Rosângela Bittar
Rosângela Bittar: Atrás do próprio rabo
Tanto para Lula quanto para Bolsonaro, centro é uma palavra despida de conceitos
Rosângela Bittar / O Estado de S. Paulo
Dois candidatos a presidente e uma ideia fixa: a utopia do centro. Bolsonaro, que se acha predestinado a manter-se no poder, por sua conta e risco; e Lula, que se imagina garfado pela História e quer reaver o lugar.
O primeiro, só pensa em golpe. O segundo, em compensação por um golpe que não houve. Impeachment não é golpe. É processo político constitucional.
Lula acredita ter direitos adquiridos depois de vencer quatro eleições presidenciais, duas para ele mesmo e duas para um poste.
Ambos dedicam-se a reconquistar os votos do centro que, um dia, acidentalmente, foram seus. Imaginem, logo os eleitores do centro! Equidistantes dos extremos que os dois, de fato, representam. Há um impasse a romper. Sozinhos, não vencem. E os votos do centro mantêm-se ainda perplexos. Preferem a alternativa de esperar que surja o seu candidato confiável.
Bolsonaro e Lula, imperturbáveis, vão em frente. Não conseguem despir, em público, a condição de radicais. Ao prometer vestir o figurino da moderação, em particular, parecem andar em círculos, atrás do próprio rabo. Articulam como se montassem uma equação aritmética. Tentam engatar líderes e estruturas, esperando, assim, arrastar a maioria a seu favor. Acham-se capazes de atrair os fiéis da balança para continuar girando a roda da fortuna.
O convite de Bolsonaro ao ex-presidente Temer (MDB) para ajudá-lo a superar sua frustrada tentativa de golpe do 7 de Setembro deixou seus fanáticos à beira de um ataque de nervos. Entre incredulidade e reclamações, os radicais não entenderam o alcance da manobra. Assim como não compreendem que o eleitorado disponível nesta faixa seja indispensável para superar seus limites de 30%.
Bolsonaro os contém, enquanto reforça sua parceria com o Centrão, designação pejorativa de parte do centro eleitoral. Deu a Casa Civil da Presidência a Ciro Nogueira e a presidência da Câmara a Arthur Lira, com o cofre ao alcance da mão. E a ordem, implícita:
Façam o que quiserem, sobretudo no Nordeste, mas tragam os seus currais.
Quanto a Lula, resolveu que já era tempo de dar uma satisfação aos enciumados petistas históricos. Menos barulhentos, não precisaram de consolos públicos. Convidados a participar, com ele, dos conchavos e decisões, vieram imediatamente. Esta semana, Lula desembarcou em Brasília, reuniu bancadas, chamou governadores. Até então, o ex-presidente conduzia uma campanha tão fechada que seus amigos o imaginavam desdenhando a disputa. Capaz até de dela desistir.
O ex-presidente estava apenas, e ainda está, integralmente ocupado em buscar o centro. Negocia com o MDB, procura o PSD, o Solidariedade, o PSDB e a quem mais possa corresponder aos seus acenos.
Lula age abertamente. Arranca declarações amigáveis do ex-presidente Fernando Henrique (PSDB) enquanto espera os dissidentes perdedores das prévias para escolha do candidato tucano. Recebe as bênçãos do ex-presidente Sarney (MDB) em encontro reservado antes do jantar, esta semana, que o reunirá com a velha guarda do partido.
Repete seu próprio roteiro de 2002. Quando, declarando-se cansado de perder as disputas anteriores (para Collor e FHC), atribuindo-as ao isolamento do PT, exigiu que se fizessem composições. Só seria candidato com alianças amplas, gerais e irrestritas. Decisão que o levou à vitória, à governabilidade, e à infeliz associação que o integrou ao elenco da Lava Jato.
Tanto para Lula quanto para Bolsonaro, centro é uma palavra despida de conceitos. Sejam geográficos, geométricos, políticos, ideológicos, sociológicos. Para eles, centro não é um ponto de convergência de ideias e programas. É simplesmente um pacote de votos que lhes faltam para vencer.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,atras-do-proprio-rabo,70003860988
Rosângela Bittar: Mil noites obscuras marcam governo Bolsonaro
Não se trata do que Bolsonaro fez ou deixou de fazer, mas do que simplesmente destruiu
Rosângela Bittar / O Estado de S. Paulo
A tentativa de se aplicar a régua dos mil dias para celebrações demonstrou o que se esperava. O governo Jair Bolsonaro nada tem a festejar. Não há fatos, inspiração relevante ou oscilação dos gráficos que não sejam lamentáveis.
Os historiadores, um dia, se ocuparão do legado de Bolsonaro, suas ações e omissões. Os brasileiros, hoje, se ocupam de sobreviver entre os escombros a que o País está sendo reduzido.
Bolsonaro provocou a deterioração de setores e atividades que até então resistiam ao pessimismo. A começar pela política externa, reduzida a improvisações circenses.
Sua visão reacionária caracteriza a política ambiental, renega os conceitos científicos da saúde, desestabiliza o sistema educacional e inibe as manifestações da cultura.
Não se trata do que fez ou deixou de fazer nestas áreas, mas do que simplesmente destruiu. As sucessivas trocas de ministros demonstraram a ausência de compromisso com ideias: foram dois das Relações Exteriores, dois do Meio Ambiente, quatro da Saúde, quatro da Educação, quatro da Cultura. Todos esquecíveis.
A recente declaração brasileira na 76.ª Assembleia-geral da ONU mostrou a incoerência e o primarismo da visão do mundo que o governo pratica. Bolsonaro não quer saber se a China é o maior parceiro comercial ou se a França exprime conquistas civilizatórias. Despreza o laboratório americano Pfizer tanto quanto achincalha os chineses do Sinovac. A desestabilização das relações internacionais repete-se em cada decisão. Com a mesma ignorância, sem considerar os interesses nacionais.
O caos em que transformou a política ambiental despertou, às vésperas da conferência da ONU sobre mudanças climáticas, em Glasgow, a reação do empresariado. Até a economia se deu conta do risco do isolacionismo e da contaminação do meio ambiente aos seus fundamentos. O governo promete um programa de desenvolvimento verde para se recuperar da imagem de destruidor, desmatador e incendiário que construiu. A conferir se ainda terá crédito.
Na Saúde, a negação da ciência acentuou o obscurantismo. Bolsonaro viveu a pandemia como quem sai a passeio. São 600 mil vidas perdidas e o presidente ironizando os que obedecem a medidas de proteção universais. Transferiu a subalternos responsabilidade de liderança que devia exercer. Agravou a doença com a charlatanice de remédios letais. Contestou as vacinas.
O presidente nem sequer imaginou a gravidade da desmontagem que promoveu no Ministério da Saúde, cortando a influência de suas equipes técnicas. Entregou a um grupo de militares, pelo maior tempo da sua milhagem, a gestão para a qual não estavam preparados. Além do amadorismo, permitiu que ali se instalasse uma rede criminosa de corrupção.
Na Educação, em que se experimentaram saudáveis propostas – no governo Fernando Henrique, com Paulo Renato, e no governo Lula, com Cristovam Buarque –, ocorreu um esvaziamento cruel. Brasileiros de todas as idades foram prejudicados na sua progressão escolar. O MEC foi reduzido a salão de treinamento dos preceitos obsoletos da indigente seita olavista, alternativa que evoluiu para o obscurantismo religioso.
A ausência do governo nas difíceis tentativas de solução para garantir a educação de todos durante a pandemia é um dos fracassos mais terríveis, com um desfecho recente inacreditável: a imposição de propaganda do governo na rede da internet que finalmente fará chegar às escolas. Professores, estudantes, famílias ficaram abandonados à própria sorte.
Na área da Cultura, deu-se a destruição moral, ética, ideológica e funcional dos órgãos culturais e a obstrução da criatividade artística. O moralismo e os sentimentos de vingança dominaram a ação dos que geriram o incentivo do governo às artes em todas as suas expressões.
Bolsonaro transformou o Brasil em um lugar inseguro para todos, notadamente para os que pensam.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,mil-noites-obscuras,70003853925
Rosângela Bittar: Promenade bolsonarista em Nova Yorque
Bolsonaro proferiu o discurso de sempre, sem alma, sem ideias, recheado de mistificações
Rosângela Bittar / O Estado de S. Paulo
O balanço dos vexames de Jair Bolsonaro na 76.ª Assembleia-Geral da ONU mostrou como um governante pode estragar uma conquista da diplomacia do seu país. O presidente levou o Brasil a perder uma grande oportunidade de se fazer ouvir. Seu negacionismo agressivo com relação à pandemia, as insistentes falsidades, as referências reacionárias à família, além dos desvios de comportamento, superaram as expectativas.
O contragosto começou na véspera, quando Bolsonaro teve de ouvir o discurso de más-vindas do prefeito de Nova York. A partir dali, enfrentou uma sucessão de reações que o obrigaram a zanzar de um lado para o outro fazendo-se de desentendido. A comitiva do governo brasileiro, sem agenda, seguiu o mestre, promovendo cenas inacreditáveis de degradação.
Almoçar uma pizza na calçada porque, ao descumprir regras sanitárias de Nova York, está proibido de entrar em restaurantes, não é uma cena natural para um presidente da República. Bolsonaro contamina o cargo com sua incivilidade e péssima educação.
O ministro Marcelo Queiroga, autor do gesto obsceno surpreendente da promenade em NY, fundiu-se à laia presidencial e confirmou o seu papel de fingidor laureado. Festejou, neste passeio, o caos que promove na política de imunização do País. Queiroga conseguiu, ali, a foto oficial de sua própria campanha eleitoral na Paraíba. Até o discreto chanceler, Carlos França, resolveu introduzir, na linguagem diplomática brasileira, a marca da família Bolsonaro: nos dedos polegar e indicador em riste, o desenho da arma que ameaça os passantes.
Que estes acontecimentos fiquem para a agenda de um psicanalista junguiano especializado em países humilhados ofendidos por seus governantes. A ver se grosseria tem cura.
A data de ontem, reservada à audiência mundial do pensamento brasileiro, foi desperdiçada. Bolsonaro proferiu o discurso de sempre, sem alma, sem ideias, recheado de mistificações. Apresentou-se, mais uma vez, como o garoto-propaganda da cloroquina, na desqualificada forma da defesa do tratamento precoce da covid-19. No item Meio Ambiente, de interesse extremo para todas as nações, pinçou dados que disfarçam sua sanha destruidora e a incompetência do governo.
Ocultando referências à carta de rendição em que desmentiu a si mesmo do que disse no palanque do 7 de Setembro, contou aos estrangeiros uma lorota sobre as multidões que levou às ruas. Nem foi a maior manifestação popular do Brasil nem aqueles seus eleitores estavam clamando por liberdade. O bolsonarismo chama de liberdade a imposição da mentira e o ataque à democracia. O desemprego e a inflação crescentes foram cinicamente manipulados como exemplos de sucesso da política econômica.
Bolsonaro não honrou sequer as citações que costuma fazer dos governos militares, imaginando-se um deles. No caso, nem sequer conhece a política externa criativa praticada pelos generais-presidentes da ditadura militar.
Do governo Ernesto Geisel, a história registra uma política externa consistente, comandada pelo chanceler Azeredo da Silveira, em cujo desfecho há resultados concretos, como o reconhecimento da China, Angola e Moçambique, além do acordo nuclear com a Alemanha.
Já do general João Figueiredo, ficou o registro de um discurso de estadista, de conteúdo doutrinário, filosófico e político. É verdade que todo orientado pelo chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, que, como o antecessor Silveirinha, integrava a elite da diplomacia brasileira respeitada mundialmente. Mas o general teve o bom senso de se curvar à sabedoria dos formuladores da política externa.
Se não sabia, o mundo percebeu, nesta terça-feira, que o Brasil é um país encurralado por seu presidente e este, um ser isolado do planeta. Como definiu o pré-candidato a presidente da República Aldo Rebelo, ele desempenha “o papel do malandro em delegacia de polícia”.
Bolsonaro está tentando explicar o inexplicável.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,promenade-em-ny,70003846845
Rosângela Bittar: Os mitos do mito Jair Bolsonaro
Legislativo e Judiciário mostraram-se mais fortes do que as ameaças do presidente
Rosângela Bittar / O Estado de S. Paulo
Ruíram os mitos que sustentavam a imagem popular de Jair Bolsonaro e que ele usava como argumento de força para ser reconhecido, desde já, presidente vitalício do Brasil. Sem passar por nova eleição.
Bolsonaro havia feito crer que, com seus poderes extraordinários de cavaleiro do apocalipse, daria voz de comando ao Judiciário, ao Legislativo, às espadas e aos fuzis. Imaginava-se, no mínimo, que o País se encaminhava para um golpe. Tal como expresso nas faixas exibidas por seus eleitores que foram às ruas para apoiá-lo: intervenção militar e novo AI-5. A senha do golpe já estava registrada, poderia até ser o insulto violento ao ministro Alexandre de Moraes (STF), que nomeou seu algoz, proferido nos microfones do palanque.
O governo jamais desfez esta impressão, dominante entre seus apoiadores, inclusive.
Antes mesmo do 7 de Setembro, esfumaçaram-se alguns desses mitos. A elite do agronegócio, por exemplo, ao defender a democracia, mostrou que o bolsonarismo radical, em seu meio, é restrito. O sistema financeiro garantiu, de papel passado, a Constituição e suas instituições democráticas. Os poderes Legislativo e Judiciário mostraram-se mais fortes do que as ameaças de destruição feitas pelo presidente da República e seus porta-vozes.
Restava a expectativa sobre de onde viria, então, o primeiro tiro, uma vez que o apoio armado a Bolsonaro não se mostrava ostensivo.
Ao descer, trêmulo, do palco do comício que fez em São Paulo, Bolsonaro mostrou que a manipulação que faria das polícias militares, do Exército Nacional, do Ministério Público e da Polícia Federal tornara-se, sem que percebesse, um sonho impossível.
O domínio discricionário das Forças Armadas, o mais temido dos mitos que cercam o poder de Bolsonaro, nem sequer foi tentado. O Exército não se afastou um milímetro do seu papel constitucional. Os generais em evidência na cúpula presidencial saíram silenciosos da refrega que promoveram na data nacional. Já pequenos, reduziram-se mais.
O País deve observar, na sequência, a descompressão forçada do presidente sobre os comandantes militares de tropa. Poderão estas forças, também, reagir com mais firmeza ao não atender a pedidos de atuação política fora de seus regulamentos, insistentemente feitos pela Presidência e pelo atual Ministério da Defesa.
O apreço dos militares por Bolsonaro permanece elevado. A ele reservam lealdade, respeito à hierarquia e disciplina. E esperam que o presidente faça o mesmo e tenha se convencido de que cumprirão com rigor suas funções, catálogo em que não está previsto o golpe.
Outro mito cuja ausência as manifestações revelaram foi o de controle total das polícias militares, sobre quem, inclusive, Bolsonaro patrocina legislação para torná-las submissas ao comando federal. Nenhuma PM descumpriu ordem de seu governador.
As manifestações apontaram ainda que a Polícia Federal são muitas e nem todas estão sob as ordens diretas de Jair Bolsonaro. Cada delegado é um poder. O presidente domina alguns deles. Não todos. Estão conduzindo inquéritos e fazendo prisões de amigos, parlamentares aliados e cúmplices. O “meu pessoal”, como Bolsonaro os define.
O Ministério Público, outro mito da aliança incondicional, nutrido no comportamento dúbio do procurador Augusto Aras, não está agindo como esperado. Até Aras, e não apenas os demais integrantes da instituição, tem contrariado os caprichos do presidente. Bolsonaro, até hoje, quase três anos de mandato, ainda não entendeu a natureza das funções presidenciais que deveria exercer.
À medida que caíram da mitologia da força irresistível de Jair Bolsonaro, estas instituições cresceram tanto quanto se fortaleceu o Supremo Tribunal Federal. Alvo principal dos tiros de Bolsonaro que, por enquanto, só têm saído pela culatra.
Rosângela Bittar: Caricatura do ditador
Bolsonaro seguirá neste rumo até a imprevisível cena final. Que não será pacífica
Rosângela Bittar / O Estado de S. Paulo
Formou-se uma multidão surpreendente para dois comícios de atração única. Eventos irregulares da campanha eleitoral permanente de um presidente decidido a manter-se no poder a qualquer custo. Bandeiras e faixas produzidas na mesma fábrica de fantasias e ilegalidades. Encontros sem espontaneidade, que passaram por uma linha de montagem cara, industrial, e de cobertura nacional.
Deu tudo certo. Com seus 58 milhões de votos de 2018 hoje reduzidos, pela rejeição, a menos de 32 milhões, ele não pode se queixar do resultado. Não há certeza, porém, que tenha sido uma renovação de confiança ou voto na reeleição.
Bolsonaro não faria essa mobilização à toa e não se deve, portanto, descartar nenhuma intenção mais ambiciosa a partir de agora.
O presidente atribuiu um protagonismo inédito ao ministro Alexandre de Moraes (STF), tentando jogar contra ele até os que, em meio às multidões, não sabiam de quem se tratava. Foi pensando em Moraes que Bolsonaro disse a frase-chave do seu discurso ao garantir que não será preso. O ministro é o condutor dos inquéritos das notícias falsas e dos atos antidemocráticos, crimes em que estão investigados seus filhos e presos amigos, cúmplices e membros do famigerado gabinete do ódio, além de empresários financiadores do esquema. O mesmo Moraes será presidente do Tribunal Superior Eleitoral quando estiver em votação a inelegibilidade. Uma das duas alternativas de desfecho legal do seu drama. A outra é o impeachment.
Diante das multidões, Bolsonaro nunca pareceu tão isolado do Brasil e do mundo. Em confronto com a maioria dos brasileiros favorável à democracia, às suas instituições e ao próprio estado de direito. Como demonstram os manifestos que estão pipocando País afora.
Os bolsoblocks, que já andavam desaparecidos, não são tantos como se esperava. Deu para perceber que, entre seus eleitores, há cidadãos normais: vacinados, racionais, que acreditam ser a Terra redonda e respeitam a ciência. Não são, como Bolsonaro, caricaturas. Existem, aceitam passagens e hospedagens para uma viagem recreativa no feriado e topam animados o papel de figurantes que representaram.
À distância, parece incapaz de ter a inteligência tática que demonstra. Acredita-se que haja alguém a guiá-lo na concepção e execução das suas insanas ações presidenciais. Será alguma liderança da direita internacional? Isto explicaria o grande número de faixas escritas em inglês para dar satisfações a alguém no exterior.
Seja o que for, Bolsonaro seguirá honrando o método que explora, no seu repertório político, três elementos: a covardia, a boa-fé do povo e a violência.
A covardia é um dos elementos típicos de seu discurso. Ele nunca assume a autoria de nada, diz sempre que age por delegação quando foi ele quem determinou tudo: o que dizer, o que pedir. É dele a voz do comando e da ordem de execução. Assim conduz tanto a milícia digital como a claque matinal diária do cercadinho da porta do Alvorada.
Outro elemento de tal método são as falsas informações que acabam ganhando credibilidade popular. A falsidade é instrumento poderoso de ação política e arma eleitoral deste grupo. Bolsonaro decidiu, inclusive, legalizá-la, por medida provisória inconstitucional, assinada anteontem, tornando-a livre de punição. É esta a liberdade de expressão por ele reclamada nos comícios. Assim, salva a própria pele e a dos propagadores de infâmias e mentiras à sua volta. Muitos brasileiros acreditam que podem virar jacaré, assim como acreditam na fraude eleitoral da urna eletrônica.
O terceiro elemento do método é a violência. Bolsonaro não tem recuo possível, seguirá neste rumo até a imprevisível cena final. Que não será pacífica. Na intenção firme de instalar-se como ditador, fez das manifestações do 7 de Setembro uma evidência do golpe que colocou em andamento.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,caricatura-do-ditador,70003834038
Rosângela Bittar: Angústia
Convém deixar que Bolsonaro se enrole na sua própria teia e consuma seu próprio veneno
Rosângela Bittar / O Estado de S. Paulo
O clima de Brasília está irrespirável. O ambiente funde o medo da morte, impregnado na nova expansão da pandemia descontrolada, com o desvario constante do homem que domina os palácios da capital. A cidade se transformou, desde o início, em campo de provas da negação da ciência, da vida e do bom senso. Um novo apocalipse.
Falsidades e mentiras são multiplicadas a cada dia da gestão Jair Bolsonaro. O presidente insiste em atacar, violentar, agredir, instituições e pessoas. Convém deixar que se enrole na sua própria teia e consuma seu próprio veneno. O que importa verdadeiramente é a sobrevivência dos cidadãos.
Pode-se listar as manobras rocambolescas de Bolsonaro:
1 - O pedido de impeachment dos ministros do Supremo não se deve a uma solidariedade fraternal ao ex-deputado preso Roberto Jefferson. Afinal, até o presidente sabe que não foi mera liberdade de expressão o que ele cometeu. A série de fotos e desaforos do ex-deputado, armado até os dentes, ameaçando autoridades, pelas redes sociais, não deixa dúvidas. Os provocadores, porém, aos ouvidos de Bolsonaro, o lembraram que, depois de Jefferson, o próximo alvo seria Carlos Bolsonaro.
2 - Ao reagir furioso ao encontro do ministro Luís Roberto Barroso com o vice-presidente Hamilton Mourão, Bolsonaro deu curso a seu traço marcante, de aplicar a tudo a teoria da conspiração. Avaliou que tal reunião se destinava a tramar sua derrubada da Presidência, deixando o poder com o vice. Foi do que se queixou, sem meias-palavras, a membros do Judiciário.
3 - A insistência com que repete que não haverá eleição no ano que vem, ameaça respaldada pelo general-ministro da Defesa, não define como e com quem dará o golpe. Um novo AI-5? Como ficariam os mandatos dos deputados e senadores? Os governadores terão seu tempo prorrogado? O Centrão, que se alimenta de eleições, concordará em extingui-las?
Com estas e muitas outras imprecisões e omissões, Bolsonaro conseguiu desviar a atenção do desastre do seu governo. Em todas as áreas, mas, em especial, na gestão da pandemia, que não acabou. Embora tenha se tornado tão incômoda aos seus planos eleitorais que o presidente nem sequer menciona mais a sua querida cloroquina.
A mobilização da sociedade está sendo insuficiente para conter as sucessivas ondas de insegurança geradas em cada palavra, gesto ou movimento do presidente.
Assim, o País precisa voltar ao que interessa, ao foco do qual o presidente quer desviar a atenção do eleitorado.
A constante morte de famosos lembra que a pandemia persiste e exige novas ações de combate. Outros países mais bem posicionados que o Brasil no enfrentamento da crise já estão retomando mecanismos extremos, como o lockdown. A pandemia se mostra viva e mutante. Até tirou a máscara do quarto ministro da Saúde do governo Bolsonaro, Marcelo Queiroga.
Posando de bom moço que nada devia à sociedade pelos malfeitos de seus antecessores, Queiroga entrou firme na campanha eleitoral da reeleição. Até transgrediu o plano nacional de imunização, reduzindo as doses de vacina devidas proporcionalmente a São Paulo. Mesquinharia incompatível com a gravidade da situação e mais uma questão para a Justiça arbitrar.
Ocupado apenas com seu destino e seu previsível fim, Bolsonaro inventa um enredo em que ele mesmo é o mocinho, o bandido, o padre, o pastor, o médico, o juiz de paz, o prefeito, o governador e a tropa de ataque à cidadela sitiada.
O que é mais mortal? Este Bolsonaro ou o coronavírus? A doença, é verdade, aproveita-se das populações mal governadas e abandonadas à própria sorte. Mas as instituições também precisam ampliar o seu papel de resistência. As convulsões diárias do faroeste bolsonarista não merecem tanta atenção.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,angustia,70003813898
Rosângela Bittar: O mal já está feito
As consequências vêm sempre depois, costumava avisar o prudente e discreto Marco Maciel para conter ousadias de efeito imprevisível. Hoje, quando se iniciar a sessão plenária da CPI da Covid, a máxima, óbvia, será contrariada. As consequências já aconteceram. São conhecidos, em extensão e profundidade, os desastres produzidos pelo depoente, ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. Os riscos que representava já se materializaram.
O papel de executor de ordens exercido pelo general foi constatado em registro público. O mandante tem notória identidade. Os resultados da performance do executor e do mandante são expostos em números indiscutíveis: 436 mil mortos, 15 milhões de infectados, uma exposição iminente do País à terceira onda da pandemia. A que se deve acrescentar o falho plano de vacinação, em vigor, e as projeções pouco críveis para o futuro. Além da reincidência agressiva do presidente da República, que insiste no negacionismo irracional.
A consequência menos letal, porém politicamente delicada, também já emergiu: o desgaste à imagem do Exército.
Da mesma maneira que o presidente Jair Bolsonaro se esconde por trás das atuações pirotécnicas dos filhos, dos seguidores fanáticos e dos ministros, Pazuello sempre manteve o Exército como um biombo, recusando-se a passar à reserva exatamente para não perder tal vantagem.
Não faz sentido a questão, explorada entre membros da CPI, sobre o tratamento a ser dispensado a Pazuello. Deve ser chamado de general ou ministro? Melhor evitar provocações adicionais.
Só o fato de ter sido levantada a discussão já demonstra que Pazuello é, de fato, um tremendo general da ativa, e sua fuga das responsabilidades atinge, sim, o Exército. Ou, visto por outro ângulo, Pazuello está resguardado, de um lado, pelo mandante, de outro, pela patente. Superprotegido.
Agora, que deu tudo errado, deixou de ser general?
Mesmo com mandado judicial a determinar seu comportamento e suas informações, Pazuello não vai passar pela CPI da Covid, porém, com uma simples espanada nos ombros da farda.
O Supremo Tribunal Federal concedeu-lhe habeas corpus para não responder a perguntas que possam incriminá-lo. Uma cobertura de rara ironia, pois, ao mesmo tempo que pressupõe a prática de crime, o STF reconhece que Pazuello tem e deve ao Congresso informações sobre terceiros.
Não há mais dúvidas sobre o perfil do inacreditável terceiro ministro da Saúde deste governo. Pazuello está carimbado como inconsequente e incompetente. E medroso, pois tentou escapar da CPI. Justamente quando se delineia o uso e abuso do seu habeas corpus como forma de todos os implicados escaparem da investigação. Alegarão, como começou a fazer ontem o ex-chanceler Ernesto Araújo, que tudo se fez para atender ao Ministério da Saúde. Como o ex-ministro Pazuello tem autorização para ficar calado, está resolvido o problema do governo.
Por sua importância na estratégia das defesas, Pazuello continua totalmente assistido e amparado. A decisão de órgão técnico da Saúde contra o receituário do doutor Bolsonaro para o tratamento da covid, por exemplo, só anteontem foi tomada. Pazuello pode justificar-se, dizendo que, no seu tempo, não havia orientação oficial ainda. Outras virão.
Há quem desqualifique os generais que restaram no governo como distraídos, simplórios. Mas ficaram porque refletem a imagem e semelhança do presidente. Bolsonaro não costuma realçar qualidades como critério de escolha. Trabalha com uma só exigência: subserviência, quesito em que Pazuello recebeu grau dez.
O Exército está tentando manter distância, mas não está fácil. Bolsonaro o envolveu não só através do general da ativa no cargo mais polêmico do seu governo, mas também da participação direta dos seus laboratórios na frenética produção da cloroquina. Um dos principais malfeitos sob investigação no inquérito parlamentar.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-mal-ja-esta-feito,70003719351
Rosângela Bittar: Fraulein, o regresso
Assim como não existe legalmente, o Centrão não tem preços fixos. De um lado do balcão, o presidente da República. Do outro lado, as legendas, da Câmara sobretudo. Com suas condições no atacado e no varejo. Em postos bem posicionados, com domínio de comissões decisivas para a linha de montagem dos produtos, representantes fanáticas do presidente Jair Bolsonaro.
Essas transações produzem um escândalo atrás do outro. Quem se importa ou se envergonha?
A Câmara dos Deputados descobriu que o preço do presidente Jair Bolsonaro está abaixo da expectativa do Centrão, uma vez que os critérios da barganha parlamentar só consideram de milhões para cima. Para a sociedade tudo isso é incompreensível e doloroso. Como compatibilizar a votação de uma mudança de costumes com as obras físicas inúteis e superfaturadas? Como pesar o engavetamento do impeachment tendo no outro prato da balança a anulação das minorias parlamentares com uma simples mudança do regimento?
As concessões de Bolsonaro são em moeda corrente. Já o capital do Centrão inclui principalmente bens intangíveis. O preço da involução dos costumes, por exemplo, está ficando insuportavelmente alto. As imposições do presidente são, na verdade, um conjunto de ideias fixas, resultantes de seu voluntarismo.
A abertura da Câmara para o voto impresso, por exemplo, é inexplicável em qualquer idioma, um risco não tabelado.
O presidente da Câmara, que conduz as negociações, não atua propriamente como líder, mas como um intermediário que costura composições onerosas.
Quem presta atenção no fato de que puxam o Brasil para trás, exatamente no quesito com que causam admiração ao mundo?
Absurdo que este retrocesso, com a revogação do sistema eletrônico de votação, parta de uma pessoa que não respira a não ser pelos aparelhos do Instagram, do WhatsApp, do Facebook, do Telegram, etc. Nem sabe ainda o que fazer da montanha de papéis inúteis que produzirá.
Colocada à mesa de negociações diante de outra insensatez, que é a demolição do sistema educacional brasileiro e seus avanços seculares, a Câmara se entregou. Achou uma pechincha a imposição da velha escola, a domiciliar. Que tal uma enquete com os pais de estudantes que estão vivendo esta longa temporada de pandemia com os filhos submetidos a aulas remotas ou a aula nenhuma? Como se fosse possível suprimir o papel dos professores e a socialização das crianças e adolescentes, ou eliminar as novas técnicas pedagógicas e sua integração com a ciência e a vida.
A volta a este passado invoca um dos personagens marcantes da literatura brasileira que está no livro Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade, publicado em 1927. A inesquecível fraulein Elza, mais que professora, mestra em tudo. É esta a proposta? O ensino doméstico acabou na primeira Lei de Diretrizes e Bases.
Quem poderá pagar por isso? Quem controlará os planos, métodos e conteúdos? A quem se prestará contas? Quem fará a atualização de conhecimento? Não vale a pena sequer especular.
Produtos caríssimos, que o Centrão paga sem pedir desconto.
Nesse escambo, vale quanto pesa a regressão nas reformas constitucionais. Ou fatiar a reforma tributária não é o mesmo que dela desistir?
Para ter os votos da maioria que transformam o país nesta colcha de retalhos, o presidente vai criando novas moedas, e o Centrão se farta. A mais recente está expressa em um orçamento paralelo e secreto, revelado por Breno Pires em reportagem publicada pelo Estadão. Invenção que vale ouro nesta contabilidade. O resultado pode ser um trator trombando com uma retroescavadeira, um hospital ao lado de outro, uma rodoviária em cima da outra. Obras eleitorais explodirão neste governo como resultado da cooptação da Câmara.
E o vírus da pandemia sob dezenas de novas cepas.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fraulein-o-regresso,70003712017
Rosângela Bittar: ‘Tratoraço’ é um clássico da corrupção com recursos do Orçamento
Verbas secretas, superfaturamento, direcionamento de valores acima da referência para aquisição de determinados itens do cancioneiro parlamentar, como tratores e retroescavadeiras. Esta equação, apontada em ampla e minuciosa reportagem de Breno Pires, do Estadão, na edição deste domingo, é um clássico da corrupção com recursos do Orçamento Federal. Detalhada em valores, responsáveis e beneficiários, a matéria desfaz um sofisma insistentemente repetido pelos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.
Impressiona a forma veemente como os fanáticos do presidente enfatizam, ao aceitar piedosamente críticas aos erros e omissões da sua administração, o fato de não haver, no governo Bolsonaro, denúncias ou escândalos de corrupção. Para muitos indícios puderam fechar os olhos, não para este.
Aí está um, gritante, apontado de maneira cristalina. Exemplar daquela modalidade que envolve parlamentares governistas da base aliada, o Ministério de Desenvolvimento Regional e sua audiência municipal, além do coordenador deste tipo de esquema, o ministro da articulação política com gabinete no Palácio do Planalto.
Uma vez foram caminhões; outra, ambulâncias; desta modalidade, das mais antigas, que virou anedota, o fura-poço; agora, tratores e retroescavadeiras. Inovou-se, porém, em um quesito: para burlar tudo – cotas, tipos de emendas, sazonalidade, destinações, teto e todos os demais limites do orçamento de 2021, uma peça ainda sob choque e vetos presidenciais – a dinheirama em questão recebeu a tarja de verba secreta. Um expediente recorrente.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
Rosângela Bittar: Podem me chamar de ‘05’
Antes que se pudesse decorar seu nome, o novo ministro da Justiça estreou, no fim de semana, com duas entrevistas recheadas de pérolas do estilo bolsonarista de comunicação confusa. O chamado padrão “00”.
Legítimo exemplar do time em que se notabilizaram Abraham Weintraub e Ernesto Araújo, já substituídos, e os ainda atuantes Ricardo Salles, Damares Alves e Milton Ribeiro, o ministro Anderson Torres mimetiza a família presidencial. E escolheu a CPI da Covid para se apresentar.
Como fizera antes dele, com palavras iguais, o senador Flávio “01”, o ministro Torres honrou o espírito negativista do governo. Primeiro, deixou claro que, se Bolsonaro contaminar alguém porque aglomerou sem máscara, a culpa é do contaminado que se aproximou muito dele. Depois, proclamou a inoportunidade da CPI, indiferente ao fato de que ela já está funcionando e começou a ouvir, ontem, os depoimentos de ex-ministros da Saúde. Seria a hora oportuna quando não houvesse crime a apurar e culpados a punir?
Incidiu, também, na questão que já não se discute: a subordinação política da Polícia Federal aos caprichos presidenciais. Ameaçou os senadores com a requisição, para a CPI, dos inquéritos da Polícia Federal, sob sua jurisdição, e que tratam da aplicação das verbas da pandemia. Num acesso de criatividade, repetiu o bordão popularizado mundialmente pelo misterioso Garganta Profunda: siga o dinheiro…
Como se o escândalo da gestão federal da pandemia, objeto da CPI, não envolvesse, também, dinheiro. Além de negligência, omissão e negação da ciência. Três atributos marcantes da atuação do presidente.
O ministro da Justiça se esquece de que todos os governadores e prefeitos são políticos ligados a senadores e deputados. Todos, não só os da oposição. Nem o governista sênior da CPI, Ciro Nogueira, pode negar sua ligação histórica, em muitas campanhas e várias administrações, com o governador do Piauí, Wellington Dias, do PT.
Esta questão, no entanto, deve ser resolvida com a convocação do próprio ministro Anderson Torres para depor. E esperar dele maior apreço ao Parlamento do que o dispensado pelo ex-ministro general Eduardo Pazuello. Cujo depoimento, antes marcado para hoje, foi adiado porque a testemunha alegou cumprir quarentena por ter tido contato com infectados.
Com um delegado da Polícia Federal e um auditor do Tribunal de Contas na assessoria do relator, será possível à CPI precisar o que o novo ministro da Justiça quis dizer ao País enlutado.
A advertência mais surpreendente do espetáculo de estreia, porém, foi a sua afirmação de que a CPI da Covid não pode ser política. Mas, exclusivamente, técnica. As CPIs são políticas ou não são CPIs. O que seria uma CPI técnica? Estará Anderson Torres confundindo o inquérito parlamentar com as indispensáveis perícias datiloscópicas e grafológicas do seu universo policial?
A CPI da Covid, aliás, é mais política que qualquer outra. Nada fará que não gere fato político. Seja para o governo se defender, seja para a oposição acusá-lo. Está vinculada, fortemente, à sucessão de Jair Bolsonaro em 2022.
A crença do presidente da República, e só ele acredita nisso, de que foi ele mesmo, com seus argumentos e sua imagem, que venceu em 2018, é equivocada. Quem perdeu para Bolsonaro foi o centro, que agora quer retomar a sua posição na eleição do ano que vem. É para isso que os liberais trabalham com determinação.
O PSDB, o MDB, o DEM e o PSD querem estar de volta ao segundo turno. Certamente, acreditam que vão disputá-lo com um candidato da esquerda, PT ou PDT, que tem sempre vaga garantida na final. A CPI da Covid demarcará os espaços.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,podem-me-chamar-de-05,70003704191
Rosângela Bittar: Sinfonia em meio à barbárie
Livro de Aldo Rebelo transforma releitura da história política em instantâneo da atualidade.
No capítulo 12 do seu livro O Quinto Movimento – propostas para uma construção inacabada, a ser lançado nos próximos dias, o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo transforma o que seria uma releitura da história política brasileira em um instantâneo da atualidade. Sua visão sobre os desafios impostos à democracia revela que não tem sido fácil mantê-la sob Jair Bolsonaro.
Sem citá-lo nominalmente, traça um retrato da ameaça à República exercida pelo comandante supremo das Forças Armadas, o presidente. As instituições democráticas, na sua avaliação, perdem prestí- gio, identidade e substância.
Bem escorado na disciplina de sua formação marxista, a que agrega experiência e trânsito entre políticos de todas as tendências, Rebelo defende, entre suas principais teses, a construção de um governo forte. Tão forte quanto democrático, com equilíbrio entre os poderes.
O problema não está só no Executivo. A situação crítica em que se transformou a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), alvejado por todos os lados tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, está arrolada como um dos maiores desafios. “Após a constituinte de 88, quando os militares se afastaram, procedeu-se à judicialização da política e, por consequência, a politização do Judiciário.”
Este desequilíbrio permanece e se amplia a cada dia, em meio à turbulência de um país de política convulsionada, em que recrudesce e se aprofunda o confronto entre parlamentares, magistrados e presidente da República. Problemas claramente expostos nos episódios mais recentes, que culminaram, ontem, com a instalação da CPI da Covid, no Senado, e a abertura, na Câmara, do debate sobre o episódio da apreensão de madeira ilegal na Amazônia. Uma reação do Congresso ao massacre de ignorância que o governo Bolsonaro impõe à sociedade.
Enquanto se desenvolve esta luta de campo aberto, surge, da quarentena da pandemia que nos esmaga, o inesperado livro de testemunhos e reflexões de Aldo Rebelo, um roteiro completo para debater o Brasil.
Político que viveu, em extensão e profundidade, como protagonista, diferentes facetas da política brasileira, Rebelo reúne uma experiência singular. Líder estudantil da época da ditadura, exerceu a presidência da UNE, seis mandatos de deputado federal e a presidência da Câmara. Foi ministro da Defesa, do Esporte, da Ciência e Tecnologia, da Coordenação Política, funções em que entrou e de que saiu sem acusações ou processos.
Aldo Rebelo sistematiza os episódios, em seu livro, com a criatividade de quem escreve uma sinfonia. Mais do que um nacionalista, como definido por todos, desde sempre, é um patriota apaixonado. E amplia, a cada dia, a confiança no seu estilo de fazer política: rigor na atenção aos diagnósticos e tolerância nas soluções.
Os sentimentos que criou com relação ao Brasil e aos brasileiros se forjaram na cena de abertura do livro. “A primeira vez que me dei conta do mundo, estava sobre um cavalo. Meu pai trabalhava em uma fazenda. Lembro que ele chegou a cavalo e me pôs montado. Eu devia ter uns três anos e vi outra dimensão do mundo. O mundo visto de cima: o rio, o horizonte, os campos. Data dessa época minha admiração, respeito e paixão pelos cavalos.”
Escrito durante a quarentena da pandemia, que Aldo Rebelo passou no Sítio Amazonas, em Viçosa, Alagoas, em companhia de sua mãe e sua mulher, o livro, de 249 páginas, tem bela ilustração de Elifas Andreato e Agélio Novaes e edição da JÁ, de Porto Alegre. Os 21 capítulos de O Quinto Movimento permitem uma visão otimista da história do Brasil, com intervenções de fatos do presente que lhe dão dinamismo.
No repertório que apresenta, com argumentos de plataforma, figuram economia e futebol, mulheres e índios, militares e diplomacia, educação e desigualdade, agricultura e Amazônia, campos nos quais se especializou nos últimos mandatos.
Rosângela Bittar: O processo da pandemia
O culpado por esta crise política e institucional tem nome e sobrenome: Rodrigo Pacheco
O essencial é que a pandemia seja investigada. Que os erros de gestão sejam expostos, por mais que diluídos nas tentativas de tumultuar o ambiente. Impossível escapar de acusações. As feitas ao presidente Jair Bolsonaro, no fundo, se resumem a apenas uma: a negação. O presidente contestou a existência da covid-19 e as mais elementares formas de combatê-la, como o isolamento e as vacinas. Quando não foi omisso, foi equivocado.
Já o presidente do Senado, que teve à mão uma forma eficaz de intervir e mudar os rumos da catástrofe, imaginou que poderia aplicar um sofisma parlamentar. Como dependia da sua assinatura a instalação da CPI, tentou postergá-la. Exercitou o golpe de Pilatos e lavou as mãos. Um passo em falso nas cenas iniciais da sua liderança de um dos poderes da República.
Obrigado a cumprir o dever por decisão judicial, acabou por perder o controle da situação.
A experiência das CPIs mostra que, mais do que as investigações, as denúncias ganham dimensões de provas.
Por isso, haja o que houver, e mesmo que Bolsonaro tenha conseguido truncar a CPI, o culpado por esta crise política e institucional tem nome, sobrenome e endereço: o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado. Ele vislumbrou dominar o processo com silêncios e retardamentos.
Definido por seu público como um político tático e tendo surgido no Senado como uma novidade bem-vinda ao jogo parlamentar, parecia uma espécie de ressurreição dos políticos mineiros que fizeram história. É curto o caminho percorrido, mas Rodrigo Pacheco, até agora, está frustrando estas expectativas.
Os argumentos que mobilizou para não instalar a CPI são superficiais e às vezes parecem sobrenaturais, porque tomam distância da realidade.
Estreante, o senador Pacheco desprezou mais de 30 assinaturas de senadores de diferentes partidos e ideologias. Apegou-se ao argumento, depois capturado pelo governo, que a CPI não podia funcionar por meio virtual. Hoje, no planeta, da assembleia de condomínio ao programa de auditório, sem falar no plenário dos tribunais, as sessões realizam-se remotamente.
Outro dos problemas mencionados seria a impossibilidade de dar segurança às testemunhas. Por quê? O presidente e o relator podem acompanhar a testemunha numa reunião, enquanto os inquiridores trabalham de outras latitudes. Surgiu ainda a alegação estapafúrdia, logo incorporada por representantes do investigado, de que a CPI da Pandemia, se realizada durante a pandemia, seria um ato político e atrapalharia o enfrentamento da doença. E para completar recorreu ao lugar-comum: a CPI seria um “ponto fora da curva”. Qual é a curva?
Enquanto fugia de suas atribuições constitucionais, o senador Pacheco não se recusava a tentar desempenhar competências do Executivo, buscando formas de comprar vacinas e toda sorte de providências que não tinha condições legais de assinar. Perda de tempo. Até aceitou liderar um comitê decorativo, criado por Bolsonaro para envolver suas responsabilidades numa cortina de fumaça.
O fato de o destemido Jair Bolsonaro estar com medo de ser investigado é até um bom sinal. Poderia significar que tem consciência dos atos perversos que praticou na gestão da pandemia. Já o presidente do Senado poderia ter evitado a crise e baixado a temperatura de mil formas. Quem sabe, se tivesse instalado a CPI quando foi proposta, por exemplo, não saberíamos hoje as verdadeiras razões das quatro mudanças de ministros da Saúde neste governo, em menos de um ano.
Ao submeter-se ao capricho do presidente, o senador Pacheco talvez não tenha percebido que a grife da presidência do Senado só é desfrutável quando se está no exercício do cargo. Quem se lembra hoje do senador Davi Alcolumbre?