja, para um lucro bruto (sem descontar os impostos) de R$ 125 bilhões, a arrecadação foi de R$ 45 bilhões.

Se a alíquota fosse de 50%, em vez de 45%, e se não houvesse a isenção do JCP, a arrecadação seria de R$ 63 bilhões, R$ 18 bilhões a mais, e não os R$ 55 bilhões propalado pelos mercadores de ilusão.

Essencialmente os mercadores de ilusão inflaram a receita de 2018, esqueceram que os lucros já são tributados em 45% e desconsideraram a importante isenção dada pelo juro sobre o capital próprio (JCP).

Oxalá Paulo Guedes, economista muito respeitado, formado em Chicago e com exitosa atuação no setor privado, não entre para a categoria dos mercadores de ilusão.

*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Narrativas

A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história

A democracia requer a distinção de fatos das narrativas. E requer reconhecer erros e corrigi-los.

A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história. Construir uma nova narrativa. Certamente esse desejo não é compartilhado por todos os eleitores do capitão no segundo turno. Mas existe.

A narrativa que se deseja construir é que não houve ditadura militar, que não houve tortura e que a corrupção resulta da redemocratização. Essa narrativa fere fatos conhecidos de nossa história. E fatos são fatos, narrativas são narrativas.

A corrupção é perene na nossa história. Não há forma de combater a corrupção que não seja com independência do Judiciário e imprensa livre e vigilante. Ou seja, com democracia.

Mas, para diferenciar narrativas de fatos, será necessário reconhecer também que a narrativa de que a guerrilha defendia a democracia está factualmente errada.

Ou seja, se é fato que a ditadura torturou Dilma Rousseff, também é fato que toda a guerrilha lutou para instituir a ditadura que considerava correta.

Gente muito jovem, movida por paixões igualitárias e por uma ideologia não democrática, cometeu o erro de pegar em armas. Pagaram caro.

Não há simetria entre os crimes. Os guerrilheiros atuaram por conta e risco seus, enquanto a ditadura praticava seus crimes com o anteparo do Estado.

Também parece ser exagerada, e aqui ainda temos que esperar o juízo dos historiadores, a narrativa de que mensalão e petrolão sempre existiram, da forma e intensidade da de agora.

Analogamente, se é verdade que o Escola sem Partido pretende instituir práticas em sala de aula incompatíveis com a liberdade de expressão, é forçoso reconhecer que esse movimento reage a um processo de doutrinação nas disciplinas de história e geografia que constrói inúmeras narrativas factualmente erradas.

Não é verdade que a Inglaterra lutou contra o tráfico negreiro para vender tecidos na América, ou que a Guerra do Paraguai foi uma conspiração inglesa para destruir uma potência sul-americana autônoma, ou ainda que os europeus entravam dentro do território africano para aprisionar negros e escravizá-los, ou que os EUA enriqueceram pois exploraram os países pobres, e tantas outras bobagens a que nossos alunos são expostos.

Finalmente, se é verdade que a direita defendeu a ditadura por aqui, é verdade também que partidos de esquerda defendem ditaduras na América Latina ainda hoje. Não é coerente defender a Venezuela, como faz o PT, e achar que Bolsonaro é autoritário por afirmar que não houve ditadura por aqui.

Mesmo porque tanto as ditaduras venezuelana, nicaraguense e cubana quanto as ditaduras chilena, argentina e brasileira violaram, aquelas ainda violam, em massa os direitos humanos.

Ademais, na história do continente, as ditaduras ditas de direita terminaram. Algo acontece que faz com que os milicos retornem aos quartéis. As ditaduras ditas de esquerda não terminam e se mostram dispostas, para se perpetuar no poder, a expor seu povo a sofrimentos imensos na forma de desorganização econômica e perda de bem-estar.

A dita esquerda, se quiser continuar a pertencer ao campo democrático, terá de abandonar suas narrativas mentirosas e buscar os fatos. A democracia agradece.

Na coluna passada, referi-me ao presidente eleito, Jair Bolsonaro, como o tenente que se aposentou como capitão. A afirmação está errada. Quando Bolsonaro requereu a reforma, já era capitão. Agradeço aos colegas Pedro Jobim e Luciano Irineu de Castro pela correção.

*Samuel Pessôa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: A maré da direita

A política está funcionando; se a democracia estiver em risco, iremos para as ruas

No início, era o antipetismo. Essa coisa meio amorfa. Tomou a rua. Fiquei surpreso com o tamanho da onda.

No domingo passado (21), o capitão falou. À la Trump, disse um monte de impropérios. Condenou a diferença e prometeu destruir os opositores. Não falou nada muito diferente do que muito radical petista fala em convenção do partido.

Mas há conteúdo positivo, propositivo, no voto para o tenente que se aposentou como capitão.

Há uma genuína agenda conservadora em gestação. Reforço do direito de propriedade com a criminalização das invasões —seja de imóveis urbanos ou propriedade rural—, empregadas como mecanismo de pressão contra nossas desigualdades históricas.

Redução do gasto público com as organizações não governamentais e, penso eu, corte em benefícios da Lei Rouanet. Provavelmente cobrança de mensalidade para universidades públicas de quem pode pagar.

Recrudescimento das penas para crimes, flexibilização da maioridade penal, maior liberalidade no porte de armas e elevação das garantias de proteção à atuação das polícias no engajamento com criminosos.

Total reforço à Lava Jato. Possivelmente serão retomadas as Dez Medidas Contra a Corrupção do Ministério Público.

Aparentemente, esse será o governo de direita por aqui. Dado que, para os petistas, FHC era neoliberal e centro-direita, faltarão graus no transferidor do espectro político para posicionar Bolsonaro.

Os intelectuais, artistas e tantos outros terão que aprender que há legitimidade nessas pautas da direita. Elas serão tratadas no Congresso Nacional, e o STF, como instância contramajoritária, vai se pronunciar e terá poder de veto sempre que novas legislações ferirem disposições constitucionais.

A fala do tenente aposentado como capitão, porém, nada disse sobre como ele pretende tapar o buraco fiscal de R$ 300 bilhões.

Se Bolsonaro tiver sabedoria, tocará a agenda econômica o mais rapidamente que puder.

Tapar o buraco fiscal é tarefa do Congresso. No entanto, a tão alardeada renovação foi qualitativamente muito ruim. Diversos parlamentares que conheciam a natureza do problema e as entranhas do sistema político não foram reeleitos.

Não poderemos contar com a experiência desses e teremos de lidar com uma leva de novos atores que deverão se adaptar ao seu novo ambiente e destrinchar seus mecanismos de funcionamento, em um momento em que não há tempo.

Sim, o presidente que for eleito terá que propor, coordenar e liderar as ações, mas o desenho final do ajuste fiscal será construído invariavelmente pelo Congresso.

O risco é Bolsonaro inverter as pautas. Em um afã de agradar a seu eleitor, tocar a pauta da segurança e dos direitos de propriedade antes da pauta econômica. A segurança não vivenciará uma melhora repentina, o crescimento não virá a tempo, o país não sairá do imobilismo e, inevitável, a popularidade cairá. Simultaneamente, terá que administrar inúmeros conflitos com o Supremo nessas pautas.

Há histeria no ar com a possibilidade de um golpe clássico ou com a deterioração da democracia com Bolsonaro.

Não sei se a histeria é sincera ou segue de certa dificuldade da esquerda em conviver com pautas democraticamente escolhidas que sejam frontalmente contrárias aos seus pontos de vista.

A política está funcionando. Quando e se a democracia estiver em risco, iremos para as ruas. Hoje é o momento da política.

*Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Debater com a heterodoxia cansa

Eles falam, andam em círculos, mas conta que é bom não fazem; é mais fácil chamar os que calculam de inimigos dos pobres

Ninguém discorda de que o Brasil é muito desigual e que o peso dos tributos sobre os mais pobres é maior do que deveria ser.

É comum afirmar que tudo se resolveria facilmente com a criação de um imposto sobre grandes fortunas.

As pessoas que têm se debruçado sobre esse problema espinhoso, a maneira de a política tributária reduzir as desigualdades sociais, têm um pouco mais de dúvidas sobre como fazer isso do que Pochmann e Feldman demonstraram em colunas recentes nesta Folha.

Em um primeiro momento, eles dizem literalmente que o déficit primário previsto para 2019 "poderia ser superado pela cobrança de 1% sobre grandes fortunas".

Quando demonstrado que seus números não se sustentam, escrevem que, com "a reformulação do Imposto sobre Heranças e Doações (ITCMD) e a taxação de dividendos e grandes fortunas, o potencial arrecadatório aproxima-se de 1,5% do PIB".

Passam assim de uma base tributária possível para outra como se elas fossem intercambiáveis e como se, no final, fosse tudo a mesma coisa.

Instados a apresentar os cálculos, eles silenciam. Feldman argumenta que dados da Receita Federal mostram que as 70 mil famílias mais ricas do país pagam um imposto efetivo de apenas 6% da renda, enquanto a classe média paga 12%.

Esses são dados conhecidos sobre as distorções da tributação da renda. Qual é mesmo a arrecadação possível? Nossos economistas heterodoxos escrevem, falam, andam em círculos, mas conta que é bom mesmo não fazem. É mais fácil chamar os que calculam de inimigos dos pobres.

As distorções do sistema tributário brasileiro são conhecidas. A complexidade da tributação indireta é a principal. Mas também a tributação da renda precisa ser revista. Minha coluna da semana passada apontou haver consenso da necessidade de elevação da carga tributária sobre os mais ricos.

O que se espera daqueles que pretendem efetivamente contribuir para o debate é que enfrentem cuidadosamente o desafio de pensar como isso pode ser feito.

Um primeiro passo pode ser o de apresentar estimativas que tenham algum respaldo na realidade. Também contribuiria para o debate se os conceitos fossem empregados como um mínimo de rigor. Imposto sobre grandes fortunas incide sobre as grandes fortunas. Aumento de alíquota do ITCMD eleva a tributação sobre heranças e doações.

Ainda que o imposto sobre as grandes fortunas tenha sido abolido em quase todos os países da Europa, nada impede, em tese, que esse seja um caminho possível por aqui.

Mas, nesse caso, seria interessante que fossem analisados os problemas envolvidos na sua criação e implantação. Um problema conhecido é o da fuga de capitais.

Não é à toa que propostas recentes de criação de um imposto sobre grandes fortunas na Europa pensam o tributo no contexto da União Europeia como um todo, e não de cada país isoladamente.

Quando se trata da tributação da riqueza, a base "heranças e doações" é preferível em relação à base "grandes fortunas".

Estimativas fantasiosas em nada contribuem para a avaliação das potencialidades e riscos dos diversos caminhos possíveis.

Na coluna passada, mencionei o famoso discurso em que Churchill disse ao povo inglês que somente tinha "sangue, suor e lágrimas" para lhes oferecer. O correto é "sangue, labuta, lágrimas e suor". Escapou-me a labuta. Não deve ter sido simples esquecimento! Agradeço a meu amigo Manuel Thedim pela correção.

*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Difícil debate

É ou não possível acabar com o déficit fiscal com imposto de 1% sobre fortunas?

Em um tuíte de 8 de setembro, um dos responsáveis pelo programa econômico do PT, Marcio Pochmann, escreveu: "Déficit primário nas contas públicas, estimado para 2019 pelo neoliberalismo de Temer, poderia ser superado pela cobrança de 1% sobre grandes fortunas. Solução para o Brasil tem, mas precisa do voto popular para garantir a renovação na política. O voto vale".

A afirmação tem duas características muito importantes. Primeira, é precisa e, portanto, facilmente verificável. Segunda, tem importantes implicações para a economia. Assevera que há uma maneira relativamente simples e indolor de resolver boa parte de nosso problema fiscal.

Vindo de um dos principais economistas do grupo político associado a um candidato bem colocado nas pesquisas eleitorais para a Presidência da República, a afirmação adquire enorme relevância.

Meu colega Alexandre Schwartsman, que ocupa este espaço às quartas-feiras, aceitando de forma iluminista os termos em que Pochmann estabeleceu o tema, resolveu verificar a veracidade da afirmação.

Baixou os dados da Receita Federal e documentou, em sua coluna de 12 de setembro, que essa base tributária não arrecadaria nem 10% do déficit fiscal.

Li com interesse a réplica de Pochmann a Alex nesta Folha na edição de 14 de setembro, procurando qual teria sido o erro cometido por Alex.

Pochmann discorreu sobre vários temas. Não houve menção aos números. Pochmann reagiu de forma idêntica à do batedor de carteira que, após o ato, vira de lado, levanta o braço e grita "pega ladrão!".

Penso, aliás, que, em debates dessa natureza --em que a questão debatida é muito clara e circunscrita--, a réplica não deveria ser publicada se não tratar diretamente do tema.

Na coluna de 26 de setembro, Alex escreve que Pochmann irá ganhar o merecido título de economista mais desonesto do Brasil.

Na edição de 28 de setembro, o professor de economia brasileira do departamento de administração da FEA-USP Paulo Feldmann reclama da falta de "decoro" de Alex com Pochmann. Afirma que em "economia não há uma única forma de enxergar ou interpretar fatos".

Ora, o debate não é de interpretação. Há um fato. É ou não possível acabar com o déficit fiscal com um imposto de 1% sobre grandes fortunas? Não há interpretação aqui. Trata-se de aplicar a alíquota de 1% sobre a base e saber se chega ou não perto de R$ 150 bilhões.

Não satisfeito, afirma Feldmann: "Segundo dados da Receita Federal, as 70 mil famílias (0,14% do total) mais ricas do país pagam um imposto efetivo de apenas 6% da renda, enquanto a classe média paga 12%. Se os muito ricos passassem a pagar um imposto efetivo igual ao pago pela classe média, acabaríamos com o déficit primário. Simples assim".

Recoloca o debate em termos simples, claros e falseáveis.

Na sua resposta em 4 de outubro, novamente Alex mostra que os números de Feldmann não sobrevivem às quatro operações. A resposta dos dois ilusionistas na mesma edição do dia 4 é alegar o relativismo do conhecimento econômico --meus Deus, o debate é contábil!-- e afirmar que Alex trabalhou no mercado financeiro.

Os dois precisam mostrar aos leitores qual foi o erro de conta que Alex cometeu.

Jânio de Freitas, em coluna de 23 de setembro, observou ser insultante o procurador do Ministério Público Carlos Fernando do Santos Lima se aposentar com 54 anos e remuneração mensal de R$ 30 mil aproximadamente.

Faltou lembrar que, se a reforma da Previdência de Temer tivesse sido aprovada, ele teria de trabalhar até os 65 anos.

Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: O candidato do PT

Há problema quando não aprendemos com os erros das decisões passadas

Acabou o suspense. O Partido dos Trabalhadores tem seu candidato.

Em entrevista à Globonews no dia 6 de setembro, Fernando Haddad reconheceu alguns erros de Dilma que resultariam em uma pequena crise. A severidade da recessão em 2015-2016, porém, foi consequência de o PSDB não ter aceitado o resultado eleitoral.

A tese é quase divertida. Fica o desafio de um trabalho estatisticamente sério que mostre que a conjectura vai além de conversa de botequim.

O candidato parece ignorar o desastre fiscal do governo, que levou a dívida pública a passar de 50% para 70% do PIB em apenas três anos.

O que preocupa mais é a dificuldade de aprendizado. Lula não errou. Os empréstimos do BNDES, a reconstrução da indústria naval, a mudança do marco regulatório do petróleo, a construção das refinarias, e inúmeras outras medidas não foram erradas.

Recente estudo de Ricardo Barboza e Gabriel Vasconcelos documenta que cada R$ 1 emprestado pelo BNDES gerou R$ 0,50 de investimento.

Qualquer avaliação de custo e benefício das atividades dos BNDES no período petista começa com um desperdício de 50%. Para que a perda não seja inaceitável, nos outros 50% o ganho social do investimento, em excesso ao ganho privado, teria de ser surpreendentemente elevado para que as ações do banco não entrem na lista dos imensos desperdícios da década passada.

Eugênio Gudin em coluna para O Globo em 12 de maio de 1961, citando discursos do deputado Raul Gois, escreveu:

"Cita o ilustre deputado: 'Um navio de 10 mil toneladas, a ser construído em Jacuecanga, foi contratado por Cr$ 1.495.000.000,00, preço este que, devido aos favores contidos no contrato, já hoje ultrapassa a cifra de Cr$ 1.680.000.000,00. E um navio de 10 mil toneladas custa hoje, nos mercados internacionais, com a mesma especificação e a mesma velocidade do 'nacional', US$ 3.400.000,00, ou seja, em moeda brasileira, ao câmbio livre (não ao câmbio de custo) Cr$ 680.000.000,00, isto é, um bilhão de cruzeiros a menos que o navio 'dito nacional' ou construído no Brasil'."

Continua o texto de Gudin: "O Brasil está sofrendo por falta de transporte marítimo e não pelo fato de os navios serem construídos aqui, no Japão ou na China. Ora, o problema do transporte marítimo pode ser equacionado, resumidamente, em poucas palavras: Os navios gastam 50% do tempo nos portos; 27% do tempo em reparações e apenas 20% navegando. As tripulações são quase o dobro das dos navios de outras nacionalidades".

"Pois bem, esse problema, sem dúvida árduo e de penosa solução, resolve-se por uma mágica do Sr. Kubitschek, construindo navios no País pelo dobro ou o triplo do preço."

Não há problema se as discordâncias no debate público ocorrem, pois uns desejam enfrentar o problema fiscal por meio de elevação de receita e outros de queda de gasto. Norberto Bobbio já mostrou que esse é o debate natural e necessário em sociedades democráticas.

O problema ocorre quando não aprendemos com os erros das decisões passadas. Não à toa, repetimos o fracasso da indústria naval nos anos 1950, nos anos 1970 e agora nos anos 2000. Em todos os casos, o resultado foi um monte de estaleiros quebrados e pesada conta para os contribuintes.

Mestre Bobbio ficaria ainda mais espantado com a dificuldade dos economistas de "esquerda" com a aritmética.

Coluna de Alexandre Schwartsman, na quarta-feira (12) neste espaço,documenta as dificuldades do assessor econômico do PT, Marcio Pochmann, com os números e as quatro operações.

*Samuel Pessoa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Modelo previdenciário fundado

A sociedade concedeu expectativas de direitos que geram gasto elevado com Previdência

O Brasil gasta com benefícios previdenciários 14% do PIB (Produto Interno Bruto). Esse número soma o RGPS (Regime Geral de Previdência Social), que gasta uns 9% do PIB, e os RPPS (Regimes Próprios de Previdência Social) dos funcionários públicos, que gastam 5% do PIB, consolidando União, estados e municípios.
Adicionalmente, o número de 14% do PIB inclui os benefícios assistenciais e as pensões por morte aos viúvos e viúvas.

A razão de dependência —relação entre a população acima de 65 anos e a que tem entre 20 e 64 anos— é no Brasil de 13%. Sociedades com essa razão de dependência gastam em geral entre 5% ou 6% do PIB com Previdência. Ou seja, nosso sobregasto previdenciário é da ordem de 8 a 9 pontos percentuais do PIB.

Nosso gasto é tão superior ao das demais sociedades porque a taxa de reposição (valor do benefício previdenciário como proporção da renda quando ativo) é próxima de 100% para uma parcela de 95% da população que trabalha, segundo o trabalho “Será que o brasileiro está poupando o suficiente para se aposentar?”, de Ricardo D. Brito Paulo T. P. Minari. Além da alta taxa de reposição, o gasto é elevado pois a idade de concessão do benefício é muito baixa.

Elevada taxa de reposição e reduzida idade de concessão do benefício desestimulam a poupança privada. O mesmo trabalho citado mostra que, para esses 95% da população empregada, é irracional a constituição de poupança para a velhice.

Nosso sistema previdenciário, além de onerar as contas públicas, desestimula a formação da poupança. Consequentemente, a taxa básica de juros é muito elevada.
Em ano eleitoral surgem propostas rocambolescas para enfrentar a questão. Diversos candidatos apostam no regime previdenciário fundado: a acumulação de recursos em contas individuais.

O leitor pode achar estranho a taxa de reposição ser elevada e os valores dos benefícios serem baixos. O que de fato é baixa é a remuneração média do trabalho no Brasil, fruto da baixa produtividade. Lembremos que uma hora trabalhada no Brasil produz a quinta parte da hora trabalhada nos Estados Unidos, por exemplo.

Novas regras para atendimento no INSS
Todas as pessoas que estão no setor privado já estão em um regime fundado: para ter aposentadoria acima do teto do INSS, é necessário poupar, seja adquirindo patrimônio imobiliário, riqueza financeira ou alguma outra forma.

Todas as pessoas que ingressaram no serviço público da União após 2013, quando a presidente Dilma Rousseff implantou o fundo de pensão complementar dos servidores da União, já estão no regime fundado. O mesmo se aplica a alguns estados.

O problema, portanto, não é o desenho do modelo. De fato, é importante que o fundo de pensão complementar de servidores seja implantado para os funcionários públicos de todos os estados e municípios.

O problema é que o Congresso Nacional concedeu expectativas de direitos que geram esse gasto elevado, com altas taxas de reposição e idades de concessão do benefício muito baixas.
Mudar o regime para os novos ingressantes no mercado de trabalho, de sistema de repartição para sistema fundado, não alterará o fato de que já concedemos expectativas de direitos que geram esse resultado macroeconômico.

Se não repactuarmos nosso sistema previdenciário, reduzindo a expectativa de recebimento de benefício —seja o valor ou a idade de concessão—, não escaparemos do perverso equilíbrio que temos vivido nas últimas décadas, de baixo crescimento, carga tributária crescente e juros elevados. Não há atalho por aqui.

*Samuel Pessoa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Acabou o bônus demográfico do Brasil

Resta-nos melhorar a educação e estimular atividades que elevem a produtividade

O profissional de economia em geral é portador de más notícias. É o caso da coluna deste domingo (29).

O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou na semana passada a atualização das estatísticas demográficas do Brasil. A anterior havia sido em 2013. Agradeço ao jornalista do jornal Valor Econômico Bruno Villas Bôas pela informação e pelos dados do IBGE.

A revisão alterou o momento em que o bônus demográfico acabará. De acordo com as estimativas de 2013, o bônus terminaria em 2023, e agora sabemos que ele acaba neste ano.
O bônus demográfico é o período do desenvolvimento demográfico de uma sociedade em que a taxa de crescimento da população em idade ativa (PIA), entre 20 e 64 anos, é superior à taxa de crescimento da população total (POP). Isto é, quando a taxa de crescimento da população de crianças, jovens e idosos é menor do que o crescimento da população em idade ativa.

Em 2019 será o primeiro ano, desde meados dos anos 1970, em que a taxa de crescimento da PIA será inferior à taxa de crescimento da POP.

Os demógrafos são um pouco menos pessimistas, pois consideram o bônus demográfico o período em que a razão de dependência —proporção de crianças, jovens e idosos na população— é inferior a 50%. Por esse critério, o bônus demográfico terminaria em 2041, pela série antiga, e agora terminará em 2035.

O problema é que o crescimento econômico depende da diferença das taxas de crescimento da PIA e da POP, e não da razão de dependência (ver “Demographic transition and economic miracles in emerging Asia”, de David Bloom e Jeffrey Williamson, publicado no World Bank Economic Review, 1998, volume 12, número 3). Ou seja, o crescimento depende da alteração da estrutura etária, isto é, do filme, e não da fotografia da demografia. Nossa janela demográfica fechou-se.

No período do bônus demográfico, é possível o produto per capita crescer mesmo que o produto por trabalhador, a produtividade do trabalho, não se expanda. Basta que a população que trabalha cresça mais rapidamente do que a população total.

De fato, entre 1982 e 2016 o produto per capita do Brasil cresceu 1% ao ano, enquanto a produtividade do trabalho teve uma expansão anual de apenas 0,5%.

A razão entre a PIA e a POP cresceu 0,5% ao ano no período (a PIA, portanto, cresceu mais que a POP).
A partir do próximo ano a demografia não ajudará. A única maneira de o produto per capita brasileiro aumentar será por meio da elevação da produtividade do trabalho.

Resta-nos melhorar a qualidade de nossa educação e estimular a absorção de novas tecnologias, além de buscarmos reformas institucionais que aumentem a eficiência da alocação dos fatores de produção.

Sobre a eficiência na alocação dos fatores, tudo o que não necessitamos é reeditar a política econômica intervencionista praticada entre 2006 e 2014.

Um bom guia para procuramos melhorar nossas instituições na direção correta encontra-se no estudo espetacular de Santiago Levy “Under-Rewarded Efforts: the elusive quest for prosperity in Mexico”, sobre a estagnação do México, apesar de anos com macroeconomia em ordem e da maior abertura da economia (mas sem corrigir e até agravando problemas institucionais e microeconômicos).

Agradeço a Fernando Veloso, meu colega do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia, da FGV), por me chamar a atenção para esse estudo.

*Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: A economia política da Petrobras

Subsidiar grupos não faz parte dos motivos estratégicos ou da função social da estatal

Há algumas semanas meu colega Alexandre Schwartsman, que ocupa este espaço às quartas-feiras, explicou com toda a clareza os motivos de a Petrobras dever fixar o preço do petróleo pelo custo de oportunidade, isto é, pelo preço que ela obtém quando vende o produto no mercado internacional.

Não faz sentido que um produtor de soja a venda no mercado doméstico a preço inferior ao que obteria no mercado internacional.

Além da eficiência na gestão da empresa, essa regra de formação de preço justifica-se para evitar o populismo, mal tão comum na América Latina.

Populismo ocorre quando a política cria benefício para algum grupo da sociedade sem explicitar a fonte da receita. Os custos ficam escondidos. Ninguém reclama.

Com o passar do tempo, o desequilíbrio implícito na política produz alguma forma de desorganização da economia, que acaba por gerar regressão econômica e perda de produto.

A regressão econômica acirra o conflito distributivo.

Dado que o movimento inicial já havia sido resposta ao conflito distributivo, o problema se agrava e, portanto, o ciclo se repete. Novos benefícios são concedidos.

A moral da história é que, quando se entra em uma espiral populista, é muito difícil sair dela.
Imagem da sede da Petrobras, no Rio, e uma bandeira com o logo da empresa em primeiro plano
Sede da Petrobras, no Rio - AP Photo/Leo Correa

A saída inflacionária é uma forma de populismo que conhecemos de longa data. Uma vez que adquire certa dimensão, o custo de desinflacionar se torna proibitivo. Acabamos de pagar esse custo.

As heterodoxias de Dilma em seu primeiro mandato nos custaram muito caro.

A mesma lógica opera em relação às empresas públicas.

A tentação para qualquer governante é afirmar que a Petrobras não deve cobrar o custo de oportunidade pelo seu produto.

Utiliza-se a empresa para fazer política social. A Petrobras deve subsidiar o botijão de gás, a gasolina, o querosene de aviação etc. Uma vez iniciado o processo, é difícil reverter. A pressão será sempre para aumentar o subsídio.

O resultado será a piora de desempenho da empresa, o que agrava a capacidade de manter esses subsídios. A produção se reduz, e os problemas se acumulam.

A Petrobras tem o capital aberto, com ações transacionadas em Bolsa, pois a participação privada ajuda a governança e contribui, portanto, para manter a lucratividade da empresa.

Os dividendos da estatal remuneram o Tesouro.

E o Tesouro pode empregar esses recursos para subsidiar o que o Congresso Nacional determinar.

A função social da empresa é garantir a oferta em momentos de extrema carência do recurso estratégico, como guerras ou situações de crise no mercado, como o choque do petróleo dos anos 1970.

Subsidiar grupos não faz parte dos motivos estratégicos ou da função social da Petrobras que justifiquem haver uma estatal petroleira.

O princípio básico que evita o populismo e permite que a sociedade gerencie o conflito distributivo de forma civilizada é que todo programa que atenda a um grupo da sociedade precisa estar em alguma linha do Orçamento do Estado. De forma explícita e clara para que a sociedade possa acompanhar e controlar.
Samuel Pessôa

* Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.