Rosângela Bittar

Rosângela Bittar: Agora um voto, depois o outro

Nascerá, nas municipais, a temperatura da campanha federal de 2022

O País está a 80 dias das eleições municipais e a dois anos da eleição presidencial. E como eleição não é fetiche mas a única forma de acesso ao poder, não dá para resmungar dúvidas e dificuldades, a única saída é encará-las. Por mais que os eleitos na fornada de 2018 tenham decepcionado e deixado uma aura de desânimo no eleitorado, não se deve fugir do desafio. A excepcionalidade deste ano faz valer a pena, a realidade se impõe com seus agravantes. Entre eles, a evidência de que o pleito favorecerá reeleições, a começar pelos custos da campanha.

Quem está no cargo terá 45 dias a mais de exposição em propaganda oficial da sua administração, com dinheiro público. E um cardápio perfeito de proselitismo ilegal, incluindo as ações assistencialistas impostas pela pandemia. O financiamento próprio dos candidatos ricos é limitado, portanto seu trunfo será relativo. Outra peculiaridade:

menos de mil dos mais de cinco mil municípios têm campanha na televisão, os demais serão invadidos pelos sinais dos vizinhos. E a promessa de ampla campanha virtual exige verba considerável. Desvantagem para quem não está no cargo.

A abstenção eleitoral se acentuará pela pandemia. O adiamento da votação para 15 de novembro, porém, não teve o efeito esperado. Havia a previsão de que, em 45 dias para a frente, o País teria algum controle da doença. Expectativa frustrada. Não há sinais de que até lá será possível voltar às campanhas de rua, com aproximações, passeatas, abraços e apertos de mão. Nem se afastou, também, o risco de redução drástica do comparecimento às seções eleitorais.

Inexistem sinais de que em novembro o Brasil terá melhor diagnóstico para a covid-19, mais remédios e alguma vacina completando seu ciclo de testes. Ou que arrefeçam os riscos de contaminação. Os idosos reduzirão sua presença, seja por iniciativa própria ou por conselho dos parentes. Uma situação que afeta, bastante, a disputa em alguns municípios, caso de São Paulo, onde o eleitorado mais velho decide a disputa. A multa para quem não comparecer é irrisória, R$ 3,50. E mesmo assim, devido à pandemia, o Congresso deverá providenciar ampla anistia. Será suficiente o número de mesários dispostos a passar 12 horas expostos ao risco da contaminação frente a frente? Haja álcool em gel para 150 milhões de eleitores. O tempo da votação se prolongará, pelo uso do sistema antigo de identificação.

Os pequenos e médios municípios ainda devem apresentar alguma discussão sobre os problemas locais, especialmente da educação, da saúde, da segurança, como sempre ocorreu. Mas há o risco de a campanha municipal ser invadida pela indignação nacional que a epidemia causou.

Os temas federais, porém, estarão com certeza nas campanhas das grandes cidades: a recessão, o desemprego, a criação do novo imposto-Bolsonaro, o desprezo do presidente às mortes e à doença dos brasileiros, o obscurantismo do governo na ciência e nas artes, especialmente. Um arsenal temático que, em princípio, deve prevalecer no debate, pelo menos onde houver segundo turno. Apenas 100 dos 5550 municípios brasileiros.

Entre as incertezas que ainda cercam a eleição municipal estão suas conexões com a eleição presidencial de 2022.

O candidato a prefeito que perder a disputa, mas for bem votado, passará a ser candidato a deputado estadual ou federal, e estará, fatalmente, conforme o costume, com a cabeça na próxima disputa, a presidencial. Que tende a valorizar todo e qualquer apoio.

O mesmo ocorrerá com os vereadores, inclusive os eleitos, dispensados de deixar o mandato se desejarem dar um passo à frente. São todos importantes, mesmo perdendo. O que é uma provocação também para aos atuais deputados federais e estaduais, que terão concorrentes qualificados. Nascerá, nas municipais, a temperatura da campanha federal de 22.


Rosângela Bittar: O artilheiro e seu canhão

Com um profissional no papel de formulador da tática, Bolsonaro foi cuidar dos disparos de canhão

O primeiro sinal para o início do espetáculo da sucessão soou como um alarme. E os adversários de Jair Bolsonaro na disputa à Presidência acordaram, embora tarde. Luciano Huck, que já teria decidido disputar, permanece indiferente ao tempo e não se anuncia. O que não lhe tira a vantagem de ser o candidato mais perto do povo, mas aprofunda sua desvantagem de distanciamento do mundo político. Desperdiça a campanha municipal como palanque ideal para uma aproximação necessária da máquina indispensável à disputa eleitoral.

Empenhado em tirar efeito das providências do Estado no combate à pandemia, João Doria está em situação oposta. Candidato mais próximo da máquina política, está sem condições, no momento, de mergulhar no burburinho municipal e misturar-se ao povo.

Ciro Gomes, sem mandato ou cargo que fixe sua imagem, e desgastado pela memória de embates anteriores, parece não ter um plano de recomeço. Talvez ainda intimidado pelo jogo petista que já voltou às mesas de bar: Lula poderá ser candidato? Fernando Haddad terá fôlego?

Sobre Sérgio Moro o que ressalta é a falta de iniciativa para transpor o paredão artificialmente erguido para que sua candidatura se viabilize. Falta-lhe de um tudo e, como para os demais, o tempo de construção é agora.

Um novelo que precisa ser urgentemente desfeito sob pena de a reeleição de Bolsonaro se consolidar muito cedo. O candidato no futuro que está no cargo presente pode abusar da oferta de benesses ao eleitorado e aos cabos eleitorais. Se acrescentar a estas vantagens a de não ter adversário, quando se sabe que terá, apenas adia-se a brecha da fraqueza.

Fortes candidatos a deputado federal, fundamentais na campanha presidencial, devem sair do quadro de perdedores das eleições municipais. O projeto em que vão se engajar precisa estar claro, no dia seguinte. Enquanto Bolsonaro for o único palanque presidencial na campanha municipal, sua vitória é presente de mão beijada.

Política é isto, correr atrás. Sem ritual, dispensando apresentação e até o próprio anúncio de sua nomeação, o experiente Ricardo Barros assumiu a liderança do governo com apenas um aviso aos navegantes. Mas é como se tivesse dito o que todos ouviram: “Coube-me, como professor, formar a aliança majoritária; basta me dizerem, no momento certo, para quê”. Com um profissional no papel de formulador da tática e da estratégia, retaguarda coberta, Bolsonaro foi cuidar dos disparos de canhão.

Colocou nas ruas uma campanha na clássica tradição brasileira. Para os pobres, demagogia. Dinheiro na veia da especulação, para os ricos. Daí, a questão. Até quando o assistencialismo continuará decidindo as eleições no Brasil? País, o nosso, que se projeta na fusão de imagens políticas da Venezuela, da Bolívia e da Argentina, para consolidar o pobre retrato eleitoral da maltratada SudAmerica.

O sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso prevê que assim será enquanto a desigualdade se mantiver brutal. E a indiferença da classe dominante recrudescer, por interesse eleitoral ou inação. “Ela (a classe dominante) não se abala.”

Não está fechado o espaço para um projeto alternativo ao assistencialismo, mas, como se sabe, não há partidos interessados em apresentá-lo. Não é impossível, também, que alguém, individualmente, vocalize um caminho novo, como admite o ex-presidente. “Mas é preciso que o povo acredite.”

A opinião pública sente-se traída. Bolsonaro conseguiu fazer crer que romperia com a era PT. Na primeira oportunidade, assumiu métodos e medidas que combatia.

Há, sim, uma expectativa de que ainda aparecerá alguém capaz de provar que a era Bolsonaro precisa ser encerrada. Se não, e a economia não atrapalhar, o populismo demagógico, mais uma vez, vestirá a faixa.


Rosângela Bittar: O errado perfeito

A grande aliança que solucionaria os problemas de Bolsonaro voou pelos ares

O DEM e o MDB eram a alma dupla do Centrão. Davam consistência, história, peso político, acesso ao empresariado e à sociedade, ao paquiderme dominante do espaço parlamentar, agora imbuído de uma nova missão, a de salvar Jair Bolsonaro. No entanto, estavam em baixa. Ao declararem independência do governo e se retirarem do bloco, na última segunda-feira, os dois partidos viraram o jogo e passaram a liderar novamente o processo.

Golpearam, ao mesmo tempo, o projeto do presidente Jair Bolsonaro de usar o grupo como principal braço da sua articulação política no Congresso. E derrubaram o arranjo do escolhido para representar o governo nas negociações, o líder Arthur Lira, que esperava ser premiado com a sucessão à presidência da Câmara, sem esforço.

Sucessão esta que também ficou incerta porque volta a colocar na disputa, com presença notável, o candidato que o presidente da Câmara vier a escolher para suceder-lhe. Não se sabe quem, nem quando será. Por experiência da sua própria eleição, Rodrigo Maia não tem pressa. Quando recebeu o apoio do DEM, seu próprio partido, já era véspera da disputa, e, quando o aliado PSDB se manifestou, já era a manhã do dia D.

Ao se enfraquecer com a saída dos dois principais partidos, o Centrão enfraquece o governo, que nunca acertou na articulação política. O presidente demorou a se decidir pela aliança e, quando o fez, depositou suas esperanças de sustentação em um homem só. A busca de atalhos, na negociação política, nem sempre dá certo.

Sua estratégia ficou clara: queria ganhar, sim, mas não bastava. Maia precisava perder. Uma rusga que atravessou o ano e ancorou na pandemia.

Errou também o presidente por desconhecimento das regras da articulação, dos princípios e dos ritos na relação entre os Poderes e entre estes e as unidades da Federação.

Numa conferência recente sobre a intrincada conjuntura política do País o ex-ministro e ex-presidente da Câmara Aldo Rebelo fez uma paródia do jargão para cunhar outra expressão que define este tipo de confluência de desastres em uma mesma situação: “o errado perfeito”. Do manual do erro, Bolsonaro não deixou nada de fora, cumpriu todos. Tanto que, com um piparote, a grande aliança que solucionaria seus problemas voou pelos ares.

A primeira lição que o presidente deveria aprender com o revés é que a articulação política exige ciência, por mais que a palavra atinja seus brios. Não se coordena a relação do Poder Executivo com o Poder Legislativo apenas com um general afável, competente relações públicas, e alguns líderes neófitos e inexperientes membros do baixo clero parlamentar.

Os exemplos de fracassos e sucessos de governos anteriores ensinam também a quem quer aprender. Não é necessário ao governo ter um Luiz Carlos Santos que, segundo a lenda, dava nó em fumaça. Muitos depois dele, e sem a sua experiência e habilidade, saíram-se bem.

Uma segunda lição é que para se ter uma boa articulação política é preciso ter, primeiro, uma política. Representada em um projeto de governo a que se possa aderir, em torno do qual estabelecer negociação e dividir tarefas de execução. Sem isto não dá para fazer nada, a não ser acertos aleatórios e pontuais, geralmente descumpridos de parte a parte.

O articulador precisa contar com a total confiança do presidente e inspirar confiança e respeito dos seus interlocutores. Voz de comando não funciona: articulação política não é uma guerra nem uma campanha eleitoral. Ah, importante: tem de reconhecer a importância e respeitar a oposição.

Em um governo forte, com base no Congresso, plano de trabalho, unidade dos ministros, a articulação flui. Mas se é um governo desorientado, como o de Jair Bolsonaro, com um presidente que não tem autoridade além da conferida pelo cargo, assiste-se a uma derrota atrás da outra.


Rosângela Bittar: Vingança contra a vida

Não há notícia de correção de rumo do governo Bolsonaro no combate à letal pandemia

Para que não restem dúvidas: já se passaram 48 horas que soou o alarme sobre a calamidade da gestão do governo de Jair Bolsonaro no combate à letal pandemia e não há notícia sobre correção de rumo. Ao contrário, a reação de ontem, atribuída ao vice-presidente, ateve-se à questão militar, presa ao significado literal do termo que sintetizou as consequências do mal, não ao seu contexto.

O agente ativo do sumiço de chão, céu e mar que instabiliza os 200 milhões de brasileiros é Jair Bolsonaro. Ele renega dois aspectos fundamentais deste caso, a palavra da Ciência e a função de liderança que lhe cabe como presidente da República. Dispensa o uso da cabeça e da caneta. Na sua torre de comando o imenso vazio dá espaço para pendurar uma rede.

A dimensão da insegurança generalizada, em que os brasileiros acordam pensando se finalmente o número de mortes baixou e vão dormir sem vislumbrar o fim da agonia, o jurista Gilmar Mendes (STF) e o general Eduardo Pazuello (Saúde) são também vítimas. Só que um deles gritou primeiro e pelo lado correto: Bolsonaro é a caricatura, não tem mais jeito. Já o Exército, não.

Aliás, o general Luiz Eduardo Ramos representava ainda o Exército quando foi para a praça dar apoio tácito a extremistas que exigiam o fechamento do Supremo. Estão quites.

Em lugar de abespinhar-se com a crítica à conivência com o extermínio que a covid-19 vem operando, as autoridades militares, se não têm poder para convencer o presidente a fazer o certo, deveriam podar sua ligação com o errado. Reagindo como reagiram, passaram o recibo da conta que Bolsonaro lhes quis aplicar. Inclusive escudando-se no princípio de que interino no comando de uma escrivaninha de gabinete não pode ser acusado de nada. Todo o governo é sócio da chacota que atinge o Brasil em escala mundial. Os militares mais ainda porque aparelharam o ministério da vida.

Ao criar uma nebulosa interinidade para o Exército, Bolsonaro esconde-se, escarnece da população e do emprego adequado da força. O que diriam os comandantes militares se o Brasil estivesse em guerra e o presidente da República entregasse o Ministério da Defesa a um padre? Ainda que declarando-o interino, álibi para que a Igreja pudesse eximir-se de eventual mau resultado?

A leitura da alma presidencial permite a conclusão de que Bolsonaro conduz seu governo como um interminável processo de vingança. No caso do momento, contra os médicos, cientistas e políticos que não transigiram com prescrições charlatãs.

A demissão de dois ministros que conheciam a natureza do problema não implicou razão ideológica. Foi vingança da condição de homens da ciência que o contestavam. Insuspeitos, um é do DEM, outro, seu colaborador do programa de saúde da plataforma de candidato.

Nem Bolsonaro pode queixar-se de exagero nos ataques sofridos. Quem já subiu à tribuna da Câmara Federal para pedir o fuzilamento de um presidente da República, superou o máximo da virulência de um orador político.

O presidente insiste no seu torcido conceito de autoridade, como se o mandato presidencial não tivesse limites e o destino da Nação não fosse partilhado pelos demais poderes. Como se dissesse à sociedade para engolir o general, os coronéis, os capitães, que não entendem de saúde mas obedecem cegamente às suas desautorizadas prescrições e, ainda agora, o protegem da inconsequência assumindo seu lugar no alvo.

Aproveita também para vingar-se do Supremo por tê-lo afrontado ao reconhecer, a Estados e Municípios, a atribuição de definir medidas do isolamento social que ele se recusava a fazer.

Neste ritmo, Bolsonaro traveste-se de Pôncio Pilatos e lava as mãos do seu papel de liderar o país diante da pandemia. O episódio é um perigoso desvio de atenção da questão essencial da dor em que se concentra a população neste momento.


Rosângela Bittar: O teste da mudança

Muitos não creem na transformação de Jair Bolsonaro ocorrida nos últimos dezessete dias, coincidindo com o desvio que precisou fazer de dois alçapões armados no seu caminho: a prisão de Fabrício Queiroz e a busca, apreensão e quebra de sigilo de deputados amigos. Notou o presidente que o cerco era para valer e não estava adiantando gritar, ameaçar e intimidar. Era preciso calar para ganhar tempo, armar-se para resistir.

O silêncio se fez acompanhar de ações presidenciais típicas, como inaugurações, visitas a Estados atingidos por calamidades, comando sóbrio de reunião do conselho de ministros. A suspeita de que possa ser blefe, contudo, existe. Em pessoas com a sua idade e história política é mais seguro avaliar o que permanece. Por isso a pertinência do teste sobre o que mudou.

Na postura com relação à política interna, tanto a permanência quanto a mudança são mais visíveis. O canhestro solo de acordeão da Ave Maria, como fundo musical para a primeira manifestação de pesar, em seis meses, pelas milhares de mortes da pandemia, dispensa definições.

Como não se vê comportamento racional, também, na integração, em pleno isolamento social, ao piquenique da data nacional dos Estados Unidos. Buscar o Centrão, oferecer cargos, dirigir esforços políticos à remontagem das relações com os poderes é mudança perceptível mesmo que seja só para evitar o impedimento.

Na política externa, porém, em que as transformações precisam ser percebidas por estrangeiros, sociedades de diferentes culturas, investidores mais bem cacifados do mundo, a terra é arrasada. Por isto mesmo está aí o teste de fogo das metamorfoses do presidente. Para demonstrá-las teria de cumprir uma série de tarefas.

Restabelecer a relação com a China, por exemplo, prioridade absoluta. Cassar o discurso gratuitamente agressivo, tarefa imediata. Os ataques não são inócuos: se a China levar a bom termo a procura de outro fornecedor de soja de nada adiantarão os esforços da ministra da Agricultura e o choro do agronegócio, que não suportará calado a debacle.

Urge, também, abandonar a insistência na relação exclusiva com os Estados Unidos e voltar a ter a confiança de todos os parceiros com quem o País sempre se relacionou. Para manter aquela histórica amizade não é preciso adular ou rebaixar-se. Mimetizar, pior ainda, é tosco.

Ganhar condições de voltar a falar com a Europa, mesmo que o acordo com o Mercosul fique no telhado até o fim deste mandato, é necessário fazer, primeiro, uma medida elementar: demitir o ministro do Meio Ambiente. Em seguida, adotar uma política efetiva de combate ao desmatamento e aos incêndios amazônicos. Só depois tratar do protecionismo econômico que, certamente, aumentará seu peso nas negociações comerciais do pós-pandemia.

Com o Oriente Médio, tudo começa na desistência de transferir a embaixada em Israel para Jerusalém. Com a América do Sul, estabelecer uma relação normal com o novo governo da Argentina e voltar a ter um canal direto com a Venezuela. Hoje, toda informação que o Brasil tem de Caracas é de segunda mão, um vexame.

Os votos na ONU, no que se refere aos direitos humanos e à proteção das minorias e vulneráveis, precisam de correção radical de rumo. Bem como o restabelecimento das relações multilaterais e as bilaterais com os países parceiros desde sempre. Sem poder econômico, militar e tecnológico, o País praticava intensamente o exercício do “soft power”, diplomacia dizimada pelo governo do presidente que isolou o Brasil do mundo.

O teste de mudança teria de apresentar resultados antes da eleição presidencial americana. Se Donald Trump vencer, Bolsonaro não deixará de ter como amigo pessoal o presidente dos Estados Unidos; se, ao contrário, vencer Joe Biden, é o Brasil que se dará melhor ao livrar-se do mau modelo, ficando livre para construir uma nova política externa.


Rosângela Bittar: Insinceridade geral

A fábula de como se faz um governo aleatório encontrou a simbologia máxima

Com toda a ambiguidade que imprime às suas manifestações, o presidente Jair Bolsonaro não conseguiu disfarçar, já na segunda-feira, o desfecho que só viria ontem: o convidado e nomeado estava dispensado da posse. Na nota com que se despediu do seu terceiro ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, depois de uma reunião improvável em que teria tido paciência para ouvir detalhes técnicos da estrutura curricular da pós-graduação, os elogios feitos pelo presidente se destinavam a consolar a si mesmo, por tê-lo escolhido, e a eximir de culpa os militares, por tê-lo indicado.

Motivação igual teve para dar-lhe a tribuna de 24 horas em que ainda contaria com audiência para se explicar. O que, convenhamos, foi atitude mais elegante do que a da Fundação Getúlio Vargas, que o renegou muitas vezes depois de prestar-lhe homenagens anos a fio pelos cursos que promoveu na instituição. Constatou-se que a FGV foi mais relapsa que a Abin.

Para ser ministro da Educação não é necessário ter doutorado. Mas é preciso ter decência. Este caso não deu para desentortar, como já se fez com tantos outros, inclusive nesta gestão, mas pode ainda inspirar o pensamento sobre o processo e o método de formação do governo Bolsonaro.

A fábula de como se faz um governo aleatório, sem critério e sem identidade, encontrou a simbologia máxima. Convite feito e aceito, ganhou a desculpa da urgência pelo rumo imediato exigido pela área em causa, a começar pela sua atividade mais elementar, o funcionamento das atividades em sala de aula. Nenhum filtro, nenhuma informação ou análise mais profunda sobre alguém que havia ingressado na história do Brasil há apenas cinco dias, levando na bagagem de chegada uma bomba de detonar a partida.

Saudado como técnico e gestor, Decotelli tinha um currículo composto por falsos brilhantes que, na insinceridade geral dos dois ambientes, o acadêmico e o do governo Bolsonaro, abalou as estruturas. Mestrado com tese de trechos copiados sem a citação do autor; doutorado contestado pela banca de Rosário; pós-doutorado, conhecido como posdoc no meio científico, inexistente em universidade alemã. O nomeado retocou a maquiagem, mas não ficou bem para a posse.

Enfeitar o currículo com estas lantejoulas é um clássico nacional. O pós- doutorado pode ser só um atraente turismo científico e, em muitos currículos, não passa disto. Em outros, é uma espécie de emprego temporário para doutores até aparecer coisa melhor. No conjunto desta obra, porém, pesou muito. O mestrado e o doutorado têm significados, sobretudo para quem pretende seguir a carreira acadêmica, mas não pesam para ser gestor público.

Há outras demonstrações de competência acadêmica além dos títulos, como há demonstrações de competência específicas na gestão pública ou privada. Mário Henrique Simonsen possuía de sobra as duas condições. Não tinha nem mestrado nem doutorado e estava fazendo, às pressas, uma graduação formal numa escola qualquer do Rio quando já era um economista respeitado e constava do catálogo de Harvard como professor visitante.

Para o currículo da plataforma Lattes não bastam os créditos do curso, é preciso ter defendido e aprovado tese para receber o título. Na vida acadêmica, a maioria já fez a assepsia. Na iniciativa privada e na administração, os titulares negligenciaram as correções.

Nos governos Collor, Lula, Dilma e Bolsonaro houve escândalos de currículos falsos ainda na memória de todos. Passaram a borracha e continuaram nos cargos.

Comparado com Ricardo Vélez, o primeiro, que saiu sem entrar, e com Abraham Weintraub, o segundo, que fugiu do País, Decotelli não pode ser culpado pela desdita do governo e mais um atraso no início de um plano de recuperação do funcionamento do MEC.

Quem seleciona é que não sabe o que quer nem para onde vai.


Rosângela Bittar: Caça acuada, caçadores em vigília

Os fatores que sustentam a mudança de rumo estão em plena ebulição

Aparentemente, há fatos e indícios demais que justificam o afastamento do presidente Jair Bolsonaro. O consenso na política, porém, é de que o cenário ainda exige cautela. A caça foi avistada, está acuada, mas ainda não pode ser alcançada.

Os fatores que sustentam a mudança de rumo estão em plena ebulição. Apenas a reeleição, que Bolsonaro sempre considerou favas contadas, está fora de cogitação. Sucumbiu junto com os milhões de vítimas da covid-19 e dos desempregados por ela. Ainda há quem acredite na reabilitação do candidato nesses próximos dois anos e pouco, mas estes são raros.

Ninguém mais discute, porém, se o presidente resistirá até o fim do mandato. A dúvida é sobre como vai sair, se pela impugnação da chapa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ou pela deposição via Congresso, o impeachment. Para os dois desfechos ainda não existem as condições necessárias, em provas, perdas de apoio, enfraquecimento político.

A novidade atual é a troca de posição das probabilidades. A impugnação no TSE, que até há duas semanas era vista como a hipótese mais fácil, perdeu favoritismo. A equação se inverteu.

Duas razões se destacam para a desistência desta aposta. A cassação eleitoral padece de provas incontestáveis. Robôs espalhando notícias falsas, com formação de rede do ódio e seus efeitos decisivos na eleição, são provas “tênues” politicamente, questões áridas e técnicas, de difícil compreensão, até mesmo para os juízes da corte eleitoral.

A impugnação da chapa tornou-se menos palatável. Também, pelo longo tempo que se passou desde a eleição e a extensão da punição ao general Hamilton Mourão, vice-presidente, que não assumiria o poder. Está prevalecendo, no momento, o argumento oposto ao de um grupo da oposição que prefere esta saída exatamente para se livrar de Mourão. Mas já não é a mais realista.

Não por temor de um levante militar. Como mostrou reportagem de Tânia Monteiro, no Estadão, na segunda-feira, o chamado poder militar, representado pelos 11 comandantes que têm o controle das tropas, não tem gabinete no Palácio do Planalto. Atingir Mourão na derrubada de Bolsonaro pode ser um passo em falso e desnecessário.

Quanto ao impeachment, há muita coisa para se imaginar, mas ainda pouca coisa a ver.

A pandemia impede que os líderes e negociadores realizem reuniões. Ninguém articula deposição de presidente da República via internet. Bolsonaro está sendo favorecido justamente pela avassaladora e cruel doença que renegou, desprezou e ironizou. A pandemia da covid-19 tende a manter a política sob pressão até o fim do ano, no mínimo.

Por isto, a análise de pedidos de impeachment é considerada sem viabilidade no momento. Depois das eleições municipais, quem sabe?

A imagem do presidente dificilmente se reerguerá. Foi contaminada pelos piores símbolos do seu governo: os apoiadores presos por atos antidemocráticos, os empresários periféricos financiadores da baixaria, os advogados saídos de becos de arranjos. A tradução do governo, hoje, são as Saras, os Queiroz, os Hangs, os Wassefs.

Estão apenas no começo as investigações sobre os escândalos da “rachadinha”, do gabinete do ódio e dos atos que pedem a volta do AI5.

A equipe econômica pioneira já começou a se dissolver. Até quando o ministro da Economia resistirá?

O presidente fez um cálculo objetivo ao apostar todas as suas fichas no Centrão, alimentado pelos melhores cargos políticos, como os Ministérios das Comunicações, possivelmente o da Educação, os bem nutridos Fundos de financiamento da Educação e da Saúde.

Com este arsenal, o Centrão entra forte na campanha municipal. O que fará depois, são outros quinhentos. Se o cofre a proteger estiver vazio, enfraquecido, isolado, o grupo embarcará, como é de sua natureza, na expectativa de poder futuro.


Rosângela Bittar: A batalha mascarada

A cisão das Forças Armadas é a crise das crises entre tantas encomendadas pelo presidente

Coube a um ministro, general de Exército da ativa, ocupando o cargo civil e político mais importante desta gestão, abrir uma fresta de luz sobre algo muito grave que ferve no corpo a corpo do interior do governo. Há muito se falava de uma tensão latente pela cisão que o presidente Jair Bolsonaro tenta promover nas Forças Armadas, sem que nenhuma autoridade a admitisse abertamente.

Bolsonaro tem a ascendência constitucional sobre Exército, Marinha e Aeronáutica, e é, portanto, legalmente o comandante supremo. Porém, para fazer particularmente o que deseja deste arsenal, teria de passar por cima de algumas cabeças de bom senso que têm ascendência direta sobre as tropas. Entre seus objetivos não explicitados estaria o de manobrá-las politicamente na guerra pessoal que declarou à República.

Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, o ministro mencionado, deixou nas entrelinhas da sua já célebre entrevista à Veja, semana passada, que a cisão pode estar por trás do intenso trânsito na política dos generais e coronéis da reserva, das três Forças.

Uma excitação desproporcional para quem jura que não vai deflagrar um golpe, revelada na redação de notas, advertências e presença em atos que pregam ruptura. Sem cuidados com a imagem, associam-se aos grupelhos de fanáticos que perambulam pela Esplanada em estado de provocação permanente.

Ramos deu a senha que faltava. Disse que ex-alunos seus estão atualmente no comando de unidades do Exército. “Eles têm tropas nas mãos”, avisou. Ou seja, que fique clara sua ascendência (de Ramos e, portanto, de Bolsonaro) sobre eles (alunos) e elas (tropas). Pode-se inferir que quis, com isso, evidenciar o poder de vencer a resistência dos comandantes a atuar na política.

Não há dúvidas de que armas, munições, incentivo à guerra civil, compõem o mundo bélico construído à volta do presidente e seus filhos, bons alunos de clubes de tiro. Tanto melhor se nele puder contar com os amigos que integram as tropas (armadas) do Exército, os amigos das polícias (armadas) militares, que se somariam aos apoiadores (armados) dos acampamentos e às milícias digitais.

A cisão das Forças Armadas, embutida neste enredo, é a crise das crises entre tantas encomendadas pelo presidente neste ano e meio de governo.

O constrangimento de alguns comandantes revela-se também no seu silêncio diante de tudo que se tem dito em seu nome.

Jair Bolsonaro, desde sempre atuando no informal sindicalismo militar, conquistou a admiração dos quartéis, o voto das famílias militares, o apoio eleitoral de oficiais de patentes variadas. A hierarquia e a disciplina, porém, ainda são valores essenciais para as tropas. Um limite em que se equilibram os comandantes, mas o presidente busca estreitar cada vez mais a relação pessoal e direta.

Aposta na concessão de vantagens financeiras, é fato, uma vez sindicalista, sempre sindicalista. Mas também cultiva amizades, comparece a solenidades, testa seu poder de sedução. Não se vê como poderá desistir de seus planos.

Além da divisão nas estruturas verticais, fica cada vez mais claro o incentivo ao racha entre as três Forças. Da última tentativa concreta teve de recuar sem disfarces: a criação da aviação de asa fixa no Exército. A Aeronáutica, claro, não gostou de perder uma briga antiga numa mísera canetada.

As polícias militares, conquistadas também pelo bolso, onde a disciplina e a hierarquia são valores mais frouxos, integraram-se mais rapidamente ao projeto Bolsonaro. Muitas já lhe devem mais vassalagem do que devem aos governadores. Embora as Forças Armadas olhem com certa desconfiança o movimento do presidente em direção às polícias militares, nada podem fazer quando não podem se distrair e precisam se dedicar, integralmente, à disciplina dos seus. Certamente para não perderem de vez o controle e não terem de ouvir, de um subalterno, que é Bolsonaro que o representa.


Rosângela Bittar: O processo

Opositores ao governo já iniciaram a caminhada, mas ainda não há um líder

O desfecho das manifestações nas ruas, dos manifestos dos movimentos organizados, das reuniões privadas e debates públicos ainda não está totalmente visível. Os opositores ao lamentável governo Jair Bolsonaro já iniciaram a caminhada, mas seu horizonte ainda não tem o nome de um líder ou uma definição clara sobre o cenário político que procuram. O propósito é levar adiante um processo, organizado e consequente.

A partir de agora, estão decididos a selecionar os fatos, dia a dia, até que fiquem instaladas as condições para providências concretas. No debate do domingo, na GloboNews, em que formalizaram sua união contra o mal, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os ex-ministros Ciro Gomes e Marina Silva apontaram estágios diferentes da reação política ao escárnio do governo Jair Bolsonaro com a opinião pública dos brasileiros.

Ciro, por exemplo, fixou-se no impeachment, opção do grupo de partidos de esquerda e centro com quem tem conversado. Não agora, imediatamente, mas com previsão para agosto ou setembro. Fernando Henrique demonstrou cautela com relação a isto e seu raciocínio sobre os desdobramentos da nova frente ampla aponta em direção à travessia até as eleições de 2022.

Por sinal, o impeachment nunca foi a primeira opção do ex-presidente. Na deposição do ex-presidente Fernando Collor, FHC dizia que “impedimento é bomba atômica, existe para não ser usada”. Uma semana depois desta caracterização extrema, estava ele, pessoalmente, colhendo a assinatura de Marcelo Lavenère, então presidente da OAB, à petição. Entre a frase e a ação o impeachment se impusera.

No caso atual, o ex-presidente ainda se guia pela fase inicial, a prudência. É preciso observar como, nesses próximos dois a três meses, os fatores das crises produzidas e alimentadas por Bolsonaro se refletirão sobre o destino do governo.

Podem surgir elementos que acelerem o processo de impedimento ou que retardem a saída para a disputa eleitoral. Por exemplo: o inquérito das fake news vai evidenciar a participação de algum filho nas atividades do gabinete do ódio? Algum dos processos que restaram no TSE poderia afastar a chapa Bolsonaro-Mourão? O inquérito da interferência do presidente na ação da Polícia Federal comprovará as suspeitas de ligação do seu grupo político com milicianos?

São questões a terem respostas nos próximos meses. Definirão a ação da frente de oposição.

As eleições municipais que ocorrerão neste meio tempo não são obrigatoriamente pontes para um grande consenso, mas podem funcionar como mata-burro.

Muito há para ser definido. No diálogo das forças que agora se unem contra o esfacelamento político, econômico, humano e ético do Brasil, não apareceram nomes de líderes que poderão galvanizar essas forças políticas. É o que mais se procura, hoje. Os nomes. O nome.

É preciso, antes, avaliar convergências, incompatibilidades, esquemas que podem sustentar a mudança. O que colocar no lugar? Que partidos vão se aliar para formar uma chapa? Quem com quem, em torno do quê? São questões urgentes na agenda deste período que se segue ao primeiro passo, o da união.

O fato político que servirá de denominador comum ainda não amadureceu, mas a iniciativa de aliança já foi suficiente para evidenciar que Jair Bolsonaro está absolutamente isolado. O Centrão, grupo parlamentar que divide o governo Bolsonaro com os militares, tem votos para evitar o impeachment, mas não tem consistência para garantir estabilidade política que o presidente precisa. Os partidos tradicionais, de centro e centro-esquerda, que poderiam assumir o papel, são dominados pelos líderes ora em oposição. E não poderá contar com os arranjos espontâneos do eleitorado de 2018.


Rosângela Bittar: Entre chiquês e glacês

Integrantes do Centrão podem bandear-se para o inimigo antes que o galo cante três vezes

Sai o impeachment, temporariamente retirado das hipóteses de trabalho da oposição (PSDB, MDB, DEM), entra a denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro, medida que, antes de chegar ao Congresso, ganha arrazoado no Supremo Tribunal Federal.

A aposta de solução para içar o País da crise, agora, é judicial. Informado, o governo intensifica a articulação de defesa, cuja operação mais radical, que abalou instituições como a Polícia Federal e o Ministério da Justiça, foi a investida sobre o controle dos inquéritos e relatórios policiais.

Diante disso, a oposição reage, apressando-se em definir sua forma de atuação.

Os processos que se seguiram às denúncias do procurador-geral da República contra o ex-presidente Michel Temer, todos derrubados pelo Congresso, são os modelos na expectativa de governo e oposição.

Esta é a principal inspiração na mudança do pensamento do presidente quanto às alianças políticas. O caminho das pedras é a conquista do Centrão, grupo de partidos que fazem as votações do Legislativo penderem para o norte ou para o sul, sem explicações.

Cerca de 70 votos, se tanto, é a avaliação da atual bancada de Bolsonaro na Câmara, como demonstrou recente votação do interesse dos Estados e municípios. A oposição formal ou eventual, contando com os partidos que há décadas dominam de fato o jogo no Parlamento, somados a alguns da esquerda, poderá chegar a pouco mais de 100. Ficariam os demais, em torno de 200 das duas Casas, sob a liderança do Centrão. Que não é um só, são muitos.

Dividem-se os parlamentares centristas em muitas alas. O forte eixo Nordeste é liderado por Ciro Nogueira (PI), Arthur Lira (AL) e Aguinaldo Ribeiro (PB), e a sigla dominante é o PP. Embora o alagoano Lira seja atualmente o mais citado por estar em campanha para a sucessão de Rodrigo Maia, é Ciro Nogueira quem organiza o movimento e orienta o carnaval.

Há o “Centrão Chic”, do paulista Gilberto Kassab (PSD), que fala pouco e opera muito. Tanto que, embora formalmente aliado do governador João Doria, negocia com o presidente Jair Bolsonaro. Está caracterizado até mesmo um “Centrão Glacê”, ala que contribui com nuances da esquerda, na qual se situa, por exemplo, o deputado Orlando Silva (PCdoB). Sem aceitar cargos no governo, os parlamentares deste grupo evitam o isolamento, articulando-se com os mais numerosos para fazer política no Congresso.

O ex-deputado Valdemar Costa Neto (PR-SP) foi, durante muito tempo, uma espécie de logotipo do Centrão. Ainda controla seu partido com firmeza e tem fama de cumpridor de acordos. O PRB, “Centrão dos Bispos”, saiu um pouco da cena depois do revés do grupo na CPI dos Sanguessugas, mas se recuperou com Bolsonaro.

Já o DEM, agora um caso à parte, é o “Centrão Sofisticado”. Criou uma boa imagem e persegue a posição que já teve um dia, de legenda com um projeto político próprio.

Os motivos do governo para obter o apoio do Centrão, todos sabem: criar um lastro de apoio no Congresso para, em alguns momentos, aprovar projetos do seu interesse. Em outros, como agora, evitar a queda.

E o Centrão? Oferecer aos seus membros meios de sobrevivência. Um lema-síntese, colecionado por político criativo para fugir ao clichê, revive um refrão do cancioneiro do cangaço: “o Centrão é ‘tu me ensina a fazer renda que te ensino a namorar’”.

O governo se obriga a entregar a mercadoria negociada. Por exemplo, o Centrão sempre está de olho em duas casas bancárias da Esplanada dos Ministérios, a Funasa, na Saúde, e o FNDE, na Educação.

Não existe a hipótese de enganar o Centrão. Diante dos dribles, seus elementos de significativa base parlamentar podem bandear-se para o inimigo antes que o galo cante três vezes.


Rosângela Bittar: Só Freud explica

A cada dia, uma nova insanidade do presidente. E assim se passaram 16 meses

A política brasileira está confinada pela tragédia da pandemia e já não é possível desdenhar da realidade macabra. Portanto, não é política o que pratica o presidente Jair Bolsonaro no segundo ano do seu mandato. Por mais que deboche da vida e invente movimentos para esconder sua incapacidade de liderar e enfrentar os problemas, o placar das mortes e de contaminados não permite distrações.

Espera-se sempre pela próxima atração presidencial que só não é circense porque o circo se dá ao respeito. Uma performance vai superando a outra. Já se sabe que recuará se o seu teatro do absurdo extrapolar a medida. No dia seguinte, nova insanidade. E assim se passaram 16 meses.

O presidente Jair Bolsonaro em manifestação contra o Congresso e a favor de intervenção militar em frente ao Quartel General do Exército no último domingo. Foto: Gabriela Biló/Estadão
De novo: não é política isto que se pratica, hoje, no Brasil, a partir do desempenho do presidente da República.

A negação da existência da pandemia que acha estar enxotando com seu megafone; a insistente, insolente e impune agressão aos poderes Legislativo e Judiciário; a tentativa de aliciar o Centrão na figura-símbolo de Valdemar Costa Neto, para uma pouco convincente vontade tardia de fazer base parlamentar de apoio; o recurso à velha política, condenada no palanque, se lhe serve melhor na ocasião; a escolha, a cada dia, de um inimigo forjado por temores paranoicos; o corte radical das cabeças que lhe devem o contrato, como os ministros Gustavo Bebianno, Santos Cruz, Luiz Henrique Mandetta, e a campanha permanente e irritada contra quem não pode domar, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia; a retórica autoritária; o desrespeito à condição humana, mais perfeita expressão de fascismo.

Jair Bolsonaro transcendeu a política e a crônica não pode usá-la como régua para medir a extensão do atual desastre imposto ao País.

Um presidente que funciona aos espasmos. Se o espelho lhe aponta um ministro mais popular que ele, acende o alerta vermelho da traição; se a imagem refletida é de alguém em posição constitucional de interromper sua festa, muda sem pejo a rota da cruzada.

Fura o consenso do combate à pandemia, sai trôpego e de olhos vendados na contramão do mundo todo que se harmoniza para salvar a vida. Jair Bolsonaro é tão artificial que nem quando pede golpe militar dá para crer. A manifestação do último domingo, em frente ao QG do Exército, foi a mais recente provocação de um ex-capitão aos generais da ativa e da reserva que o servem. Um prazer vingativo de demonstrar poder sobre eles.

Se passar a pandemia e Bolsonaro se mantiver vivo e no poder, o Brasil que se prepare para uma página em branco. Um grande vazio, pois ele mostra, hoje, que não faz ideia do que fará, depois. O liberalismo econômico, sustentado em reformas estruturantes, vedete de suas intenções, desmanchou-se no ar em 40 dias.

Muitos intelectuais estão expondo sua perplexidade em estudos que tentam traduzir o impacto da pandemia sobre a humanidade. O ex-deputado, professor e sociólogo Paulo Delgado, em um ensaio por enquanto definido como “psicohistória presidencial”, sobre os nove presidentes que conheceu, desde Tancredo Neves, não foge à conjuntura político-sanitária ao tratar de Jair Bolsonaro.

“Vasculhar o inconsciente ajuda a entender por que ele se identifica tanto com este vírus, a ponto de ter necessidade sádica de ridicularizá-lo, insultá-lo, desafiá-lo.”

Invocando Freud, Delgado lembra que o presidente “coloca libido” nestas manifestações públicas de que participa, provocando “aglomeração, contato, contágio”. Diz, ao argumentar sobre esta hipótese: é “um comportamento psicossocial repetitivo, estimulado pelo prazer contínuo de transgredir”.

Um irônico enquadramento da ação presidencial no ambiente psicanalítico, que “só Freud explica”. Enfatiza a hiperexcitação do presidente brasileiro que poderá, conclui ele, conduzir o País a uma “derrota” de Pirro, uma espécie de fracasso altamente dispendioso. Bem além da competência da política.


Rosângela Bittar: Fingindo de vivos

Bolsonaro e PT jogam para daqui a 3 anos sem saber o que acontecerá daqui a 3 horas

O PT, em plena pandemia, fez seu primeiro e inovador lance cibernético. Discretos, Lula e seus 111 companheiros do diretório nacional, por 12 horas, na véspera da Sexta-Feira da Paixão, ouviram e falaram com objetividade e disciplina.

Os ex-presidentes Lula e Dilma discursaram; o ex-candidato Fernando Haddad sintonizou-se; os governadores do Piauí, da Bahia e do Rio Grande do Norte transmitiram o consenso das gestões estaduais; prefeitos de Araraquara (SP) e São Leopoldo (RS) representaram os municípios; líderes na Câmara e no Senado, em nome das bancadas, contaram o estado da arte oposicionista no Congresso. Sempre dados ao excesso, foram concisos e disciplinados.

A reunião virtual do comando petista foi um sucesso surpreendente. Inovadora na forma, não se pode dizer o mesmo do conteúdo. Embora tenha mostrado um PT mais unido, ainda enraizado, bem articulado, a tese do renascimento apareceu ainda vestida por ranço antigo.

O que o PT vinha refletindo era sobre a urgência de abrir mão do protagonismo em nome da ampliação da aliança à esquerda e ao centro. O que decidiu foi reeleger como adversário o presidente Jair Bolsonaro, contrapondo-se a ele, para evitar o crescimento do centro na lacuna deixada pelo partido por tanto tempo.

Jair Bolsonaro, em plena pandemia e permanente campanha à reeleição, age, por sua vez, para transformar o PT em seu adversário eleitoral, e o faz combatendo os que podem abrir um caminho alternativo. Demonstram, com isso, inegável crescimento político do centro durante a pandemia.

Maiores ficaram os governadores, os prefeitos, os comandos da Câmara e do Senado, Judiciário, empresariado, organizações sociais, cientistas, médicos, universidades, organismos internacionais.

É contra esses inimigos que Bolsonaro sai por aí desdenhando da morte, brandindo sua espada, em comício a cada esquina, para um vírus invisível. Na mais histriônica encenação com a fantasia de médico, travestido às vezes de cientista, a profissão que abomina, o presidente da República escarnece da população aterrorizada.

É um vale-tudo. Faz a apologia de uma garrafada de feira – a cloroquina para o coronavírus, hoje, ainda é apenas isso –, toma quem acredita. Quem não acredita toma também, o que não tem remédio, remediado está. Mas sob controle e orientação abalizados. Que a inteligência proteja os que não podem tomá-la por seus efeitos colaterais, principalmente os arrítmicos, enquanto não chegam as conclusões das pesquisas.

Não foi Bolsonaro que a inventou, a droga está, desde o início, nos protocolos hospitalares, em um coquetel de fármacos que inclui antibióticos, antivirais, anticoagulantes e o que mais estiver à mão como armas de combate a inimigos desconhecidos, a exemplo do que a ciência fez com a aids. Só que sob um cerco de cuidados que Bolsonaro quer eliminar. O doutor presidente, pelo que se pode compreender, recomenda o produto como vacina, antes da doença, apressando o juízo final.

Bolsonaro está apostando no marketing da propriedade eleitoral da cura. Faz parte da mesma estratégia a escandalosa e desumana campanha contra o distanciamento social, mesmo que a pretexto de salvar empregos. Não importa se, para empregar-se, o trabalhador precise estar vivo.

Se os hospitais explodirem, azar. Azar do Brasil de chegar a um ano como este, a um momento como este, a um problema como este, com um presidente como este.

Ambos, Bolsonaro e PT, recrudescem a polarização para evitar que o centro, em crescimento evidente, os atropele. Jogam para daqui a três anos sem saber o que acontecerá daqui a três horas.

Mas já é possível prever que o voto antipetista não irá mais para Bolsonaro e o voto antibolsonaro não irá, necessariamente, para o PT. O mundo está se transformando e só as carolinas não veem.