Religião

Poder espiritual ganha força com sincretismo religioso em Brasília

Buscas por novas experiências move pessoas sem religião no país, que apresenta aumento de evangélicos

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Sincretismo religioso e misticismo movem multidões de pessoas para a região de Brasília, a capital do poder. Toda essa mobilização ocorre em meio ao aumento de número de evangélicos e de pessoas sem religião no país, conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O assunto é tema da reportagem especial da 16ª edição da revista Política Democrática Online, editada e produzida pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados gratuitamente no site da entidade.

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Todo o movimento em torno de Brasília, segundo sociólogos e antropólogos, tem relação com o aumento do número de pessoas sem religião no país, que, em 2010, era equivalente a 8% da população. Além disso, em 2022, se mantida a tendência atual de crescimento da quantidade de evangélicos, os católicos devem representar menos de metade da população brasileira. Desde os anos 1990, o catolicismo registra queda significativa no número de fiéis: em 2010, 64% dos brasileiros professavam a religião, contra os 91% registrados em 1970.

No ano 2000, 26,2 milhões de pessoas se declaravam evangélicas, o que representava 15,4% da população. Dez anos depois, esse número saltou para 42,3 milhões de pessoas, o equivalente a 22,2% dos brasileiros. Em 1991, os evangélicos somavam 9% e, em 1980, 6,6% da população brasileira. Todo esse movimento tem reflexo na política. A bancada evangélica hoje tem 91 parlamentares no Congresso Nacional.

As urnas reforçaram a bancada evangélica no Congresso Nacional. Para a Câmara dos Deputados foram eleitos 84 candidatos identificados com a crença evangélica – nove a mais do que na última legislatura. No Senado, os evangélicos eram três e, em 2019, serão sete parlamentares. No total, o grupo que tinha 78 integrantes ficará com 91 congressistas.

O levantamento é do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), com base nos dados disponíveis no portal do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em 2014, o Diap identificou 75 deputados seguidores da doutrina evangélica. Em 2010, a bancada tinha 73 representantes na Câmara.

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Luiz Carlos Azedo: Humanos como nós

“Os povos isolados têm o direito de decidir se preferem viver em isolamento ou não. Para exercer esse direito, porém, precisam de tempo e espaço”

Considerado o pai da antropologia estruturalista, o franco-belga Claude Lévi-Strauss (1908 — 2009), entre 1935 e 1939, dedicou-se a estudar os índios do Brasil Central, base para a publicação de sua tese As estruturas elementares do parentesco, em 1949. Ele rompeu com a ideia de que os índios são apenas índios, porque não concordava com a divisão entre civilizados e selvagens. Lévi-Strauss foi professor da recém-criada Universidade de São Paulo, com sua esposa Dinah Lévi-Strauss, Fernand Braudel, Jean Maugüé e Pierre Monbeig, e realizou pesquisas de campo em Goiás, Mato Grosso e Paraná, que também resultaram no livro Tristes Trópicos (1955). Procurou decifrar as relações entre o ser humano, a natureza e a cultura.

Para o antropólogo, o ser humano se diferencia dos outros animais devido ao uso de símbolos para se comunicar, não importa as particularidades de cada grupo humano. Seu objetivo não era estudar uma sociedade específica, mas identificar o que há nela de universal; por exemplo, sistemas de parentesco e restrições matrimoniais. Graças aos índios, por exemplo, sua compreensão do incesto ultrapassou as explicações biológicas ou morais. A proibição de manter relações sexuais com certas mulheres (como a mãe ou a irmã) e a permissão para tê-las com outras teceram as alianças fundadoras da vida social. O sistema de parentesco é o meio pelo qual se cumpre a transição entre a natureza e a cultura. Explica, por exemplo, como se formou a economia do sertão no Brasil colonial, a partir da miscigenação e do escambo entre os tupis e os portugueses.

Na monumental Mitológicas, de 1960, com mais de 2 mil páginas, Lévi-Straus analisou 813 mitos originários de povos do continente americano, desde os bororos, os jês e os tupi-cavaíbas do Brasil até os hopi, os pueblo, os mohawk e os kwakiutl da América do Norte. No primeiro volume, intitulado O Cru e o Cozido, comparou a análise conjunta dos mitos americanos à audição de uma sinfonia. Os músicos, porém, estão separados no tempo e no espaço, e cada um executa seu fragmento sem saber a partitura completa. Só é capaz de ouvir a música inteira quem estiver a distância. O concerto, segundo Lévi-Strauss, iniciou-se há milênios e hoje poucos músicos remanescentes continuam a tocar na orquestra.

Isolamento
No Maranhão, Karapiru, um indígena Awá, é um dos remanescentes da orquestra. Sobreviveu a um ataque de homens armados e, durante dez anos, morou sozinho, se escondendo na floresta. Agora vive com outros Awá, que são caçadores-coletores e nômades em constante movimento. Em Rondônia, outro índio solitário talvez seja o único sobrevivente de uma tribo massacrada por grileiros que ocuparam a região de Tanuro. Vive em fuga e é conhecido como “homem do buraco”, porque escava grandes covas para se esconder e guardar seus alimentos. Desde 1987, a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem um departamento dedicado aos povos indígenas isolados, cuja política é fazer contato somente nos casos em que sua sobrevivência está em risco iminente. Em vez disso, a Funai busca demarcar e proteger suas terras de invasores.

Os povos isolados têm o direito de decidir se preferem viver em isolamento ou não. Para exercer esse direito, porém, precisam de tempo e espaço. É o caso dos Piripkura, ou o “povo borboleta”, como são chamados pelos “Gaviões”, com quem interagem. Eles falam Tupi-Kawahib, o mesmo tronco linguístico de vários outros povos do Brasil. Os Piripkura eram cerca de 20 pessoas quando a Funai fez o primeiro contato no final da década de 1980. Depois, voltaram para a floresta, e mantêm relações esporádicas com os sertanistas. Somente sobreviverão se suas terras forem protegidas. Há centenas de grupos isolados na Amazônia.

Agora, o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, pretende nomear o antropólogo Ricardo Lopes Dias para a Coordenadoria Geral de Índios Isolados e Recém Contatados. Formado pela Faculdade Teológica Sul Americana, atuou por mais de dez anos para a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização que tem por objetivo evangelizar os indígenas. Lopes Dias terá a missão de tornar o índio cada vez mais “um ser humano igual a nós”, para usar a expressão do presidente Jair Bolsonaro.

Voltemos à antropologia, que explica muitas coisas. Papa do estudo das religiões, o escocês Victor Turner (1920 — 1983) também bebeu das águas das sociedades primitivas. Tendo por base os Lunda-Ndembus, na região Noroeste da antiga Rodésia do Norte, atual Zâmbia, entre 1950 e 1954, viveu na aldeia e estudou o papel dos ritos, dos símbolos e das metáforas nos dramas sociais. Nesse período, de tempos em tempos, eclodiram conflitos, nos quais Turner identificou um padrão universal:

Primeiro, uma crise irrompia no cotidiano, expondo as tensões existentes; depois, os envolvidos acionavam suas redes de parentela, relações de vizinhança e amizade, e a crise se ampliava; a seguir, surgia a turma do deixa disso, que buscava a conciliação e soluções em rituais coletivos; finalmente, havia um rearranjo e as posições e relações eram redefinidas, ou não se chegava a um acordo e a cisão se tornava inevitável, seguindo a clivagem de parentesco e suas alianças, o que daria origem a uma nova aldeia. Qualquer semelhança com o que também acontece nas religiões e na política não é mera coincidência.

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Luiz Carlos Azedo: A força do diálogo

”Se Deus soubesse o que acontecerá, o futuro seria uma verdade absoluta e não existiria liberdade de escolha. Entretanto, ainda não aconteceu. Por isso, é possível influenciá-lo“

Com direção primorosa de Fernando Meirelles, roteiro de Anthony McCarten e fotografia de Cesar Charlone, Dois Papas é um filmaço da Netflix, com interpretações impecáveis de Jonathan Pryce, no papel do cardeal Jorge Bergólio, que viria a ser eleito o papa Francisco, e Anthony Hopkins, aos 80 anos, encarnando o Papa Bento XVI, que surpreendeu o mundo com uma renúncia até então inimaginável. Os dois travam um duelo verbal no qual os fatos históricos e a ficção se desenrolam como uma espiral de hélice dupla, que simultaneamente descreve as personalidades de ambos e traduz velhas polêmicas sobre o livre-arbítrio e o poder da fé. É um filme que mostra a força e a importância do diálogo.

É a partir dele que sugiro uma reflexão sobre 2020. As comemorações de passagem de ano têm origem 3 mil anos antes de Cristo, na Babilônia. Duravam 11 dias, seis a mais do que as de Salvador neste ano. Incluíam procissões, ritos de fertilidade e sacrifícios. O ano-novo romano, que deu origem à comemoração mais universal (também existem o ano-novo chinês, o islâmico e o judaico), foi criado por Julio Cesar, 43 anos antes de Cristo, por meio de decreto que dedicou o primeiro dia do ano a Jano, o deus de duas cabeças das origens. É uma festa pagã, cujas superstições têm as mais diversas procedências, das oferendas à Iemanjá, de origem iorubá, ao costume tcheco de comer lentilhas. Como rito de passagem, porém, as comemorações de ano-novo nunca foram celebradas pela Bíblia, que condena a adoração falsa e os excessos das festas de fim de ano.

É uma das muitas contradições da doutrina católica com a própria fé dos cristãos, o fio condutor do diálogo entre Bergólio, um ex-jesuíta, e Joseph Aloisius Ratzinger, que ascendeu ao papado como grande teólogo conservador de João Paulo II. Não é à toa que o espaço vazio deixado pela Igreja, após as comemorações do Natal, acabou ocupado no Brasil pela alegria e pela energia espiritual do candomblé e da umbanda, que dominam o sincretismo do ano-novo. Para os cristãos, independentemente dos ritos, ano-novo é sinônimo de esperança e mudança, tem tudo a ver com o livre-arbítrio e o poder da fé.

Livre-arbítrio
A polêmica cristã sobre o livre-arbítrio surgiu no norte da África, no início do século V, entre Santo Agostinho e o monge celta Pelágio, por causa do batismo de uma criança. Os cristãos acreditavam que o batismo lavava as manchas do pecado original. Perlágio dizia que as crianças não precisavam ser batizadas, porque não tinham livre-arbítrio e, portanto, não pecavam. E se mais tarde escolhessem o caminho de Deus, nem precisariam ser batizadas. Agostinho de Hipona, que estudou filosofia grega em Cartago e somente foi batizado aos 33 anos, depois de retornar ao cristianismo que havia abandonado quando jovem, sustentou a tese de que era impossível escolher o caminho de Deus por vontade própria. Para isso, segundo ele, era preciso a ajuda de Deus, daí a importância do batismo.

No filme, a conversa entre os dois papas gravita em torno do livre-arbítrio e da vontade de Deus, porque Bergólio queria se aposentar e precisava da autorização do papa. Mas não sabia que Ratzinger tinha o mesmo desejo e via nele seu sucessor, embora divergissem em quase tudo. De forma subliminar, a conversa entre ambos gira em torno da doutrina da predestinação, desenvolvida por Agostinho: é impossível a escolha do caminho de Deus por vontade própria, para isso é preciso uma graça divina. Fora uma saída salomônica para a preservação do dogma do batismo, a graça redentora do pecado original, a partir da qual o livre-arbítrio é possível. Curioso é que a tese da predestinação foi adotada de forma radical pelos protestantes, principalmente os calvinistas, a partir do princípio de que Deus não falha, tudo está decidido por Ele. Não era essa, porém, a visão de Agostinho: a escolha de Deus não substitui a escolha humana, mas a possibilita.

Essa polêmica é o fio condutor da conversa entre os dois papas sobre a relação da Igreja com o mundo atual, entre ironias, piadas e dúvidas existenciais sobre a fé em Deus. O resultado do diálogo entre o conservador Ratzinger e o reformista Bergólio é a opção de ambos pela mudança. O primeiro era impopular, sendo até chamado de ex-nazista por sua passagem pela Juventude Hitlerista na Alemanha; o segundo, carrega a culpa de ter conciliado com a ditadura da Argentina, quando fora o chefe dos jesuítas, o que acarretou a prisão de alguns religiosos aos quais havia proibido de ministrar o sacramento, por fazerem oposição ao regime, o que serviu de justificativa para que fossem presos.

Embora Deus seja onisciente, para os teólogos, se Deus soubesse o que acontecerá, o futuro seria uma verdade absoluta e não existiria liberdade de escolha. Nesse caso, a própria bondade de Deus estaria comprometida e não teria sentido a vinda de Jesus para a Terra, tão celebrada pelo cristianismo nas noites de Natal. Entretanto, como o futuro ainda não aconteceu, ele não existe. Por isso, para o cristianismo, é possível influenciá-lo com rezas e ações no presente. O futuro é aberto às mudanças. Em tempos de terraplanistas e fundamentalistas, esse é o recado do filme para católicos e não-católicos. Feliz ano-novo.

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Luiz Carlos Azedo: Que partido é esse?

“O xis da questão do novo partido que será criado hoje pelo presidente Jair Bolsonaro é o seu ideário programático, ou seja, seu real compromisso com a ordem democrática”

Com 30 deputados, liderados por Eduardo Bolsonaro (SP), e um senador, Flávio Bolsonaro (RJ), o presidente Jair Bolsonaro deve fundar hoje, em convenção nacional, a Aliança pelo Brasil, seu novo partido, consolidando o rompimento com o PSL, de Luciano Bivar (PE). A criação da nova legenda está na contramão da legislação partidária vigente, que força a redução do número de partidos, por meio da cláusula de barreira, e do fim das coligações nas eleições proporcionais. O desafio da criação do novo partido não é a arregimentar quase 500 mil filiados em todo país, mas a transferência dos parlamentares do PSL para a nova legenda, anunciada ontem pelo líder do governo na Câmara, deputado Vitor Hugo (GO), sem perda de mandato, e também a obtenção de recursos do fundo partidário.

Bolsonaro não terá dificuldade para estruturar o partido nos estados e municípios, porque conta com apoio de grupos organizados nas redes sociais com grande poder de mobilização: evangélicos, caminhoneiros, garimpeiros, milicianos, agentes de segurança, militares reformados, etc. Tem a seu favor uma base eleitoral ainda muito robusta, apesar da relativa perda de popularidade, por causa do natural desgaste nos primeiros 10 meses de governo. Ou seja, conta com militantes e lastro eleitoral para viabilizar seu projeto. Ideologicamente, o perfil do partido também está resolvido: será uma organização política de direita, com viés reacionário, que mistura religião com política, ideias conservadoras e nacionalistas, de combate aberto à esquerda e aos movimentos identitários.

Sem dúvida, trata-se de uma nova direita. A narrativa política do novo partido, porém, lembra a radicalização política que antecedeu a II Guerra Mundial aqui no Brasil. Naquela época, na Europa, a carnificina havida na I Guerra Mundial (1914-1918) e a Grande Depressão de 1929 serviram de caldo de cultura para o surgimento de partidos de massas de direita, principalmente o fascista, na Itália, e o nazista, na Alemanha, que se opuseram aos social-democratas, socialistas e comunistas. No Brasil, essa polarização foi representada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), encabeçada pelo líder comunista Luiz Carlos Prestes, e pela Ação Integralista Brasileira (AIB), de Plínio Salgado. Essa radicalização resultou na chamada Intentona Comunista, de 1935, após a dissolução da ANL por Getúlio Vargas, e no Levante Integralista de 1938, após a instauração do Estado Novo, contra o qual os integralistas se insurgiram, atacando o Palácio Guanabara, por causa da dissolução da AIB. Em ambos os casos, houve mortos, feridos e milhares de ativistas presos.

Compromissos
O xis da questão do novo partido, encabeçado pelo presidente, é o seu ideário programático. Qual será o seu real compromisso com a ordem democrática e suas instituições, com os direitos e garantias individuais, a alternância de poder e o direito ao dissenso, principalmente das minorias? Diante de reiteradas declarações de Jair Bolsonaro e seus aliados mais próximos em defesa do regime militar, esse questionamento faz todo sentido. Outra questão importante diz respeito à forma de atuação do novo partido, notoriamente contrário aos movimentos sociais e organizações da sociedade civil que defendem os direitos humanos, o meio ambiente e as opções de gênero. Quais serão seus métodos de luta política? Serão o debate, o diálogo e a persuasão?

Do ponto de vista eleitoral, o grande desafio do novo partido será se viabilizar, nas eleições municipais do próximo ano, para as quais os seus concorrentes, inclusive o PSL, já armam suas candidaturas, com recursos dos fundos partidário e eleitoral. Mesmo contando com o enorme poder da máquina federal, cuja atração política dispensa comentários, e com o prestígio eleitoral do presidente da República, o novo partido precisará financiar sua campanha eleitoral, o que depende de interpretação da legislação vigente, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os parlamentares que migrarem para a nova legenda carregarão consigo os recursos dos fundos partidário e eleitoral? De certa forma, o futuro da nova legenda dependerá dessa resposta. Além disso, ainda que a aba do chapéu de Bolsonaro seja larga como a dos caubóis, eleições municipais costumam ser “fulanizadas” e pautadas pelos interesses locais.

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Luiz Carlos Azedo: Política, sexo e religião

“Não há força no mundo capaz de mudar a realidade das famílias policêntricas e multiétnicas, nem a complexidade das identidades de gênero no estilo de vida contemporâneo”

Clássico da sociologia brasileira, Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, é uma obra polêmica desde sua primeira edição, em 1933, pois desnudou aspectos da formação da sociedade que a elite da época se recusava a considerar. Teve mais ou menos o mesmo impacto de Os Sertões, de Euclides da Cunha, lançado em 1902, a maior e mais importante reportagem já escrita no Brasil. Seu autor descreveu com riqueza de detalhes as características do sertão nordestino e de seus habitantes, além de narrar, como testemunha ocular, a Guerra de Canudos, no interior da Bahia, uma tragédia nacional.

Nas palavras de Antônio Cândido, o lançamento de Casa-Grande & Senzala “foi um verdadeiro terremoto”. À época, houve mais críticas à direita do que à esquerda; com o passar do tempo, porém, Freyre passou a ser atacado por seu conservadorismo. Essa é uma interpretação errônea da obra, por desconsiderar o papel radical que desempenhou para desmistificar preconceitos e ultrapassar valores desconectados da nossa realidade: “É uma obra surpreendente e esclarecedora sobre a formação do povo brasileiro — com todas as qualidades e seus vícios”, avalia Cândido. Consagrou “a importância do indígena — e principalmente do negro — no desenvolvimento racial e cultural do Brasil, que é um dos mais complexos do mundo.”

O presidente Jair Bolsonaro talvez tenha lido Os Sertões, de Euclides da Cunha, porque a Guerra de Canudos faz parte dos currículos das academias militares. Esse foi o livro de cabeceira dos jovens oficiais que protagonizaram o movimento tenentista, servindo de referência para toda a movimentação tática da Coluna Prestes (1924-1927), que percorreu 25 mil quilômetros pelo interior do país. Certamente, porém, não leu Gilberto Freyre, obra seminal sobre a formação da cultura brasileira, traduzida em diversos países. Se o fizesse, talvez conhecesse melhor e respeitasse mais os “paraíbas”, como são chamados os nordestinos por aquela parcela dos cariocas que se acha melhor do que os outros. Ser paraibano é naturalidade, não é pejorativo.

Mas voltemos ao leito antropológico do sociólogo pernambucano. A ideia de que o livro defende a existência de uma “democracia racial” no Brasil, disseminada pelos críticos de Freyre, é reducionista. Casa-Grande &Senzala exalta a formação de nosso povo, mas não esconde as mazelas de uma sociedade patriarcal, ignorante e violenta. A origem dessa crítica é o fato de que o autor destaca a especificidade de nossa escravidão, menos segregacionista do que a espanhola e a inglesa. O colonizador português não era um fanático religioso católico como o espanhol nem um racista puritano como os protestantes ingleses.

Família unicelular
Tanto que Casa-Grande & Senzala escandalizou o país por causa dos capítulos sobre a sexualidade do brasileiro. Entretanto, não foram os indígenas nem os negros africanos que criaram a fama de promíscuo sexual do brasileiro. Foi o sistema escravocrata e patriarcal da colonização portuguesa, que serviu para criar um ambiente de precocidade e permissividade sexuais. Tanto os índios quanto os negros eram povos que viam o sexo com naturalidade, sem a malícia sensual dos europeus.

Freyre lutou como um gigante contra o racismo “científico”, que atribuía aos indígenas e ao africano as origens de nossas mazelas sociais. Há muito mais o que dizer sobre a sua obra, mas o que a torna mais atual é a agenda de costumes do presidente Jair Bolsonaro, que reproduz, em muitos aspectos, características atrasadas e perversas do patriarcado brasileiro, que estão na raiz da violência, da ignorância e do preconceito contra os índios, os negros e as mulheres.

Bolsonaro estabeleceu com eixo de sua atuação a defesa da fé, da ordem e da família. Há um forte ingrediente eleitoral nessa estratégia, mas não é somente isso. Há convicções de natureza “terrivelmente” religiosas e ideológicas, que não têm correspondência com o modo de vida e o imaginário da maioria da sociedade brasileira, com os nossos costumes e tradições, pautados pelo sincretismo e pela miscigenação. No Brasil, tudo é mitigado e misturado, não existe pureza absoluta. Além disso, não se pode fazer a roda da História andar para trás. A família unicelular patriarcal, por exemplo, é minoritária, nem o clã presidencial manteve esse padrão; não há força no mundo capaz de mudar a realidade das famílias policêntricas e multiétnicas, nem a complexidade das identidades de gênero no estilo de vida contemporâneo.

Um dos equívocos de Bolsonaro é acreditar que pode aprisionar a cultura nacional no âmbito dos seus dogmas. Quando investe contra o cinema nacional, a pretexto de que obras como Bruna Sufistinha, um blockbuster da nossa indústria cinematográfica, são mera pornografia e não um retrato da prostituição no Brasil, sua motivação é mais política do que religiosa. Na verdade, deve estar mais incomodado com filmes como Marighella e Democracia em vertigem, que glamoriza a luta armada e enaltece o ex-presidente Luiz Inácio Lula das Silva, respectivamente. Uma coisa é a crítica à obra cinematográfica, outra é o dirigismo oficial à produção cinematográfica, numa ótica que lembra o cinema produzido durante a II Guerra Mundial.

Pura perda de tempo. Com “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, o Cinema Novo emergiu como resposta à falta de recursos técnicos e financeiros. O que temos hoje no cinema brasileiro resulta da centralidade dada por Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e outros cineastas à discussão dos problemas e questões ligadas à “realidade nacional” e a uma linguagem inspirada na nossa própria cultura. “Domesticar” a cultura popular é uma tarefa tão inglória como foi a censura à música popular no regime militar, tanto quanto obrigar os jovens a manter a virgindade até o casamento e mandar os gays de volta para dentro dos armários.

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Mario Sergio Cortella: Páscoa, comunismo, política e democracia no #ProgramaDiferente

Filósofo, escritor, professor e doutor em Educação, Mario Sergio Cortella fala com exclusividade ao #ProgramaDiferente sobre a Páscoa, a relação entre os princípios da religião e do comunismo, o atual momento da democracia e a crise política no Brasil. Assista.


Dom Paulo Evaristo Arns, o último Quixote do Pacto das Catacumbas

Arns sempre esteve atento à voz de seu tempo e militou nas fileiras daqueles que preferem apostar na esperança e não no pessimismo

A morte do arcebispo emérito de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, levou o último Quixote do “Pacto das Catacumbas”, selado por 41 bispos presentes ao Concílio Vaticano II, que fizeram juramento de “viver como pessoas comuns”, sem pompa nem riqueza.

Em 1959, quando o papa João XXIII convocou de surpresa o Concílio Vaticano II, mais de três mil bispos de todo o mundo foram a Roma para discutir o futuro da Igreja, que na época havia se distanciado do mundo. Faltaram apenas os bispos que estavam na prisão nos regimes comunistas do Leste da Europa.

Entre aquele exército de prelados tinha de tudo, desde os mais conservadores, entre eles os espanhóis, que nutriam a esperança de que depois do Concílio “as águas voltariam ao seu curso”, aos mais progressistas que, como João XXIII, compareceram ao Concílio com uma esperança de renovação, como, por exemplo, os brasileiros, que se distinguiram por seu apoio à chamada “Igreja dos pobres”.

Entre os brasileiros, destacou-se o recém-falecido arcebispo emérito de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns, que tinha 40 anos na época. Eu assisti às sessões do Concílio como enviado especial do jornal Pueblo, de Madri, em plena ditadura franquista.

Lembro-me do jovem bispo brasileiro, sempre próximo do grupo de bispos mais abertos e entusiasmados coma aquela primavera da Igreja, especialmente aqueles dos países do norte da Europa.

O bispo brasileiro fazia parte dos 41 padres do Concílio que se reuniram no silêncio das catacumbas de Domitila para fazer um juramento de fidelidade às ideias renovadoras do Concílio.

Foi o chamado “Pacto das Catacumbas”. O documento consistia em 13 promessas, entre elas a de, ao voltar do Concílio, viver em suas dioceses como as pessoas simples, sem palácios ou roupas vistosas, sem bens próprios, compartilhando a vida da classe trabalhadora.

Ali foram lançadas as primeiras sementes da futura Teologia da Libertação, da luta pelos direitos humanos e da defesa dos esquecidos e perseguidos da sociedade, que teria sua maior força na América Latina.

Dom Paulo demonstrou até a morte sua fidelidade àquele pacto nas catacumbas de Roma, onde se esconderam os primeiros cristãos perseguidos, entre eles Pedro e Paulo.

Como outros bispos brasileiros –Dom Helder Câmara e Dom Antônio Fragoso–, Dom Paulo vendeu o palácio episcopal para comprar terrenos nos bairros pobres na periferia das cidades, onde levantou comunidades, enfrentou a ditadura militar e dedicou grande parte da vida a cuidar dos presos políticos e a defender os direitos humanos. Seu trabalho pastoral se desenvolveu principalmente nas favelas pobres de São Paulo.

Religioso franciscano, culto e de uma profunda espiritualidade, especialista no estudo da história dos primeiros séculos do cristianismo, Dom Paulo acabou sendo perseguido pelos dois poderes: o de sua própria Igreja, quando o papa João Paulo II desmembrou a diocese de São Paulo e o recriminou dizendo: “a Cúria sou eu”, e o dos militares golpistas. Morreu convencido de que o acidente de carro que sofreu no Rio foi uma tentativa de assassinato.

Foi fiel até o fim às palavras proféticas de João XXIII quando, ao anunciar a convocação do Concílio Vaticano II afirmou que “a voz do tempo é a voz de Deus” e criticou aqueles que qualificou de “profetas de desventuras”.

Dom Paulo sempre esteve atento à voz de seu tempo e militou nas fileiras daqueles que preferem apostar na esperança e não no pessimismo.

Por: JUAN ARIAS


Fonte: brasil.elpais.com


Luiz Ruffato: A Igreja Universal avança

Se julgarmos pelas pesquisas para prefeito em São Paulo e no Rio, o quadro é desolador.

No próximo dia 2 de outubro, iremos às urnas para eleger prefeitos e vereadores. Deveria ser um momento em que efetivamente desempenhamos um papel fundamental na transformação da sociedade, um momento único de exercício de cidadania. Mas a pergunta que fica é: estamos nos preparando para isso? O que temos feito para melhorar o espaço em que vivemos? A mudança coletiva processa-se por meio de ações individuais: é como nos relacionamos com o outro e com o entorno que ressignificamos a existência. É a ação no presente que qualifica o futuro – nosso, dos outros, do planeta.

Se julgarmos pelas pesquisas de intenção de voto para prefeito nas duas maiores cidades do Brasil – São Paulo e Rio de Janeiro – o quadro é desolador. Na rica São Paulo, em resposta espontânea, 54% dos eleitores afirmam não saber em quem votar e 26% declaram que vão votar nulo ou em branco segundo pesquisa do Ibope. Quando apresentados aos nomes dos pré-candidatos, o deputado federal Celso Russomanno aparece em primeiro lugar com 26%, bastante distante do segundo colocado, a senadora Marta Suplicy (PMDB), com 10%. Interessante perceber ainda que o pastor Marco Feliciano (PSC), ligado à Assembleia de Deus, e que já deu claras demonstrações de homofobia e intolerância, embora surja com apenas 4% das intenções de votos, tem o maior número de seguidores no Facebook: 3,77 milhões, quase cinco vezes mais que o segundo colocado, Celso Russomanno, com 670.000.

Russomanno é réu no Supremo Tribunal Federal (STF) por prática de peculato (desvio de dinheiro público). Ele já foi condenado em primeira instância a dois anos e dois meses de prisão em regime aberto, mas como possui foro privilegiado a ação foi transferida para o STF. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu urgência no julgamento de Russomanno, para que, caso seja confirmada a sentença, ele fique impedido de disputar as eleições, de acordo com a Lei da Ficha Limpa. Russomanno é filiado ao Partido Republicano Brasileiro (PRB), partido que tem vínculos com Edir Macedo, dono da Igreja Universal do Reino de Deus.

Pertence ao mesmo PRB e à mesma Igreja Universal o sobrinho de Edir Macedo, ex-ministro da Pesca e da Aquicultura no governo Dilma Rousseff, senador Marcelo Crivella, que lidera as intenções de voto para prefeito da cidade dita mais liberal do Brasil, o Rio de Janeiro. Contra o aborto e defensor do criacionismo, o pastor e cantor gospel Marcelo Crivella tem 35% das preferências – mais que todos os outros candidatos juntos, segundo pesquisa do Instituto Gerp. Além disso, 26% dos entrevistados afirmam que não votarão em ninguém e 15% permanecem indecisos.

Sozinho, o PRB elegeu, no último pleito, uma bancada composta por sete deputados federais e um senador (Marcelo Crivella), além de ter conseguido emplacar o presidente do partido, Marcos Pereira, como titular do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo do presidente interino, Michel Temer. Pereira foi diretor administrativo e financeiro da TV Record do Rio de Janeiro entre 1995 e 1999, e vice-presidente da Rede Record de Televisão, entre 2003 e 2009. Fundada em 1977, a Igreja Universal conta hoje com cerca de 12.000 pastores, sete mil templos e quase sete milhões de seguidores no Brasil, e outros quase dois milhões de fiéis espalhados por mais de uma centena de países, segundo estimativas da própria entidade. Sua receita é estimada em cerca de R$ 1,4 bilhão de reais por ano – mas não há qualquer controle sobre esse valor, já que por lei as instituições religiosas estão isentas de impostos.

Além dos fiéis, a Igreja Universal controla hoje a Rede Record, que cobre 93% do território nacional e está presente em 150 países, a TV Universal, com mais de 20 retransmissoras, e a Rede Aleluia, que possui quase oitenta emissoras de rádio AM e FM, presente em 75% do território nacional. Faz parte ainda do grupo o portal universal.org., o jornal Folha Universal, as revistas Plenitude, Obreiro de Fé e Mão Amiga, a editora Unipro, que registra milhões de exemplares vendidos de livros de Edir Macedo e de outros pastores, e a gravadora Line Records, especializada em música religiosa.


Fonte: El País