Ruy Castro: Três dias de incorreção

O Carnaval tem suas leis. Convém não contrariá-las.
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

O Carnaval tem suas leis. Convém não contrariá-las

Se o politicamente correto acha que vai se impor no Carnaval, proibindo fantasias de índio, piranha, freira, homem vestido de mulher e chinês com coronavírus, arrisca-se a levar a maior goleada de sua história. Ninguém até hoje conseguiu regular o Carnaval. Pelo menos, o Carnaval carioca.

O entrudo, por exemplo —o costume de esguichar água com limão e outros líquidos nos passantes—, foi proibido pelo menos sete vezes pelas autoridades do Rio, em 1604, 1605, 1680, 1691, 1734, 1808 e 1810. E só saiu de moda, em fins do século 19, porque os foliões descobriram coisa melhor. A birra com o entrudo era até justificável. As pessoas levavam baldes de água ao passar sob uma varanda e, como o banho ainda não era um hábito dos mais arraigados, podiam se constipar. Uma vítima do entrudo foi o pai da arquitetura no Brasil, o francês Grandjean de Montigny, no Rio desde 1816 e morto de uma “molhança” em 1850.

Outra tentativa da administração colonial foi a de proibir máscaras e capuzes, pela possibilidade de eles encobrirem malfeitores —o que era verdade. Podiam encobrir também justiceiros, como os que, em 1711, assassinaram na prisão o corsário Jean-François Duclerc, comandante das tropas francesas na frustrada invasão do Rio no ano anterior, e, em 1720, na rua, o ouvidor Martinho Vieira, odiado pela população. Pois nem assim as máscaras deixaram de ser usadas, a ponto de, em 1834, já serem vendidas nas lojas da rua do Ouvidor e anunciadas pelos jornais.

E, por duas vezes, o governo decretou o adiamento do Carnaval: em 1892, por causa de um surto de febre amarela, e em 1912, pela morte do Barão do Rio Branco às vésperas do tríduo. Nos dois casos, o carioca se impôs: brincou normalmente o Carnaval em fevereiro e, meses depois, brincou-o de novo, na data ordenada pelo governo. Nunca mais o poder se meteu com o Carnaval.

O Carnaval tem suas leis. Convém não contrariá-las.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

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