Ruy Castro

Ruy Castro: Anônimos e famosos

A Gripe Espanhola não escolheu suas vítimas. O coronavírus também não escolherá

Custou, mas o coronavírus trouxe de volta a memória do flagelo que atingiu o mundo nos estertores da Primeira Guerra, em fins de 1918: a Gripe Espanhola. Não era uma gripe nem viera da Espanha, mas assim passou à história e, em menos de três meses, matou 50 milhões —quase dez vezes o número de mortos da própria guerra. Anônimos e famosos.

Na França, morreram o dramaturgo Edmond Rostand, autor de "Cyrano de Bergerac", e o poeta Guillaume Apollinaire. Na Áustria, Sophie, filha de Freud, e o pintor de vanguarda Egon Schiele. Na Alemanha, o economista Max Weber. Em Portugal, Francisco e Jacinta, as crianças do "milagre de Fátima". Nos EUA, os irmãos John e Horace Dodge, tubarões da indústria de automóveis, e Henry Ragas, pianista da primeira banda de jazz a gravar um disco. E muitos mais.

O Brasil teve 35 mil mortos. Só no Rio, onde morreram 15 mil pessoas, a Espanhola levou os irmãos Jorge e Antonio Lage, senhores da navegação marítima no país; a mulher e o filho do estadista Afranio de Mello Franco; o craque Belfort Duarte, do América, símbolo da disciplina no futebol; dois filhos menores dos eminentes jornalistas Eugenia e Alvaro Moreyra; e a cafetina Alice Cavalo de Pau, imperatriz dos bordéis da Lapa. O poeta Olavo Bilac morreu durante a Espanhola, mas não dela —já vinha com uma séria condição cardíaca que apenas se agravou.

E outro de quem se diz erroneamente que morreu na Espanhola foi Rodrigues Alves, presidente eleito em 1918 e que não tomou posse. Alves, como o chamavam, tinha um histórico de beribéri contraída no passado e que pode ter voltado em 1916, quando era governador de São Paulo. Ao contrário de sua expectativa, tanto que aceitou a Presidência, sua doença só piorou e lhe foi fatal. Quando morreu, em janeiro de 1919, a Espanhola já não matava ninguém.

Anônimos e famosos —o coronavírus também não fará distinções.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Coragem ou irresponsabilidade?

Não será surpresa se Bolsonaro for visto, de propósito, chupando o dedo

Ao ver sua claque em frente ao Alvorada, Jair Bolsonaro saiu tocando mãos, deixando-se apalpar e tirando selfies com celulares de apoiadores que ele não sabe se estavam com o nariz escorrendo. Coragem ou irresponsabilidade? Se Bolsonaro está convicto de que o coronavírus é uma invenção da mídia e não liga para sua saúde, ótimo —os brasileiros de bem agradecem.

O problema é que ele não é dono apenas de seu nariz. Sua atitude de ontem gerou um péssimo exemplo. Para desespero das autoridades sanitárias, inclusive as de seu governo, ele deu sinal verde para que ninguém tome as precauções para evitar contágio. Com seu populismo de coronel da roça, Bolsonaro contrariou a maciça recomendação médica de que, em nome da saúde pública, as pessoas lavem constantemente as mãos, policiem-se para não levá-las ao rosto e evitem contatos em aglomerações.

Para fazer jus à alcunha de “mito” que os papalvos insistem em lhe pespegar, não será surpresa se, nos próximos dias, Bolsonaro for visto removendo ramela do olho, chupando o dedo, roendo as unhas, tirando meleca do nariz, arrancando um fiapo de manga do dente ou dando palmadinhas nas bochechas de alguma apoiadora —fazendo, de propósito, tudo que não se deve fazer. Como passou dias ao lado de auxiliares já diagnosticados com o vírus, Bolsonaro tornou-se uma ameaça ambulante de contágio. Mas nem isso o impede de arriscar-se a empestear seus veneradores.

Em seu raciocínio patafísico, ele parece não ver por que tantas instituições, em escala mundial, estão se dispondo a perder bilhões ao paralisar suas atividades. Mas, se e quando a calamidade se instalar aqui por causa do coronavírus, talvez esses veneradores se lembrem de que ela poderia ter sido evitada se o chefe da nação fosse um estadista, que visasse o bem da população.

E não alguém que, no fundo, dá uma banana para essa população.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Receita de impeachment

Se for preciso uma crise econômica para afastar um presidente, há uma a caminho

Em sua guerra contra o Brasil e a favor de si mesmo, Jair Bolsonaro conta com o apoio de seus familiciares, meia dúzia de generais bovinos, uma rede digital clandestina de propaganda e auxiliares robotizados como Abraham Weintraub ou oportunistas como Sergio Moro. É material humano de encomenda para quem quer se sustentar no poder, mas não para administrar um país. Aliás, o desprezo de Bolsonaro pela administração se revela na maneira airosa e piadista com que trata os problemas.

Escorado numa massa de seguidores narcotizados pela ideologia, Bolsonaro sente-se forte para ignorar, ofender ou humilhar congressistas, juízes, investidores, jornalistas, chefes de Estado, economistas, diplomatas, servidores públicos, intelectuais, artistas, professores, estudantes, mulheres, minorias sexuais, indígenas, ambientalistas, portadores de HIV, nordestinos —a lista cresce todos os dias. É muita gente para se ter contra si, e cada membro desses grupos sociais ou categorias representa um voto —ou Bolsonaro não está exatamente preocupado com eleições?

Em contrapartida, há os grupos sociais ou categorias que ele favorece e que tem como aliados: policiais expulsos e participantes de milícias, PMs amotinados, bandidos condenados por assassinato e em liberdade, vendedores de proteção, bicheiros, fabricantes de armas, evangélicos profissionais, grileiros de terras e motoristas infratores, sem falar em ministros envolvidos em esquemas de laranjas, rachadinhas e favorecimento dos próprios negócios com dinheiro público.

Nunca um presidente se cercou de tantos elementos desse nível. Espanta que seus eleitores, tão puros de intenção, aceitem conviver com tal escória.

Nada disso, no entanto, parece bastar para um impeachment. O qual, dizem os entendidos, precisa de uma grave crise econômica para deslanchar. Bem, há uma a caminho.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Três dias de incorreção

O Carnaval tem suas leis. Convém não contrariá-las

Se o politicamente correto acha que vai se impor no Carnaval, proibindo fantasias de índio, piranha, freira, homem vestido de mulher e chinês com coronavírus, arrisca-se a levar a maior goleada de sua história. Ninguém até hoje conseguiu regular o Carnaval. Pelo menos, o Carnaval carioca.

O entrudo, por exemplo —o costume de esguichar água com limão e outros líquidos nos passantes—, foi proibido pelo menos sete vezes pelas autoridades do Rio, em 1604, 1605, 1680, 1691, 1734, 1808 e 1810. E só saiu de moda, em fins do século 19, porque os foliões descobriram coisa melhor. A birra com o entrudo era até justificável. As pessoas levavam baldes de água ao passar sob uma varanda e, como o banho ainda não era um hábito dos mais arraigados, podiam se constipar. Uma vítima do entrudo foi o pai da arquitetura no Brasil, o francês Grandjean de Montigny, no Rio desde 1816 e morto de uma “molhança” em 1850.

Outra tentativa da administração colonial foi a de proibir máscaras e capuzes, pela possibilidade de eles encobrirem malfeitores —o que era verdade. Podiam encobrir também justiceiros, como os que, em 1711, assassinaram na prisão o corsário Jean-François Duclerc, comandante das tropas francesas na frustrada invasão do Rio no ano anterior, e, em 1720, na rua, o ouvidor Martinho Vieira, odiado pela população. Pois nem assim as máscaras deixaram de ser usadas, a ponto de, em 1834, já serem vendidas nas lojas da rua do Ouvidor e anunciadas pelos jornais.

E, por duas vezes, o governo decretou o adiamento do Carnaval: em 1892, por causa de um surto de febre amarela, e em 1912, pela morte do Barão do Rio Branco às vésperas do tríduo. Nos dois casos, o carioca se impôs: brincou normalmente o Carnaval em fevereiro e, meses depois, brincou-o de novo, na data ordenada pelo governo. Nunca mais o poder se meteu com o Carnaval.

O Carnaval tem suas leis. Convém não contrariá-las.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Amigos 'tóxicos'

Hoje, Bolsonaro quer distância de gente que o serviu tão bem nos velhos tempos

A família Bolsonaro sabe escolher os amigos. Eles não precisam ler Dostoievski, mas devem ter a ver com violência, crime, tráfico de influência, extorsão, contravenção, transações escusas, álibis mal explicados, sentenças judiciais suspeitas, destreza no gatilho e um quê de cafajestice musculosa.

Vide Adriano da Nóbrega, ex-capitão da PM prematuramente executado na Bahia neste domingo (9). Aos 43 anos, seu currículo incluía condenações por assassinato, intimidação de testemunhas, prestação de serviços de proteção a bicheiros, chefia das milícias de Rio das Pedras, comando de um grupo de assassinos profissionais e, no passado, agraciado pelos Bolsonaro com medalhas e menções honrosas. Se não tivesse sido morto, quem sabe a que alturas não chegaria?

Outros amigos da família, os também ex-PMs Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, são réus na morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 2018 —Ronnie, como autor dos tiros, e Élcio, por dirigir o carro da emboscada. Ronnie é vizinho de Bolsonaro num condomínio no Rio, mas isso só fala a favor do ecletismo do endereço: abriga tanto um presidente da República quanto um criminoso.

E há o impagável Fabrício Queiroz, ex-paraquedista, ex-PM (ninguém conhece mais ex-PMs que os Bolsonaro) e encarregado de contratar fantasmas para o gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro e recolher seus salários para posterior rachadinha com o chefe.

Durante anos, eles serviram à família com dedicação e às claras. Agora que Bolsonaro é presidente e poderiam gozar o poder, são obrigados a fugir, esconder-se —ficaram “tóxicos”. O próprio Bolsonaro quer vê-los longe, e está conseguindo. Adriano virou presunto; Ronnie e Élcio estão num presídio federal em Mossoró, RN; e Fabrício anda sumido, à espera de, segundo disse, “uma pica do tamanho de um cometa” na sua direção.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Tirem suas conclusões

Uma técnica de persuasão mais eficaz do que a pura e simples estupidez

A Polícia Federal concluiu que o senador Flávio Bolsonaro não cometeu os crimes de lavagem de dinheiro e falsidade ideológica de que está sendo acusado pelo Ministério Público do Rio, por estranhas transações com lucros astronômicos, marotas declarações de bens, movimentações atípicas de dinheiro vivo e invejável evolução patrimonial —tudo isso para um então deputado estadual e dono de uma loja de chocolates próspera no ano inteiro, menos na Páscoa. Ao ser indagado a respeito por um repórter, o presidente Bolsonaro rugiu: "Pergunta pra Polícia Federal!".

Típico de Bolsonaro. Fala todos os dias com os jornalistas, mas, se um deles toca em algo mais delicado ou lhe pede para explicar uma de suas próprias declarações, vocifera cala-bocas como "Chance zero!", "Esquece!", "Ponto final!", "Assunto encerrado!" e "Próxima pergunta!". Ou põe fim de vez à conversa com o incisivo "Acabou, talquêi?" e o já clássico "Pergunta pra tua mãe!" —o primeiro presidente a botar a mãe no meio das ejaculações presidenciais. Mas, no caso das acusações a Flávio Bolsonaro, ele tem razão —só a Polícia Federal consegue explicar por que o livrou.

Já seu outro filho, o vereador Carlos Bolsonaro, usa tática mais sutil. Em suas postagens nas redes sociais, alinha os argumentos de que precisa para provar um ponto. Mas, em vez de levá-los à conclusão lógica, termina com "Tirem suas conclusões" —dando margem a que seus interlocutores cheguem exatamente à conclusão a que ele quer que cheguem, mas pensando que o fazem por conta própria.

É um coquetel retórico, combinando conceitos de persuasão de massas, técnicas de publicidade e estratégias de livros de autoajuda, tudo bem misturado e servido com uma cereja. Serve tanto para vender sabão em pó quanto para induzir um indeciso a se aproximar de um líder, converter-se a ele e pensar como ele.

Tirem suas conclusões.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: A Terra é chata

Estou a fim de concordar com os terraplanistas. Mas, antes, meu cérebro terá de virar uma pizza

Um novo planeta foi descoberto por um satélite da Nasa. Fica na primeira galáxia à direita depois do Sol, a cem anos-luz daqui. É um pouquinho maior que a Terra e, como se constatou, redondo, em forma de globo.

Também como a Terra, gira em torno de si mesmo e de uma estrela e é dilatado nos polos e achatado no equador, ou vice-versa. Eles o estão chamando de TOI 700 d, sendo TOI a sigla em inglês para “Objeto de Interesse do Tess”. Tess é a nova sensação das varreduras espaciais: um satélite caça-planetas. Desde que entrou em ação, em 2018, já achou três.

Para descobrir um planeta, o Tess passa 27 dias observando uma estrela, de olho em qualquer oscilação de seu brilho. O que, se acontecer, terá sido provocado pela passagem de um corpo celeste —um planeta— ao redor dela. A vida é meio parada no espaço, donde não há outras opções. Mas, para não restar dúvida, exige-se que tal oscilação se dê pelo menos três vezes. Cada operação congrega um batalhão de cientistas, quase todos nóbeis, fazendo cálculos fora do alcance da nossa aritmética escolar.

Pois é armado dessa aritmética de ábaco e de contar nos dedos que um grupo de novos pitecantropos afirma que a Terra é plana, não esférica. São os terraplanistas. Indiferentes a 2.500 anos de ensinamentos por gente como Pitágoras, Aristóteles, Copérnico, Kepler, Galileu, Newton e Einstein, seus argumentos são os de uma criança de babador. Para eles, a Terra é chata e em forma de pizza, como se pode constatar, dizem, olhando pela janela do avião.

Os cientistas de toda parte e de todos os tempos nos mentiram. As estações espaciais que, lá de cima, nos veem redondos e esféricos, não existem. A Nasa é um estúdio de efeitos especiais. A Lua também é chata. Marte, Vênus, Júpiter, idem. Eles acreditam nisso.

Estou propenso a concordar. Mas, antes, meu cérebro também terá de virar uma pizza.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Esquerdireita

Lula e Bolsonaro fizeram de esquerda e direita uma coisa só

É uma sensação inédita, a de acordar em 2020 e descobrir que, por uma insólita química, esquerda e direita se tornaram uma coisa só. O símbolo dessa simbiose é Eduardo Fauzi Richard Cerquise, ativista integralista, correligionário de Jair Bolsonaro no PSL e terrorista que, há duas semanas, atirou a bomba na produtora do grupo Porta dos Fundos. Na ficha de Cerquise, consta ter sido preso como black bloc nas manifestações de 2013 e defendido pela infame Sininho, militante próxima do deputado Marcelo Freixo, do PSOL. E que, para escapar à nova prisão, fugiu para onde? Para a Rússia. Mudou o Natal ou mudaram Cerquise, Sininho, Freixo e a Rússia?

Essa redução ideológica tem raízes. Começou quando Lula conseguiu empurrar toda a esquerda brasileira que não ele para a direita, fazendo de si próprio um dogma político-religioso e eliminando até possíveis sucessores —ou alguém os enxerga nos boulos, dilmas e haddads? Bolsonaro faz agora o mesmo com a direita —empurra-a para a esquerda, de modo que só reste ele como opção em 2022. Para não haver dúvida, dedica-se, desde que se sentou na cadeira, a desmoralizar seu único aliado ainda ameaçador, o ex-sergiomoro Sergio Moro.

Lula e Bolsonaro temem os meios tons. A hipótese de matizes intermediários —socialistas, trabalhistas, social-democratas, conservadores esclarecidos e liberais em geral—, capazes de gerir o Brasil, é veneno para as aspirações deles. Para permanecer no jogo, precisam polarizar o país e reduzi-lo à mesquinhez dos personalismos que representam.

A ideia de que Lula e Bolsonaro se tornaram a mesma pessoa, só que com sinal trocado, ofende os partidários de um e de outro. Para os bolsonaristas, Lula fu com o país. Para os lulistas, é o que Bolsonaro está fazendo na sua vez.

Para os que não se enquadram em nenhuma das categorias, e que talvez sejam 60% da população, os dois lados têm razão.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues


Ruy Castro: A Bolha entre nós

Um organismo sem olhos, estômago ou cérebro. Onde você já viu um parecido?

Um amigo me mandou um artigo sobre um organismo até há pouco desconhecido e que vem intrigando a ciência. É o “Physarum polycephalum”, um primo em segundo grau das amebas e cujo nome, para quem matou aquela aula de latim, significa “mofo de muitas cabeças”. A classificação é instigante, mas enganadora. Não se trata de um fungo, nem animal ou planta, embora às vezes lembre um ou outro. E, mesmo já definido como inofensivo, está sendo chamado de A Bolha, numa referência a um filme Z de 1958, “A Bolha Assassina”, com o ainda anônimo Steve McQueen.

A Bolha —o organismo, não o filme— tem como habitat lugares úmidos e meio pantanosos, onde haja decomposição de cascas e folhas de árvores. É do que se compõe sua dieta, mas ela não se queixa. Algo dentro dela lhe ensina a descobrir esse alimento e se mover na direção dele, à razão de um centímetro por hora —velocidade quase olímpica, considerando-se que A Bolha não tem olhos, estômago e muito menos cérebro.

Mas tem outras características. Quando se aproxima de uma colega, por exemplo, dá-se uma espécie de fusão e o “conhecimento” de uma passa para a outra. Como A Bolha não tem cérebro, isso acontece de maneira acrítica —uma herda tudo que a outra “sabe” e sai repetindo pelo brejo como uma bobalhona, sem pensar e sem discutir. E, ah, sim, A Bolha tem nada menos que 720 opções sexuais para se reproduzir, o que a torna uma das maiores enciclopédias desse assunto na natureza.

No nosso próprio brejo, temos um equivalente aproximado desses organismos. São os seguidores de Bolsonaro. Eles também parecem não ter olhos, estômago ou cérebro, considerando-se as informações de que se alimentam e que saem repetindo acrítica e abobalhadamente, cegos para os fatos que insistem em desmentir as versões.

Só diferem nas 720 opções sexuais. Eles também as têm, mas não assumem.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Frutos podres

Deus e o Brasil não demoram a pedir demissão do slogan de Bolsonaro

Cristo falava por parábolas. Bolsonaro fala por slogans. Uma parábola é um relato alegórico, destinado a fazer pensar e extrair de sua narrativa uma moral. É um instrumento que se dirige, ao mesmo tempo, à fé e à razão. Já um slogan é uma afirmação categórica, acachapante, disparada para ser aceita pelo receptor sem passar necessariamente por seu cérebro. É uma arma dos publicitários, dos políticos e dos autoritários.

Uma das grandes parábolas de Cristo está em Mateus 7:15-20: "Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós com vestes de ovelha, mas que por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se porventura uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Toda árvore boa dá bons frutos, mas a árvore má dá maus frutos. Uma árvore boa não pode dar maus frutos, nem uma árvore má pode dar bons frutos. Toda árvore que não dá bons frutos deve ser cortada e queimada".

Por falar em frutos, digo, bolsonaros, digo, slogans, o slogan favorito de Bolsonaro é o martelado "Brasil acima de tudo e Deus acima de todos". O "Brasil acima de tudo" cheira ao slogan nazista "Deutschland über alles" —"A Alemanha acima de tudo"—, mas isso não lhe provoca desconforto. Com slogans não se discute.

O Brasil de que fala Bolsonaro deve ser o nosso, que ele reduziu a seu condomínio. Mas a que Deus Bolsonaro se refere? Ao Deus dos católicos, o velhinho bonachão, de barbas e camisolão, síndico do Céu? Ou ao Deus protestante, incorpóreo, rigoroso, fiscal de nossos malfeitos aqui na Terra? A pergunta procede, porque Bolsonaro se diz católico, embora nunca seja visto com padres ou em seus rituais. Ao contrário, seu território são os templos evangélicos e seus aliados, os "bispos" de televisão. Bolsonaro servirá a dois senhores?

Pelos frutos que estão começando a despencar da árvore, Deus e o Brasil não demoram a pedir dispensa do tal slogan.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Inferno de Dante

Curso intensivo em cinco parágrafos para o novo presidente da Funarte

Dante Mantovani, o homem a quem Bolsonaro entregou a Funarte, órgão de fomento ao teatro, música, dança, circo e artes visuais no Brasil, declarou na terça-feira (3) que "o rock ativa a droga, que ativa o sexo, que ativa a indústria do aborto, que por sua vez alimenta uma coisa muito mais pesada, que é o satanismo". Dante Mantovani deve saber o que diz. Mas, para seu conhecimento, aqui vão algumas informações.

Ao dançar o minueto, no século 18, os casais não se tocavam, o que os levava a sensações lúbricas que lhes provocavam terríveis sonhos eróticos, que ativavam o aborto, que, por sua vez, alimentava o satanismo. No século 19, surgiu a valsa, em que os casais dançavam entrelaçados, o que os levava a perigosas intumescências e lubrificações, e isso ativava o aborto, que por sua vez alimentava o satanismo. E o maxixe, a dança favorita dos hereges dos anos 1920, consistia de um entrelaçamento tão radical de pernas que até as tíbias e os joanetes tinham ereções, e isso, claro, ativava o aborto, que por sua vez alimentava o satanismo.

No flamenco, tradicional dança espanhola, as mulheres sapateiam em cima das mesas, chutando canecas e mostrando as coxas, enquanto os homens tocam alucinadamente castanholas, o que ativa o aborto, que por sua vez alimenta o satanismo. E o chá-chá-chá, dança cubana introduzida em 1960 por Fidel Castro no Brasil, seduziu uma menina chamada Teresinha. Todo dia ela dançava o chá-chá-chá, e isso a levou ao aborto, que por sua vez alimentou seu satanismo.

Ninguém está a salvo. As marchas militares, executadas em quartéis do Exército por orquestras 99% masculinas (raras mulheres tocam bumbos ou tubas), ativam sabonetes escorregadios no banho coletivo dos soldados depois da parada, o que pode não ativar o aborto, mas sem dúvida alimenta o satanismo.

Imagino que Dante Mantovani também desaprove o golden shower.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.