Saibamos discernir, rápido, o joio do trigo, pois nossas lágrimas serão de tormento
O século 20 gerou a noção do inimigo político. O nazismo identificou-o com os judeus, os ciganos, os homossexuais. Mas também integrou na lista os liberais, o sistema financeiro e os socialistas. A União Soviética perseguiu os “inimigos do povo”.
Carl Schmitt, aceito por setores ideológicos vários, teve a glória duvidosa de teorizar a tese sobre o inimigo. O jurista recusa a doutrina liberal sobre o Estado e criminaliza adversários. Ele usa o Léxico de Forcellini para expor o conceito de inimigo como “hostis”. Mas nas mãos de Schmitt a polissemia, exposta por Forcellini, some em proveito do sentido ideológico almejado. Refutando a leitura universal do amor cristão, diz o reacionário germânico: “Na luta milenar entre o cristianismo e o Islã, nenhum cristão teria a ideia (ao ler Mateus, 5, 44 e Lucas 6, 27, RR) de que seria preciso, por amor aos Sarracenos ou Turcos, entregar a Europa ao Islã, em vez de a defender”. Tal ideia do inimigo levou o Estado alemão a declarar guerra mortal (e como foi mortal!) aos inimigos. Dos judeus aos “seres degenerados” – homossexuais, socialistas, liberais, católicos que não apoiaram o regime, protestantes –, todos foram tratados como inimigos.
Quem deseja conferir o campo usado e distorcido por Schmitt leia o Lexicon Totius Latinitatis, de Egidio Forcellini (1775, reprint 1940). É relevante o livro de Fernando Bianchini Democracia Representativa sob a crítica de Schmitt e Democracia Participativa na apologia de Tocqueville (2014).
Ninguém precisaria usar o conceito tóxico de Schmitt por falta de conhecimento sobre o tema. Na relação amigo/inimigo (assumida pelo atual ocupante do Planalto) consultemos o padre Antonio Vieira no Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma (1651). O inimigo, diz ele, não é o que cerca as cidades e faz a guerra contra o nosso Estado. “Os que nos fazem guerra (…) não se chamam propriamente inimicos, chamam-se hostes. Inimicos são os inimigos por inimizade e ódio, como costumam ser os de dentro: hostes são os inimigos por hostilidade e por guerra, que só podem ser os estranhos e os de fora”. Se o estrangeiro não pode ser inimigo, quem o seria? Sábios cristãos e do paganismo “ensinam concordemente que os inimigos dos reis, e os maiores inimigos, são os aduladores”. Os palacianos assumem tal posição. “E se isto não veem claramente todos os reis, é porque é tal o doce veneno da lisonja que, entrando pelos ouvidos, lhes cega também os olhos.” Agostinho “ensina que há dois gêneros de inimigo: uns que perseguem, outros que adulam; mas que mais se há de temer a língua do adulador que as mãos do perseguidor”.
Vieira termina: “A adulação é aquele perpétuo mal ou achaque mortal dos reis, cuja grandeza, opulência e impérios muitas mais vezes destruiu a lisonja dos aduladores que as armas dos inimigos (…). E, se em algum dos que servem ao rei se provasse que ama mais o seu interesse que o rei, provado estava que este tal é inimigo do rei”.
Símile derradeiro: “A aranha não tem pés e, sustentando-se sobre as mãos, mora nos palácios dos reis”. Ela sobe “a um canto dessas abóbadas douradas e a primeira coisa que faz é desentranhar-se toda em finezas. Com estes fios tão finos, que ao princípio mal se divisam, lança suas linhas, arma seus teares, e toda a fábrica se vem a rematar em uma rede para pescar e comer”. E o que os aracnídeos adulões pescam? “As melhores comendas, os títulos, as presidências, os senhorios, e, talvez, (…) pescam o mesmo dono da casa. As palavras brandas do adulador são redes que ele arma para tomar nelas ao mesmo adulado. (…) E como ninguém pode servir a dois senhores sem amar a um e ser inimigo do outro, provado fica, sem réplica, e concluído, que quantos forem em palácio os amigos de seus interesses, tantos são os inimigos dos reis (…) um dos sete sábios da Grécia, perguntado qual era o animal mais venenoso, respondeu que, dos bravos, o tirano, dos mansos, o adulador.”
A distinção entre inimigo externo e interno domina a geopolítica do século 20. Carl Schmitt foi relevante nas formulações estratégicas de muitos Estados ocidentais (leia-se de Schmitt La Guerre Civile Mondiale, essais 1943-1978). Mas o nosso Vieira identificou (com Plutarco no tratado Sobre Como Distinguir o Amigo do Bajulador) o inimigo interno que tece intrigas e adulação. O palaciano impede o exercício regular do poder. Ele aumenta com desmesura o ego do governante e o torna cego, mudo, surdo aos reclamos da República. Como diz Plutarco, o filósofo (profissão hoje expulsa do Brasil): ninguém condena uma pessoa porque ela ama a si mesma. Condenável, no entanto, é pensar que ela pode ser bom juiz em causa própria: o amante é cego aos defeitos do amado.
Infelizmente a corte de Brasília está repleta de turibulários. O caso mais lamentável é o do chanceler, que, em data recente, colocou o governante nas alturas do ser divino. “Ernesto Araújo chorou e comparou o presidente Jair Bolsonaro a Jesus Cristo. Em referência ao presidente da República, que estava presente na cerimônia de formatura, Araújo citou trecho do Evangelho que diz que a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular” (Estado, 3/5). A terrível blasfêmia foi recebida mornamente por cristãos e nenhum padre ou pastor protestou. Caso um ente humano seja posto como divino temos duas escolhas: ou regredimos ao Império Romano, quando os césares eram numes, ou avançamos para uma religião herética do Estado. A bajulação hiperbólica é máxima inimizade política.
Do momentâneo delírio aracnídeo governamental parece afastado apenas o setor militar, não por acaso atacado com violência pelas seitas que dominam o palácio. Saibamos discernir, rápido, o joio do trigo, pois as nossas lágrimas serão de tormento, ao contrário das vertidas pelo chanceler.
*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)