Rosângela Bittar

Rosângela Bittar: Questão de ordem

Bolsonaro trabalha duro na eleição de prepostos na Câmara e no Senado

O capitão presidente Jair Bolsonaro e sua soldadesca parlamentar do Centrão trabalham duro na eleição de prepostos para substituir os atuais presidentes da Câmara e do Senado. De tal forma que, nos dois anos que lhe restam de mandato, possa assegurar o comando de dois poderes nas batalhas da sua campanha à reeleição. Embora pareça absurdo, é real. O presidente, que tem uma performance em tudo insatisfatória, quer ampliá-la.

Se assim for, seus concorrentes em 22 ficarão imprensados contra um Executivo e um Legislativo postos a serviço do candidato que controla cargos e verbas. A não ser que resistam à tomada de mais esta cidadela.

É o que buscam com a tentativa de reeleição dos atuais presidentes da Câmara e do Senado, na mesma legislatura, superando a proibição legal. À falta de instrumentos para conter Bolsonaro, a maioria quer manter os atuais dirigentes, confiante na autonomia relativa que demonstraram até aqui.

A consulta ao Supremo Tribunal Federal sobre a reeleição no Congresso não teria sido feita exatamente com este objetivo, mas é o mais provável.

Aberta a sessão legislativa de 2021, em fevereiro, uma voz levantará uma “questão de ordem”. Pedirá que se inicie o processo de eleição dos membros da Mesa, facultada a reeleição dos atuais titulares. Estarão cumprindo um rito traçado a partir de decisão do STF. Em julgamento virtual, que se inicia nesta sexta-feira, e deve seguir até o dia 11, o Supremo reconhecerá, segundo informações preliminares, que esta é uma questão interna do Congresso e cabe a ele decidir.

Há divergência de interpretação sobre os efeitos deste veredicto. Alguns argumentam que, ao não deliberar, o STF estará, na prática, impedindo a reeleição, pois o Legislativo teria dificuldades de exercitar sozinho esta prerrogativa. Outros, porém, têm opinião oposta. Afirmam que, se o STF decidir que a reeleição é um assunto “interna corporis”, será automático o lançamento das candidaturas dos presidentes atuais. Decisão embasada nos critérios de isonomia, de igualdade de oportunidades e de limites idênticos para todos, em um sistema de contradições e caos regulatório em todos os níveis.

O ministro Gilmar Mendes, o relator do processo, preparava-se para fazer um relato histórico da reeleição e da flexibilidade que o STF vem adotando na análise dos casos. A reeleição passou a ser admitida para o Executivo – presidente, governadores e prefeitos; é permitida também em Assembleias e Câmaras, nos Estados e municípios, sendo que, nestas, sem qualquer restrição quanto ao número de vezes e à legislatura; e é autorizada para o Congresso se for disputada em diferentes legislaturas.

A proibição se dá apenas para a reeleição na mesma legislatura. Por qual razão? Não se sabe. Eis o que se comenta: teria sido uma tentativa de limitar, através de ato institucional, o poder do Congresso. Impedir, com esta providência, o estabelecimento de lideranças fortes e estáveis. Não existem explicações, porém, para que se tenha deixado a situação chegar onde se encontra, atolada em um cipoal disforme de regras que aprofundam cada vez mais os equívocos deste instituto.

Se é assim, que o seja para todos até a bagunça normativa sofrer revisão. É este o pensamento dominante que pode ter inspirado a tendência da qual o Supremo emite sinais.

Mesmo para quem admite tal solução, restam duas questões a serem enfrentadas. A primeira é acompanhar o que juristas entenderão como “interna corporis”, qual o instrumento que deve ser usado na decisão. A questão de ordem não terá uma resposta pacífica. Outra voz pode enfrentá-la com recursos. A segunda é a necessidade de encontrar-se um líder destemido que possa propor a revisão da reeleição no Brasil, da Presidência da República aos clubes de futebol.


Rosângela Bittar: A terceira eleição

PSDB não teme solução radical para buscar um novo nome: a realização de prévias

Ao apurar as urnas, no domingo, o município de São Paulo terá o resultado de três eleições. A primeira revelará a identidade do novo prefeito. A segunda, de dimensão nacional, indicará os efeitos desta definição na peleja do governador João Doria e do presidente Jair Bolsonaro. A terceira e mais complexa deflagrará a disputa interna no PSDB, de que pouco se fala mas, com certeza, desabrochará.

A resistência a João Doria definirá sua proporção, no PSDB, a partir de agora. Com o desempenho eleitoral do prefeito Bruno Covas este grupo, que contava apenas com a presença discreta do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, passa a ter um novo ponto de articulação.

Se conseguir levar seu eleitorado a comparecer, Covas continua favorito para vencer o segundo turno, apesar do impulso de crescimento de seu oponente em cima do contingente de indecisos. Se não, pelo resultado até aqui, passou a ser um ator importante nas definições político-eleitorais do PSDB. Não é mais o vice, de carona em um mandato tampão de prefeito. Sua votação tornou-se pessoal. A campanha lhe permitiu, também, mostrar uma gestão reconhecida, apesar da travessia de períodos dramáticos que viveram os cidadãos e ele próprio.

Desempenho eleitoral e gestão o credenciam como força partidária. Não necessariamente em futuro benefício próprio, devido aos problemas de saúde, mas para fortalecer a oposição interna que não vê em Doria o destino do PSDB. Doria está desgastado. Sabe-se, inclusive, o ponto nevrálgico de seu esgotamento, e não está na gestão. O governo é bem avaliado, tem uma equipe melhor que a do governo federal, fez uma reforma administrativa que Bolsonaro levará ano e meio para começar. Como se formou, então, tão denso desgaste? Especialistas identificaram sua origem em um fenômeno que definem como “excesso de imagem”.

Desde o momento inicial, que ficou conhecido como a fase de traição a Geraldo Alckmin, ao abandono precoce do mandato de prefeito, passando pelas dificuldades para desatar a armadilha BolsoDoria, mais os palanques diários, a voz onipresente. Acreditou na comunicação direta como um ativo e cansou o distinto público.

A tese se comprova. Tanto que o momento mais bem sucedido de Doria, no quesito aceitação, se deu quando saiu de cena e deixou Bolsonaro falando sozinho, a comemorar a suspensão da vacina anticoronavírus do Butantã. Colocou médicos e cientistas para duelar com o provocador, levando o Presidente da República a murchar seu ímpeto num instante, completamente sem graça. Mas foi exceção. O PSDB sente-se preparado para articular alternativas. Eduardo Leite, considerado um belo produto político, galvaniza estas forças. Como é pouco conhecido, foi um opositor discreto internamente. Mas agora pode contar com São Paulo. Além de oferecer ao partido a construção de uma candidatura a partir do zero.

Estão todos conscientes de que uma reação como esta é de difícil operação. Bruno Covas tem a política na sua natureza, conhece o centro do poder e sintoniza-se melhor com Leite do que com Doria. Mas é certo que terá enormes dificuldades de liderar o movimento de dentro para fora de São Paulo. Não só pelo constrangimento que, em política, se dilui, mas por questões de outra natureza, como a relação do prefeito com o governador e do partido com o Estado onde se encontra o maior colégio eleitoral.

Reconhecer que é difícil não significa que não vai haver. O PSDB já sente profundamente a necessidade de buscar um novo nome. Gosta de seu dilema de sempre que considera sua marca: não se discute se o partido terá candidato, mas quem será. E não teme, em último caso, a solução radical para este tipo de impasse: a realização de prévias. Que podem ser organizadas num estalar de dedos. Para o PSDB, isto é muito.


Rosângela Bittar: Entre na roda

Projetando-se do presente ao futuro, dominam a cena as forças moderadas

Daqui a pouco passa. Vitoriosos (muitos) e ressentidos (poucos) terão de voltar à vida política não eleitoral: crise econômica, desemprego, agravamento da pandemia, fome, desigualdade. O calendário de 2022 ficará suspenso. Porém, as marcas dos acontecimentos do momento não se apagam.

A fotografia: o presidente Jair Bolsonaro domina a cena do momento estático. Com derrotas em série, só se têm dele flagrantes desarticulados. Em menos de dois anos da introdução de sua era política foi desautorizado em pensamentos, palavras e obras. Seu mundo, lá fora, também ruiu, o que torna ilusão tudo o que representa. Mas não convém esquecê-lo. No comando do governo, prosseguindo no seu fazer nada, será um populista incompetente e descompromissado com a realidade. Porém, se quiser, recupera-se. E não tem só dois minutos, são mais dois anos inteiros. Tempo suficiente para criar um salário emergencial para todos e transferir as suas culpas ao Congresso, como é de costume. Não precisa de condições políticas para voltar à roda, já deixou claro que não é piloto nem passageiro de sua própria nave.

O filme: em movimento dinâmico, projetando-se do presente ao futuro, dominam a cena as forças moderadas, os democratas da esquerda à direita que conquistaram a adesão popular na condenação aos extremos.

O novo elenco se uniu aos que, já em ação, abriram antes a roda de conversas, agora ampliada. Não são ainda os partidos. Estes ficarão um bom tempo entretidos na negociação parlamentar, que comandam.

Para o diálogo político, que produzirá o enredo dos próximos dois anos, há também dois princípios definidos. O primeiro é que não pode haver vetos a ninguém em qualquer um dos projetos. É o mínimo que a moderação exige.

O segundo é fugir da definição precoce de posições. Luciano Huck, João Doria, Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta, Hamilton Mourão, Ciro Gomes, Guilherme Boulos são candidaturas lançadas. Alguns, como Huck, em estágio avançado de formulação. Outros, como Moro, ainda discretos, para inibir a besta-fera do Gabinete do Ódio e sua capacidade destrutiva.

Huck, misto de liberal e social-democrata, foi o primeiro a se abrir a conversas com líderes políticos nacionais e internacionais, inclusive da esquerda, empresários, sociedade e demais candidatos potenciais. Tem uma equipe discutindo as políticas públicas que considera necessárias ao Brasil. Ciro Gomes, embora na roda, enfrenta o problema de ser candidato inamovível. João Doria, para se habilitar, terá não só que vencer o segundo turno em São Paulo. Sem isto será difícil até se reeleger governador. Mas precisa fazer uma grande gestão e reduzir sua rejeição. As demais propostas engatinham.

O eleitor municipal promoveu outros interlocutores políticos ao nível de reconhecimento federal. É inegável o crescimento do presidente do DEM e prefeito de Salvador, ACM Neto. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), aumentará sua cotação se Eduardo Paes se eleger no Rio e, especialmente, se fizer seu sucessor.

Em meio às conquistas do MDB, sobressai-se o deputado Baleia Rossi. Segurou seu partido no centro, fugindo ao radicalismo do governo Bolsonaro, onde pontifica o volátil e bem-sucedido Centrão.

Guilherme Boulos (PSOL) se impõe como novidade e enigma. Alternativa de interlocução para o centro, papel que cabia apenas a Marcelo Freixo, Boulos se instalou, vença ou não o segundo turno, como protagonista essencial da política. A observar se conseguirá se manter na linha da moderação. Reconhecida, também, a capacidade de negociação do político Márcio França (PSB), que oferece a alternativa de costurar alianças do centro à esquerda. A ampla presença de São Paulo, Rio e Bahia na roda da articulação tornou mais surpreendente ainda a situação de Minas: uma vitória instigante da moderação, ainda fora do esquadro político por cansaço, indiferença, decepção ou abulia.


Rosângela Bittar: Pandemia tem impacto no voto

O eleitor se distanciou de 2018, quando apostou numa nova política que caducou em menos de dois anos

O impacto da pandemia do coronavírus sobre o eleitor municipal foi amplo, sem limites. Longe de impor seu peso apenas sobre a esperada abstenção dos mais velhos, o efeito maior se deu sobre a definição dos critérios do voto.

O eleitor se distanciou de 2018, quando apostou numa nova política que caducou em menos de dois anos. Também se mostrou alheio a 2022, indiferente à sucessão de Jair Bolsonaro. Pensou no aqui e agora. Valorizou a experiência, a política convencional. Quis escolher as lideranças que, com paixão, compreendessem o drama principal. Menos ideologia, mais emoção.

Ao longo do ano, o eleitor municipal veio informando sobre a prioridade que atribuía à pandemia. Os que negaram a crise sanitária sentiram agora sua presença eleitoral.

A pandemia já fizera vítimas eleitorais derrubando, inclusive, o projeto de reeleição do presidente americano Donald Trump. Se estivesse disputando a sua sorte agora, Bolsonaro teria sucumbido. Restam-lhe dois anos para rever sua teimosia. Como este quadro evoluirá no segundo turno das duas maiores cidades do País é a nova dúvida.

Nesta fase, surge com peso decisivo o voto plebiscitário. No caso do Rio, a questão se concentra nos efeitos do uso da religião e da força do apoio de Bolsonaro. O fanatismo da campanha de Marcelo Crivella prevalecerá contra o patrimônio político de Eduardo Paes?

Em São Paulo, foi surpreendente o desempenho da esquerda, com Guilherme Boulos (PSOL) e Jilmar Tatto (PT). Os dois somados levam Boulos ao segundo turno com índice próximo ao do líder Bruno Covas (PSDB).

Os votos de Márcio França (PSB), de centro-esquerda, podem ser decisivos. Mas não devem ir em bloco para um dos dois finalistas. Pessoalmente, França relutaria em aplicar sua força eleitoral para favorecer um candidato de João Doria.

Mas o seu eleitorado, moderado, pode ter mais afinidades ao centro do que à esquerda.

Em São Paulo, a campanha será influenciada por uma desconstrução recíproca. De um lado, Covas identificado ao desgaste de Doria; e de outro, Boulos identificado às invasões e depredações.


Rosângela Bittar: Centrão na cabeça

Das disputas municipais saem fortalecidos o PSD, o MDB e o PP, segundo previsões

O presidente Jair Bolsonaro cometeu um erro essencial de política. Transformou um presságio em uma aposta do tipo cara ou coroa. No fim, quedou-se paralisado, à espera de uma decisão por pênaltis que não virá porque nem sequer consta do regulamento. Por este momento de alucinação, torpor e instabilidade, Bolsonaro terá de operar uma desafiadora metamorfose: transformar-se de radical raivoso em moderado condescendente.

Se vai conseguir é o que veremos nos próximos meses. No momento, comporta-se como reles perdedor em série. Perdeu com a vitória de Joe Biden e Kamala Harris. Perdeu com o revés de Donald Trump, um modelo pessoal e político. Perdeu com o péssimo desempenho de seus candidatos nas eleições municipais. Perdeu diante do impulso de reação dos seus adversários presidenciais, que foram acordar logo agora, na sua maré baixa.

Isolado, o presidente consolidou a condição de maior refém do Centrão, sendo a única saída para sobreviver e ainda pleitear a reeleição. Por esta dependência presidencial, o Centrão se fortaleceu. Sobretudo porque sairá revitalizado das eleições municipais.

Para avaliar o preço que o Centrão cobrará não é preciso ter imaginação. Seus parlamentares sabem onde, quando e como tomar de assalto o governo. No restrito grupo de aliados fanáticos do presidente ainda se ouvem apelos esparsos para ele recrudescer nas atitudes de beligerância, fugindo, como sua matriz, à realidade. Mas o Centrão vai pressionar em contrário. Acredita ser fácil mostrar ao presidente que sua tropa é a última reserva de que ele dispõe.

Bolsonaro não tem saída, certamente refletirá sobre as transformações a que deve se submeter. As mais difíceis não estão relacionadas à troca dos ministros, que ele poderá sacrificar, sem problemas, doando-lhes outras vantagens.

Terá, porém, de redimensionar alguns caminhos. A importância da rede social como instrumento principal de campanha se relativizou. Com a chegada da regulação das empresas de tecnologia, que tiram mentirosos do ar, as redes deixaram de ser espaço livre por onde circulavam, impunemente, a falsidade e o conflito. Bolsonaro terá de reinventar o uso e abuso desses meios. Neste capítulo, o difícil será atender a família, insaciável, permanente e agressiva. Desta não dá para se livrar.

Não colou, até agora, a tática de denúncia antecipada de fraudes na eleição. Trump não conseguiu sensibilizar nem todo seu eleitorado e Bolsonaro vem denunciando, sem sucesso, fraude na eleição que venceu, de 2018. Imagine-se o que fará numa eleição que poderá perder. Desde sempre incentiva aliados a apresentarem projetos para a volta do voto impresso. Renegando a tecnologia, cada vez mais dominadora e irreversível.

E o fantasma do comunismo? Não deu certo lá e não tem apelos mais fortes no Brasil. Embora tenha feito sua carreira política em cima destas fixações, Bolsonaro deve avaliar sobre como se livrar destes anacronismos que são a sua essência.

É impossível ter êxito num recuo tão radical em temas de que está impregnado o seu cotidiano, mas pode tentar. A negação da ciência na pandemia, por exemplo, exige-lhe revisão urgente, e ele insiste em politizar a vacina, a doença e a morte. Como fez ainda ontem. Mudar seria uma guinada e tanto para Bolsonaro.

E dele se exige que preste atenção aos fenômenos que, se não configuram nova onda política, podem lhe servir de alerta. Os progressistas que se opõem ao seu receituário estão ganhando todas na vizinhança. Além dos Estados Unidos, vimos Argentina, Bolívia, o plebiscito do Chile e, bem antes, o México. É para pensar.

Desde que se aproximou do Centrão, Bolsonaro tem alternado radicalismo e moderação. Das disputas municipais saem fortalecidos o PSD, o MDB e o PP, segundo as previsões para a votação no domingo. A colheita eleitoral desses partidos dará a dimensão precisa da transformação que Bolsonaro precisa realizar, se quiser se manter no poder.


Rosângela Bittar: Alma Gêmea

Guedes incorporou o raciocínio confuso, a linguagem agressiva e até os trejeitos do chefe

Noves fora a pandemia, o ministro Paulo Guedes e a economia estão na berlinda e inspiram as previsões de mudanças importantes no governo no início do novo ano. Enfrentar seu jogo é para os fortes, pois tem reflexos no câmbio, na bolsa, na inflação, na dívida. No entanto, para explicar o que acontece com o laureado economista, cujo poder declina, recorre-se apenas a uma anedota: Instrutor infiel aconselhou seu aprendiz de hipnose a fazer, como dever de casa, treinamento com os peixes, diante de um desses imensos aquários de parque turístico. Preocupado com a demora, o professor foi atrás e encontrou-o em transe, olhos fixos, lábios em bico, abrindo e fechando a boca, em estado de respiração mecânica. Em vez de hipnotizar, fora hipnotizado.

Eis a questão. Admitido para ser contraponto e conselheiro técnico do desaparelhado presidente Jair Bolsonaro, Guedes se fundiu a ele e se perdeu junto. O temperamento e a impertinência, já os possuía ao chegar. Em menos de dois anos, porém, incorporou o raciocínio confuso, a linguagem agressiva, a interpretação distorcida da realidade e até os trejeitos do chefe. Tornou-se sua alma gêmea.

Não se está falando só das já folclóricas gafes que tanto poderiam ilustrar a biografia de um como do outro. Quem não se lembra das empregadas domésticas e a Disneylândia? E a dos funcionários públicos, os “parasitas”? Aquelas do uso dos precatórios como orçamento e da taxação do seguro desemprego, deslizes técnicos engavetados, candidatos à ressurreição. Tem a última, a de ter medo de ser derrubado por “lobby da Febraban”. E as penúltimas, dos nazistas, da volta do AI 5, dos insultos à mulher do presidente da França…

Mas há também o traço de caráter, a preferência pelo conflito, a soberba, a falta de disposição e competência para o diálogo com o Congresso Nacional e com o Supremo Tribunal Federal. Bem como dificuldades extremas na relação com os ministros em particular. Tal e qual. Nas instâncias da economia, existia relativa confiança no que poderia fazer Guedes neste governo. Uma certeza é que teria coerência com as ideias liberais que sempre defendeu. Iria impor uma certa visão de necessários privatização e equilíbrio fiscal. Sua capacidade executiva não esteve em dúvida. Saberia, ainda, reunir pessoas adequadas a cada tarefa, suprindo suas fragilidades.

Nada, porém, encontrou no perfil de quem lhe serviu de espelho. A maioria das expectativas restaram frustradas, com duas exceções, uma em equipe, outra em resultados da política econômica: O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e a reforma da Previdência. Campos tem uma agenda própria e a está cumprindo. A reforma da Previdência, Guedes encontrou-a pronta, depois de 20 anos de discussão, e a recebeu resmungando pela ausência da capitalização, uma de suas obsessões à época.

De outra obsessão, a CPMF, imposto mundialmente considerado um lixo, não desiste, embora tenha sido a razão de seu fracasso na reforma tributária. Preparou uma reforma administrativa megalômana, proibitiva para um presidente em permanente campanha de reeleição. Suas propostas na área fiscal foram desprezadas, até o momento. Como Bolsonaro, Guedes faz recuos temporários e estratégicos. Como Bolsonaro, recuos e avanços numa mesma frase: vai ter, não vai ter!

Previstos na lei do teto e da responsabilidade fiscal, os gatilhos empacaram nas divergências internas. O teto é, por sinal, o tema preferencial da disputa interna de poder. Apenas discursiva, sem consequência, pois ninguém sabe o que fazer.

Não há propostas para sair da crise que o governo imaginava fugaz. Aprofundou-se a dívida. Vem aí a segunda fase da pandemia. Bolsonaro vai segurar o teto? Guedes tem solução para não deixá-lo desabar? Até a próxima conferência do ministro. Até o próximo comício do presidente.


Rosângela Bittar: O discípulo amado

No conflito Salles x Ramos, os nomes não importam. São as alas por trás deles que operam

Vamos invocar logo a Última Ceia, de Leonardo Da Vinci, no detalhe do discípulo amado: ao enterrar a cabeça no peito do presidente Jair Bolsonaro, o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) criou, finalmente, um símbolo apropriado a este governo.

A uma semana das eleições presidenciais americanas e a duas das eleições municipais, no 9.º mês de mortes e medo da pandemia, ainda fumegando a Amazônia e o Pantanal, o Brasil se consagra na mediocridade, destemor e escárnio daquela cena trágica fotografada como cômica.

Num momento como este, foi o que sobrou. Desfecho de uma disputa de poder em que o presidente, mais uma vez, encerrou a conversa incômoda com afago ao time que lhe dá a cabeça ao cafuné. O grupo que Salles representa, ao qual, uma vez escolhido, serve seu corpo por encomenda à condução do conflito.

Este é um dos três núcleos que gravitam em torno do presidente e disputam a condição de serem o seu domicílio. Completam o círculo os militares e os políticos.

O mais recente conflito entre eles colocou, de um lado, o ministro Salles e, de outro, o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). Os nomes não importam, são os grupos por trás deles que operam. Tem explicação racional? Não. O que vai acontecer na sequência? Nada. Apenas aguarda-se o próximo episódio. É a dinâmica do governo Bolsonaro.

Convencionou-se caracterizá-los como alas, tributo ao país das escolas de samba. Denominação que guarda distorções. Da ala dos amigos do peito, definida como ideológica, não se conhece uma única ideia. Assim ficou porque se aglutinou, inicialmente, por obra do guru da direita bolsonarista, o escatológico Olavo de Carvalho.

Sua força, no entanto, vem do combustível principal, os laços de família do presidente. Filhos, ex-mulheres, amigos de toda a vida, assessores parlamentares de pelos menos quatro casas legislativas. Acrescidos, depois da chegada ao poder, de ministros, parlamentares (sobretudo evangélicos), manifestantes fanáticos, com destaque para as locomotivas desgovernadas das redes sociais.

Este é seu governo in pectore. Eles ganham sempre e, quando perdem, caem para cima, geralmente premiados com cargos no exterior. Ou recolhem-se para um discreto retiro de meia semana.

Bolsonaro foi buscar na caserna a mão de obra para levar adiante o governo. Nem durante a ditadura foi possível apreciar, como agora, a relação dos militares com os cargos. Assumiram o poder de maneira voraz, conquistando uma cidadela após a outra. Os dois núcleos se combatem desde o início, na disputa da preferência do presidente.

Supõe-se que no imaginário de Bolsonaro a presença dos militares lhe daria sustentação incondicional, quem sabe lhe possibilitando até ir além. Para ele, poder é poder, sem filigranas ou vãs filosofias. Fechado à realidade, não percebeu que as Forças Armadas se civilizaram. Muitos dos escolhidos tiveram vivência anterior intensiva na política, como assessores parlamentares, estabelecendo um relacionamento camarada com as lideranças no Congresso.

Foi para preservar a política, resgatada para o governo depois de patinarem quase dois anos, que os presidentes da Câmara e do Senado penderam, neste conflito, para o grupo militar. O que pareceu, a princípio, um tiro de bazuca para revidar uma puxada de estilingue, provou-se depois de intensidade excessiva, mas necessária. Os amigos do peito não têm limites.

O núcleo político começou a se consolidar com o Centrão, de reconhecido vazio moral e intelectual. Mas não é só ele. Jair Bolsonaro está dependente da velha política, em gênero, número e grau.

Até para dar a volta completa ao círculo e voltar ao ponto inicial, conquistando a meta de proteger os filhos. A doutrina do Centrão esconde a sentença não pronunciada: se é para salvar, salvemos todos, não apenas um senador membro da primeira-família.


Rosângela Bittar: Ponto final coisa nenhuma

Bolsonaro fala uma coisa agora e seu contrário minutos depois. Subversão total do ponto final

A vacina contra o coronavírus não será obrigatória e ponto final, decretou o presidente Jair Bolsonaro. Resta-nos a esperança de que este ponto final de agora, como o foram tantos outros, seja um mero arrebatamento da ignorância. Não voltaremos à idade da pedra, mesmo que seja necessário recorrer ao papa, ao pajé ou ao Tribunal de Haia.

Ponto final quer dizer fim. Não permite réplica. A não ser que se subverta o sinal gráfico convencionado.

O ponto final, no discurso de Bolsonaro, pode significar vírgula; talvez, ponto e vírgula; com certeza reticências; muitas vezes exclamação ou até parênteses. Quem sabe, pausa para um gole d’água; também uma intervenção abusiva, subentendida a determinação para que se mude de assunto.

Correndo o risco de glamourizar um evidente vício verbal, o histrionismo de Bolsonaro, ao banalizar a conclusão do seu pensamento com a expressão superlativa, virou marca. Todo mundo aceita, ninguém discute.

Bolsonaro é espectador do seu próprio governo. Não demonstra convicção, compromisso ou segurança nas decisões. Fala uma coisa agora e seu contrário minutos depois. Subversão total do ponto final.

Exemplo: não se fala em Renda Brasil até o fim do meu governo e ponto final. Foi o que disse antes de receber o relator e autorizar o prosseguimento do projeto relativo ao programa renegado. Talvez, no caso, coubesse só uma vírgula, abrindo caminho a um advérbio de tempo. Não se fala mais nisso, agora.

Quando o assunto foi retomado com renovado vigor, a condenada Renda Brasil tornou-se Renda Cidadã, e todos já tinham esquecido a peremptória ordem anterior.

O presidente admitiu, gerando abalos ao mercado de ações, que o governo estuda mesmo, apesar dos desmentidos, a hipótese de furar o teto de gastos e ponto final. Esta não esperou o dia amanhecer e o próprio Bolsonaro tratou de buscar outros recursos da ortografia, detendo-se na exclamação e no travessão. O caminho está livre a qualquer estudo, quis dizer Bolsonaro, antes de exclamar: meu governo jamais transgredirá com o rigor da política fiscal!

O tema do aumento da carga tributária e criação do novo imposto sumiu numa gaveta temporária de hipóteses lesa-voto, a serem examinadas depois das eleições de 2020. Não se sabe como reaparecerá no discurso de Bolsonaro que, inúmeras vezes, garantiu que no seu governo não tem volta da CPMF e ponto final. Como esta é uma obsessão do ministro da Economia, o presidente teve de mudar a pontuação ou demiti-lo.

Agora, com reticências, o novo imposto transformou-se em uma condicionante para desoneração da folha, depois para financiar a renda mínima, em seguida voltou a instrumento de combate ao desemprego, até ser recolhido a um dos escaninhos que abrigam os estelionatos eleitorais premeditados.

Em abril, registrou-se o que se imaginou ser o ponto final dos pontos finais. Na reunião ministerial em que reclamou da ineficiência do serviço de informação da Presidência, fez revelações bombásticas. Disse que possuía informantes particulares e se queixou da falta de ascendência sobre a Polícia Federal. Bolsonaro foi taxativo: “Vou interferir e ponto final”.

Quando a interferência virou inquérito no Supremo Tribunal Federal, por denúncia do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, o sinal gráfico passou a ser um parênteses de negação do fato em todas as suas versões.

O ponto final da vacina é especial, trágico. Com uma carga pesada de dramaticidade e letalidade. Assusta os escalões inferiores, insufla decisões pessoais precipitadas, causa pânico nacional e horror internacional. É grave, desafia a Ciência, que não é um partido ou paixão acidental.

O governo assume riscos de crime contra a humanidade. Ponto final coisa nenhuma.


Rosângela Bittar: Arranjos de mão dupla

Um arranjo de mão dupla demonstrará o efeito do apoio de Bolsonaro a Russomanno

Que Jair Bolsonaro tem rara capacidade de transferir votos, não há dúvida. Elegeu três filhos em colégios eleitorais distintos e um sem-número de desconhecidos coronéis, capitães e majores, País afora. O outro líder nacional com essa capacidade é Lula, provisoriamente contido pelas circunstâncias.

A disputa pela Prefeitura de São Paulo tornou-se campo ideal para efeito demonstração deste bolsonarismo por patrocínio. Será um verdadeiro recenseamento, com precisão estatística. Não importa a falta de homogeneidade, cada bolsonarista sabe precisamente o seu tipo.

Alguns são remanescentes do encantamento pelo já superado discurso de combate à corrupção; outros por serem apaixonados pelo porte e potência das armas; uns da direita sectária; outros, terrivelmente militantes religiosos. Todos pela adesão irrestrita ao seu profeta.

Celso Russomanno (Republicanos), cansado de insistir em derrotas sucessivas, precedidas por triunfais pole positions em pesquisas eleitorais, viu no apoio do presidente a chance de dar uma identidade à sua candidatura. O esquema agradou a Bolsonaro, que havia liquidado seus grupos organizados em São Paulo de quem se afastou com desdém ao chegar à Presidência.

Um arranjo de mão dupla demonstrará o efeito deste apoio. No primeiro, Russomanno é o beneficiário. Tenta empurrar Bolsonaro, em seu lugar, no ataque ao seu adversário direto, Bruno Covas (PSDB), ao mesmo tempo em que força a transformação do presidente em alvo. Nas últimas 48 horas, Russomanno insistiu mil vezes que a coligação de Covas é a frente paulista anti-Bolsonaro. O presidente, popular e fortão, segue na frente, e o candidato a prefeito fica um passo atrás, livre das escaramuças.

Outro efeito em teste é a inversão da roda da ciranda. Neste, o beneficiário é Bolsonaro. Russomanno torna-se o símbolo do eleitorado cujo voto foi a ele transferido e porta-estandarte do bolsonarismo em São Paulo. O eleitorado o acompanha, mas exige que proteja Bolsonaro e use a máquina a seu serviço. Russomanno, de patrocinado, passa a patrocinador.

Kassio com K. Sem ilusões: todos os passos amistosos do presidente Jair Bolsonaro em direção ao Supremo Tribunal Federal têm um único e fisiológico objetivo. O de proteger o primogênito Flávio Bolsonaro.

A preocupação com este filho é obsessão e determina a relação do presidente com os tribunais superiores. A indicação de Kassio Marques, negociação conduzida por 01 para a vaga do decano Celso de Mello, integra este conjunto de providências objetivas.

Desagradou a três alas de apoiadores do presidente e satisfez a outras três. Os que esperneiam são originários do lavajatismo convertidos ao bolsonarismo; são os líderes evangélicos que já saboreavam a vaga; e os radicais ligados ao inacreditável Olavo de Carvalho, que ainda teima em influenciar o governo com gritos e palavrões.

Já os três grupos que aprovaram a escolha têm outras motivações. O apoio da Ordem dos Advogados foi corporativista, sem peso político ou ideológico; o Centrão vislumbrou também proteção aos interesses amplamente conhecidos; e um terceiro grupo gostou porque se sentiu aliviado. Temia que o escolhido tivesse um perfil de lobisomem, alguém incompatível com os ritos, linguagem e notável saber jurídico.

Na história recente do Supremo cita-se muito o caso de Luiz Fux, o novo presidente. À maneira carioca, o então surfista juiz minimizou, numa conversa com o então ministro José Dirceu, os riscos judiciais a que o mensalão expunha o governo Lula. “Deixa que eu mato no peito.” Um aceno não cumprido que, por isso mesmo, pertence aos registros da memória.

Caboclo nordestino, o mínimo que os aliados do governo esperam do piauiense Kassio Marques é que, se prometeu alguma coisa, cumpra.


Rosângela Bittar: O espectador

Jair Bolsonaro é espectador do seu governo. Assiste, sem sinais de compromisso

Uma parábola: naquela noite, sem pandemia, João Carlos, o Bulha, saudoso amigo, acompanhou com o olhar a entrada acintosa de jovens penetras em sua festa de aniversário, no Lago Sul. Com a voz abafada pelo som, batizou-os, às gargalhadas. Os Dezoito do Forte. E abordou o último deles, com a piada pronta. “Isto aqui está uma droga, sabe quem é o dono da casa e onde fica a bebida?” “Não”, respondeu-lhe o invasor, “mas vou saber e te aviso”. E misturou-se, tranquilamente, aos convidados.

Um governo: Jair Bolsonaro é espectador do que se passa em seu governo. Assiste a um espetáculo de palco e picadeiro sem sinais de compromisso. Os ministros se movimentam. Ele aplaude ou critica, desqualifica ou aprova, fecha a cara para um, abre a cara para outro. Aproxima-se de quem julga capaz de modular, afasta-se de quem manifesta opinião própria.

Nada de homogeneidade. Nem de fundamentos teóricos. O governo é uma obra aberta, experimental. O presidente gosta ou não gosta. Para formar opinião, inspira-se nas redes, onde é manobrado por 50 minorias. Daí as incoerências.

Na cena de segunda-feira, viu-se uma performance clássica. A do fiasco técnico sobre como financiar um programa eleitoral de renda mínima com pedalada precatória. Bem como, no mesmo cenário, o adiamento da reforma tributária, que embutia, para ver se colava, aumento de imposto. A ameaça de calote ficou na conta do ministro da Economia; o ônus da reforma, transferido ao Congresso, a quem cabe agora, por decisão do espectador, assumir autoria das maldades fiscais. Bolsonaro, isento de tudo, celebra a popularidade crescente.

Os atores ideológicos continuam seu show. Cenas de quinta categoria. O presidente puxa aplausos aos novos e antigos canastrões. Abraham Weintraub pode exibir contracheques em dólar do Banco Mundial, de onde envia vulgaridades às redes, enquanto o irmão, Arthur, pode acenar aos invejosos com os dois cargos que ganhou da OEA em menos de um mês.
Ficaram para trás o MEC, o quarto ministro e o enredo que salta do drama à tragédia. Descompostura política e impostura administrativa.

Na Saúde, faz-se uma releitura surpreendente da realidade. Com todos os equívocos já produzidos na pandemia, o leigo critica os profissionais ao revelar que a recomendação “fique em casa” não era apelo ao isolamento social, como parecia óbvio. Firmou o absurdo, no discurso de posse, que se tratava de campanha dos seus antecessores para o doente não procurar tratamento. O que, só agora, ele e o novo protocolo aconselham. A todos, a sua dose de cloroquina. Tudo o que o presidente quer.

A Cultura abandonou a cortina nazista do holocausto e o conformismo com a ditadura militar para desembocar num acampamento de extraterrestres aduladores. O presidente, homenageado, não se avexa.

Na penúltima de suas expedições contra a natureza, em que condena à destruição restingas e manguezais, o ministro do Meio Ambiente seguiu seu conhecido destino: um passo em falso após o outro. E, nas Relações Exteriores, prossegue-se na predação da arte do Barão do Rio Branco. Com direito a afagos presidenciais.

O espetáculo não flui, também, fora do eixo ideológico. O conflito do INSS com os peritos expõe a degradante situação dos trabalhadores. Minas e Energia sumiu. Infraestrutura está sem meios. E até o agronegócio, produtivo e eficaz, sofre os efeitos da insanidade diplomática. Nem com a reforma da Previdência, conquista única, o presidente espectador se engajou.

O problema é que não se trata de faz de conta, mas de um país e seus 210 milhões de habitantes. Com efeitos especiais e clima de apoteose, Bolsonaro, indiferente aos resultados, pensa apenas na sua razão de governar o primeiro mandato: a reeleição, para ser espectador do segundo.


Rosângela Bittar: A segunda metade

Guedes foi tragado pelo confronto do projeto liberal com o projeto populista

Sem rodeios: com a transferência do eixo de poder para a comissão técnica da reeleição, o presidente Jair Bolsonaro completa a erosão política a que vinha submetendo o outrora superministro Paulo Guedes. Ao contrário dos processos de desgaste de outros colaboradores, o do ministro da Economia foge aos costumes. Ele não cai, obrigatoriamente. Sua permanência é facultativa. Por enquanto, a decisão é ficar.

As negociações políticas passaram a ser feitas por um grupo de que fazem parte o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP), e os ministros Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). Com a participação acidental de Jorge Oliveira (Secretaria-Geral), Braga Netto (Casa Civil) e Tarcísio Freitas (Infraestrutura).

Alguns ministros continuarão atuando nos seus nichos temáticos: Tereza Cristina (Agricultura), Fábio Faria (Comunicações) e André Mendonça (Justiça e Polícia). Resguardada a livre intervenção de Bolsonaro nessas áreas. Exemplos, o caso recente do etanol americano e as questões domésticas de Queiroz e companhia.

Os militares continuam avançando. Chegaram à Funarte e assumiram definitivamente a Saúde. Acampam, bivacam e conquistam o terreno. As reformas da Previdência e da administração, bem como outras restrições, não os alcançam.

Tudo guarda coerência com o deslocamento das preocupações do presidente para o vale-tudo da campanha.

O governo não adota uma lógica na administração da Economia. Se for preciso alguma solução orçamentária, faz-se o que a política julgar conveniente.

Já não se falam das teses acadêmicas de Paulo Guedes. Ele não é mais o anjo da guarda (aliás, arcanjo) de um capitão-presidente ignorante em economia e finanças.

Guedes foi tragado pelo confronto do projeto liberal com o projeto populista. Nada surpreendente. O nacionalismo dos militares sempre esteve no lado oposto ao seu e não fascina mais o presidente e seu grupo próximo.

Desautorizado por Bolsonaro, vítima de rasteiras de colegas ministros, Guedes perdeu também o apoio pessoal do Congresso, ao adotar a violência verbal e a soberba no diálogo com os parlamentares, o que lhe criou antipatias profundas. Ali, a cada investida ele perde todas.

Nenhuma das suas posições sofreu golpe maior do que o pedido do presidente para ser derrotado no veto à anistia às dívidas das igrejas. Nem a troca de interlocutores na cobrança ao preço abusivo do arroz. O caso do Big Bang, trunfo de Paulo Guedes para se recuperar do Pró-Brasil, lançado à sua revelia, morreu na praia. E o dilema de furar ou não o teto foi desfeito com o presidente admitindo estudos para romper limites do orçamento.

Guedes teve recusadas, por estapafúrdias, sugestões sobre de onde tirar recursos para o Renda Brasil, programa do qual o presidente parece ter temporariamente desistido. Todas as fórmulas sugeridas avançavam no bolso ralo dos pobres. Ainda anteontem, surgiu mais uma: o congelamento das aposentadorias por dois anos. Ideia que ainda mantém sob reserva a informação fundamental, se vai ou não atingir e em que proporções os militares e os funcionários civis. E o que ocorrerá quando terminar os dois anos de prazo fixado.

Dificuldades que sugerem ser a proposta mais um bode de anedota na sala da CPMF. Todas soluções sem imaginação que não conferem com os celebrados títulos de Chicago que ornam a biografia do ministro.

Se Guedes decidir mesmo ficar, será como chefe de uma equipe técnica que trabalhará sob demanda.

Se sair, sua substituição é o que melhor explicará a natureza da segunda metade do mandato.

O populismo desbragado do momento dispensará explicações, como já aconteceu nas substituições da Educação, Saúde e Cultura. O ministro da Economia também poderá ser qualquer um. É infindável a reserva de anônimos do presidente.


Rosângela Bittar: A cartada decisiva

A configuração do Supremo será peça fundamental nas decisões envolvendo o PT

A posse de Luiz Fux na presidência do Supremo Tribunal Federal, amanhã, inaugura o processo de decisões judiciais do longo e tenso calendário eleitoral brasileiro, o da sucessão presidencial de 2022. No alto da lista de providências está a aprovação do grid de candidaturas e, nele, a dúvida na escuderia PT: estará ou não sob a direção de Luiz Inácio Lula da Silva?

A configuração do Supremo será peça fundamental nas decisões que darão vantagem ou desvantagem ao Partido dos Trabalhadores. A ascensão de Fux é uma desvantagem. Na divisão do STF, o novo presidente se alinha à Lava Jato e é titular absoluto no grupo dos punitivistas, em oposição aos garantistas. Entre os primeiros, estão os juízes que passam por cima de regras e adotam a máxima de que, para situações excepcionais, decisões excepcionais. Já os garantistas têm na letra da lei o seu único compromisso.

Na Segunda Turma do STF, no entanto, onde se julgará, ainda sem data marcada, o habeas corpus impetrado por Lula arguindo a suspeição do então juiz Sérgio Moro nas decisões que o tornaram inelegível, o PT enxerga uma vantagem. Tanto se o ministro Celso de Mello reassumir seu posto no STF antes da aposentadoria, em novembro, quanto se não voltar.

Celso teria comunicado a alguns colegas que sexta-feira, dia 11, estará no trabalho. O PT torce para que o decano participe da decisão sobre Lula. Relembra que, ao julgar caso semelhante em processo do Banestado, em que também foi questionada a imparcialidade de Sérgio Moro, Celso de Mello foi veemente ao admitir a falta de isenção do juiz. Agora, a argumentação seria ainda mais densa que a anterior.

Considerando a semelhança das situações, os políticos apostam num placar de 3 a 2 a favor de Lula (Celso, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski contra Edson Fachin e Cármen Lúcia).
Mas, se o decano não voltar, o PT também conta vitória, pois o empate de 2 a 2 favorecerá Lula.

A nova composição do Supremo é um teorema que inclui a discussão sobre a substituição do ministro Celso de Mello, o que pode tirar a vantagem do PT em casos futuros, de recursos, por exemplo. O novo ministro será, com certeza, fiel ao presidente Jair Bolsonaro. Mesmo rompido com Moro e unido ao Centrão, grupo implicado na operação anticorrupção, o presidente não deve capitular: contra a Lava Jato, sim, mas sempre e principalmente contra Lula.

Em pronunciamento pelas redes sociais, no 7 de Setembro, Lula apresentou uma verdadeira plataforma eleitoral em que foi do combate à pobreza à restauração da democracia. Mas se dispensou de declarar-se candidato, por ser óbvio: se conseguir o voto favorável do Supremo, ninguém lhe tira a candidatura.

Se, ao contrário, não se livrar da condição de ficha-suja, aí terá de enfrentar uma situação que o PT não admite, por enquanto: a preparação de outro candidato.

Aí, nesta fase, tudo passará a depender da segunda configuração política crucial para o partido, a das eleições municipais, essenciais para a disputa presidencial de 2022. Nas capitais do Sudeste, mas, sobretudo, em São Paulo, onde o candidato petista patina, nem sequer tem candidato a vice e está flechado à esquerda, ao centro e à direita.

Para se precaver da repetição deste quadro a nível federal, o PT, discretamente, trabalha dois nomes: o governador Rui Costa (Bahia) e o ex-prefeito Fernando Haddad (São Paulo).

Por enquanto, Haddad tem uma vantagem: foi candidato em 2018 e seus 45 milhões de votos não são um recall desprezível. Mas a cúpula do partido não o filtra bem: mesmo lulista, é considerado independente demais do partido.

Quanto a Rui Costa, sua principal vantagem é a capacidade de articular uma grande coligação centro-liberal, que já experimenta com êxito na Bahia. Bom gestor, criativo e ousado, falta-lhe ganhar visibilidade nacional.