rio de janeiro
Arnaldo Jordy: Um remédio amargo
A decisão do governo federal de intervir na segurança pública do Rio de Janeiro já era especulada, diante da falência total da elite política e administrativa do Rio de Janeiro, que teve no final do ano passado a dramática situação de ter três ex-governadores presos: Sérgio Cabral, Anthony Garotinho e Rosinha Garotinho; o presidente e quatro conselheiros do Tribunal de Contas do Estado; o presidente da Assembleia Legislativa, Jorge Picciani; o influente ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, além de empresários como Eike Batista e outros, que simbolizaram a quadrilha que se instalou no Estado.
A intervenção já foi cogitada por diversas vezes pelo senador Lindbergh Farias, durante os governos de Lula e Dilma, ex-presidentes que, em diversas ocasiões, exaltaram os governos de Sérgio Cabral e assim, coniviram com o saque ao Estado, que ficou à beira da insolvência absoluta, especialmente após as obras superfaturadas para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Hoje, com as instituições desacreditadas e as contas falidas, o Rio vê o crime organizado tomar conta do Estado e controlar setores da própria polícia. Diante disso, não há como negar que a intervenção não é um ato despropositado. Algo precisa ser feito de imediato para conter esse câncer que tem o poder do tráfico de drogas para comprar mais poder, como bem retratado no filme “Tropa de Elite 2”, do diretor José Padilha. Não há como as organizações criminosas se desenvolverem a esse ponto sem uma certa cumplicidade do aparelho de estado.
O avanço do crime é um problema do Brasil inteiro, sim, mas é mais evidente no Rio de Janeiro, onde os territórios são disputados pelas organizações de traficantes em verdadeiras guerras que impedem até mesmo as crianças de ir à escolas, por medo de tiroteios e balas perdidas, e criam o caos na cidade em momentos como o carnaval. Por isso, é difícil encontrar naquele Estado quem seja contra uma intervenção. Só no ano passado, 134 policiais militares foram assassinados. Este ano, até quarta-feira, 21, outros 17 policiais haviam sido mortos.
Obviamente que nenhum desrespeito à Constituição deve ser tolerado. Esse tipo de intervenção está previsto na Carta Magna e todos os procedimentos devem ser cumpridos dentro do que diz a lei, com acompanhamento do Ministério Público Federal.
Mas a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro não pode ser considerada apenas uma panaceia, embora tenha, é verdade, um componente eleitoral, já que o governo trocou uma pauta negativa, a reforma da Previdência, que em nenhum momento teve o apoio necessário no Congresso, por uma positiva, o combate à insegurança e à violência. Espero que, também, o governo aja nos outros Estados, apoiando os governadores na luta contra o crime organizado e a insegurança em geral. No levantamento das 30 cidades mais violentas do Brasil, feito pelo IPEA em 2017, por exemplo, o Pará entra com três municípios, entre eles o primeiro colocado: Altamira, com com taxa de 107 mortes para cada 100 mil habitantes, em grande parte, em decorrência da migração desordenada causada por Belo Monte. Outras cidades paraenses destacadas na pesquisa são Marabá (11º lugar) e Marituba (16º lugar).
Em longo prazo, porém, é preciso é repensar todo o sistema de segurança pública, a começar pela valorização do capital humano das polícias, que precisa ser bem remunerado e blindado de cooptação pelas organizações criminosas. O uso de inteligência e de tecnologia nas investigações é fundamental, já que só uma parcela ínfima dos homicídios é desvendada, cerca de 8% em todo o país. Em vez disso, o que o governo federal fez em 2017 foi um contingenciamento de 40% no orçamento das Forças Armadas, essas mesmas que terão que resolver o problema da segurança no Rio. A defesa nacional, responsável pela vigilância das fronteiras, por onde entram a droga e as armas, teve corte de 71% no ano passado, o que provocou a paralisação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron). Na segurança pública, o contingenciamento foi de 54%.
A intervenção não será a solução estrutural, nem definitiva do problema, que passa pela redução da desigualdade, pelo investimento em educação, em cultura, em esporte, para toda a parcela da população que hoje se encontra marginalizada e que também é refém do tráfico e dos criminosos, mas poderá conter e avanço do crime organizado e reverter a grave situação desse momento.
* Arnaldo Jordy é deputado federal pelo PPS-PA
Gustavo Krause: A missão e o narcopaís
As prioridades podem se alterar, dependendo das circunstâncias históricas de um povo. A Segurança, não.
A Segurança Pública não é prioridade governamental. É elemento constitutivo do Estado. As prioridades podem se alterar, dependendo das circunstâncias históricas de um povo. A Segurança, não. Qualquer principiante no estudo de sociologia conhece o ensaio de Max Weber “A política como vocação” onde está dito: “O Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território”.
Vale dizer que, sem o monopólio do uso legítimo da coerção, assegurando a harmonia social, prevalece a conflagração hobbesiana da “guerra de todos contra todos” que, atualizada, significa o triunfo trágico das organizações criminosas sobre as aspirações civilizadas da imensa maioria dos cidadãos.
No Brasil, há evidentes sinais da progressiva falência do Estado. O caso emblemático do Rio de Janeiro levou à medida extrema e arriscada da intervenção federal na área da segurança,
No Globo News Painel (17/02/18), Renata Lo Prete entrevistou três autoridades sobre o tema – Paulo Sergio de Lima, Celso Rocha de Barros e o General Augusto Heleno – todos com opiniões respeitáveis e esclarecedoras. Este último revelou, com a experiência no comando da missão de paz do Haiti, o domínio de conceitos e, sem meias-palavras, referiu-se ao Judiciário e à classe política. Seguem trechos da entrevista:
– “Tem que dá certo […] O que se espera é que o Exército tenha sustentação jurídica, mobilidade, flexibilidade e poder de polícia”.
– “Regras de engajamento é a maneira de operar […] O comandante da cena tem o poder de chegar ao ferimento letal. O sujeito armado de fuzil, assaltando carga, passa a ser um alvo. A partir daí, eu posso eliminá-lo. É duro? Mas, assim deve acontecer […]”.
– “O problema da segurança pública se transformou num problema de segurança nacional […] Se o país não se convencer disso (o tráfico de drogas começa na fronteira), nós vamos caminhar na direção de ser um narcopaís […]”.
– Corrupção policial: “[…] Um país aonde sua classe política derrete o país em corrupção, começando pela cúpula, pelo Presidente da República […] os exemplos são péssimos para o homem que está na ponta […]”
– Uso político do Exército: o entrevistado ressaltou que o Presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; reafirmou a consciência e o compromisso democrático das Forças Armadas (“isto não é um aperitivo de intervenção militar”).
Por fim, enfatizou o espirito missionário do Exército. Missão dada, missão cumprida.
* Gustavo Krause é ex-ministro da Fazenda do governo Itamar Franco
Seminário realizado pela FAP discute o papel do Estado na sociedade atual
O ponto de encontro entre a “mesa” e a maioria dos participantes do evento foi que o Estado brasileiro deve se modernizar, rompendo com ideias estatizantes
Por Germano Martiniano
A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) realizou no Rio de Janeiro, neste sábado (24), no hotel Windsor Flórida, o seminário “Novo pacto entre estado e a sociedade brasileira”. O evento na capital fluminense foi o primeiro de uma série de três que objetivam formular propostas políticas para o Congresso Nacional do PPS no final do próximo mês de março.
Os próximos seminários serão realizados em São Paulo, no dia 3 de março e, em Brasilia, em 10 de março, com os seguintes temas, respectivamente: “O Brasil em um mundo em transformação” e “Desenvolvimento sustentável e inclusão social”. Ambos terão transmissão ao vivo pelo perfil da FAP no Facebook: http://www.facebook.com/facefap.
Debate
O evento deste sábado teve na mesa principal a socióloga Maria Alice Rezende, o presidente nacional do PPS, Roberto Freire, o economista, Sérgio Buarque, e o coordenador temático do seminário, Caetano Araújo. A discussão girou em torno do papel do estado brasileiro mediante a todos os problemas e mudanças que enfrentamos atualmente.
O ponto de encontro entre a “mesa” e a maioria dos participantes do evento foi, de acordo com Luiz Carlos Azedo, diretor geral da FAP, de que o “Estado brasileiro deve se modernizar, rompendo com ideias estatizantes, com o nacional-desenvolvimentismo, apostando no cosmopolitismo, na globalização e, na compreensão, de que o público não é sinônimo de estatal”.
Além disso, muito se discutiu que o Estado deve se voltar mais para os problemas emergenciais como saúde, educação e segurança e para isso as privatizações a reformas, como a da previdência, são essenciais para reduzir os custos da maquina estatal e assim poder investir nas áreas mais essenciais à população brasileira.
https://youtu.be/qcKo4kua47U
Ivan Alves Filho e Alcileia Morena: A propósito da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro
Esquematicamente, alinhamos alguns pontos que, talvez, possam contribuir para um melhor entendimento da questão da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro:
1) Começamos por uma pergunta: qual a alternativa à intervenção federal na segurança pública?
2) Dizer que essa intervenção se resume a uma manobra do Governo Temer é extremamente redutor, e faz tábua rasa da complexa – e concreta – situação vivida pelo Estado do Rio de Janeiro. Lidamos com gestos concretos e não com essa ou aquela intenção (e pouco interessa aqui o que se passa pela cabeça de Michel Temer. Esse é um problema da psicanálise e não da política, propriamente).
3) Os últimos governos do Estado do Rio de Janeiro foram tanto de responsabilidade do PMDB quanto do PT – e isso desde a gestão Garotinho. Mais: foi o Governo Lula – e não somente o PMDB – que viabilizou as vitórias de Sergio Cabral,para o governo estadual, e Eduardo Paes para a prefeitura. O Temer pouco tem que ver com isso, apesar de ser do mesmo partido que o Cabral e o Paes. Até porque, o PMDB nunca foi uma agremiação que primasse pelo centralismo, sendo muito mais uma federação de partidos regionais.
4) O objetivo da intervenção, a nosso juízo, não é reprimir os “pobres” , como querem alguns. Pelo contrário, pensamos que a intervenção atua para evitar que os trabalhadores – aí sim – fiquem reféns do crime organizado nas áreas mais carentes. Quem impõe o terror à população em geral é essa quadrilha que praticamente transformou o Brasil em um narcoEstado, como foi o caso da Bolívia,do Panamá, da Venezuela e da Colômbia. O fato é que o Brasil está se decompondo em determinadas regiões. As pessoas estão perdendo o direito de ir e vir em muitas das nossas cidades. Foram 59 mil assassinatos em 2017. Até quando vamos permanecer assim?
5) A palavra trabalhador não aparece muito em algumas textos e comentários. Este raciocínio se torna cada vez comum em certas faixas políticas, que revelam algum fascínio pelo lumpesinato. Nunca é demais lembrar ter sido a aliança das camadas médias radicalizadas com os marginais que abriu a via para o nazismo na Alemanha. Não por acaso, o PT hoje é o partido dos “pobres” (enquanto muitos se enriqueciam com esse “discurso”) e alguns almejam se candidatar à Presidência da República ora com uma plataforma voltada quase que exclusivamente para a violência, ora para a defesa do lúmpen.
6) A exemplo do lumpesinato, o Brasil possui hoje uma burguesia do crime. Ou seja, gente que ganha dinheiro com atividades ilícitas, independentemente da origem social de seus integrantes (“ricos”, “pobres”). Bandido é bandido, venha de onde vier.
7) As Forças Armadas podem perfeitamente cumprir uma ação pacificadora. A alternativa não se dá entre ditadura e caos. Precisamos contornar essa esparrela. A democracia pressupõe uma ordem. Democrática, mas ordem. Se ficarmos entre o caos e a ditadura, vencerá esta última. O fascismo sempre se infiltra por aí também.
8) As Forças Armadas pisaram na bola, como se diz, em 1964, Mas não decepcionaram, muito pelo contrário, nos acontecimentos de 1889, 1930, 1942, 1945, 1955 e 1985. É preciso reconhecer isso, até por uma questão de honestidade intelectual e política. O autoritarismo porventura presente nelas é o mesmo que grassa na sociedade brasileira. Mais a sociedade se democratiza, mais as Forças Armadas também se democratizam.
Não se pode identificar Exército e repressão, mecanicamente. Os comunistas, por exemplo, lutaram contra a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e ela era civil. Combateram-na porque era uma ditadura. Giocondo Dias, com sua habitual lucidez, chegou a escrever sobre o regime de 1964: “Não combatemos o regime ditatorial porque ele continha traços militares; combatemô-lo porque ele é antidemocrático”. Devemos ao Exército figuras do porte de Cândido Rondon, Euclides da Cunha, Teixeira Lott, Mascarenhas de Morais, Gregório Bezerra e Nelson Werneck Sodré.
9) O Estado tem o monopólio da violência e não podemos admitir que grupos de marginais armados controlem áreas imensas do território fluminense. Não podemos ignorar, de forma alguma, a ação terrorista do crime organizado. O contributo que essa intervenção pode dar é o de ajudar a organizar uma nova política de segurança pública.
10) A extrema-direita perdeu o chão, sim. Mas talvez seja melhor evitarmos estes termos direita e esquerda e operarmos com outras categorias (populismo, campo democrático, conservadores etc). Categorias como “direita” e “esquerda” excluem do campo democrático parcelas que são de “direita” e incluem nele parcelas que são de “esquerda”. Exemplificando: o presidente francês Charles de Gaulle, por ser de “direita”, ficaria excluído do campo democrático, e um ditador sanguinário como Nicolas Maduro, por ser de “esquerda”, seria incluído nele. Uma tremenda injustiça, naturalmente. De Gaulle combateu o nazismo que buscava destruir seu país e esse fantoche Maduro governa a Venezuela (até quando?) recorrendo às torturas e à corrupção. Sob essa ótica, vamos dizer de cara: o grande advers&a acute;rio é o populismo de base fascista (dito de “direita” ou de “esquerda”, pouco importa).
11) Finalmente, diríamos que o confronto hoje se dá entre Civilização e Barbárie. Daí pedirmos um lugar, nisso tudo, para o Humanismo.
Fernando Gabeira: Intervenção parcial
Para atacar o crime em seus diferentes universos, a Lava-Jato poderia avançar nos processos contra os políticos
Governo que fez intervenção é impopular, mas o Exército tem grande credibilidade. A intervenção federal no Rio foi feita por um governo impopular. E feita apenas parcialmente. Deveria ser completa.
Não creio que seja o caso de defendê-la diante das teorias conspiratórias, de esquerda ou direita, que veem nela uma espécie de ataque ao seu projeto eleitoral. É inevitável que as pessoas fixadas na luta pelo poder interpretem tudo, mesmo um fato dessa dimensão social, como simples contador de votos.
A intervenção está aí. O governo é impopular, mas o instrumento é o Exército, com grande credibilidade. Se escolher atos espetaculares para tirar Temer do sufoco vai afundar com ele.
Logo, a primeira e modesta tese: o norte é a prática militar, com preparo e meios materiais necessários, e não o oportunismo político. Se prevalecer a superficialidade do governo, a batalha será perdida.
A intervenção tem de saber o que quer, para definir a hora de acabar. Isso não se define com uma data rígida no calendário, mas com a realização da tarefa: estabilizar a situação do Rio para que a polícia tome conta depois de reestruturada. É isso que fazem as intervenções, mesmo num país como o Haiti.
Para reestruturar a polícia é preciso contar com a parte ainda não corrompida e pagar todos os salários em dia.
A maioria parece apoiar a intervenção. É fundamental respeitar a população, conquistar corações e mentes. Nesse sentido, foi um grande passo civilizatório o vídeo de três jovens orientando os negros a evitar a violência policial e a se defender, legalmente, dela. Está na rede. É um texto que deveria ser levado em conta, pois revela como as pessoas de bem se comportam nessa emergência.
Circulou uma notícia de que as favelas ocupadas por traficantes armados seriam considerados territórios hostis. É um equívoco, creio eu. As favelas são territórios amigos, ocupados por forças hostis. Parece um jogo de palavras, mas é uma diferença que implica em táticas e estratégias diversas.
A quarta modesta tese: como não foi realizada a intervenção completa, a Lava-Jato poderia avançar nos processos contra os políticos. Seria a maneira de combinar um ataque ao crime organizado em seus diferentes universos. Creio que fortaleceria o trabalho da intervenção.
Finalmente, algo que me parece também decisivo. Quem acha que é a única saída do momento, apesar de sua fragilidade, precisa ajudar.
O que significa ajudar? A sociedade já se move de muitas formas, inclusive, na internet, colaborando com aplicativos como Onde Tem Tiroteio, Fogo Cruzado e dezenas de outras iniciativas.
Isso vai depender também da intervenção. Se a visão for de aglutinar o esforço social, o general Braga precisa apresentar as linhas gerais de seu plano. Delas podem surgir uma indicação de como ajudar.
Compreendo que a esquerda diga que a violência foi superestimada pela mídia. O próprio general Braga derrapou no primeiro momento, ao afirmar que é muita mídia.
Ele tem razão, de certa forma. Sou um velho jornalista. No século passado, as notícias eram produzidas apenas por profissionais. Hoje, não: a estrutura industrial ampliou seu alcance diante de milhares de colaboradores filmando tudo. Quem filma os tiroteios no morro? E os assaltantes que tentam enforcar uma velha? Não são repórteres. Nenhum dos atos violentos foi desmentido. Não houve fake news, uma vez que caindo no circuito industrial os dados foram checados.
Não se trata, portanto, apenas de muita mídia. São muitos fatos. De qualquer forma, ganhariam as redes sociais.
É com eles que vamos. Ou não vamos.
Que Segurança Pública queremos para assegurar um amanhã mais promissor?
Que Segurança Pública queremos para assegurar um amanhã mais promissor? O #ProgramaDiferente exibe a íntegra do evento que busca uma resposta para essa reflexão, com abertura de Luiz Alberto Oliveira, curador do Museu do Amanhã, e de Ilona Szabó, cientista política e diretora executiva do Instituto Igarapé. A mesa de debates é composta por Maria Laura Canineu, diretora-geral do Human Rights Watch; Paula Mascarenhas, prefeita de Pelotas (RS); Fernando Veloso, ex-chefe de Polícia Civil; e por MV Bill, escritor e ativista. A moderação é do jornalista da TV Globo, Caco Barcellos.
Raul Jungmann: Mandado coletivo, uma falsa polêmica
Tome-se por hipótese que uma investigação policial identificou em determinado prédio residencial o cativeiro em que sequestradores mantêm reféns. A polícia, no entanto, não sabe em que apartamento estão o bandido e suas vítimas. Pede, então, ao juiz um mandado que lhe permita vistoriar todo o prédio para localizar o esconderijo e salvar vidas.
Esse é o fundamento de um mandado coletivo de busca e apreensão, que tanta celeuma causa há dias, apesar de ser utilizado desde 2012, ainda que não tenha produzido jurisprudência específica. O recurso pode ser essencial em algumas circunstâncias para a conclusão de um trabalho de inteligência e investigação, depende de concessão judicial e não constitui regra, mas exceção. Não obstante, é alvo de questionamentos que o condenam por antecipação, na suposição de que será utilizado ao bel-prazer da autoridade policial, quando e onde bem entender.
Antes de mais nada, é preciso enfrentar a hipocrisia intelectual que, à semelhança dos traficantes nas favelas, coloca os inocentes como escudo de suas teses para aparentemente defendê-los (sem mandato para tal) de um instrumento que os favorece e que só pode ser utilizado com autorização judicial, caso a caso. Valem-se da topografia carioca, de morros e asfalto, para condenar os mandados em comunidades cuja característica é de habitação geminada, comumente utilizada pelos traficantes — não raro à força — para esconder seus arsenais de armas e drogas, dificultando a ação da polícia.
Outros argumentam que a intervenção federal, pelo fato de ser exercida por um general, ameaça os direitos humanos e, mesmo, as vidas de inocentes, pobres e oprimidos em ambiente em que só o traficante é livre.
Como se a intervenção já não configure uma reação máxima do governo federal a um cenário de violência fora de controle, em que milhares de inocentes morrem — agora até mesmo no útero, agravando estatísticas maiores que as de guerras em curso no mundo.
E como se os milhões de habitantes que vivem em comunidades sob o controle do tráfico não estejam espoliados nos seus direitos constitucionais mais elementares, entre os quais o de ir e vir e o de votar livremente.
A intervenção veio resgatar a ordem democrática, e sua decretação cumpriu os preceitos constitucionais que a regem — e dentro deles se manterá.
Foi uma decisão político-administrativa, amplamente aprovada pelo Congresso Nacional e restrita ao aparelho de segurança estadual.
Sabe-se que o Rio não centraliza as preocupações apenas por suas estatísticas de violência, mas pela dominação de territórios pelo crime que faz vigorar suas próprias “Constituições”, inclusive determinando quais candidatos podem ali fazer suas campanhas.
Tem-se aí um Estado paralelo com representação parlamentar e, portanto, com prerrogativa para indicações políticas na estrutura pública, porta de passagem da criminalidade para o Estado.
Entre outros objetivos, a intervenção visa a romper as cadeias de transmissão entre áreas do setor público com o crime organizado, sendo o mandado judicial um entre tantos instrumentos legais para legitimar as ações policiais em qualquer área — e não só nas comunidades mais pobres.
Tratar instrumento judicial como demofobia, para além da rima, pode soar uma demagogia que nos aprisiona em uma falsa polêmica.
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Raul Jungmann é ministro da Defesa
Roberto Freire: Segurança na ordem do dia
Desde há muito, como atestam todos os levantamentos feitos pelos principais institutos de pesquisa, o temor em relação à escalada da violência e a sensação de insegurança generalizada aparecem no topo das preocupações dos brasileiros de norte a sul do país. No Rio de Janeiro, em especial, o índice de 40 mortes por 100 mil habitantes registrado em 2017 (ante 36,4 por 100 mil em 2010), além dos 688 tiroteios ou disparos com arma de fogo mapeados somente em janeiro deste ano pelo aplicativo Fogo Cruzado, escancaram uma situação que já atingiu as raias da calamidade pública. Para que se tenha uma ideia, houve um aumento de 117% nesses registros em relação ao mesmo período de 2017 – em média, foram 22 tiroteios por dia no primeiro mês do ano.
Nesse sentido, é evidente que o decreto de intervenção federal nas áreas de segurança pública e inteligência no Estado do Rio, assinado na última semana pelo presidente Michel Temer e aprovado por ampla maioria tanto na Câmara quanto no Senado, é uma medida drástica e extrema, mas necessária neste momento. É importante destacar que tal decisão foi tomada com base na Constituição (Art. 36, § 1º), com indicação prévia de sua amplitude, do prazo limitado e das condições de execução, além da nomeação de um interventor, no caso um general do Exército brasileiro. Tudo de acordo com o texto constitucional e a democracia em pleno vigor no país.
Não há dúvidas de que o grande problema no Rio é a relação de total promiscuidade entre setores do aparelho de Estado e dos órgãos de segurança e inteligência com o próprio crime organizado – alimentada durante décadas por meio de uma estrutura completamente corrompida. É isso, fundamentalmente, que tem de ser combatido pela intervenção federal. O importante é ter tolerância zero com a corrupção que ali campeia, desmontando todos os tentáculos de um sistema viciado.
Do ponto de vista político, há que se lamentar o comportamento constrangedor adotado por lulopetistas e bolsonaristas em seus pronunciamentos no plenário da Câmara durante a votação do decreto na madrugada da última terça-feira (20). Tanto à esquerda quanto à direita, os representantes do atraso se limitaram a contestar o atual governo e nada falaram de significativo sobre a gravíssima crise de violência no Rio. Na verdade, ao se posicionarem contra a necessária intervenção, demonstram não estar preocupados com a segurança e o bem-estar das famílias cariocas e fluminenses – que apoiam o decreto de forma incontestavelmente majoritária, como mostram as pesquisas –, mas meramente com os seus próprios interesses político-eleitorais.
No caso do deputado Jair Bolsonaro, aliás, ficou evidenciado o seu desconforto com a perda do monopólio do discurso sobre a segurança pública. Inicialmente, se manifestou de forma frontalmente contrária à intervenção determinada pelo governo e, no fim das contas, votou a favor do decreto no plenário, visivelmente constrangido diante do inequívoco apoio da opinião pública à medida.
Essa é a oposição brasileira atual, liderada pelo PT e seus aliados, cada vez mais isolada, desconectada da realidade e sem penetração junto à sociedade. É importante lembrar, inclusive, que todas as últimas administrações do Rio de Janeiro foram aliadas de primeira hora dos governos de Lula e Dilma, numa simbiose que até hoje, evidentemente, traz consequências desastrosas do ponto de vista político.
Ainda na seara política, a intervenção no Rio representa certa retomada de iniciativa pelo governo Temer. A medida acaba por afastar, neste momento, qualquer possibilidade de votação da reforma da Previdência, deixando esse tema fundamental para o governo a ser eleito em outubro deste ano – por imposição constitucional, o Congresso está impedido de votar qualquer Proposta de Emenda à Constituição (PEC) enquanto a intervenção estiver em vigor. De qualquer forma, todos os indicadores apontam que, mesmo sem a reforma neste ano, a economia brasileira já consolidou um sólido processo de retomada, o que não é pouca coisa depois de mais de três anos de profunda recessão.
O que devemos fazer todos os que temos responsabilidade com o país e, sobretudo, consciência da gravidade da situação que vive o Rio de Janeiro, é apoiar a intervenção federal no estado e acompanhar com atenção, passo a passo, o desenrolar dos acontecimentos. A batalha contra o crime não é fácil de ser vencida nem terá um desfecho rápido, muito pelo contrário. Trata-se de um enfrentamento longo e árduo, e por isso mesmo o apoio da sociedade é fundamental. Apesar do esperneio da oposição lulopetista, a aprovação do decreto presidencial no Congresso foi uma importante vitória para o Rio e o Brasil. O primeiro passo está dado e não há tempo a perder. Vamos adiante.
Luiz Carlos Azedo: O drible a mais
A intervenção federal no Rio de Janeiro agastou ainda mais as relações entre o presidente Michel Temer e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que não digeriu até hoje o fato de ter sido atropelado pela decisão, que somente aceitou a pedido do governador Luiz Fernando Pezão. Apesar de ter viabilizado a aprovação da intervenção na Casa, numa votação que entrou pela madrugada, Maia ontem abriu as baterias contra o pacote de 15 medidas econômicas que o governo pretende aprovar, entre as quais a autonomia do Banco Central: “Não li, nem vou ler”.
“Foi um equívoco, foi desrespeito ao parlamento, já que os projetos já estão aqui e nós vamos pautar aquilo que nós entendermos como relevante, no nosso tempo”, afirmou Maia. “Este anúncio precipitado de ontem (segunda), sem um debate mais profundo, eu acho que não colabora e essa não será a pauta da Câmara. O governo não precisa ficar apresentando pautas de projetos que já estão aqui. Isso é um café velho e frio que não atende à sociedade”, garantiu.
Vamos aos bastidores: Maia estava numa posição confortável em relação à política fluminense, cada vez mais poderoso em razão do colapso do governo de Luiz Fernando Pezão e do fortalecimento do ex-prefeito carioca César Maia, seu pai, como alternativa ao Palácio Guanabara. A intervenção virou o jogo na política estadual, devido ao crescente protagonismo do secretário-geral da Presidência, Moreira Franco, ex-governador do estado, que tenta resgatar o MDB fluminense da crise em que mergulhou depois da Operação Lava-Jato. Os altos índices de aprovação da intervenção federal na segurança pública do estado pela opinião pública praticamente anularam sua capacidade de resistência à medida.
O governo, porém, deu um drible a mais ao anunciar o pacote de medidas econômicas sem consulta a Maia. Uma coisa foi a aprovação da intervenção, com apoio maciço em plenário, outra é pautar a agenda da Câmara sem negociar com seu presidente. Não tem a menor chance de dar certo. Por duas razões: Maia tem o poder de pautar ou não as matérias que vão à discussão em plenário, a não ser que sejam adotadas por medida provisória, o que agravaria o estresse; segundo, o presidente da Câmara exerce uma liderança muito compartilhada com o colégio de líderes, onde a negociação pressupõe a formação de maioria antes de qualquer matéria ir a plenário para ser votada.
Já havia uma tensão entre o presidente da Câmara e o Palácio do Planalto na questão da reforma da Previdência. O ministro Carlos Marun, da Secretaria de Governo, responsável pela articulação política, pressionava Maia para pôr a PEC em votação mesmo sem garantia de que o governo teria maioria para aprová-la. Maia refugava, não queria queimar a reforma numa derrota anunciada. De uma hora para a outra, o governo deu um cavalo de pau e enterrou a bandeira da nova Previdência. Maia ficou com um mico na mão.
Do outro lado do Congresso, o presidente do Senado, Eunício de Oliveira (MDB-CE), que também pautou para votação a intervenção no Rio de Janeiro, endossou as críticas de Maia. Afirmou que a pauta do Congresso é definida pelo Congresso e não pelo Palácio do Planalto. Eunício reagiu a declarações do líder do governo, Romero Jucá (MDB-RR), a favor da aprovação da agenda econômica de Temer pelo Congresso.
Presas
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu prisão domiciliar a presas gestantes sem condenação ou que forem mães de filhos com até 12 anos. Serão beneficiadas 4,5 mil detentas, cerca de 10% da população carcerária feminina. Cada tribunal terá 60 dias para implementar a medida, que valerá também para mães que tiverem crianças com deficiência. Relator da ação, o ministro Ricardo Lewandowski foi o primeiro a votar favoravelmente ao pedido.
Destacou que apenas 34% das prisões femininas contam com dormitório adequado para gestantes, só 32% dispõem de berçário somente 5% dispõem de creche. “Partos em solitárias sem nenhuma assistência médica ou com a parturiente algemada ou, ainda, sem a comunicação e presença de familiares. A isso se soma a completa ausência de cuidado pré-natal”, destacou o ministro.
O relator foi acompanhado por Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Edson Fachin divergiu parcialmente, para que fosse feita análise mais rigorosa da situação das mulheres presas, considerando apenas o interesse da criança. A decisão se deu com base em um habeas corpus coletivo, o que reforça a tendência no Supremo Tribunal Federal (STF) de aceitação de mandados de busca e apreensão coletivos, como pleiteia o governo para combater o tráfico de drogas no Rio de Janeiro.
Elio Gaspari: A demofobia envenena a intervenção
Não se espera que a tropa venha como o coelhinho da Páscoa, mas não se pode chegar com ameaças aos cidadãos
Michel Temer já viu governo derretendo. Em 2013, quando o monstro da opinião pública estava nas ruas, a presidente Dilma Rousseff tirou um gambá da cartola e propôs uma Constituinte exclusiva para fazer a reforma política. Um telefonema de seu vice (ele) ajudou-a a perceber que aquilo era pura maluquice. Passaram-se cinco anos, Temer está na cadeira da doutora e peregrina com gambás na cartola.
No primeiro dia útil depois do decreto de intervenção federal, horas antes da aprovação da medida pelo Congresso, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, informou:
“Algumas medidas talvez sejam necessárias, como a realização do que se chama mandado coletivo de busca e apreensão.” E explicou: “Na realidade urbanística do Rio de Janeiro, você muitas vezes sai com a busca e apreensão numa casa, numa comunidade, e o bandido se desloca. Então você precisa ter algo como o mandado de busca e apreensão e de captura coletivo para uma melhor eficácia do trabalho a ser desenvolvido.”
A geografia a que o doutor se referiu é a dos bairros pobres da cidade, onde, salvo os bandidos, ninguém foi para lá porque se encantou com o lugar. Por trás da ideia dos mandados coletivos está a noção demófoba segundo a qual quem mora nesses bairros, e não no Leblon, tem algo a esconder. É gente constrangida pelos bandidos, achacada pelos milicianos e abandonada pelo poder público, mas não se confia nela.
No segundo trecho da fala de Jungmann havia um erro, a referência ao “mandado (...) de captura coletivo”. Nunca houve coisa parecida, nem durante a vigência do Ato Institucional nº 5. (Noves fora a ação militar no Araguaia, onde fizeram-se prisões em massa e queimaram-se casas de roceiros.) Horas depois, o ministro corrigiu-se, dizendo que a referência às capturas foi um “mal-entendido”. Foi um erro, muito bem entendido.
Passou-se uma noite, e ontem o governo foi convencido de que a ideia do mandado coletivo de busca e apreensão era uma girafa. Temer 2018 arrebatou o troféu Dilma 2013.
Dilma poderia ter telefonado para Temer antes de tirar o gambá da cartola. Temer poderia ter telefonado para algum advogado amigo (ele os tem) antes de patrocinar a nova mágica.
Improvisada e demófoba, a intervenção na segurança do Rio começou da pior maneira possível. É isso que acontece quando o governo faz a opção preferencial pela marquetagem. (Viva Pezão, a batata quente da segurança do Rio foi para o colo de Temer.)
As forças da ordem não precisam entrar nesses bairros vestidas como coelhinhos de Páscoa, mas também não precisam de protofonias cinematográficas.
Para Michel Temer e para a torcida do Flamengo, tudo iria melhor se ninguém pudesse falar em nome da operação do general Braga Netto. Falariam o general, quando achasse necessário, e seu portavoz autorizado. Só. Em operações recentes o Exército usou esse sistema, com sucesso. Está na mesa a encrenca em que se meteu o chefe da Polícia Federal, Fernando Segovia, por falar demais. Depois de anos de silêncio de seu antecessor, ele se revelou um adorador de holofotes. Deu no que deu. Se blá-blá-blá resolvesse problema, o Rio seria o que já foi.
Luiz Carlos Azedo: Um dia de cada vez
Para os militares, não se trata de esperar o traficante atirar para reagir, mas de matar o bandido que estiver ostensivamente armado na primeira oportunidade
“Só por hoje” é o lema dos dependentes químicos que participam de grupos de autoajuda, como Alcoólicos Anônimos. É a síntese do famoso método dos Doze Passos, criado nos Estados Unidos, em 1935, por William Griffith Wilson e pelo doutor Bob Smith, conhecidos pelos membros do AA como “Bill W” e “Dr. Bob”. Muito difundido no Brasil, é utilizado também por instituições que trabalham com recuperação de outras dependências, como a da cocaína, por exemplo. Começa sempre pelo reconhecimento da impotência para enfrentar a dependência. É mais ou menos essa a estratégia que será adotada pelo Palácio do Planalto na intervenção federal no Rio de Janeiro. Reduzir os indicadores de violência enfrentando o crime organizado com ações a cada dia.
Começou ontem, com as operações de bloqueio e fiscalização das fronteiras e pontos estratégicos do estado, com objetivo imediato de inibir o roubo de cargas, o contrabando de armas e a entrada de drogas. Domingo, no Palácio do Planalto, na reunião com ministros e assessores, entusiasmado com os resultados da pesquisa do Ibope que constatou 83% de aprovação para a intervenção federal, Temer decidiu que as ações deveriam buscar a redução dos crimes que mais geram insegurança na cidade, com ações nos locais de maior incidência e nos setores mais atingidos da economia. Na avaliação do governo, a reestruturação das forças policiais e o combate à banda podre das polícias Civil e Militar somente terão êxito se vierem acompanhados de resultados mensuráveis, que possam ser divulgados à população.
A estratégia “um dia de cada vez” tem tudo a ver com o calendário eleitoral, o projeto de reeleição do grupo palaciano que defende a candidatura de Temer e a necessidade de o presidente da República dar um cavalo de pau na agenda do governo, com o fracasso anunciado do esforço para aprovação da reforma da Previdência. Isso explica os desencontros entre o Palácio do Planalto e o general Braga Netto, comandante militar do Leste, nomeado como interventor federal para comandar a área de segurança, que abrange as polícias Civil e Militar, os bombeiros e o sistema penitenciário. O general interventor foi pego no contrapé pela rebelião no presídio de Japeri, no domingo, que acompanhou a distância. Na segunda-feira, em nota, explicou que ainda aguardava a aprovação do decreto pelo Congresso antes de assumir o comando efetivo do sistema de segurança fluminense.
Foi preciso que o ministro da Defesa, Raul Jungmann, viesse a público explicar a situação. Político, o ministro deixou claro que o cargo de interventor é civil e que o emprego das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem obedecerá aos comandantes militares. Disse também que a escolha do general se deveu ao fato de que a intervenção se limitou à segurança pública; se fosse mais abrangente, como chegou a ser cogitado, talvez fosse um economista, porque se pensou em intervir nas finanças do Rio de Janeiro. Numa situação dessa, aí seria o caso de o governador Luiz Fernando Pezão, já tão desmoralizado, entregar as chaves do Palácio Guanabara para o presidente da República.
Nos bastidores das Forças Armadas, como nos revelou o editor de Política do Correio, Leonardo Cavalcanti, há muita pressão para que o governo ofereça mais garantias legais para o emprego de forças do Exército, Marinha e Aeronáutica no combate direto aos traficantes. Mesmo com a mudança da legislação, que garante julgamento pela Justiça Militar em casos de processos penais, os militares consideram as salvaguardas insuficientes. Há dois raciocínios embutidos aqui: primeiro, a intervenção é um recurso extremo, que não pode fracassar como missão (há um exagero nisso, pois trata-se de uma ação de curto prazo e emergencial para um problema crônico, que demanda ações estruturantes de quase todas as políticas públicas); segundo, a lógica de guerra, na qual não existe o princípio de proporcionalidade do emprego da força, mas sim o da superioridade e letalidade. Trocando em miúdos, para os militares, não se trata de esperar o traficante atirar para reagir, mas de matar o bandido que estiver ostensivamente armado na primeira oportunidade. Essa salvaguarda não existe. O que pode haver, além do que já existe, é o mandado de busca e apreensão coletivo, pleiteado para permitir que as tropas façam revistas em busca dos esconderijos das armas dos traficantes.
Sucessão
Em meio a essa situação, o Alto Comando do Exército se reuniu ontem para discutir o futuro da Força. Na prática, iniciou-se a sucessão do comandante Eduardo Villas Bôas, que está muito doente, embora exerça plena liderança intelectual e comando efetivo das tropas. Serão escolhidos os substitutos de quatro generais que passarão à reserva em março: Juarez de Paula Cunha (Ciência e Tecnologia), Antônio Mourão (sem função), Theófilo Oliveira (Logística) e João Campos (comandante militar do Sudeste). Agora, o mais antigo oficial do Alto Comando é o general Fernando Azevedo e Silva, chefe de Estado-Maior, que passa a ser o sucessor natural de Villas Bôas, por ser o mais antigo. Ambos são amigos e afinados politicamente, ao contrário de Mourão, que estava afastado da tropa e sem poder de mando desde quando deu declarações admitindo uma eventual intervenção militar, numa reunião da Maçonaria em Brasília.
Marco Aurélio Nogueira: A intervenção no Rio, a segurança, a política
Não foi preciso mais que alguns minutos. Anunciada, na tarde de sexta-feira, dia 16, a intervenção federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro, com a nomeação do general Walter Braga Netto como seu coordenador, a reação foi imediata. As redes se contagiaram de protestos, alertas e manifestações de preocupação. Especialistas, intelectuais, políticos, ativistas e cidadãos saíram a campo para entender o fato e repercuti-lo, cercando-o de críticas e de muito ceticismo.Uma densa névoa desceu sobre a Cidade Maravilhosa e a política nacional. O que haveria por trás da decisão de Michel Temer? Teria ela alguma potência para confrontar o avanço do crime organizado no Rio de Janeiro e mitigar o clima de insegurança que atinge sua população? Ou a intervenção não passaria de um “factoide” para espetacularizar o problema, desviar a atenção das fraquezas do governo federal e justificar o arquivamento da reforma da Previdência?
Há duas dimensões a serem consideradas. Uma diz respeito à segurança pública em sentido estrito, ao efeito da intervenção sobre o crime organizado e a corrupção que contaminou a política e a polícia do Rio. Outra tem a ver com a repercussão política da intervenção, com seus efeitos sobre a popularidade de Temer e a disputa eleitoral que se avizinha.
A segurança como problema
Quanto à primeira, há a essa altura alguns consensos. O problema não é somente do Rio: a “metástase” é nacional, vem de antes e afeta várias outras cidades. Algo precisa ser feito além de alertas e protestos, no mínimo para dar alguma proteção à população e especialmente aos seus segmentos mais pobres, que são os que mais sofrem. Terceiro: é impossível obter resultados efetivos no combate ao crime somente com intervenções pontuais e aumento da repressão. Uma “ocupação” militar não faria sentido, e nem está sendo cogitada.
O interventor é um general, mas a intervenção não é militar e sim federal. Faz diferença. Não irá salvar a lavoura, mas pode ajudar ou atrapalhar. O problema é tão mais vasto que requer uma combinação de iniciativas e políticas públicas, que considerem a estrutura policial, mas avancem bem além dela. Abraçadas à segurança estão a educação e a saúde, a atenção aos jovens, a política habitacional. Não é só a segurança.
O Exército atua no Rio já faz tempo. Mesmo que se possa avaliar que sua presença não trouxe resultados, não há por que menosprezar que algum ganho operacional poderá ser obtido com a intervenção. Depende do que vier a ser feito e do modus operandi da operação. Atacará ela o tumor que mina o organismo carioca e fluminense? Irá a força militar para as ruas, para o enfrentamento direto com criminosos e a varredura dos morros, ou se concentrará no trabalho logístico, de coordenação das polícias, de informação estratégica, de inteligência? Será uma força de pacificação ou de guerra?
Nada disso está definido, o que sugere que se deve dar um pouco mais de tempo para ver o rumo que o processo tomará. Críticas precisam ser feitas e consideradas, sobretudo quando acompanhadas de propostas de encaminhamento e apresentadas com senso de viabilidade, rigor técnico e serenidade. A hora talvez seja mais de reflexão que de protesto. A acusação de que a intervenção é outra etapa do mesmo “golpe” que estaria a ser dirigido contra a esquerda e os movimentos populares, por exemplo, não tem pé nem cabeça, só ajuda a deixar a névoa mais espessa.
A dimensão política
A segunda dimensão também requer avaliação cuidadosa. Temer pretende faturar com a intervenção, trazendo o tema da segurança pública, da “ordem” e da “paz” para a agenda governamental. Nada a objetar quanto a isso. Está trocando a reforma da Previdência, que já demonstrava estar praticamente morta, por um tema de forte apelo popular, com o qual as chances de identificação são altas. Se for assim mesmo, o presidente demonstra uma sagacidade inesperada: quer sobreviver e terminar seus dias com alguma dignidade. Isso, claro, se o plano der certo.
Temer pode ganhar alguma coisa, mas é impossível que ganhe tudo, ou mesmo o principal. Não dará vida a uma centro-direita que lhe seja subserviente, pois o centro, hoje, é um espaço amplo demais para ser monopolizado por personagens desprovidas de molejo político e sem capacidade de dialogar com a esquerda. O centro que Temer pode impulsionar é só um pedaço do centro, e o pedaço menos importante. É muito difícil que um governo fraco produza um candidato forte.
Bolsonaro talvez seja o que mais perde, pois foi despojado do tema militar e da segurança. Mesmo assim, ele seguirá em circulação. Poderá obter algum ganho no Congresso caso pautas mais conservadoras entrem em discussão (redução da maioridade penal, por exemplo) ou os parlamentares se deixem contagiar pela passionalidade. Mas não parece razoável que se diga que a intervenção o beneficiará porque passará a ideia de que os militares são a solução para os problemas do país.
Os adversários da “luta contra a corrupção” não ganharão nada, ao menos à primeira vista. Poderão até mesmo ficar mais encurralados, na eventualidade da intervenção se concentrar na cauterização das feridas abertas pela máquina corrupta. Se uma associação mais estreita vier a ser feita entre criminalidade, segurança pública e corrupção, não se poderá dizer que o combate à corrupção é uma forma disfarçada de combate à política. A própria população se encarregará de resolver a equação.
Um fato novo se produziu. A entrega ao general Braga Netto de poderes de governo, com os quais ele poderá demitir e contratar na segurança pública, representa a subordinação das polícias civil e militar, do Corpo de Bombeiros e do sistema carcerário.
O governador Pezão, que já estava mal das pernas, converteu-se assim numa figura decorativa, sem acesso ao fundamental. Seu governo não criou o problema da segurança. Nem o de Sérgio Cabral. O que ambos fizeram – aliados a Jorge Picciani e a uma vasta rede política – foi azeitar uma máquina corrupta que praticamente dizimou o que havia de racionalidade gerencial no Rio, levando água abaixo as finanças, as polícias e os sistemas públicos.
Havia no Rio um governo semimorto, comido pela corrupção, pela falta de credibilidade e pela inoperância. Esse governo agora morreu de vez. Com ele, é de se esperar que se dissolva todo um sistema que abocanhou o Estado e o converteu em reserva de caça.
As chances da intervenção
A melhor chance que tem o general Braga Netto está em conseguir enfiar sua espada nesse sistema e fatiá-lo em pedaços incomunicáveis. O pior é se ele permitir que a operação descambe para a execução de razias nos bairros pobres e a caça de “suspeitos”, o que só reforçará o que de há de racismo e discriminação na política de segurança pública. Nos próximos dias é de se esperar que algo fique mais claro nesse ponto.
É preciso atentar para a sustentabilidade da operação. Em parte, ela poderá vir da população. Mas em parte dependerá do governo federal, de suas verbas e de sua capacidade de apoiar politicamente o que vier a ser feito. A esse respeito, há uma interrogação piscando no horizonte.
Um governo fraco, devorado ele também por desmandos e corrupção, tem como prover recursos e apoios para algo que se pretende grandioso?
O problema passa assim para o Exército. O que esperar dele, de seus quadros e de sua inteligência? Não se pode descartar o que a corporação tem de recursos e experiência. Mas ela estará pisando em terreno minado, precisará de tempo para se aprumar e traçar uma estratégia. Haverá esse tempo? Como gerenciar um problema cuja solução depende de medidas articuladas e de longo prazo com uma intervenção focalizada e de curto prazo?
É um paradoxo. São muitas as possibilidades de fracasso – de simulação, de barulho improdutivo, de varreção da sujeira para baixo do tapete, de agravamento da situação – e muitas as possibilidades de sucesso, ainda que relativo.
Quanto estará o Exército disposto a “ir para o sacrifício”, modificando em parte sua vocação original, para tentar resolver uma questão dramática que tem ingredientes que escapam à lógica militar? É bom lembrar que o Exército, em particular, sempre cumpriu funções extramilitares, de apoio logístico a muitas iniciativas públicas em todo o território nacional. Nunca se dedicou exclusivamente a defender as fronteiras do país ou a combater agressões internas à Nação. Sempre fez mais do que isso. E o Exército da ditadura não existe mais.
Se o modelo a ser inventado pela intervenção conseguir cercar a criminalidade que se alimenta da corrupção e invade a política, um passo será dado.
Militares continuarão a ser militares, por mais treinamento que recebam para atuar em zonas urbanas não para fazer a guerra, mas para construir paz e solidariedade. Não substituirão os políticos e os gestores civis, pois o país não mais comporta isso nem as Forças Armadas parecem dispostas a enveredar pela trilha.
Por vias transversas, o Exército poderá dessa forma se reencontrar com suas melhores tradições. Já fez isso no Haiti, com sucesso reconhecido internacionalmente. Pode repetir a fórmula por aqui.
Estamos patinando no terreno. Intelectuais, especialistas, gestores e parlamentares não conseguiram até hoje achar uma saída para a crise da segurança pública, que não é evidentemente exclusiva do Rio de Janeiro. Há ideias e recomendações oportunas, muita pesquisa acadêmica, mas pouco disso consegue se traduzir em termos práticos. A animosidade e a dificuldade de diálogo têm bloqueado muita coisa.
Não terá chegado a hora de rodar outro filme?