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Roberto Romano: Federação, municípios, morticínio. Tragédia nacional

Temos um povo dizimado pelo poder, que age como conquistador em terra arrasada

Jair Bolsonaro ataca Estados e municípios como inimigos a serem destruídos. Para ele, não existem cidadãos merecedores de respeito nas unidades federativas. Em vez de lutar contra a pandemia, o presidente gera batalhas contra as bases administrativas e políticas do País. Surgem os frutos assustadores: mais de 350 mil brasileiros entregues à tortura da morte sem ar, o que revolta quem sente misericórdia ou segue a ética e a moral.

O ignaro governante reitera – em cena macabra – uma guerra antiga das culturas políticas humanas. Trata-se do choque entre poderes centrais e municípios. Estes últimos eram desconhecidos na Grécia e na Roma primitiva. Ali existiam soberanas cidades-Estado. Na Itália as urbes eram livres para organizar suas práticas internas. Vencidas por Roma e ela ligadas em federação (foedus) dela recebiam em especial a justiça. O prefectus, agente romano, resolvia os casos urgentes, mas o júri reunia habitantes locais, cujas instituições eram mantidas.

Os elos entre municípios e Roma se retraíam e se estendiam conforme as vicissitudes políticas, econômicas, sociais. Ora o poder se concentrava, ora se espraiava pelas bases federadas. Os municípios conservavam independência na sua organização, a assembleia do povo elegia os dirigentes. “Os magistrados municipais têm sobre os cidadãos o imperium. Todos obedecem à lei votada pelo povo e se inclinam diante dos administradores nas taxas ou nos trabalhos públicos. Em casos extremos o município cede aos poderes centrais e a lei de Roma toma a dianteira” (Mommsen). “Em casos extremos”, sublinhemos.

Após a chamada “guerra social”, quando as cidades italianas exigiram tratamento similar ao concedido a Roma, os municípios se generalizaram. Cito novamente o grande historiador Mommsen: “O município, constituído no interior do Estado e a ele se subordinando, é uma das mais notáveis manifestações políticas e das mais fecundas da era comandada por Sylla. As reformas constitucionais de Sylla definem um Estado cuja base é múltipla, a das comunas locais”. Dentre os municípios do Estado romano temos Olissipo, Lisboa. Aquelas unidades começaram a ruir por causa dos abusos das autoridades locais, abusos agravados pelo aumento sem freios do fisco em vantagem do poder central.

Os esqueletos municipais serviram às cidades europeias na resistência ao moderno absolutismo, cuja tarefa era unificar os Estados monárquicos. Nos século 16 e 17 tudo fizeram as Cortes para arrancar finanças e poderes dos municípios. Hobbes pensa as urbes como ameaça ao poder absoluto e vê como doença “a desmesurada grandeza de uma cidade, quando ela é apta a fornecer para além de seu próprio domínio os números e o pagamento de um grande exército” (Leviatã). A história da centralização estatal passa pela beligerância entre a Corte e os municípios. Tocqueville (O Antigo Regime e a Revolução) revela as táticas do rei: ele arranca das cidades as suas prerrogativas, como a de eleger os próprios magistrados, para revendê-las com lucro aos mesmos municípios. O prefeito assim escolhido, acrescenta Tocqueville, tem poder menor do que o fiscal do Reino. Daí ser possível aquilatar o grau de corrupção do Antigo Regime. Nele tudo se vende, tudo se compra. O Antigo Regime é um imenso Centrão.

Não citei Lisboa por acaso. Quando surge o Brasil os reis europeus – incluído o português – controlam os países, os municípios perdem força. Em nossa terra os municípios existem, mas não há foedus com a Corte, apenas subordinação. Líderes locais são desprovidos de real autonomia, como seus colegas da Europa absolutista. Tal realidade vigora no Império e na República. Maria Sylvia Carvalho Franco (Homens Livres na Ordem Escravocrata) analisa o controle e o parasitismo do poder central em relação às cidades. Impostos são retirados dos cofres municipais e para eles quase nunca retornam. Tal regime faz dos poderes subordinados fontes de recursos para o Executivo do País, sem retorno em obras públicas dignas do nome.

Com documentos a autora mostra aí a fonte brasileira da indistinção entre público e privado, o compadrio político e outras mazelas. Para obter verbas surgem as oligarquias regionais. No Congresso elas vendem apoio ao presidente/monarca. Tal é a gênese do perene Centrão.

As ditaduras do século 20 reforçam o Executivo nacional. Temos uma enganosa Federação a jungir Estados e municípios. Se na Presidência há uma pessoa despótica e desprovida de saberes – jurídicos, políticos, científicos, históricos –, o combate pátrio vira carnificina. Temos um povo dizimado pela virulência do poder, que age, em relação aos municípios, como conquistador em terra arrasada. Os mortos, hoje aos milhares, são enterrados sem justiça.

Se a Federação brasileira não deixar de ser apenas farsa, seguiremos sob o guante de dirigentes que violam os direitos de Estados e municípios, espaço onde vivemos ou morremos. Quem não respeita tal fato da vida pública não merece governar.

*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da Razão’ (Perspectiva)


Roberto Romano: O Congresso como pandemia

Mercenários? Há muitos por lá. Subornos? Ora... Preocupados com o bem público? Poucos

"Já passou a hora de pôr um fim à sua presença neste lugar que perdeu a honra pelo desprezo de todas as virtudes, contaminado por todos os vícios. Os senhores não passam de uma facção inimiga de todo bom governo, pois formam um bando de miseráveis mercenários. Seu gosto é como o de Esaú: vender seu país por um guisado e, como Judas, trair Deus por moedas. Existe uma única virtude entre os senhores e algum vício que não possuam? (...). Qual dos senhores deixou de trocar a consciência por subornos? Existiria um homem entre os senhores preocupado com o bem da Comunidade? Prostitutas sórdidas! Os senhores não infectaram este lugar sagrado e fizeram do templo divino um covil de ladrões por seus princípios imorais e práticas iníquas? Os senhores se tornaram odiosos para toda a nação pois foram postos aqui, pelo povo, para reparar suas queixas, mas se tornaram a fonte da maior queixa. Logo, o seu país apela-me para limpar esta estrebaria de Augias, pondo um ponto final nos procedimentos iníquos desta Assembleia. Com ajuda de Deus e a força que ele me deu, efetivo tal missão. Ordeno, com perigo das suas vidas, que os senhores saiam imediatamente deste lugar. Escravos venais, vão embora! Em nome de Deus, vão!"

Deixei sem aspas o trecho acima para que os informados sobre a história dos parlamentos tenham o prazer melancólico de identificar semelhanças entre o que teria ocorrido na Inglaterra do Rump Parliament e os dias de hoje, no Brasil. Cromwell, a quem se atribui a fala mencionada, se estivesse na porta do Congresso brasileiro, informado das manobras para tornar os parlamentares isentos das leis que eles mesmos devem manter, diria as mesmas palavras do parágrafo anterior. Nada falta para a similaridade entre a situação parlamentar na terra de Shakespeare (“existe algo podre no reino...”) e o Brasil de agora.

Mercenários? Existem muitos no Parlamento nacional. Praticantes de subornos? Ora... Preocupados com o bem público? Poucos.

Naqueles dias como hoje, o ambiente onde são feitas as leis ficou sujo como as estrebarias de Augias. Naquele espaço a equidade é expulsa dia a dia. Falta apenas a figura do ditador que expulsa, relho na mão, deputados que o apoiaram a preço de ouro e dos quais ele conhece a venalidade. Ele conhece seus interesses financeiros, próprios de mercadores de leis. A diferença fica por conta do personagem que fecha o Parlamento.

Cromwell assume, pelo menos de fachada, a ética protestante em seu florescer. Aqui, com muita probabilidade, o chicote nas costas dos deputados será movido por alguém sem ética ou respeito pelo bem público.

Elias Canetti em página memorável enuncia que, ao contrário da vida social marcada pela guerra de todos contra todos, no Parlamento “não deve haver mais mortos. Esta intenção é expressa (...) na imunidade parlamentar, que tem um duplo aspecto: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares”. O sistema democrático funciona se a imunidade for garantida. O Parlamento tem como alvo criar, no meio da batalha perene da sociedade, um espaço de paz e segurança. O Legislativo é sagrado porque nele reside a única esperança de algum diálogo, algum respeito. Nele, o instrumento relevante é o voto dos representantes. As cédulas de votação (hoje, o painel eletrônico) atenuam a morte coletiva. Quem usa de modo sacrílego tais cédulas “confessa suas próprias sangrentas intenções”. Assim, cada voto pode gerar vida ou trazer morte.

“O deputado é um eleitor concentrado”, resume Canetti. Se o Legislativo age em causa própria, perverte o sistema das cédulas. O Parlamento é feito para trazer esperança ao coletivo. Se legisla em próprio benefício, sua existência perde a razão de ser. Se decidem sem ouvir os representados, os parlamentares abreviam sua própria extinção. Tomo o inimigo do sistema parlamentar, Carl Schmitt. Se por várias razões “os representantes podem decidir em vez do povo, com certeza um representante único poderia decidir em nome de todo o povo. Sem deixar de ser democrático, o argumento justifica um antiparlamentarismo”. Tal senda prepara a ditadura do “representante único”.

A humanidade sofre ameaça inédita e no Brasil os campos da morte se espalham sem controle. Seria preciso esperar do Parlamento maior zelo pela vida coletiva. Não é o que vemos.

Em clara parceria com um presidente isento de prudência e de respeito aos governados, o Congresso coloca antes e acima de medidas para preservar a saúde pública os seus privilégios e prerrogativas. E usa como desculpa a prisão de um deputado que ousa exigir o fechamento do STF e do próprio Congresso, a retomada do nefasto Ato Institucional número 5.

Quos Deus vult perdere prius dementat – aqueles a quem o divino quer desgraçar, primeiro enlouquece. Talvez seja esta a pandemia maior nas instituições brasileiras, a começar com os frangalhos do Poder Legislativo. E para tal desgraça não existe vacina, salvo a repulsa máxima da cidadania que ainda resta em nossa pátria.

 *Professor da Unicamp, é autor de ‘razões de estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)


Roberto Romano: Palácio e picadeiro, incontinências de Bolsonaro

Se o líder pensa com os intestinos e não domina ódios pessoais, perde acatamento político

Das cenas grotescas protagonizadas pelo presidente Jair Bolsonaro, a que foi exibida no último dia 27 de janeiro é das mais repulsivas. Cercado por tietes, ele exibiu todo o ódio à imprensa. A causa do destempero encontra-se na denúncia sobre os estranhos gastos do Executivo federal com alimentos. Um estadista responderia com números e documentos. Mas, ao proferir, sorrindo, vocábulos pornográficos, o governante recebeu ovações de arruaceiros e chaleiras. Tal vitupério exige processo judicial por indecente uso do cargo. Frases que no pior bordel são evitadas, nos lábios de um presidente causam asco.

O “mito” não entenderá a citação abaixo, pois sua força cognitiva é pequena. Mas entre ministros, políticos que a ele se aliam e antigos apoiadores talvez exista algum saber. A eles me dirijo. Ao discutir a governabilidade, diz Spinoza: “A república não pode fazer com que os homens (...) respeitem o que gera riso ou náusea. (...) Para garantir o poder é preciso guardar as causas do medo e do respeito, caso oposto não há mais um Estado. É impossível para os que operam o mando político (...) bancar o palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis por eles mesmos estabelecidas, pois assim eles perdem a majestade e mudam o medo em indignação e o estado civil em estado de guerra” (Tratado Político). Tais enunciados vêm de Maquiavel, pensador das práticas que permitem manter o poderio civil.

Repito: o presidente nada compreende de semelhantes teses. Mas quem negou sua utilidade perdeu cargos, para não mencionar a cabeça. Assim foi com Carlos I da Inglaterra e Luís XVI na França. Sempre chega a vez de quem imagina a si mesmo como impune e infenso às leis.

O decoro na fala e na postura corporal integra toda autoridade política, jurídica, religiosa, militar. Menciono outro escrito que certamente não será compreendido pelo sr. Jair Bolsonaro e seus marombeiros. Trata-se de Hannah Arendt: “Se for preciso verdadeiramente definir a autoridade, deve-se fazê-lo opondo-a ao mesmo tempo ao constrangimento pela força e à persuasão por argumentos”. No setor público ou privado cada um reconhece a superior hierarquia de quem ostenta autoridade. Não é pelo vezo de prender ou censurar, perseguir ou caluniar aos berros os oponentes que alguém consegue respeito público.

Dito de outro modo: se você precisa gritar para que lhe obedeçam, sua autoridade não existe. Inteligência, decoro, respeito à hierarquia, autoridade: um estadista pode receber da vida doses desiguais desses elementos. Ele compensa a fraqueza de um com a força de outro. Mas o dirigente que enxovalha o seu cargo não tem autoridade, só lhe cabe o título atribuído por Spinoza: palhaço.

Todo clown possui dupla face: a risível e a trágica. A primeira é exibida a cada novo dia pelo sr. Jair Bolsonaro. A trágica surge em decisões imprudentes e impudentes durante a pandemia. Tantas sandices comete o “mito” – e aí vai um alerta aos militares responsáveis pela força física estatal – que podemos temer: a indignação diante do descalabro pode “mudar o estado civil em estado de guerra”.

Aliás, são hábitos do líder a mão armada e o incentivo aos instrumentos da morte que impulsionam fraturas civis. Junto vem o boicote pérfido a vacinas como a Coronavac – esperanças de vida – por mesquinhos alvos políticos. A teoria infame de Carl Schmitt é praticada por ele: a política como forma de gerar o inimigo. E assim são corroídos os elos que garantem a união interna do Estado.

Recordo o dito usado por João de Salisbury (Policraticus) sobre governantes desprovidos de saber. Rex illiteratus quasi asinus coronatus est (um rei iletrado é quase um asno coroado). Para governar urge mover conceitos políticos, militares, filosóficos, jurídicos e outros. A edificação do Estado moderno se norteia pelo preparo do governante. Erasmo publicou um tratado sobre o tema, Institutio Principis Christiani. Ele cita Salisbury: “Liberdade real e virtude só podem ser obtidas onde existe a liberdade de palavra. O bom príncipe do bom Estado deve aceitar pacientemente as palavras livres, quaisquer que elas sejam”. Os turpilóquios de Bolsonaro contra a imprensa ameaçam o verbo independente. Erasmo adverte contra os aduladores. Na educação do príncipe o cavalo ensina a governar, pois não aceita violência e recusa imperícia ou lisonja. O sáfaro que ignora tais peculiaridades equinas vai ao chão. Aduladores, como os do espetáculo obsceno indicado no início deste artigo, lambem botas do poderoso ocasional. Se ele perde força, as línguas de aluguel procuram outra fonte de poder.

Gabriel Naudé, autor das Considerações Políticas Sobre os Golpes de Estado (1640), louva o saber do governante e recorda o dito de Luís XI: “Quem não sabe dissimular não sabe governar”. Se o líder pensa com os intestinos, em vez do cérebro, e não domina ódios pessoais, perde acatamento político.

Os destemperos de Jair Bolsonaro evidenciam carência de autoridade, decoro, saber. Ele quer os poderes do Legislativo e do Judiciário. O lugar que lhe cabe, no entanto, não é no palácio, mas na arena ou picadeiro.

*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)


Roberto Romano: Carteiradas absolutistas do STF e do STJ

No Brasil, funcionários públicos e suas famílias estão acima de quem paga impostos

A diferença entre regimes absolutistas e Repúblicas modernas reside nos direitos usufruídos pelas hierarquias do Estado. Para garantir apoio ao rei e à centralização do poder o Antigo Regime concede privilégios ao clero e aos nobres. Isenção de impostos, cargos públicos, dignidades, pensões e prebendas, regalos que minam os cofres nacionais. Naquela forma política existem dois setores. O primeiro reúne funcionários estatais. Ministérios, empregos civis e militares se destinam aos nobres. Os padres cumprem idênticas funções, menos as militares. Mas Richelieu se apresenta sob armadura, líder dos ataques aos nobres protestantes. O cerco de La Rochelle mostra um cardeal bélico e político que tenta esmagar minorias.

Nobres e clero recebem trato diferenciado na vida política, econômica, cultural. Quando não herdam cargos e privilégios, seus integrantes os compram. A garantia do poder centralizador, portanto, está na corrupção e na venda de apoio ao governante.

Daí surge a bipartição das pessoas. Quem se move no aparelho do Estado usufrui prerrogativas e privilégios, generosos se o rei precisa de ajuda. No outro lado, as pessoas sem prerrogativas nem privilégios, salvo quando elas possuem dinheiro para comprar cargos. O Estado ostenta dois tipos de súditos: os que recebem todas as graças, o clero e a nobreza, e os que integram um terceiro setor sem rosto próprio. 

A Revolução Inglesa do século 17 institui a República, atenua os privilégios, amplia os direitos universais. Um exemplo: no exército os postos são herdados pelos nobres ou adquiridos por graça real. Como os aristocratas usam perucas enormes, símbolo de sua superioridade, os republicanos abolem as ditas perucas, uniformizam o corte de cabelo, estabelecem critérios de mérito para a entrada na hierarquia das forças armadas. É o tempo dos cabelos militares curtos (os Roundheads, simultâneos ao New Model Army, cuja estrutura é oposta à do Antigo Regime), que desafiam os privilégios dos nobres. Em todos os setores do Estado republicano ocorrem mudanças rumo à igualdade. 

Os puritanos, expulsos da Inglaterra por sua fé religiosa e política, fundam na América do Norte um Estado no qual, em vez da pretensa superioridade de elites, regem o princípio da accountability (retomado pelos republicanos da ordem democrática grega), a livre imprensa (basta ler a Areopagítica, de John Milton) e direitos iguais. A presença norte-americana na Revolução Francesa é relevante: liberdade, igualdade, fraternidade.

As origens sociais (nobre/plebeu) deixam de valer no Estado moderno. Um funcionário, juiz da mais alta Corte ou governante, não herda nem transmite cargos ou privilégios aos seus familiares. Entra-se na hierarquia estatal por mérito (concurso) ou por eleição popular. Nos Estados Unidos vigoram as duas formas: juízes são concursados ou eleitos. Em ambas as hipóteses as vantagens e desvantagens dos cargos pertencem ao indivíduo, não à sua família. Esta última pode ter importância nas campanhas políticas ou em acertos financeiros ilegais para provimento de funções. Mas a regra é a plena separação dos indivíduos e de sua grei familiar.

Certa feita sou convidado para a posse de um desembargador amigo. Chego ao salão, onde fitas de isolamento separam dois terços do espaço. Uma hostess vestida de vermelho – o Judiciário aprecia muito tal cor – me pergunta: “O senhor é de alguma família ou apenas convidado?”. Apenas convidado... Espantei-me: na casa da Justiça paulista uma cerimônia pública reduzida a festinha “dos entes queridos”! O Estado posto como propriedade familiar: dois terços para os familiares, um terço para a cidadania. É o que vemos no Brasil, renitente em usos e costumes absolutistas, pré-republicanos. Os funcionários – juízes, parlamentares, governantes – e suas famílias estão acima dos que pagam impostos.

No final de 2020 continua a ausência total de accountability nos Poderes nacionais: Executivo, Legislativo, Judiciário. A cidadania recebe nova bofetada absolutista na face: o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), pretensos garantidores da República e da igualdade, exigem tratamento especial na aplicação de vacinas contra a covid para seus integrantes e familiares. O sistema político e jurídico deve ser coerente: na Constituição republicana as leis precisam ser assumidas por todos e cada um dos cidadãos. Ninguém vive com segurança num país onde ocupantes dos Poderes podem, pelo uso de sua carteira profissional ou por importância política, separar o corpo nacional em dois, como no Antigo Regime. Com o ato ignóbil dos tribunais superiores é solapada a base física e anímica da República. Cortes são necessárias para manter a lei. Mas se elas próprias corroem a fé pública com exigências de privilégios – no caso, a vida e a morte dos brasileiros estão em jogo –, perdem serventia e podem ser fechadas sem grandes comoções públicas. 

Termino: os excelentíssimos magistrados deveriam estudar a história do STF e do STJ. Dos muitos feitos execráveis desses tribunais, a carteirada na fila das vacinas é dos mais hediondos.

*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)


Roberto Romano: A pandemia do ódio, Trump e o Brasil

A governança é arte de promover a amizade entre cidadãos, laço essencial do Estado

Tristes povos os que suportam mal perigos naturais e rompem os laços de sociedade. Coletivos bem constituídos no campo civil enfrentam doenças em melhores condições do que os carentes de elos internos sólidos. Uma via para entender o caso é o livro de Tucídides sobre a catástrofe militar do Peloponeso.

Espartanos invadem o solo onde governa Péricles, cuja política, mesmo apoiada pela Assembleia, enfrenta a desunião social. A pandemia também ameaça o líder. Deixando o poder, logo ele morre como vítima. A narrativa de Tucídides mostra como os atenienses reagem à peste. O mal biológico acelera a fragmentação do regime. No início, “nem os médicos puderam debelar a praga, por ignorância do que era ela. Eles próprios morreram mais rápido pela proximidade dos enfermos” (The Peloponnesian War, tradução de Th. Hobbes, Livro II, 47).

O termo para designar a ignorância dos médicos e sua morte é agnoia (ausência de saber, erro). Cidadãos morrem por agir “normalmente” na moléstia. Muitas lições a passagem traz hoje aos médicos, políticos, militares, empresários, trabalhadores. Raros aprendem com a pandemia política ou biológica. O “normal” reside em ignorar o perigo.

“O aspecto mais terrível da doença é a apatia das pessoas atingidas (…). O contágio ocorre nos cuidados de uns doentes para com os outros e os mata em rebanho. É a maior causa da mortandade, pois se os doentes se abstêm por medo de visitar uns aos outros, todos perecem por falta de cuidados (…). Quem sobrevive com maior frequência se compadece em face dos enfermos e moribundos, pois conhecem a doença por experiência própria e confiam na imunidade. O mal nunca atacaria a mesma pessoa duas vezes com efeitos letais. Eles recebem elogios de todos e, no entusiasmo alegre daquelas circunstâncias, alimentam a esperança frívola de que pelo resto da vida não serão atingidos por outras doenças.”

Quem vive no campo vem para a cidade e perece espremido. Mortos postos em pilhas, cada um enterra os seus como pode. Corpos para serem incinerados são lançados em fogueiras alheias. Não existe a polis, a sociedade, a vergonha (Aidós), o respeito. Mesmo as aves carniceiras fogem dos corpos apodrecidos.

Elias Canetti comenta a passagem de Tucídides para evidenciar o fenômeno das massas que perdem o sentido da vida social e a visão política (Massa e Poder). Quando regimes políticos sucumbem à anomia, doenças oportunistas corroem suas bases e ressurge o estado de natureza. Vemos o interesse de Hobbes pela Guerra do Peloponeso: Tucídides permite entender o pacto proposto no Leviatã. (cf. Mario Ricciardi, Le retour du Léviathan. Peur, contagion, politique). Sob Péricles, brilhante estadista, embora tisnado pela demagogia, Atenas perde forças vitais em razão da inimizade crescente, não apenas em face dos atacantes externos, mas nas lutas internas. Quando a epidemia chega, o corpo cívico já está fragmentado, sem defesas.

A governança é arte de tecer elos entre cidadãos, promover a sua amizade, laço essencial do Estado. Tal doutrina é posta no diálogo Político de Platão. Se, pelo contrário, o dirigente divide as pessoas, a tirania surge com o signo da morte. Segundo Platão, a polis é ligada internamente pela philia. “O maior bem para a cidade é o que a une e a torna una”(República, 462 a-b). Tal elo faz dos múltiplos indivíduos um conjunto poderoso. “Entre amigos tudo é comum” (República 424 a). O Estado pertence a todos e cada um deve respeitar os concidadãos. No século 20 um jurista inverte a tese platônica e proclama que a política é arte de gerar inimigos internos e externos. Carl Schmitt morreu, mas sua doutrina vive em cabeças ignaras e poderosas. “Não se pode razoavelmente negar: os povos se unem conforme a oposição amigo/inimigo. Tal oposição é uma realidade atual e virtual em todo povo que existe politicamente” (Der Begriff des Politischen, 1927).

A passagem foi usada, de modo infeliz, por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Regimes tirânicos criam o inimigo interno, e assim temos o Holocausto e muitos genocídios. Até o fim da vida Schmitt insiste sobre a inimizade política: “Um povo só está seguro de sua identidade quando, de modo claro e sem equívoco, ele tem um inimigo” (Sobre a Tele-democracia, 1970, in Machiavel/Clausewitz).

Se a democracia grega falece com Péricles e ignora os conselhos platônicos, o que poderíamos dizer ontem dos Estados Unidos dominados por Trump e agora da nossa pátria, cujo presidente fomenta a divisão, gera inimigos, despreza a ciência médica e a própria ameaça da pandemia? Os norte-americanos exorcizaram o pesadelo político que desnorteia seu Estado. Será difícil ali retomar a via da comunidade, estratégica para garantir a força de um povo.

Aqui, infelizmente, as portas da UTI democrática se fecham, a moléstia do ódio e da ignorância corroem os pulmões do País E a liderança política não chega ao calcanhar de Péricles… Ou de qualquer outro estadista digno do título. Aqui d’el-rey!

*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)


Roberto Romano: O peso ético do termo ‘leviano’

O apodo aplicado ao ministro Gilmar Mendes não poderia ter outro endereço?

Em nota de repúdio às declarações do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), os comandantes das Forças Armadas e o ministro da Defesa o acusam de várias coisas. Na ética, a mais grave afiança que Mendes falou de modo leviano. Para um juiz ou militar que se preze é essencial o recato da linguagem.

O modelo do soldado virtuoso começa em Esparta. A vida silente encontra seu elogio naquela cultura. Mesmo em Atenas, onde o cidadão assumia ao mesmo tempo a guerra e a segurança interna, a fala excessiva não era apreciada. Longos discursos seriam reservados para a Assembleia. Ali se orientava o destino de todos, generais incluídos. A inflação das palavras, no governo do Estado, foi combatida pelos políticos e filósofos gregos.

Plutarco, de quem o mundo ocidental recebeu o maior contributo ético – sobretudo em matéria de moralidade militar –, redigiu tratados sobre o abuso das palavras e os danos que ele acarreta. No De Garrulitate e em seu par, o De Curiositate, o pensador adverte – com base em fatos reais – sobre os perigos da fala sem peias. Comandantes militares que frequentam barbearias são avisados: a conversa descuidada com o fígaro pode ser ouvida por espiões e arruinar a defesa coletiva. Guardar o discurso sóbrio evidencia uma das mais celebradas virtudes militares.

Quando se aponta alguém como leviano é preciso que tal acusação seja absolutamente certa e comprovada em fatos e lógica. Caso oposto, trata-se de uma quebra perigosa da ordem pública e privada. O acusado é atingido no fundamento da ordem civil: a personalidade reta.

Em todas as Constituições, mesmo nas ditaduras que marcaram o Brasil no século 20, a condição para exercer um cargo oficial e garantir negócios privados reside na reputação ilibada. O leviano não tem tal direito. Indicá-lo como irresponsável – é o centro da fala emitida pelo comandantes e ministro da Defesa – significa dele extrair autoridade em matérias de Estado e poder. Provada tal acusação, todos os atos do indigitado perdem forca legítima em decisões que envolvem a cidadania. Pensemos nas consequências: o Supremo Tribunal Federal é um corpo. A personalidade de seus integrantes só pode viger de forma coletiva, cada um deles responde pelo todo e vice versa. Se um ministro do STF for leviano, o fato macula o colegiado. Logo, as decisões assumidas por ele podem ser legais, mas sem legitimidade.

A fé pública exige decisões legais e legítimas. Sem fé pública o próprio Estado é corroído. Antes de comunicar ao povo que um ministro da mais alta Corte de Justiça é leviano, todo servidor do Estado deve refletir várias vezes, pois se trata de minar a obediência civil, a lei e a ordem. Tais imperativos valem para os militares que apoiam o governo.

Volto às nossas origens éticas e às virtudes militares ou civis. Somos herdeiros da Grécia e de Roma. O Direito, a política, a vida militar não fogem à regra. No Estado moderno, atualizando as formas romanas da vida pública, as teses de soberania e majestade, contra o exercício ditatorial ou aristocrático, aplicam-se à totalidade dos cidadãos. Faltar com o decoro na fala e nos atos é destruir a fé pública.

Nenhum servidor do Estado, civil ou militar, tem o direito de ser leviano. Seu ofício exige a ponderação, a gravitas. Para os romanos, “falar ao público dizendo o que ele gostaria de ouvir é apanágio do homem que se define ao redor da levitas. A gravitas comanda uma atitude adequada que não se curva em proveito do sucesso político passageiro” (Yavetz, Z., La Plèbe et le Prince). A “leviandade consiste em obter o favor do povo desconsiderando o bem geral” (Yavetz). O governante não pode tratar os cidadãos como tolos ou crianças. Ele deve seguir a gravitas dicendi (Hellegouarch’h, J., Le Vocabulaire Latin des Relations et des Partis Politiques sous la République).

Perguntemos aos comandantes e ao ministro: dizer que uma pandemia que já ceifou a existência de cerca de 80 mil brasileiros é como uma “gripezinha” é próprio da gravitas? Louvar certo fármaco para a cura de tal moléstia, contra advertências de especialistas em medicina, é próprio da gravitas? Zombar do sofrimento vivido por índios, abandonados aos matadores ferozes e ao vírus, sem uma palavra de apoio, integra a gravitas? Vetar o fornecimento de água e cuidados sanitários aos mesmos indígenas integra a gravitas? Afastar dois ministros médicos da Saúde porque não aceitaram propagandear a mezinha predileta do governante integra a gravitas? Desafiar autoridades médicas e sem máscara reunir multidões, apertar mãos de seguidores que exigem o fechamento do Congresso e da Justiça integra a gravitas?

Muitas perguntas podem ser feitas sobre o tema. Apenas me dirijo com respeito aos senhores militares: o apodo aplicado ao ministro Gilmar Mendes não poderia ter outro endereço? Decida a sua consciência. Na era da imprensa livre e das comunicações acessíveis a todos, agir de um modo e acusar outrem pelos próprios erros não é virtude. O nome da coisa é diverso, muito diverso.

*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros Estados da Razão' (Perspectiva)


Roberto Romano: Bolsonaro, o Absolutista

Líderes bisonhos desejam, mas não possuem saberes para instalar uma ditadura

Jair Bolsonaro exibe notórios traços autoritários já desde antes de sua eleição. Elogia o regime instaurado em 1964 e a tortura, atua contra os direitos cidadãos e, sobretudo, zomba dos direitos humanos. Tais marcas são visíveis para todos, impossível ignorar discursos e gestos, incluindo as mãos prontas para acionar armas.

O projeto de poder que o conduz é simplório e demagógico, mas contém em seu bojo séculos de pensamento contrário à democracia, ao liberalismo, à modernidade. Mas somente no exercício do cargo máximo da República ele revela todo o ranço reacionário e liberticida que move o seu ânimo.

Em ato de que foi cúmplice, o presidente deu ultimato aos demais Poderes: ou seguem o seu ditado ou aceitam o peso das Forças Armadas, que o apoiam. Tal ameaça piora quando diz que a Constituição será obedecida e, notemos, ele é a Constituição. Com a frase Bolsonaro retoma as teses teológico-políticas do século 17 inglês, em especial as de Tiago I. Para aquele monarca, rex est lex (o rei é a lei). Desde aquele tempo ocorre a luta entre juízes independentes, Parlamentos e governos despóticos (B. Bourdin: Theological-Political Origins of the Modern State). Em cada lance histórico um deles obtém hegemonia sobre os demais. Em cada novo movimento de controle estatal surge um regime político diferente.

O programa de Montesquieu - por ele encontrado no diálogo As Leis, de Platão - sobre a harmonia política é um modelo a ser perseguido, nunca foi realizado. Quando a tese liberal democratiza o Estado, o puro modelo se aproxima dos fatos. Mas se a crise de poder deixa as instituições acéfalas, o Judiciário se imiscui ou o Parlamento tudo decide.

O mais frequente é o Executivo praticar golpes de Estado para impor os seus alvos. A crônica dos golpes marca os nomes de Napoleão e de seu sobrinho, seguidos por muitos ditadores. Nos golpes os governantes se livram das obrigações instauradas pela democracia liberal, sobretudo a liberdade de imprensa e a responsabilização dos que ocupam cargos públicos.

Sem democracia o soberano não deve satisfações aos Parlamentos, aos juízes, à cidadania. Tal costume foi combatido na Inglaterra por Edward Coke (1552-1634). Ao admoestar o rei, que defendia seus privilégios contra “os advogados”, Coke afirma que o soberano “não foi educado no conhecimento das leis da Inglaterra”. Tiago I replica: se Coke tem razão, o rei deveria estar sob a lei. A hipótese seria “traição evidente”. Tiago cita Bracton: Rex non debet esse sub homine sed apud Deo et lege (o rei não deve estar sob a lei humana, mas sob a lei divina).

Em 1616, Tiago adianta que “os reis são justamente chamados deuses, pois exercem um modo de semelhança do Divino poder sobre a Terra. Considerados os atributos de Deus, vemos o quanto eles concordam com a pessoa de um rei. Deus tem poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbítrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable). O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem de seus súditos, têm poder de erguer e abaixar, de vida e morte, julgar acima de todos os súditos em todos os casos e só devem prestar contas a Deus (yet accountable to none but God)”.

Ainda em 1616 ele se dirige aos juízes da Star Chamber: “Não usurpem a prerrogativa da Coroa. Se aparecer uma questão ligada à minha prerrogativa ou mistério do Estado, trato que não lhes diz respeito, consultem o rei ou o seu conselho, ou ambos; porque tais matérias são transcendentes. As prerrogativas absolutas da Coroa não são assunto para a língua de um advogado nem é legal disputar sobre elas”.

Coke foi preso na Torre de Londres por negar as referidas prerrogativas. É inaceitável para o governante absolutista a norma que obriga os dirigentes a prestar contas de seus atos.

O conceito de accountability, com origens na democracia grega e retomado no Renascimento, liga-se diretamente à liberdade de imprensa. Basta ler os escritos elaborados pelos puritanos (precursores dos que fizeram a Revolução Norte-Americana), em especial os de John Milton, como a Areopagítica. Vencedora em muitos momentos da História, a democracia liberal perdeu o controle do Estado desde a contrarrevolução conservadora iniciada no século 19. Ela persiste em ideários retrógrados que chegaram ao poder via pactos demagógicos com setores religiosos inimigos da ciência. Tais líderes bisonhos desejam, mas não possuem saberes para instalar uma ditadura. Iletrado, o dirigente não governa e quer ditar. Recordemos o chiste de César contra os sáfaros de Roma: Sylla nescivit literas, non potuit dictare - ou seja, Sylla ignorava as letras, não podia ditar (Curtius, E.: A Literatura e a Idade Média Latina).

Infelizmente devemos repetir hoje o dito de Coke: “Bolsonaro não foi educado no conhecimento das leis brasileiras”. Quem identifica sua pessoa com a Constituição repete de modo hilário Tiago I (um governante culto, afinal). Mas um dia “o rei” deixará os palácios rumo à insignificância.

  • Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)

Roberto Romano: Política e falsificação

Com ódio à liberdade de oposição e à imprensa, Bolsonaro segue a via da pequenez no mando

Em livro pouco discutido no Brasil, Jean Pierre Faye analisa um documento diplomático, bélico e político da Alemanha em conflito com a França no século 19. Falo do Despacho de Ems, que se liga a Bismarck. Em 13 de julho de 1870, Guilherme I reuniu-se com o embaixador francês. Do encontro resultou um comunicado em forma de telegrama, de imediato remetido ao Chanceler de Ferro. O político tomou o texto, cortou-o em pedaços e fez de certa declaração anódina um insulto à França. Rápido, ele enviou o documento falso para a imprensa europeia. Os dirigentes da Europa tiveram em mãos no dia seguinte uma bomba poderosa contra os tratos pacíficos. O suposto insulto à França nos trechos manipulados levou-a a declarar guerra à Alemanha.

Apenas 20 anos mais tarde Bismarck reconheceu ter falsificado o telegrama. Ele mesmo apresentou o seu truque. Mas já em 1873 um deputado alemão dizia claramente que o autor da mentira era o dirigente do país. Um jornal de Viena, em 1892, contou a maneira como foi deturpado o telegrama e citou as próprias sentenças de Bismarck sobre a proeza: do texto, diz ele, “deixei apenas a cabeça e a cauda. Assim o telegrama parecia algo completamente distinto. Li-o para Moltke e Roon segundo a nova versão. Ambos exclamaram: ‘Esplêndido, causará efeito!’. Almoçamos com o maior apetite”. Faye comenta: que uma falsificação tenha sido tomada pelos adversários como insulto, compreende-se. Mas que o rei prussiano, conhecedor do texto original, tenha acolhido a patranha é algo que mostra o poder das manipulações quando os ânimos assumiram a guerra da propaganda que antecede o morticínio de seres humanos.

O truque bismarckiano possibilitou uma guerra, contribuiu para unificar a Alemanha, piorou o sentimento antigermânico na França, ajudou a semear a 1.ª Guerra Mundial, que fortaleceu os ódios cujo fruto foi o nazismo. Falsificar notícias era prática comum dos políticos europeus, vezo cujo ápice se deu no reinado de Goebbels, inimigo dos jornais que não jurassem pela sua cartilha imunda. Goebbels foi capaz de manipular redações em favor do mando totalitário. As análises de Faye são complexas e ajudam a entender a falsificação das declarações oficiais em regimes que abolem as liberdades, a começar pela de imprensa. Além da edição francesa original, temos uma excelente tradução espanhola (Los Lenguajes Totalitarios, Ed. Taurus). Em nossa língua existe o volume da Editora Perspectiva, sob o título Introdução às linguagens Totalitárias: Teoria e Transformação do Relato.

Em 31 de março de 2020 o presidente Jair Bolsonaro falsificou um texto emitido pelo presidente da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a quarentena no combate ao coronavírus. O responsável pela instituição dizia ser obrigatória a ajuda aos que não têm renda, para que a medida seja bem-sucedida. Lépido, o nosso presidente “cortou a cabeça e a cauda” do texto e anunciou nas redes sociais a “tese”da OMS, que seria exatamente igual à sua, a reclusão vertical. E, claro, repisando a volta do comércio, da indústria, de todas as atividades econômicas e sociais à “normalidade”.

A prática de Bolsonaro não é inédita. E nenhuma originalidade existe na fabricação, por governantes, de fake news que os beneficiem. Desde a Grécia democrática existiram manipuladores de fatos e discursos. Um crítico poderoso de semelhantes boateiros é Platão. A guerra contra os demagogos e sofistas definiu a ética a ser assumida pelos que recusam o servilismo. O universo governamental desde então se divide entre os dirigentes que não reconhecem limites em falas e atos e os dirigidos para os quais o verdadeiro não é luxo, mas gênero de primeira necessidade.

Entre os que manipulam eventos e discursos, alguns chegam à condição de estadistas, para o bem e para o mal. É o caso de Bismarck, gênio político que beneficiou sua gente, por um lado, e a lançou no abismo da morte, por outro. O telegrama de Elms está inscrito entre os pontos relevantes da História moderna. Mas os pequenos artesãos do falso, como Goebbels, só ajudaram a apressar a morte de seu povo, tendo como prefácio a matança que levou ao Holocausto. Não existe falsificação inócua e todas produzem, como expõe Faye, os efeitos deletérios do poder que aspira a abolir limites éticos em seu exercício.

Com ódio à liberdade de oposição e à imprensa, Bolsonaro segue a via da pequenez no mando. Ele esquece, no entanto, a distância entre a sua falsificação e a de Bismarck. No século 19 não existiam rádio, TV, internet, redes sociais. Ainda era possível reunir jornalistas e veicular um texto adulterado como se fosse verdadeiro. Hoje não é possível fazer o mesmo: para além dos seguidores incondicionais, milhões e milhões de seres divergem do governante. Eles publicam o texto inteiro de todas as declarações. Mentir após falsificar uma fala ou ato é tarefa impossível.

Uma nota final: Bismarck era Bismarck, Bolsonaro é Bolsonaro.

*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)


Roberto Romano: Forças Armadas e soberania

Presidente deve ser advertido sobre as consequências de quebrar a hierarquia...

Os enunciados seguintes são dirigidos às Forças Armadas. Tempos atrás publiquei neste espaço o texto intitulado Presidência subversiva. Nele discuto os dilemas por nós vividos diante da imprudência – em assuntos graves – evidente no chefe de Estado. Lembrei os monopólios da força, norma jurídica, impostos.

Mencionei a hierarquia do poder público, sobretudo no setor militar. Sem ela desaparece a instituição estatal, da administração à justiça e à defesa armada. O enfraquecimento da ordem hierárquica preocupa as mentes democráticas. O pior desafio dessa anomia é que ela tem origem na pessoa que deve zelar pelo respeito às normas. A subversão do palácio é partilhada pelos que precisam garantir a segurança coletiva.

Para discutir aqueles itens retomo o polêmico conceito de soberania. Na ONU o enunciado fundamenta a tese consagrada por Tomas Hobbes de que o Estado possui suprema autoridade no território, plenitude da jurisdição interna, imunidade diante da jurisdição de outros Estados. Para todos o nível hierárquico é o mesmo. No plano interno a soberania define o único poder com direito legítimo de administrar corpos e mentes. Mas no campo interno existe hierarquia e sem ela desaparece o Estado. A soberania – segundo o termo filosófico antigo – é a alma do poder público. Sem ela resta um mecanismo fragmentado e caótico.

No Brasil a soberania sofreu atentados cujos frutos definem nossa História. O enorme território custou guerras em sua preservação. Violências foram cometidas contra os habitantes anteriores: no campo anímico, os sacerdotes católicos e na carne, os caçadores de riquezas. O trato entre colonos foi definido pela violência e falta de controle legal. Os sermões do padre Vieira denunciam, além da corrupção, o frágil respeito pela vida e pelas propriedades civis. No século 18 surgem os primeiros reclamos de soberania nas regiões coloniais.

Aquelas reivindicações iam contra a forma de controle exercida por Lisboa. Na Inconfidência, pontos estratégicos eram a fundação de uma universidade e de fábricas. A censura e o controle português tornavam inviável a vida fabril e intelectual. Além do veto aos livros não religiosos, jovens abastados seguiam para a Europa se desejassem educação superior.

A Corte no Rio definiu o Estado incipiente como oposto à democracia. Fugido de Napoleão, o regime português aqui instalou formas administrativas inimigas das conquistas democráticas instauradas na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França. Em vez de um aparelho estatal controlado pela soberania popular, aqui se mantiveram os defeitos do Antigo Regime, como a troca de favores nos cargos públicos. A burocracia à brasileira é teia anárquica, o provimento dos cargos dá-se em trocas do governo com poderosos líderes civis. Sem disciplina e hierarquia administrativa, foi afastada a “gente ordinária de veste” sem nobreza ou pistolões de pessoas ricas.

As Forças Armadas, para serem aceitas, sofreram oposição dos grandes proprietários, os chamados de coronéis. A eles não interessava uma força impessoal sem vínculos de favor com poderosos regionais. Ao resistirem ao monopólio da força entregue ao Estado federal, que usaria como instrumento privilegiado o Exército, os oligarcas se organizaram em federações paralelas, cujo poder, no entanto, era essencial para os que dirigiam o campo federativo.

Desde o século 19 insurreições surgiram em todo o território. Tal fato impulsiona a política de centralização sem atenuar o poder dos oligarcas. Resultado: o núcleo federativo se impôs sobre os governos estaduais, mas os presidentes da República dependem do apoio trazido pelos oligarcas no Congresso. Governadores são destituídos do poder decisório e dependem dos coronéis para serem ouvidos pela Presidência da República.

O atual mandatário acirra discórdias entre dirigentes estaduais e incentiva forças disruptivas que minam a autoridade daqueles dirigentes. O problema atinge pontos insuportáveis no trato com Polícias Militares, que devem obediência e disciplina aos governadores. No Ceará e outros Estados, policiais em pleno motim decretam o fechamento do comércio, o toque de recolher, com truculência inaudita.

Assim, eles quebram a hierarquia e ameaçam o monopólio da força, base da soberania. Ademais, impulsionam a desagregação das partes na estrutura do Estado nacional. A continuar tal prática, com o silêncio incentivador da Presidência, o papel das Forças Armadas será reduzido na ordem interna do País. O Exército, a Marinha, a Aeronáutica devem gerir a força do todo estatal para assegurar a soberania no território. Se policiais militares amotinados controlam cidades, eles agem em nome de soberanos anônimos e irresponsáveis, estraçalham o território, abolem a soberania legítima. Se tal coisa se agrava, breve não existirá um país, mas fragmentos soberanos. As Forças Armadas serão descartáveis.

O presidente da República deve ser advertido sobre tais consequências nos instantes em que ele mina a autoridade dos governadores e quebra a hierarquia de comando civil e militar.

✽ Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)


Roberto Romano: Diplomacia e fé pública

Triste é a chefia diplomática do País, exercida por quem não respeita a instituição

O Brasil sempre esteve no centro de ações diplomáticas. No Tratado de Tordesilhas, posto ao arbítrio da suprema autoridade na época, a Igreja Católica, começa a ser definido o nosso patrimônio geográfico. Desobedecendo aos ditames dessa partilha, os bandeirantes aumentam o território lusitano e criam fronteiras imensas a serem defendidas. Território expandido na América do Sul, na África e na Ásia, Portugal vive algo peculiar a toda a Europa: a concentração administrativa, bélica e política. Não difere o trato internacional português que nos séculos 16 e 17 segue a raison d’État. Unida à tarefa de tudo dirigir e observar no plano interno dos países, com proeminência do governante sobre os antigos poderes (nobres, eclesiásticos, jurídicos), a diplomacia defende os interesses do Estado junto aos demais e previne atos hostis à sua condição soberana.

Para socorrer as cortes europeias em sua lide guerreira e de conquistas, a diplomacia obtém eficazes resultados técnicos e políticos. As doutrinas sobre o afazer diplomático reúnem grandes nomes, não apenas na teoria, mas na prática. A França emergente e pioneira na centralização monárquica produz grandes nomes e textos sobre o assunto. É o caso de J. Hotman (Do Cargo e Dignidade do Embaixador), F. Callières (Da Maneira de Negociar com os Soberanos), Rousseau de Chamoy (A Ideia do Perfeito Embaixador), A. de Vicquefort (O Embaixador e suas Funções), Pecquet (A Arte de Negociar).

Um estudioso escreve sobre textos e pessoas dedicadas ao labor em pauta: “A diplomacia, nascida no século 15 nas repúblicas italianas, sobretudo em Veneza, permanece durante grande parte do século 16 uma instituição que se desenvolve, se modifica, se adapta gradualmente às circunstâncias. É um fenômeno em via de transformação com toda a vida, a variedade, as surpresas que comporta tal momento de evolução”. Das legações medievais esporádicas às permanentes ocorrem descobertas marítimas, constituição de grandes Estados, avanços muçulmanos, grandes guerras. Surgem as embaixadas permanentes. Desde 1455 Veneza mantém legados constantes em Roma, Nápoles, Florença e Milão. Outros países criam embaixadas fixas após a Paz de Westfalia, em 1648 (Cf. Romano, Roberto: A Paz de Westfalia, em História da Paz; Léon Van der Essen, Le Rôle d’un Ambassadeur au XVIe Siècle, Contribution à l’Histoire de la Diplomatie, em Révue Belge de Philologie et d’Histoire).

Com as soberanias nacionais e o trato dos poderes se dá o aprendizado institucional no campo diplomático. Escolhidos entre os próximos aos reis e papas, os legados assumem regras e costumes que, se não os integram numa burocracia moderna, definem padrões de pensamento e ação. A diferença entre a representação antiga e a nova é salientada por Jean Hotman. Na Antiguidade só havia motivo para tratar da legação sem discutir o embaixador. Os enviados “eram pessoas cheias de honra, virtude, experiência, tendo exercido os mais belos e grandes cargos da República (...) os doutos políticos jamais acreditaram que os príncipes e os Estados seriam tão imprudentes a ponto de honrar com uma embaixada – a qual importa ao Estado por inteiro – um incapaz que dela não fosse digno”. Embaixadores são “os que, na segurança da fé pública autorizada pelo direito das gentes, negociam com os príncipes ou repúblicas estrangeiros assuntos de seus senhores, representam com dignidade suas pessoas e grandeza durante a legação” (L’Ambassadeur, Coleção Eletrônica da Gallica, Biblioteca Nacional da França).

Hotman mostra quanto o cargo de embaixador foi cobiçado por espertalhões e comenta o caso de um jovem preso nos domínios palatinos que forjara cartas, assinaturas, o próprio selo do rei Tiago I para se apresentar como representante. Trata-se “do maior e mais ousado impostor visto em séculos”. Qual a causa do crime cometido pelo garoto? O prazer de ganhar celebrações, honras, agrados. E qual o motivo para o punir com a morte? As “supostas legações” não apenas ofendem os soberanos, mas prejudicariam povos e Estados ao forjar contratos e compromissos bélicos, econômicos, religiosos. Se lembramos que, para citar Hobbes, as relações internacionais se situam no estado de natureza onde não existe direito sólido, a desconfiança impera, ao criar uma versão fraudulenta do governante o impostor viola a integridade do soberano, macula todos os seus atos, sobretudo a fé pública, piora os tratos entre os seres humanos da maneira mais ampla. (Cf. Hampton, Timothy: Fictions of Embassy).

O Brasil surge unido diretamente à moderna diplomacia. Em sua gênese como poder soberano temos as marcas da raison d’État absolutista que precisou gerir enormes extensões de território e imensas fronteiras com povos nem sempre bem dispostos em relação a ele. Qualquer que seja a explicação para os fatos bélicos na colônia e no Império, jamais nossos exércitos cumpriram sua missão sem diplomatas exímios. Aqui foi efetivada uma forma de trato internacional refinado, capaz de dialogar com pequenas e grandes potências. De Rio Branco a Rui Barbosa, chegando a San Tiago Dantas e João Guimarães Rosa, Luiz Martins de Souza Dantas, Marcílio Marques Moreira e outros, o País se ampara na escala planetária. É por tais motivos que causou espécie a indicação de jovem nada afeito aos saberes diplomáticos para embaixada em país poderoso. Talvez o vexame tenha sido afastado.

Triste é a chefia diplomática do País, exercida por alguém que não demonstra visão cosmopolita, prende-se a uma ala política e não respeita a própria instituição. Retirar do espaço público o busto de San Tiago Dantas por motivos injustificáveis, censurar o prefácio de um livro sobre Alexandre de Gusmão, admoestar um juiz da Suprema Corte e outras façanhas fazem o Itamaraty perder as raízes do nosso próprio Estado. Como disse Hotman, é preciso que os responsáveis pela diplomacia tenham o apoio da fé pública, mais ampla que as facções, e sejam garantidos pelo direito das gentes, mais relevante do que as doutrinas mantidas pelo poder ocasional.

* Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)


Roberto Romano: Reforma política ou magno latrocínio?

Em vez de se adequarem ao republicanismo, os legisladores (?) brasileiros se aproveitam do cargos para aumentar o tesouro partidário

No regime tirânico o dirigente “despreza as leis da natureza, abusa das pessoas livres como se elas fossem escravas, e dos bens dos governados como dos seus” (Jean Bodin, Os Seis Livros da República, II). Desde longa data levo uma batalha inglória na mídia e em setores acadêmicos, mas sempre termino derrotado pelo equívoco que define certa palavra filosófica. Falo do cinismo.

É incrível a pirueta lógica sofrida em milênios por essa forma de agir e pensar. A doutrina cínica apresenta-se nos teóricos da ética e da moral como via de virtude. Elogiada pelas mais finas mentes ocidentais, ela ganhou má fama entre os hipócritas e demagogos que dominam multidões. Exemplo de elogio dirigido aos cínicos? O padre Vieira: “Os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: ‘Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos’. Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas!” (Sermão do Bom Ladrão). Diógenes, o cínico, recebe merecidas loas de Vieira.

Além da crítica à hipocrisia de quem rouba e condena a corrupção, algo comum na História da humanidade, os cínicos ensinam virtudes de cidadania e paz social. Sem amizade (philia) não existe coletivo humano. Se imperam as paixões da lisonja, inveja, ignorância com ataques entre pessoas, some o trato civil, reina a guerra de todos contra todos. Além do respeito mútuo, é preciso, pensam os cínicos, que os indivíduos pratiquem a disciplina da mente e do corpo. Quem não depende de favores corruptos nada teme, pode falar sobre todos os pontos controversos da ordem pública. O discurso livre não se sujeita à riqueza ou poder, não se dobra à massa dos que seguem partidos hegemônicos. O mesmo Diógenes ficou célebre com a seguinte frase: “Quando sou aplaudido por muitos, certamente devo examinar-me para saber se não disse uma bobagem”. Em tempos de internet, quando todos, do simples funcionário ao presidente da República, buscam aplausos para suas falas de ódio ou desprezo contra os que pensam de modo diferente, os cínicos são uma ausência dolorosa.

Passemos aos fatos da nossa República. Nela são chicoteados os que roubam barras de chocolate, mas passam incólumes os que abusam dos bens públicos em proveito próprio. A chamada “reforma política” brasileira seria alvo certo dos bons cínicos, pois nela a hipocrisia atinge níveis inéditos na crônica política. Em vez de se adequarem ao republicanismo, os legisladores (?) brasileiros se aproveitam do cargos para aumentar o tesouro partidário com recursos subtraídos da educação, saúde, ciência, tecnologia, segurança. Mudam os nomes das agremiações, mas o seu funcionamento interno continua sob controle de burocratas e oligarcas que açambarcam os cofres, as eleições, as coligações, as traições recíprocas.

Quantos políticos agem e pensam como cínicos? Quase nenhum. Quem, num instante de crise econômica, social e política aproveita seus poderes para enriquecer cofres partidários em prejuízo da vida civil não é cínico. Seu título foi dado por Diógenes e, depois, por Vieira em saboroso latim: laterones! Manobras legislativas de hoje podem permitir enorme aumento nos dinheiros eleitorais em prol dos partidos políticos (Câmara aprova ‘brecha’ para aumentar valor do fundo eleitoral, Estado, 4/9). Como diria Diógenes, “lá vão...”.

Em entrevista à TV Câmara (5/9/2014), indiquei os elementos polêmicos da suposta reforma política. Entre eles o fato conhecido por analistas, poderosos ou simples militantes: nossos partidos reúnem o pior do mando oligárquico, unido a uma burocracia carcomida, e a quase ninguém representam. Por armadilhas legais eles se transformam em feudos de grupos que tudo controlam, dos cofres às candidaturas, alianças, propaganda, etc. Ocorre neles algo similar ao que se passa em ligas futebolísticas e atléticas nacionais: a cartolocracia. Além do controle absoluto de cartolas sobre a vida partidária, não existe nela democracia interna. Inexistem eleições primárias, as indicações de candidaturas se fazem em ambientes fechados onde poucos decidem.

Como resultado, a gerontocracia domina os comitês, entradas de novos quadros dirigentes se dão em regime de conta-gotas. A juventude é alheia e hostil aos partidos, dirigentes permanecem por décadas e décadas, enrijecendo o controle partidário.

Não é por falta de assessorias e reflexões técnicas que a suposta reforma seguiu no rumo do pior. Existem trabalhos especializados que mesmo agora podem ser úteis. Leia-se o documento substancioso A Proposta de Reforma Política: Prós e Contras (disponível em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultoria-legislativa/areas-da-conle/tema3/2004_14292.pdf).

A indecência de engordar o fundo partidário na hora em que os laboratórios e bibliotecas universitários estão ameaçados, hospitais deixam de cumprir seu mister, a insegurança grassa não é cinismo. É tirania, como afirma Bodin, que ajudou a edificar o Estado moderno. E por falar em Estado vale o dito de Santo Agostinho: “Remota itaque iustitia, quid sunt regna nisi magna latrocinia?” (Sem a justiça, que outra coisa são os reinos senão grandes latrocínios?). Respondam os que usam a mítica reforma política em favor de sua tirania.

* Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros Estados da Razão’ (Perspectiva).


Roberto Romano: O inimigo adulador

Saibamos discernir, rápido, o joio do trigo, pois nossas lágrimas serão de tormento

O século 20 gerou a noção do inimigo político. O nazismo identificou-o com os judeus, os ciganos, os homossexuais. Mas também integrou na lista os liberais, o sistema financeiro e os socialistas. A União Soviética perseguiu os “inimigos do povo”.

Carl Schmitt, aceito por setores ideológicos vários, teve a glória duvidosa de teorizar a tese sobre o inimigo. O jurista recusa a doutrina liberal sobre o Estado e criminaliza adversários. Ele usa o Léxico de Forcellini para expor o conceito de inimigo como “hostis”. Mas nas mãos de Schmitt a polissemia, exposta por Forcellini, some em proveito do sentido ideológico almejado. Refutando a leitura universal do amor cristão, diz o reacionário germânico: “Na luta milenar entre o cristianismo e o Islã, nenhum cristão teria a ideia (ao ler Mateus, 5, 44 e Lucas 6, 27, RR) de que seria preciso, por amor aos Sarracenos ou Turcos, entregar a Europa ao Islã, em vez de a defender”. Tal ideia do inimigo levou o Estado alemão a declarar guerra mortal (e como foi mortal!) aos inimigos. Dos judeus aos “seres degenerados” – homossexuais, socialistas, liberais, católicos que não apoiaram o regime, protestantes –, todos foram tratados como inimigos.

Quem deseja conferir o campo usado e distorcido por Schmitt leia o Lexicon Totius Latinitatis, de Egidio Forcellini (1775, reprint 1940). É relevante o livro de Fernando Bianchini Democracia Representativa sob a crítica de Schmitt e Democracia Participativa na apologia de Tocqueville (2014).

Ninguém precisaria usar o conceito tóxico de Schmitt por falta de conhecimento sobre o tema. Na relação amigo/inimigo (assumida pelo atual ocupante do Planalto) consultemos o padre Antonio Vieira no Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma (1651). O inimigo, diz ele, não é o que cerca as cidades e faz a guerra contra o nosso Estado. “Os que nos fazem guerra (...) não se chamam propriamente inimicos, chamam-se hostes. Inimicos são os inimigos por inimizade e ódio, como costumam ser os de dentro: hostes são os inimigos por hostilidade e por guerra, que só podem ser os estranhos e os de fora”. Se o estrangeiro não pode ser inimigo, quem o seria? Sábios cristãos e do paganismo “ensinam concordemente que os inimigos dos reis, e os maiores inimigos, são os aduladores”. Os palacianos assumem tal posição. “E se isto não veem claramente todos os reis, é porque é tal o doce veneno da lisonja que, entrando pelos ouvidos, lhes cega também os olhos.” Agostinho “ensina que há dois gêneros de inimigo: uns que perseguem, outros que adulam; mas que mais se há de temer a língua do adulador que as mãos do perseguidor”.

Vieira termina: “A adulação é aquele perpétuo mal ou achaque mortal dos reis, cuja grandeza, opulência e impérios muitas mais vezes destruiu a lisonja dos aduladores que as armas dos inimigos (...). E, se em algum dos que servem ao rei se provasse que ama mais o seu interesse que o rei, provado estava que este tal é inimigo do rei”.

Símile derradeiro: “A aranha não tem pés e, sustentando-se sobre as mãos, mora nos palácios dos reis”. Ela sobe “a um canto dessas abóbadas douradas e a primeira coisa que faz é desentranhar-se toda em finezas. Com estes fios tão finos, que ao princípio mal se divisam, lança suas linhas, arma seus teares, e toda a fábrica se vem a rematar em uma rede para pescar e comer”. E o que os aracnídeos adulões pescam? “As melhores comendas, os títulos, as presidências, os senhorios, e, talvez, (...) pescam o mesmo dono da casa. As palavras brandas do adulador são redes que ele arma para tomar nelas ao mesmo adulado. (...) E como ninguém pode servir a dois senhores sem amar a um e ser inimigo do outro, provado fica, sem réplica, e concluído, que quantos forem em palácio os amigos de seus interesses, tantos são os inimigos dos reis (...) um dos sete sábios da Grécia, perguntado qual era o animal mais venenoso, respondeu que, dos bravos, o tirano, dos mansos, o adulador.”

A distinção entre inimigo externo e interno domina a geopolítica do século 20. Carl Schmitt foi relevante nas formulações estratégicas de muitos Estados ocidentais (leia-se de Schmitt La Guerre Civile Mondiale, essais 1943-1978). Mas o nosso Vieira identificou (com Plutarco no tratado Sobre Como Distinguir o Amigo do Bajulador) o inimigo interno que tece intrigas e adulação. O palaciano impede o exercício regular do poder. Ele aumenta com desmesura o ego do governante e o torna cego, mudo, surdo aos reclamos da República. Como diz Plutarco, o filósofo (profissão hoje expulsa do Brasil): ninguém condena uma pessoa porque ela ama a si mesma. Condenável, no entanto, é pensar que ela pode ser bom juiz em causa própria: o amante é cego aos defeitos do amado.

Infelizmente a corte de Brasília está repleta de turibulários. O caso mais lamentável é o do chanceler, que, em data recente, colocou o governante nas alturas do ser divino. “Ernesto Araújo chorou e comparou o presidente Jair Bolsonaro a Jesus Cristo. Em referência ao presidente da República, que estava presente na cerimônia de formatura, Araújo citou trecho do Evangelho que diz que a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular” (Estado, 3/5). A terrível blasfêmia foi recebida mornamente por cristãos e nenhum padre ou pastor protestou. Caso um ente humano seja posto como divino temos duas escolhas: ou regredimos ao Império Romano, quando os césares eram numes, ou avançamos para uma religião herética do Estado. A bajulação hiperbólica é máxima inimizade política.

Do momentâneo delírio aracnídeo governamental parece afastado apenas o setor militar, não por acaso atacado com violência pelas seitas que dominam o palácio. Saibamos discernir, rápido, o joio do trigo, pois as nossas lágrimas serão de tormento, ao contrário das vertidas pelo chanceler.

*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)