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Roberto Romano: O segredo contra a democracia

Se resta ao governo alguma prudência, o Decreto 9.690/2019 deve ser abolido

Um grave passo para atenuar a democracia foi dado com o Decreto 9.690/ 2019 sobre a Lei da Transparência. Segredos devem reger assuntos estratégicos da ordem militar ou diplomática, pois sem eles são iminentes os prejuízos aos interesses nacionais. Mas, no decreto, decisões para ocultar documentos ficam a cargo de pessoas desprovidas de autoridade plena, como é o caso da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Logo, as liberdades, sobretudo a de imprensa, recebem ameaça. E sem livre informação não existe democracia.

No Brasil, setores autoritários ou corruptos tudo já fizeram para tornar inviável qualquer accountability. Eles ocultam da opinião pública e do jornalismo crimes ou privilégios. Os moradores do escuro agora recebem incentivo oficial. Se resta ao governo alguma prudência, o mencionado decreto deve ser abolido.

A democracia abole o segredo. No absolutismo o soberano não devia satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos súditos. James I afirma que “os reis são justamente chamados deuses; pois exercem certa semelhança do Divino poder sobre a terra. Deus tem o poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbítrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable)”. Os Levellers impõem a responsabilização dos governantes: o rei deve prestar contas ao povo, sem sigilos (Milton, The Tenure of Kings and Magistrates).

No entanto, após séculos, na guerra fria aumenta o segredo. H. Arendt afirma que a vida totalitária reúne “sociedades secretas estabelecidas publicamente” (O Sistema Totalitário). Hitler assume as sociedades secretas como bons modelos para a sua própria. Ele ordena em 1939 que “ninguém que não tenha necessidade de ser informado deve receber informação, ninguém deve saber mais do que o necessário, ninguém deve saber algo antes do necessário”. Tais normas orientaram a secreta matança de inocentes incluídos na Lebensunwertes Leben (E. Voegelin, Hitler e os Alemães).

Segundo N. Bobbio, “o governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos porque os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente às urnas e em que bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? O poder oculto não transforma a democracia, perverte-a. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina” (Il potere in maschera).

Woodrow Wilson defende a fé pública e a responsabilidade e atenua o sigilo do Estado. Mas depois o segredo permitiu o Irã-contras, a ajuda aos talebans, cuja ascensão foi entendida como vitória sobre a quase defunta URSS. Em 1994 surge a Public Law (número 103-236) do governo estadunidense, criando uma comissão para reduzir o segredo governamental. À sua frente estava Daniel Patrick Moynihan, colaborador de vários presidentes. Em relatório a comissão adverte: “It is time for a new way of thinking about secrecy”. Mas depois entramos no paradoxo: o público é definido fora do público. A opacidade estatal atinge níveis inéditos (Dean, J. W.: Worse than Watergate, The New York Times, 2/5/2004.).

Perguntava o cauteloso Adam Smith: “Quando o segredo e a reserva seguem para a dissimulação?”. A balança entre abertura e ocultamento é indicada por Georg Simmel: “A intenção de esconder assume intensidade tanto maior quando se choca com a intenção de revelar. O segredo traz um segundo planeta ao lado do planeta manifesto; e o último é influenciado decisivamente pelo primeiro”. Segundo Bentham, o segredo “é instrumento de conspiração; ele não deve, portanto, ser o sistema de um governo normal” (Of Publicity). A democracia usa a publicidade e segue a premissa “de que todas as pessoas deveriam conhecer os eventos e circunstâncias que lhes interessam, visto que esta é a condição sem a qual elas não podem contribuir em decisões sobre elas mesmas” (Simmel, The Sociology of Secrecy).

Um problema do segredo é sua fácil descoberta. O mesmo autor adverte: “A preservação do segredo é instável, as tentações de trair são múltiplas; a estrada que vai da discrição à indiscrição é em tantos casos tão contínua que a fé incondicional na discrição envolve uma incomparável preponderância do fator subjetivo (...) o segredo é cercado pela possibilidade e tentação de trair”. O segredo é vulnerável, pois representa “um arranjo provisório para forças ascendentes e descendentes”. Tão velha quanto a indústria do segredo é a da espionagem. Os vazamentos seletivos trazem outro perigo. Interesses concorrentes podem quebrar qualquer sigilo. A imprensa atenua os segredos de Estado, da vida privada ou religiosa. Tais setores nela buscam uma aliada se querem propagar seus intentos como se fossem “interesse geral”. Todos a cortejam para obter lucros e favores de governos, ameaçar concorrentes. Mas a criticam quando não atingem aqueles fins, ela se torna então uma inimiga.

A história da imprensa evidencia perene ruptura do segredo. Desde o Renascimento os jornais traziam notícias políticas, ofereciam informes sobre projetos de governos (economia, comércio, militares), estatísticas, orçamentos sobre a potência militar, taxas de nascimentos e mortes, importação e exportação. Tratava-se de apaziguar, como diz um historiador da imprensa, a fome generalizada de informação. Mas existia mais, nesse campo estatístico. “Ele era um ato deliberado, político, com ele se pretendia desvelar o segredo com o qual os governos absolutistas se envolviam, para gerar as bases de um debate público.”

O decreto que hoje no Brasil fragiliza a liberdade de imprensa e aumenta o segredo pode nos fazer retroagir ao regime absolutista, não por acaso considerado pelos historiadores um dos mais corrompidos da humanidade.

* Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros Estados da Razão' (Perspectiva)


Roberto Romano: Sobre o Estado laico

Hoje o Brasil está perto de nova aliança entre sacerdotes e políticos

As incertezas da vida brasileira, no instante em que assume um governo incerto no plano religioso, exigem cautela. Com Bolsonaro quebra-se o elo entre ordem eclesial e sociedade civil. Desde 1500 o catolicismo teve hegemonia nos assuntos do Estado. Ainda agora majoritário, ele foi decisivo no controle ético e político do Brasil. A partir do século 20 sua importância diminui e hoje ele enfrenta movimentos evangélicos que aplicam, para se expandir, estratégias do moderno marketing. Mas o modelo de tal proselitismo foi a Propaganda Fidei (1622, obra jesuítica). Nossa terra não gerou a República sonhada pelos que, desde a colônia, lutam por um País livre e laico. Sai o mando teológico-político católico, igual pretensão protestante bate às portas. Inglaterra, França, Estados Unidos, parte dos países civilizados definiram as balizas da liberdade ao separar Igreja e Estado. Aqui a fachada sobrenatural integra governos à esquerda ou direita.

Para garantir semelhante dinâmica o catolicismo foi essencial. Desde o Renascimento a Igreja se coloca contra os regimes de liberdade e democracia. Ao reagir à Reforma ela definiu uma pauta contra o âmbito secular. Trento marcou a plataforma reativa diante do mundo moderno, algo que permaneceu até o Concílio Vaticano II. Uma idiossincrasia da forma romana foi o veto à modernidade e ao liberalismo. Até o século 20 cátedras universitárias católicas exigiam dos professores o juramento contra as ideias laicas. Dizia Pio X no Motu Proprio Praestantia: “Os modernistas são os piores inimigos da Igreja, o modernismo é reunião de todas as heresias” (1907). Desde o Syllabus (1864) a guerra contra os “erros” do Estado e da sociedade civil é movida pela Santa Sé, que exige adesão incondicional do clero e dos leigos. O juramento contra as doutrinas liberais modernas encontra-se no Motu Proprio Sacrorum Antistitum (1910), do mesmo Pio X.

Já na era das Luzes Clemente XIII escreveu um rascunho de encíclica (Quantopere Dominus Jesus), onde reafirmava que o desejo de verdade é natural no homem. Mas tal anelo “o Espírito Santo quer refrear, como prova o Eclesiastes”. O pontífice ordena que os fiéis se abstenham de pesquisas sobre o saber científico. Tal mote atravessa o ensino da Igreja do Index Librorum Prohibitorum (1559, só abolido em 1966) aos acordos com Mussolini e Hitler. O alvo maior foi atenuar a prática política autônoma dos católicos. A Concordata com o governo hitlerista impediu a ação política das forças religiosas. Mesmo os conservadores do Zentrum tiveram diminuída, pelo Vaticano, sua ojeriza ao totalitarismo.

Os liberais católicos da Alemanha e do mundo, desde o século 19, são derrotados pelo setor ultramontano. Este reforça o mando absoluto do papa e gera o dogma da infalibilidade, o que impede todo diálogo ou ação conjunta de católicos e liberais. No Brasil Rui Barbosa luta em prol do Estado laico, escreve um prefácio (mais longo do que o livro original) ao volume de Johann Joseph Ignaz Dollinger O Papa e o Concílio, 1877. O civilista desenvolve as bases jurídicas que separam os campos religioso e político. Ele antecipa a Constituição de 1891, que ordena: “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum (...). A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita (...). Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. (...). Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. (...) Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados”.

Para notar a diferença entre o afastado na Carta e as formas institucionais anteriores, tomemos a Constituição de 1824: “A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo” (citado por F. S. L. Azevedo Ferreira: A liberdade religiosa nas Constituições brasileiras e o desenvolvimento da Igreja Protestante). Cemitérios abertos a todos (só aos católicos eram eles reservados), educação laica (a religião omitida dos bancos escolares). A Igreja, antes base do poder, é reduzida à forma privada. As pressões católicas para retomar o status anterior à Carta de 1891 levaram-na a apoiar a ditadura Vargas, na qual obteve vitórias. A presença católica na educação foi estratégica.

E segue sob Getúlio a luta contra o modernismo, o liberalismo, o protestantismo e outros ismos odiosos à hierarquia. E logo as cruzadas: da boa imprensa, do bom cinema, da LEC, a Liga Eleitoral Católica, a reunião de “autoridades civis, militares, eclesiásticas”. Em congressos eucarísticos a Igreja exige privilégios (Romualdo Dias, Imagens de Ordem, a doutrina católica sobre autoridade no Brasil, 1922-1933). Como a França, o Brasil é consagrado à soberania espiritual com o Cristo Redentor. Com Vargas brotam as censuras, os processos torcionários, os exílios (os administradores do jornal O Estado de S. Paulo passam por eles), os atentados aos direitos humanos (Sobral Pinto evoca a lei de proteção dos animais em defesa de Prestes). Tais vilipêndios escapam à atenção católica. Importa vencer a modernidade, o liberalismo, o socialismo.

Hoje o País está perto de nova aliança entre sacerdotes e políticos. O presidente eleito proclama não sermos um Estado laico, mas cristão. Importa recordar que as sementes teológico-políticas foram disseminadas pela Igreja Católica. Os evangélicos aproveitam o solo adubado, em séculos, pelos integristas, que sorvem o próprio remédio aplicado por eles à vida nacional.

* Roberto Romano, professor da Unicamp, é autor de Razões de Estado e outros Estados da Razão (Perspectiva)


Roberto Romano: Professor Guinsburg

Ele se foi no momento em que a nossa gente entra num labirinto ameaçador

A modernidade ampliou a potência das civilizações que têm sua alma no livro. Mas, além do conhecimento, divino ou humano, a leitura trouxe como efeito colateral o apego à letra, em detrimento do sentido. Milhares foram assassinados devido à leitura inculta, praticada por fiéis delirantes. Hoje o meio impresso é obnubilado pela internet. Mas a eficácia dos instrumentos que divulgam mensagens, tolas ou sábias, leva ao pedantismo ou zelo fanático. No Renascimento, editores e acadêmicos lançam a corrida ao livro, à fama, aos lucros. A passagem de manuscritos gregos e romanos ao prelo exige imenso labor coletivo. Para a venda dos volumes concorrem potentados, financistas, religiosos. O livro atinge setores amplos, anuncia a nova era científica, humanística, estatal.

Entre os ávidos consumidores das letras surgem indivíduos que delas se empanturram. Da indigestão literária brota a cultura pela metade, uma nova forma de ignorância douta. O apedeuta é prisioneiro de falas absurdas, as quais considera verdadeiras. Na Encyclopédie, Diderot afiança que o pedante é alguém “de uma presunção gárrula que fadiga os outros com o exibicionismo de seu saber em todo gênero, afetação de estilo e maneiras”.

O número dos que usam muitos textos e pouca ciência se mantém constante. Hoje a voga de edições caras para enfeitar prateleiras cede o passo aos escritos baratos de autoajuda, romances levemente pornográficos, biografias, etc. Em 2013, na Europa, os números eram os seguintes em termos editoriais: Inglaterra, 184 mil; Alemanha, 93.600; França, 66.530; Espanha, 76.430; Itália, 61.100. Os elementos são fornecidos por Jakub Marian. Em 2013, na França, os campeões de vendagem foram Asterix e três livros contendo os 50 matizes de cinza; 25% dos livros vendidos eram romances; 21%, de juventude; 13%, de turismo; 8%, escolares; 6%, quadrinhos; 6%, de aperfeiçoamento docente. Das edições eletrônicas de 2014 na França, cerca de 8,3 milhões de livros foram “baixados”. Para 1 milhão de compradores de livros foram oferecidos 26 milhões de livros impressos. Cerca de três quartos dos compradores de textos digitais também compraram livros impressos.

Há uma reflexão a ser feita. Sim, ondas de tolices eletrônicas “deram o direito de falar a uma legião de idiotas que antes apenas falava numa tasca de aldeia e depois de uns copos de vinho, sem prejudicar a comunidade. A televisão já tinha colocado o idiota de aldeia num patamar onde ele se sentia superior. O drama da internet é que promoveu esse idiota a portador da verdade” (Umberto Eco).

Mas nas redes existem páginas com saber rigoroso e útil. No Perseus Project é possível ler parte da literatura grega clássica, textos cujas palavras remetem a dicionários, gramáticas, estudos científicos. A Gallica, Biblioteca Nacional da França, apresenta gratuitamente milhões de livros digitalizados, antigos e modernos. Livrarias eletrônicas como a Questia oferecem a preço irrisório milhares de textos com os respectivos estudos. Mesmo quando o impresso dominou, o vezo pedante ou fanático recebeu o desafio de autores, editores e técnicos que publicavam livros essenciais para a vida espiritual. No Brasil tivemos vários que buscaram romper o círculo da mediocridade satisfeita. Um deles foi Jacob Guinsburg, o idealizador da Editora Perspectiva.

Examinando o catálogo da editora surgem textos que sintetizam a cultura moderna e a antiga. E não apenas nos múltiplos setores do pensamento – ética, estética, história, poesia, teatro, dança, teoria literária, religião, filosofia, arquitetura –, mas nos estudos eruditos de vanguarda que procuram entender aqueles campos de maneira inovadora e plural, ecumênica. O número de autores reunidos no rol dos publicados pela Perspectiva é espantoso. Citei acima uma sequência frásica de Umberto Eco contra a barbárie movida pela comunicação de massas ignaras. O desencanto do pensador deve ser percebido na sua trajetória acadêmica e pública. Guinsburg publicou-o em seus trabalhos iniciais, especialmente Obra Aberta e Apocalípticos e Integrados. Em ambas vemos uma pesquisa sem nostalgia das elites ou rendição ao populismo cultural. Tratava-se, para ele, seguindo o conselho de Spinoza, de não rir da cultura moderna nem chorar, mas de compreender. A mesma atitude assumida, ao longo de 97 anos, por J. Guinsburg.

Cada leitor das preciosidades unidas por J. Guinsburg recorda com carinho um ou outro título. Admiro o monumento erguido por Erich Auerbach: o livro Mimesis. Deixo as querelas suscitadas pelo autor na teoria e na história literárias. Trata-se de uma síntese encantadora da cultura ocidental, dos gregos aos nossos dias. Uma obra assim justificaria qualquer editora. Sem exagero, digo: volumes às centenas e centenas, no catálogo da Perspectiva, trazem a marca daquela genialidade. A produção promovida pela Perspectiva foi analisada em extensão e profundeza por estudiosos de todos os setores. Não me alongarei mais.

Devemos homenagear o ser humano Guinsburg. Em décadas de amizade, sempre fomos acolhidos por ele com simpatia, generosidade, entusiasmo e saber. Prudência política era o seu nome, ele que atravessou os regimes de força no Brasil, as lutas entre esquerda e direita, as intolerâncias. Defensor dos direitos humanos, assistiu ao antissemitismo triunfante que levou ao Holocausto sem jamais duvidar da força presente em seu povo. Sorvemos cada átimo de sua companhia. Com jeito de quem nada sabia, ele aprofundava informações históricas, antropológicas, políticas as mais diversas. Indicava de modo discreto caminhos de pesquisa. Ele se foi no momento em que nossa gente entra num labirinto ameaçador, quando a ausência do espírito cultural manifesta um vazio ameaçador. Fará enorme falta.

Mas os livros que publicou guardam o antídoto contra a ignorância, a truculência das seitas, o gigantesco pedantismo que circula na internet. Obrigado, professor Guinsburg!

*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)


Roberto Romano: Cuidado, nas urnas a foto é de Platão!

Quem nega que o vitorioso será o político que mais cativar, com mentiras e lisonjas...?

Nas atuais eleições é notável o uso de mentiras e violência. Muito se discutem o voto eletrônico e as informações falsas veiculadas na internet. Os pronunciamentos de Rosa Weber, presidente do TSE, não amainam as suspeitas sobre a eficácia das medidas contra fraudes e manipulações das notícias. Mergulhados na vida recente, imaginamos enfrentar um fenômeno inusitado, a crise letal do sistema democrático. No entanto, desde a Grécia antiga esse modo de governar beira o abismo. Recordo alguns escritos clássicos de Platão, o maior adversário do governo popular. Eles trazem um diagnóstico válido para nossos tempos.

O povo que segue o palpite de pessoas sem técnica na arte política, segundo Sócrates, só pode ser doente. Em vez da prudência nos assuntos de Estado, ele obedece ditames que pioram as mazelas. Como o milagre é efetuado? Pela demagogia nas assembleias onde dominam a retórica e a lisonja . Em vez de rir ou caçoar dos que mentem e adulam a massa, o povo adoentado os aplaude e os elege para os cargos, submete-se à sua propaganda. Como curar um coletivo insensato? O símile do médico surge depressa em Platão. Para conseguir a higidez dos eleitores, pergunta o personagem socrático: “Eu deveria batalhar contra eles para os fazer melhores, como se fosse um médico? Ou me pôr a seu serviço e em ótimas relações com eles lhes agradar?”.

Com a resposta de seu parceiro, de que o mais avisado seria se pôr à disposição dos eleitores, Sócrates afirma: “Então eu devo lisonjeá-los”. E chega a premonição, pelo próprio filósofo, da sua própria sorte: dizer o verdadeiro à massa que deseja ser enganada é seguir para a morte. A cicuta destina-se aos inimigos de toda demagogia. Contra os políticos, Sócrates descreve a si mesmo como integrante do pequeno número dos estadistas (“talvez o único”, diz ele). Quando falo, minhas palavras não se destinam ao agrado, pois digo “o que é melhor, não o prazeroso”.

Vem a célebre comparação do médico e do mestre-cuca, símile que deveria estar na mente de todos os políticos ou eleitores verdadeiramente democráticos. Um médico é acusado pelo cozinheiro em tribunal de crianças. Como poderia ele se defender das acusações feitas pelo cozinheiro? “Crianças, eis aqui um homem que lhes causa muitos males. Ele esfola até os novinhos, corta ou queima, disseca e sufoca de tal modo que vocês não sabem onde se esconder. Ele obriga a tomar remédios amargos, a ter fome e sede! Ele não é como eu, pois sirvo doces para seu regalo!”. Paralisado, o médico não consegue dizer a verdade: “ Tudo faço para a sua saúde!”. O povo criança adoecida só escuta a lisonja, a mentira. A verdade é-lhe insuportável.

Em tempos de fake news, a maior é dizer que elas surgem com a internet. Seu nascimento se deu quando a linguagem, uma técnica que possibilita a sociedade, foi inventada. A fala revela paixões ou dissimula gestos amáveis em atos agressivos. A política não existe sem mentira, propaganda, demagogia. Da Ágora, onde os únicos instrumentos persuasores eram a boca e o corpo, à televisão e ao WhatsApp, passar adiante o falso é tarefa estratégica de qualquer liderança que reúne massas.

A busca de agradar e mentir chega ao ápice com as práticas de Goebbels, Walter Lippmann e o Agitprop soviético. No tremendo A Língua do Terceiro Reich, Viktor Klemperer mostra a locução diabólica do mundo ideologizado. Quando a mentira se universaliza a doença política atinge o seu grau máximo, a corrupção popular. A massa assassina quem diz algo verdadeiro ou exige disciplina ética e respeito à lei. Chegamos à situação descrita na República (488 aC). O navio do Estado, nave dos loucos, assiste à guerra dos marinheiros pelo comando, sem que nenhum deles tenha saber técnico apropriado. “Eles elogiam e tratam como marinheiro sapiente quem contribui para que obtenham o comando, seja persuadindo o dono do navio ou exercendo violência sobre ele, mas ao que não é capaz disso censuram como imprestável”. O “dono do navio” na democracia é o povo. Para os ignaros movidos pela adulação, o verdadeiro piloto seria inútil.

Platão expõe algo insuportável para as almas democráticas. O certo, num Estado saudável, seria o povo pedir para ser governado, jamais o bom governante implorar o controle. O Estado moderno foi edificado pela burocracia. Nela, o saber técnico toma as decisões e disfarça o desprezo pelas urnas com o uso de propaganda e retórica. Um Parlamento ou rei, diz Max Weber, se tornam frágeis se burocratas não lhes fornecem dados sobre economia e administração. É o “segredo do cargo”. Para vencer semelhante “espírito coagulado” (ainda Weber), na passagem do século 19 para o 20 surgem as políticas do carisma, lideranças de um homem ou partido cuja missão é restaurar todas as coisas corrompidas. Chega a hora do jurista Carl Schmitt com o Führer, que, acima da burocracia, decide sobre o direito, o inimigo e a ditadura. Ele é soberano. Do outro lado, o filósofo G. Lukács exibe fé na revolução proletária internacional que destruiria o aparelho burocrático. À direita ou à esquerda, ambos justificaram tiranias. Hoje a máquina administrativa persiste. O mundo soube em data recente: funcionários detentores dos cargos e do segredo atenuaram iniciativas desastrosas do presidente Trump na política internacional. Mas o engenho da burocracia gera o salvador do povo e sua lisonja para obter, como em Atenas, o apoio do eleitor.

Doutrinas autoritárias ou totalitárias aproveitaram a crítica platônica, nela vendo uma senda para o líder e o partido único. Os ataques de Karl Popper (The Open Society) têm boas razões para recusar a advertência platônica. Mas notemos a demagogia no Estado democrático. Quem nega que as próximas eleições indicarão como vitorioso o político que mais cativar, com mentiras e lisonjas, o maior número de eleitores? Nas urnas, a resposta, não temo adiantar, será uma enorme reiteração do que denuncia o pensador perto de quem “toda a filosofia ocidental não passa de uma nota ao pé da página”. Os votos, na sua maioria, serão em prol do cozinheiro. O médico que se cuide.

*Roberto Romano é professor da Unicamp, Roberto Romano é autor de Razões de Estado e outros estados da razão (Perspectiva)


Roberto Romano: Sobre lobos e cordeiros

Crises exigem observar com desconfiança as instituições que regem o trato dos cidadão com os Poderes. Usemos justas aspas nas antífonas do pensamento raso expresso em universidades, mídia e opinião pública. Não é fato que no Brasil “as instituições funcionem normalmente”. A menos que, por normalidade, se designe a teratologia a que o País se acostumou. Tal clichê namora o absurdo. Como poderia viver segundo normas um país onde administradores não prestam contas dos recursos financeiros, humanos e técnicos a seu dispor? Pode ser normal uma terra onde parlamentares legislam descaradamente em causa própria? Normal um Estado cujos magistrados causam bilhões de prejuízo ao erário e buscam acrescer substanciosas remunerações e privilégios? Normal um sistema de Poderes divorciado da cidadania, em que quem deve servir serve a si mesmo e humilha os contribuintes?

Ora, senhores, silenciem o mantra da “normalidade”, encaremos o monstruoso: sob o manto democrático impera na política, nas finanças públicas, na polícia e nos tribunais o arbítrio mesclado à demagogia.

Tomemos a política injusta exposta por Jean Bodin. No poder tirânico “o governante, pisando as leis da natureza, abusa da liberdade dos governados como se eles fossem escravos, e dos bens de outrem como se fossem seus” (Seis Livros da República, livro 2, cap. 4). Adianta o jurista: entre as prioridades tirânicas está o aumento de impostos.

Tiranos, arremata, assumem slogans (devises) belos e títulos divinos, mas a diferença entre eles e o governante justo é que o segundo labuta pelo bem público, mas eles cuidam apenas do seu proveito privado. O Supremo Tribunal Federal (STF) exige para si o título divino: protetor da Constituição! Mas a sua história mostra que, não raro, o suposto protetor se transforma em aliado da alcateia.

Ocorre nele a metamorfose narrada por Platão, autor realista que narra a origem da tirania. Numa situação política injusta surgem “denúncias, processos, lutas de uns com os outros, em grande número. O povo tem o costume de pôr uma pessoa qualquer à sua frente, para o desenvolvimento de sua grandeza. A tirania se origina da semente daquele protetor”. Platão retoma um mito: “Quem provar vísceras humanas, cortadas ao bocados no meio das de outras vítimas, é forçoso que se transforme em lobo”.

Uma técnica predileta do lobo/tirano é aumentar imoderadamente o fisco “para que os cidadãos, empobrecidos pelo pagamento de impostos, serem forçados a tratar do seu dia a dia e conspirem menos contra ele” (República, 565a- 569a).

A metamorfose do protetor em lobo inspira o pensamento jurídico do Ocidente. É impossível entender a doutrina hobbesiana sobre o estado de natureza, em que o homem é o tirano do homem, sem a base platônica. Maquiavel dela se nutriu de modo evidente para quem o estuda com rigor. A tese de Jean Bodin lhe deve o peso heurístico e a força política. O tirano, fulmina Platão, usa um filtro fatídico para triar pessoas. Nele os bons são retirados e os péssimos, mantidos. A purga efetivada pelos médicos é invertida: os humores doentios permanecem – a gentalha que apoia o arbítrio e a violência oficial – e os humores saudáveis são expelidos – os honestos. Desconheço análise mais dura sobre a instauração dos governos ditatoriais. Quem pretende lutar pelas liberdades públicas deve manter Platão na cabeceira.

Volto ao STF. É óbvio que um juiz, sobretudo na mais alta Corte, deve receber paga que o livre da precariedade financeira. Trata-se de condição básica para a sua independência. Sempre lutei por tal prerrogativa dos magistrados (cf, entre muitos textos meus, O Executivo é um buraco negro que tende a dissolver a autonomia dos Magistrados, em Judicatura, Informativo da Associação dos Magistrados de Pernambuco, Ano XVI, n.º 6, pág. 5). Atenção: mesmo os recursos lícitos vêm dos bolsos exangues dos contribuintes, não do plano celeste, como se maná fossem. Se além da justa remuneração o magistrado exige privilégios (auxílio-moradia e outros), já estamos sob domínio do lobo que provou sangue humano ao índice de 16%. Ainda temos a remota possibilidade de tal regalia ser barrada no Congresso Nacional. Mas os parlamentares, de certo modo, sabem que estão à mercê das togas, sobretudo após operações judiciais e de polícia que podem enterrar seus mandatos. O recado subliminar é sempre bem entendido pelos imprudentes representantes do povo (“ Sua Excelência”, no estranho discurso da presidente Cármen Lúcia).

O tirano usa como técnica para dominar a cidadania, paralisando-a, o aumento implacável de impostos. Os contribuintes, atormentados pelas dívidas, pelo desemprego, pela ausência de serviços públicos, de escolas ou hospitais, não têm espaço e tempo para vigiar os representantes e “protetores”. Os 63 mil assassinatos recentes, cadeias fétidas que servem como escolas de criminalidade somam-se ao fechamento de laboratórios científicos, humanísticos e técnicos. Na hora em que o STF concede a si mesmo o aumento privilegiado, bilhões são extraídos da Capes, do CNPq e de todas as agências de financiamento de pesquisa. Para além da lambida no sangue de quem paga impostos, o líquido vermelho é sorvido em baciadas a cada instante mais generosas.

Não é apenas o STF a beber o líquido rubro. No mesmo dia em que se anunciou o aumento de 16% para o Supremo e anexos (rombo presumido de R$ 4 bilhões nas contas públicas no próximo ano), deputados, num lobismo explícito, aumentam a receita do setor ruralista em R$ 14 bilhões, dívidas a serem perdoadas. Um modo lamentável de usar os bens dos governados como se fossem dos parlamentares.

Chego ao ponto inicial do presente texto: senhores, as instituições políticas e jurídicas brasileiras não funcionam “normalmente”. A não ser que o conceito de normalidade seja a definida na fábula de Esopo sobre o cordeiro e o lobo. Para bom entendedor, uma vírgula basta.

* Roberto Romano é professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros Estados da Razão’ (Perspectiva)