reforma tributária

Bruno Carazza: Saúde, paz, união...e reforma tributária

Reforma tributária não vai sair se todos não cederem

Se acreditassem em Papai Noel, certamente a maioria dos empresários brasileiros desejaria o fim da pandemia e uma reforma tributária em 2021.

Enquanto escrevo este texto, às 16:39h de domingo (20/12), o Impostômetro calculado pela Associação Comercial de São Paulo indicava 1,987 trilhão de reais em tributos pagos neste ano - o que indica que provavelmente ao longo desta semana ultrapassaremos a marca de R$ 2 trilhões arrecadados pelos governos de todos os brasileiros. Trata-se de apenas um de vários indicadores de nossas distorções neste campo.

Pode-se criticar a metodologia de rankings de ambiente de negócios como o Doing Business, do Banco Mundial, ou o índice de competitividade do Fórum Econômico Mundial, mas ninguém discorda que o Brasil seja um dos países que demanda mais tempo e recursos humanos para o cumprimento de todas as exigências tributárias da União, 27 Estados e mais de 5 mil municípios.

Essa complexidade traz consigo uma alta litigiosidade, que congestiona o nosso Judiciário. De acordo com o relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, apenas no ano de 2019 foram iniciados 5.168.177 novos processos envolvendo impostos, taxas e contribuições - um número que dá a medida da insegurança jurídica no país gerada pelo nosso sistema tributário.

Estimativas de especialistas indicam que em torno de 66% do PIB é alvo do contencioso tributário em nível administrativo (no âmbito das receitas dos três níveis federativos e conselhos de contribuintes) e judicial. São dois terços da produção anual do país que ficam empoçados enquanto não se decide se devem entrar nos cofres do governo ou serem liberados para investimento das empresas.

Qualquer pesquisa que se realize com empresários aponta uma concordância quase unânime de que é necessário reformar todo o sistema, buscando sua simplificação, desburocratização e aumento da competitividade e da transparência - além da redução da carga tributária, é claro.

O problema é que na cartinha para Papai Noel ou nos desejos de Ano Novo do empresariado brasileiro sobram pedidos e faltam compromissos.

Desde 19 de fevereiro uma Comissão Mista do Congresso Nacional discute as propostas na mesa: a PEC nº 45/2019 (“proposta Appy”), a PEC nº 110/2019 (baseada no trabalho do ex-deputado Luiz Carlos Hauly) e o PL nº 3.887/2020, encaminhado pelo ministro da Economia Paulo Guedes.

Ao longo dos últimos meses dezenas de audiências públicas foram realizadas e, a se contar pelas manifestações dos representantes dos principais setores da economia, os consensos se resumem aos seus objetivos gerais. Quando se desce às medidas concretas, é cada um por si e o diabo (que mora nos detalhes) por todos.

Todos querem simplificação de impostos, mas quando se trata de unificar as alíquotas, querem tratamento especial. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), por exemplo, defende alíquotas diferenciadas por atividades e produtos, assim como a manutenção do sistema cumulativo como opcional para empresas que trabalham com lucro presumido e prestadoras de serviços. Ora, se for assim, é claro que nosso carnaval tributário vai continuar.

A Confederação Nacional dos Transportes (CNT) pretende fazer rabanadas sem quebrar ovos. No documento “Pilares para a Reforma Tributária”, ele exige que a reforma tributária não apenas mantenha a carga tributária global da economia, como também se comprometa a não elevá-la em nível setorial. Na sua lista de presentes para o bom velhinho há o abatimento de seus gastos com insumos e folha salarial no valor imposto agregado devido, mas tratamento diferenciado na tributação dos negócios em transportes e infraestrutura. Impostos seletivos? Só se forem para não onerar as transportadoras - um dos setores mais poluidores de nossa matriz econômica.

Ideais de justiça e igualdade são valorizados nas mensagens de final de ano, mas quando se trata de reformar o sistema, meu interesse vem primeiro. Em carta aberta enviada ao relator da Comissão de Reforma Tributária, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), 45 associações de produtores rurais listaram os pleitos do agronegócio brasileiro. Entre elas, a manutenção da desoneração da cesta básica, a imposição de alíquota zero para os insumos agropecuários, tratamento especial para as cooperativas e exclusão dos produtores rurais inscritos como pessoa física.

As entidades filantrópicas, por sua vez, querem continuar a fazer o bem com o chapéu alheio. Um grupo de onze organizações representativas de entidades religiosas, de educação e saúde que se beneficiam de isenções fiscais lançou um manifesto contra a “taxação da solidariedade”. As intenções são as melhores possíveis, mas nenhuma palavra se vê sobre a necessidade de se separar o joio do trigo e dar o tratamento correto a atividades lucrativas travestidas de assistencialismo.

Numa velha tirinha do cartunista Bill Watterson, o garoto Calvin, de 6 anos, se pergunta como o Papai Noel consegue pagar os duendes e os brinquedos que ele distribui. Seu tigre de estimação, Haroldo, arrisca uma responda: endividando-se. O lobby em prol da desoneração da folha de pagamentos, que une setores tão díspares quanto a construção civil e a indústria de tecnologia da informação e o varejo, recebeu seu presente de Natal antecipado em novembro. “O problema é que, mais cedo ou mais tarde, a farra acaba e aí como é que eu fico?”, pergunta Calvin diante da perspectiva de ficar sem presentes no futuro.

Para terminar este texto pré-natalino com um pouco de poesia, fica a dica de Drummond para o empresariado brasileiro (e para cada um de nós): “Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo. Eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre”.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Claudia Safatle: Quando fevereiro chegar

Reforma tributária já deixou a agenda do Ministério da Economia

Na agenda de reformas do Ministério da Economia para 2021, a tributária está fora. Tão logo se defina a eleição das mesas da Câmara e do Senado, em fevereiro, a primeira Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que o governo pretende se empenhar na aprovação é a Emergencial, que cria os gatilhos e travas para o cumprimento da lei do teto de gastos. Nesta, a área econômica ainda sonha com a possibilidade de inclusão para votação dos três D, sobretudo a desindexação, além da desvinculação e desobrigação. Estes, porém, não constavam da última versão do texto do relator da PEC, senador Marcio Bittar (MDB-AC).

O Orçamento do próximo ano já está com despesas subestimadas por causa da indexação do salário mínimo à variação do INPC. Com a aceleração da inflação, o valor do INPC ficou subavaliado, afetando, assim, os cálculos dos gastos com benefícios previdenciários e assistenciais vinculados ao salário mínimo.

Segundo dados apresentados pelo jornalista Ribamar Oliveira na sua coluna de ontem, publicada neste espaço, se o INPC ficar em 4,8% - ou seja, 0,7 ponto percentual acima do indice considerado no orçamento -, isso resultará em uma despesa adicional para os cofres da União de R$ 5,378 bilhões.

Antes da tributária, argumenta-se, tem a reforma administrativa para ser discutida e aprovada ainda no ano que vem. Embora a proposta do Executivo, que está no Congresso, seja tímida demais - porque o presidente da República não quis mexer com os atuais funcionários públicos -, a administrativa é o único projeto que busca reduzir o gasto com o pagamento de pessoal de forma estrutural.

Esse é o terceiro bloco das grandes despesas orçamentárias. Primeiro era a Previdência Social, cuja reforma foi aprovada no ano passado. Em segundo a taxa de juros que incide sobre a dívida pública, que encontra-se, atualmente, em seu menor nível (2% ao ano).

Ambos os gastos foram, portanto, atacados. E é bom que se diga que o juro básico só está nesse patamar porque havia uma política de rigor fiscal para lhe dar sustentação desde o governo anterior, de Michel Temer.

Um dos problemas da proposta de reforma administrativa do governo é que ela não mexe com os atuais funcionários. As novas regras de contratação, de gestão e de salários só vão valer para os servidores que entrarem no serviço público após a aprovação da PEC.

É de fundamental importância apresentar aos agentes econômicos domésticos e aos investidores estrangeiros um plano de governo em que se vislumbre, para os próximos anos, um certo equilíbrio das contas públicas.

Nesta semana o ministro da Economia, Paulo Guedes, enviou ao Congresso ofício onde ele estabelece uma meta fiscal de déficit primário de R$ 247,118 bilhões para o governo central.

Para as empresas estatais está fixado um déficit de R$ 3,97 bilhões e para os Estados e municípios, equilíbrio (superávit de cerca de R$ 200 milhões). A meta de déficit primário consolidada é, portanto, de R$ 250,9 bilhões para o próximo ano.

Acredita-se que isso associado à garantia de segurança jurídica dos contratos, mais do que resolver o “manicômio” tributário, é o que vai estimular os investidores internacionais a virem para o Brasil, aproveitando da imensa liquidez que há no mundo e do amplo programa de investimentos em infraestrutura e logística disponível no país.

Para assegurar juridicamente os investimentos tão esperados em infraestrutura, aguarda-se a aprovação da Lei Geral das Concessões. A proposta de um novo marco legal das concessões e Parcerias Público-Privadas (PPPs) foi aprovada em comissão especial da Câmara dos Deputados no fim do ano passado e desde então aguarda votação em plenário.

Com 224 artigos, o texto é a maior alteração feita na legislação sobre as concessões desde os anos 1990 e pretende garantir segurança jurídica e possibilitar a retomada de investimentos.

O projeto amplia o uso da arbitragem nos contratos, para facilitar a solução de pendências relativas ao equilíbrio econômico-financeiro, dentre outras mudanças. Espera-se, com esse novo marco legal, não deixar espaço para atitudes tresloucadas como a do prefeito do Rio, Marcelo Crivela, que mandou derrubar as catracas e cancelas do pedágio da Lamsa, na linha amarela, por discordar do preço cobrado.

Na avaliação que faz da economia brasileira, a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) realça a necessidade de mais reformas e uma real abertura da economia e insiste no intrincado ambiente de negócios que leva uma empresa de médio porte a gastar, aqui, cerca de 1.500 horas/ano para lidar com a carga de impostos. Na América Latina, esse tempo é de 317 horas/ano, e, nos países da OCDE, de 159 horas.

A pobreza e a desigualdade também chamam a atenção, assim como a negligência com o meio ambiente. Os prognósticos da OCDE para a economia brasileira são de uma recessão de 5% neste ano e crescimento de 2,6% e de 2,1% em 2021.

Em função do calendário político e as atenções voltadas para a disputa das presidências da Câmara e do Senado, o governo só vai se preparar para as negociações das reformas a partir de fevereiro. De antemão é possível dizer que é muito difícil a aprovação de duas PECs, a Emergencial e a Administrativa no mesmo ano legislativo e estando o chefe do Poder Executivo no seu terceiro ano de mandato e pleiteando a reeleição.

O impulso fiscal dado pelo auxilio emergencial pago a 68 milhões de brasileiros e pelas medidas de apoio ao setor privado em meio à explosão da pandemia terá que ser acompanhado de expansão dos investimentos no país, sem o que a recuperação que está em curso terá, uma vez mais, fôlego curto.


Armando Castelar Pinheiro: Xadrez tributário

Há quem tema que os novos tributos irão abrir espaço para novos tipos de conflitos e processos na Justiça

Sexta-feira me pediram para ensinar a jogar xadrez. Tenho um tabuleiro e peças grandes, da época em que jogava regularmente, e fomos em frente. É um jogo complicado, com peças que se movimentam de formas variadas e que se joga pensando no agora e em vários lances à frente. Depois fiquei pensando como seria absorver e processar tanta informação.

Não muito diferente, conclui, do que ocorre comigo em relação à reforma tributária. Depois de seis reuniões que tivemos no Ibre sobre o tema, com alguns dos maiores especialistas no assunto, das áreas de direito, economia e ciência política, todos querendo o melhor para o Brasil, ainda não consegui formar uma opinião, ou entender tudo o que está em jogo.

Eis o que captei. Todo tributo incide sobre uma base: por exemplo, patrimônio, renda, movimentação financeira, folha salarial ou receita ou valor adicionado com a produção de um bem ou serviço. Esta última categoria, a tributação sobre bens e serviços, é o foco das propostas em discussão no Congresso: o PL 3887/2020, enviado pelo governo; a PEC 45/2019, de iniciativa da Câmara; e a PEC 110/2019, em tramitação no Senado. A proposta é cuidar desses tributos separadamente dos incidentes sobre as demais bases.

Tributos reduzem a eficiência econômica, alguns mais que outros. Quem defende a reforma argumenta que, na tributação de bens e serviços, aplicar alíquota única, uniforme em todo território nacional, incidente sobre o valor adicionado, cobrada no local de domicílio de quem compra, penalizaria menos a eficiência. Há, porém, dois problemas com isso.

Um, que a eficiência não é o único objetivo. Assim, há quem defenda uma tributação progressiva, com alíquotas mais baixas para itens que pesam mais na cesta de consumo dos mais pobres, como alimentos, e mais altas para os usados pelos mais ricos, como carros ou barcos de luxo. Há também quem defenda diferenciar alíquotas por preocupação com saúde (fumo e bebidas alcoólicas, por exemplo), educação (livros, escolas, cursinhos), meio ambiente (carros a álcool vs gasolina), ou política industrial. E há quem defenda a liberdade das unidades da federação fixarem alíquotas distintas para atrair investimentos.

Obviamente, levar tudo isso em conta é reproduzir o que temos hoje, com a briga das empresas por classificações favoráveis de seus produtos e a guerra fiscal. E esses outros objetivos podem e devem ser atingidos via outros instrumentos. Só que aí a coisa fica mais complexa e entra em cena a desconfiança quanto ao cumprimento de promessas.

Dois, que a capacidade do fisco arrecadar os tributos devidos não é a mesma em todos os setores e em todo o país. Em princípio, isso pode ser atenuado via a substituição tributária, como ocorre hoje em dia com combustíveis, em que o recolhimento se dá na refinaria, não no posto de gasolina. Mas desde os trabalhos de Frank Ramsey se sabe que é mais fácil e eficiente tributar bens e serviços cuja demanda é pouco sensível ao preço, o que explica porque eletricidade e telecomunicações são tão taxados. Em especial, um aumento da tributação em setores com muitas empresas e consumidores sensíveis a preço pode levar a um aumento da informalidade, frustando as projeções de receita e de aumento da eficiência. A manutenção do Simples mitiga esse problema, mas não se sabe em que escala.

Há um certo consenso de que pagar imposto no Brasil é complicado, dá muito trabalho e dá margem a disputas judiciais trilionárias, o que joga contra a eficiência e a capacidade do país atrair investimentos. Também há convergência de que muito disso se deve às chamadas obrigações acessórias, que dizem respeito à miríade de documentos que precisam ser apresentados ao fisco, e às regras que regem os conflitos entre o fisco, em busca de arrecadar mais, e os contribuintes, dedicados ao planejamento e à elisão tributária.

Mas há forte divergência sobre como resolver esses problemas, se é possível fazê-lo sem mudar a estrutura tributária, com medidas infra-legais, ou não. Também há quem tema que os novos tributos irão abrir espaço para novos tipos de conflitos e processos na Justiça. A coisa se complica pela necessidade, em caso de reforma, de um período de transição, que pode ser longo, para calibrar a alíquota a cobrar e permitir a amortização de investimentos realizados com a atual estrutura tributária.

Uma das reuniões foi sobre como avançar politicamente com a reforma. A experiência sugere que a forma como ela é apresentada ao eleitor faz bastante diferença, mas que o debate atual está centrado apenas em quem perde ou ganha com ela. Em paralelo, me parece, há um debate entre nossos enxadristas tributários, em que o público torce, mas não entende. Não soa como um caminho promissor para resolver nossos problemas nessa área, que não são pequenos.

Pode até ser que algum grupo dê um xeque mate nos outros, ou que uma torcida prevaleça sobre as demais, mas acho difícil. Mais seguro seria destrinchar esse debate para o grande público, mostrando as vantagens de cada alternativa em itens como produtividade, custo de cumprir as regras, litigiosidade etc.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ


Merval Pereira: Truques contábeis

O temor de todos se confirmou: o governo não tem de onde tirar dinheiro para o Renda Cidadã, a não ser que desrespeite o teto de gastos. As medidas anunciadas ontem nada mais são que truques contábeis que não enganam mais ninguém, ainda mais quando quem tem que explicar a trapalhada é um representante do Centrão, especialista em truques, mas jejuno em legalidade.

Aproveitar a verba do Fundo de Educação Básica (Fundeb), que está fora do teto de gastos, para dar um drible na legislação, revela a postura de fura-teto do governo e sua propensão a não dar prioridade para a educação. O presidente que não queria tirar dos pobres para dar aos paupérrimos não se incomoda de tirar dos cidadãos uma perspectiva de futuro melhor através da educação.

Já houve tentativa de usar os recursos do Fundeb, aprovado contra o desejo do governo, para financiar programas sociais, e o governo perdeu. Na negociação ficou acertado que 5% da verba do Fundeb iria para a educação infantil. O governo vale-se disso agora para alegar que os recursos serão usados para colocar as crianças nas escolas no novo programa social Renda Cidadã. Mais uma falácia da linguagem oficial.

A parte dos precatórios é mais difícil ainda de explicar, e quebra mais regras jurídicas. Já houve tentativas, por emenda constitucional, de ampliar o prazo para entes federativos - estados, municípios - que estavam inadimplentes, mas o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional.

O que assusta o mercado financeiro na anunciada redução do pagamento dos precatórios é que ela cheira a um calote na dívida do governo, sinalizando uma posição retrógrada, pois o governo vem pagando por ano cerca de R$ 50 bilhões em dívidas reconhecidas pela Justiça.

A maioria dessas dívidas é de pessoas físicas, geralmente disputas sobre salários de servidores públicos, benefícios previdenciários, pensões, os chamados precatórios de natureza alimentar, que têm prioridade para o recebimento. Quer dizer, o presidente tanto se preocupou em poupar os “paupérrimos” que vai pegar muitos deles pelo calote nos precatórios.

A grande dificuldade do governo sempre foi encontrar dinheiro dentro do orçamento sem mexer em privilégios chamados de “direito adquirido”. A desindexação geral da economia, que é muito engessada, seria uma medida importante, pois permitiria ao governo usar o dinheiro do orçamento com mais flexibilidade.

O governo sempre tentou fazer essas reformas sem provocar protestos e reações corporativas, e acabou mexendo num vespeiro com a redução do pagamento dos precatórios. Uma solução precária, pois a cada ano a dívida aumentará. Seria uma medida de pouco impacto, pensavam os políticos do Centrão, porque atinge pessoas variadas, e não pagar precatórios não é uma situação nova. Não criaria grandes problemas, que mexessem com a popularidade do presidente.

É verdade quanto à popularidade, mas não quanto ao impacto, pois haverá muita disputa na Justiça, e mais uma vez o Supremo terá que arbitrar. A troca do novo imposto digital pela desoneração geral da folha de pagamento das empresas é uma boa negociação, que acabou emperrada dentro da reforma tributária, que não tem consenso no Centrão.

A desoneração acabará surtindo efeito, porque vai permitir o aumento do emprego e a recuperação da economia, que não está crescendo como se esperava. Se o centrão apoiar, pode passar. E o presidente da Câmara Rodrigo Maia, que sempre foi contra a CPMF digital, poderia até reconsiderar, mas com a crise política que as fontes para o Renda Cidadã vai gerar, dificilmente esse assunto ganhara prioridade.

Maia já disse que é preciso regulamentar o teto de gastos, justamente para evitar tentativas de dribles. Quando o Centrão é que tem que explicar para o mercado financeiro a solução encontrada, é sinal de que o ministro Paulo Guedes perdeu o controle das propostas econômicas, e que dificilmente o líder do governo, Ricardo Barros, convencerá os investidores de que está tudo bem.

O tempo é curto, o governo precisa correr para aprovar o Renda Cidadã, pois em janeiro o dinheiro já tem que estar sendo distribuído. Em dezembro acaba o auxílio emergencial.


Vinicius Torres Freire: Reforma de impostos de Guedes é injusta, ineficiente e selvagem

Com CPMF, reforma do governo aumenta injustiça e ineficiência tributária no país

“Poucas ideias são tão ruins que não podem ser pioradas. Infelizmente, o sistema tributário brasileiro não é exceção à regra… Uma prova disso é a constante ameaça do retorno da famosa … CPMF”, escreveu Adolfo Sachsida em um livro de 2017. Sachsida é ora secretário de Política Econômica do Ministério da Economia de Paulo Guedes.

A esse respeito, muita gente está de acordo com o secretário, este jornalista inclusive. Guedes quer substituir um imposto ruim e decadente, a contribuição patronal para o INSS, por um ainda pior, a CPMF ou equivalente. Se conseguir, vai aumentar a confusão, as distorções e várias iniquidades da tributação no Brasil.

Um modo de acabar com o imposto sobre folha de salários é tributar mais a renda, de preferência a dos mais ricos (ou o consumo, alternativa pior). Tributar mais os rendimentos maiores é também um modo de pegar os lucros da “economia digital”, que têm escapado dos fiscos do mundo inteiro.

Guedes não quer bulir com o IR. Pretende comer a renda de modo insidioso, com uma CPMF, imposto menos visível e que trata ricos e pobres da mesma maneira.

A ideia do ministro é arrumar R$ 120 bilhões a fim de reduzir o que as empresas pagam para o INSS. Acabaria o imposto sobre remunerações de um salário mínimo ou menos; a contribuição sobre salários maiores diminuiria. Uma conta de guardanapo indica que, de fato, esse dinheiro seria bastante para reduzir a alíquota do INSS de 20% para uns 11% (para salários maiores que um mínimo), tudo mais constante.

Guedes acha que arrecadaria esses R$ 120 bilhões com uma alíquota de 0,4% para sua CPMF misteriosa. Quando a CPMF era de 0,38% (de 2002 a 2007), a receita era regularmente 1,35% do PIB, atualmente uns R$ 94 bilhões. Mas passemos, pois ninguém sabe o que é essa CPMF do ministro e a economia mudou em 13 anos.

Uma CPMF ou coisa que o valha vai pesar mais sobre indústria e agricultura, menos sobre serviços. Impostos sobre a folha de salários, como a contribuição patronal para o INSS, pesam mais, claro, sobre setores que gastam relativamente mais com mão de obra e menos com capital.

Mas ao fim e ao cabo, impostos sobre transações financeiras são selvagens, em nada relacionados a um critério econômico razoável. Uma cadeia de produção longa e movimentação financeira relativamente grande levarão uma empresa a “pagar” mais (na verdade, a recolher mais imposto, repassando a conta para o cliente).

A CPMF tende a aumentar a iniquidade social e econômica da tributação. Um grande princípio da reforma tributária seria justamente uniformizar o quanto possível os impostos que cada setor ou empresa têm de recolher. Outro motivo da reforma é acabar com a cumulatividade (o imposto em cascata, que fica mais pesado quanto mais “fases” a produção de um bem ou serviço envolver). A CPMF é cumulativa.

Além do mais, uma CPMF de 0,4% é uma enormidade em ambiente de taxas de juros baixas. Logo, vai criar tumulto e custo também no mercado financeiro.

A redução dos encargos sobre a folha vai ajudar a criar empregos? Não há evidências. Talvez facilite formalização e contratações quando e se a economia estiver crescendo. Impostos menores sobre o emprego podem ser um coadjuvante da melhoria do mercado de trabalho, mas não o motivo.

Deputados relevantes ainda dizem que a CPMF não passa ou que pode atrasar a reforma tributária. Que o país esteja discutindo tal coisa é outro sucesso da selvageria iníqua e ignara que move o governo de Jair Bolsonaro.


‘Lista de perdedores é imensa’, diz Everardo Maciel sobre propostas de reforma tributária

Em entrevista à revista online e mensal da FAP, especialista lembra que até o livro pode ser prejudicado

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

As propostas de reforma tributária não são nada animadoras para a população em geral, conforme avalia o consultor jurídico e professor do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal. “A lista de perdedores é imensa”, alerta o especialista, em entrevista que concedeu à revista Política Democrática Online de setembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.

Acesse aqui a edição de setembro da revista Política Democrática Online!

Existem hoje três propostas de reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional: uma oriunda da Câmara dos Deputados (PEC nº 45); outra apresentada no Senado (PEC nº 110), e, por fim, a proposta de criação de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), encaminhada pelo Poder Executivo, para a qual se solicitou tratamento de urgência no Congresso Nacional.

“[A lista de perdedores] começa com os mais de 850 mil contribuintes, tributados no regime do lucro presumido do IRPJ e cumulativo do PIS/COFINS, alcançando pequenos e médios prestadores de serviço, comerciantes e industriais”, afirma. “Nesse contingente, incluem-se os serviços de educação e saúde, o que inevitavelmente implicaria elevação dos preços das mensalidades escolares e das consultas médica”, ressalta. 

Na avaliação de Maciel, para justificar o aumento da tributação dos serviços de educação e saúde, argumenta-se que quem faz uso desses serviços são ricos, desconhecendo a imensa demanda da classe média. “De mais a mais, essa oneração haveria de sobrecarregar o SUS e a rede pública de ensino, gerando custos para o setor público”, analisa.

Na longa lista de perdedores, até o livro foi incluído. “Desde 1946, o livro é desonerado de tributos. A remuneração de um escritor corresponde a 10% do preço de capa. A CBS pretende taxar os livros com uma alíquota de 12%, o que equivale a confiscar aquela remuneração”, critica ele. Além disso, os livros didáticos representam cerca de 50% do total comercializado, sendo que grande parte é adquirida pelos governos. Trata-se, portanto, de uma ideia estapafúrdia. Mais grave, sem nenhum valor arrecadatório.

Outro alvo desse aumento de carga tributária, segundo o ex-secretário da Receita Federal, é o agronegócio, precisamente o setor quem tem sustentado o modesto desempenho do PIB brasileiro. “Pretende-se tributar o setor pesadamente, na contracorrente do que se faz no resto do mundo”, afirma.

No Brasil, 98% dos produtores rurais são pessoas físicas equiparadas a jurídicas, que produzem e vendem para a indústria processadora sem transferir crédito. Segundo o consultor jurídico, a indústria processadora de produtos de origem animal e vegetal toma um crédito presumido, na apuração do PIS/COFINS, que varia de 40 a 60%. 

“No projeto da CBS, o crédito presumido é reduzido para 15%, e se elimina a isenção dos insumos. Em decorrência, haveria redução da margem do produtor ou da indústria ou então elevação dos preços para o consumidor final, o que é lamentável. 

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RPD || Entrevista especial - Ex-secretário da Receita critica reforma tributária: 'Juntar tributos não é simplificar'

Entrevistado especial desta 23ª edição da Revista Política Democrática Online, Everardo Maciel avalia que a proposta de reforma tributária apresentada pelo governo Bolsonaro tem a intenção de cobrar mais do setor de serviços, que sofrerá com o aumento da carga

Por Caetano Araujo e José Luiz Oreiro

A reforma tributária voltou à pauta do Congresso Nacional neste segundo semestre de 2020. Além das propostas em tramitação na Câmara dos Deputados (PEC 45/2019) e no Senado Federal (PEC 110/2019), o governo Jair Bolsonaro enviou aos parlamentares um texto próprio para ser analisado. Como essas mudanças podem afetar o cidadão? O ex-secretário da Receita Federal durante os anos de 1995 a 2002 (Governo FHC), Everardo Maciel, responde a essa e a outras questões na entrevista especial desta 23a edição da Revista Política Democrática Online. Everardo Maciel também é consultor jurídico e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Revista Política Democrática Online (RPD) - A proposta da reforma tributária do governo não promete harmonização de tendências e, menos ainda, horizonte promissor para o contribuinte. Quais são os problemas centrais dessa proposta?  
Everardo Maciel (EM) -
Existem hoje três propostas de reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional: uma oriunda da Câmara dos Deputados (PEC nº 45); outra apresentada no Senado (PEC nº 110), e, por fim, a proposta de criação de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), encaminhada pelo Poder Executivo, para a qual se solicitou tratamento de urgência no Congresso Nacional. Logo em seguida esse pedido de urgência foi retirado, alegando-se que ele estava obstruindo a tramitação de um projeto de alterações no Código de Trânsito. A alegação é claramente inverossímil.

O projeto de instituição da CBS, por sua vez, seria acompanhado de outras iniciativas, sempre anunciadas de forma imprecisa e jamais encaminhadas. Definitivamente, não sei qual é a proposta do governo. Por aí, já se pode ver a confusão que envolve o assunto.  
 

O PRINCIPAL PROBLEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO, À LUZ DA MINHA EXPERIÊNCIA, É O PROCESSO TRIBUTÁRIO, QUE COMPROMETE A SEGURANÇA JURÍDICA E INIBE INVESTIMENTOS

RPD: Por que isso?
EM:
A matéria tributária é muito árida, o que faculta muitas especulações, em geral recheadas de chavões e dogmatismos, além de falsas ilações.  

Um chavão recorrente é a pretensão de simplificar o sistema tributário brasileiro. Essa pretensão se traduz, com frequência, em fusão de tributos. Juntar tributos não necessariamente simplifica. Um exemplo disso é a proposta de criação da CBS, a partir da fusão do PIS com a COFINS.  

PIS e COFINS são contribuições regidas por uma mesma legislação e pagas por um mesmo documento de arrecadação. A diferença se dá não no âmbito tributário, mas no da destinação das receitas. O PIS financia o seguro-desemprego, o abono salarial e o BNDES, e a COFINS é uma das fontes de financiamento da seguridade social.  

A determinação do valor a pagar na sistemática cumulativa do PIS/COFINS consiste em mera multiplicação de uma alíquota por uma base de cálculo. Já na CBS, proposta pelo governo, é bem diferente.  Veja o que estabelece o artigo 11 do projeto de lei: "É vedada a apropriação de crédito em relação a bens e serviços vinculados a receitas não sujeita a incidência ou isenta da contribuição...Na hipótese de haver bens e serviços vinculados simultaneamente a receitas que permitam e a receitas que não permitam a apropriação de tais credos, a vinculação a cada tipo de receita será feito por meio da aplicação de um dos seguintes métodos. ... Apropriação direta por meio de um sistema de contabilidade de custos integrado e vinculado com a escrituração". Evidente que não há nenhuma simplificação; ao contrário, a apuração se tornaria bem mais complexa.

A propósito, registro que o modelo cumulativo de tributação do PIS/COFINS, que se pretende extinguir, é justamente o que está sendo adotado para taxação dos serviços digitais em países da Europa e até da Ásia. Não é uma é tributação de consumo, mas de renda. No Brasil, ao tempo em que se diz que tributamos demasiadamente o consumo em comparação com a renda, se propõe, na PEC 45, fundir o PIS/COFINS com os impostos de consumo (ICMS, ISS, IPI).  Afirma-se uma coisa e se faz justamente o oposto, em completo desencontro entre o discurso e a ação.

RPD: Qual sua opinião sobre o imposto de bens e serviços, que seria uma espécie de IVA para a economia brasileira, uma das propostas que está no Congresso Nacional, baseada em estudo do Centro de Cidadania Fiscal? Resolve o problema tributário brasileiro? É uma má ideia?  
EM:
Eu acho uma péssima ideia. Repetem-se chavões. Há de se esclarecer que o IVA não é um imposto, é uma forma de extração. Tributação do imposto de renda no regime do real é um imposto sobre o valor agregado. O primeiro país do mundo que adotou no consumo o imposto do valor agregado até o varejo foi o Brasil, com o ICM, imposto que, entretanto, se deformou muito.  

A intenção é fundir PIS, COFINS, ICMS, ISS e IPI, mediante criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que conviveria com um Imposto Seletivo, cuja base de incidência não é clara.  

Brasília - O ex-Secretário da Receita Federal do Brasil, Everardo de Almeida Maciel, durante audiência pública na CPI do CARF, na Câmara dos Deputados ( Marcelo Camargo/Agência Brasil)

"O MODELO CUMULATIVO DE TRIBUTAÇÃO DO PIS/COFINS, QUE SE PRETENDE EXTINGUIR, É JUSTAMENTE O QUE ESTÁ SENDO ADOTADO PARA TAXAÇÃO DOS SERVIÇOS DIGITAIS EM PAÍSES DA EUROPA E ATÉ DA ÁSIA. NÃO É UMA É TRIBUTAÇÃO DE CONSUMO, MAS DE RENDA"

Ora, o IPI já é um imposto seletivo. Caso se pretenda reduzir sua base de incidência, basta atribuir alíquota zero aos produtos que se pretenda desonerar por meio de um simples decreto. A única explicação para essa esdrúxula solução seria uma agenda oculta, como, por exemplo, acabar com a Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio da Amazônia.

A rigor, as propostas de criação do IBS ou da CBS representam monumental redistribuição de carga tributária entre os setores, com inevitável repercussão sobre o preço dos bens e serviços.

Essa redistribuição não é divulgada. Omite-se convenientemente para interditar o debate, obrigando os estudiosos e os próprios contribuintes a fazerem os cálculos das repercussões, para, em seguida, veiculá-los na mídia e no Congresso.

RPD: Quem ganha e quem perde com essas propostas?
EM:
A lista de perdedores é imensa. Começa com os mais 850 mil contribuintes, tributados no regime do lucro presumido do IRPJ e cumulativo do PIS/COFINS, alcançando pequenos e médios prestadores de serviço, comerciantes e industriais. Nesse contingente, incluem-se os serviços de educação e saúde, o que inevitavelmente implicaria elevação dos preços das mensalidades escolares e das consultas médicas.  

Para justificar o aumento da tributação dos serviços de educação e saúde, argumenta-se que quem faz uso desses serviços são ricos, desconhecendo a imensa demanda da classe média. De mais a mais, essa oneração haveria de sobrecarregar o SUS e a rede pública de ensino, gerando custos para o setor público.

Outro alvo desse aumento de carga tributária é o agronegócio, precisamente o setor quem tem sustentado o modesto desempenho do PIB brasileiro. Pretende-se tributar o setor pesadamente, na contracorrente do que se faz no resto do mundo.  

No Brasil, 98% dos produtores rurais são pessoas físicas equiparadas a jurídicas, que produzem e vendem para a indústria processadora sem transferir crédito.  

A indústria processadora de produtos de origem animal e vegetal toma um crédito presumido, na apuração do PIS/COFINS, que varia de 40 a 60%.  

No projeto da CBS, o crédito presumido é reduzido para 15%, e se elimina a isenção dos insumos. Em decorrência, haveria redução da margem do produtor ou da indústria ou então elevação dos preços para o consumidor final, o que é lamentável.  

Na longa lista de perdedores, até o livro foi incluído. Desde 1946, o livro é desonerado de tributos, por força de um projeto apresentado por Jorge Amado, deputado constituinte eleito pelo Partido Comunista Brasileiro e integrante da bancada da Bahia. A remuneração de um escritor corresponde a 10% do preço de capa. A CBS pretende taxar os livros com uma alíquota de 12%, o que equivale a confiscar aquela remuneração. Além disso, os livros didáticos representam cerca de 50% do total comercializado, sendo que grande parte é adquirida pelos governos. Trata-se, portanto, de uma ideia estapafúrdia. Mais grave, sem nenhum valor arrecadatório.  

No projeto do IBS, as instituições financeiras são as principais ganhadoras, que seriam totalmente desoneradas da vigente tributação do PIS/COFINS, cujo montante anual é de 25 a 30 bilhões de reais.  

Acrescente-se que as propostas do IBS e da CBS preveem cobrança com alíquota única, que é a forma mais regressiva de tributação do consumo, como mostra estudo recente produzido pela OCDE. 

RPD: Existem problemas no ICMS e no ISS?  
EM:
Sim, existem, como de resto em todos os lugares do mundo. Por exemplo, as fraudes no IVA europeu, tão elogiado nestas bandas, chegam a 50 bilhões de euros anuais, de acordo com dados divulgados pela Procuradoria Geral da União Europeia no ano passado.  

O ICMS tem problemas relacionados com a grande diversidade de alíquotas nominais e efetivas, devolução de créditos acumulados. O disciplinamento do ISS é claudicante. E ambos carecem de regras para a prática da competição fiscal e prevenção da guerra fiscal.

A solução dos problemas desses impostos é perfeitamente viável pela via infraconstitucional, mantida a atual competência tributária dos Estados e dos Municípios.

Brasília - O ex-Secretário da Receita Federal do Brasil, Everardo de Almeida Maciel, durante audiência pública na CPI do CARF, na Câmara dos Deputados ( Marcelo Camargo/Agência Brasil)

"PARA JUSTIFICAR O AUMENTO DA TRIBUTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, ARGUMENTA-SE QUE QUEM FAZ USO DESSES SERVIÇOS SÃO RICOS, DESCONHECENDO A IMENSA DEMANDA DA CLASSE MÉDIA. DE MAIS A MAIS, ESSA ONERAÇÃO HAVERIA DE SOBRECARREGAR O SUS E A REDE PÚBLICA DE ENSINO"

RPD: Como prevenir a guerra fiscal?
EM:
Aqui, se costuma confundir guerra fiscal com competição fiscal, que é algo inerente à história dos tributos em todo o mundo desde sempre. Guerra fiscal é a competição fiscal ilícita, contra a lei.  

A guerra fiscal do ICMS tomou corpo depois da Constituição de 1988, por dois motivos: primeiro, porque inexiste até hoje a lei complementar para disciplinar a concessão e revogação de benefícios fiscais, conforme previra aquela Constituição, preservando-se o regramento previsto na Lei Complementar nº 24, de 1975, cujas sanções pelo seu descumprimento tornaram-se letra morta em razão de mudanças constitucionais posteriores; segundo, porque a União demitiu de si a responsabilidade pela coordenação do ICMS, com a extinção do órgão por isso responsável, na reforma administrativa do governo Collor.  

Exigência sem sanção e tributação de índole nacional sem coordenação criaram as condições propícias para expansão da guerra fiscal do ICMS. O remédio para esse problema é tão somente editar a lei complementar, fixando os critérios para concessão e revogação de benefícios e as sanções pelo descumprimento, bem como restabelecer a coordenação nacional.

A proposta do IBS veda a concessão de benefícios fiscais, substituindo-os por subsídios consignados na proposta orçamentária anual. Isto é de um irrealismo atroz ou é uma forma dissimulada de extinguir a competição fiscal, indispensável à correção das desigualdades regionais de renda, como preconizado na Constituição. Qual investidor que vai fazer um investimento acreditando que durante dez anos os orçamentos anuais irão consignar subsídio para sua atividade, concorrendo com gastos públicos clássicos, como educação, saúde e segurança pública?   

RPD: E quanto à oportunidade do debate sobre a reforma tributário?
EM:
Creio que é um debate completamente inoportuno, que consome a atenção política e a energia política necessárias ao enfrentamento da pandemia e seus graves desdobramentos, em termos econômicos e sociais.

Afora isso, é uma discussão desabastecida de um diagnóstico do sistema tributário brasileiro, alternativas de soluções e mensuração dos impactos sobre contribuintes, preços e entes federativos.  

Se você quer tributar mais a escola e a consulta médica e reduzir a tributação de geladeiras, que o diga e abra a discussão na sociedade. O que não pode é tratar de matéria tão sensível, com agendas ocultas. Não foi apresentada uma página sequer mostrando as repercussões das propostas.

É completamente desarrazoado discutir reformas estruturais em meio a uma pandemia, com base em apresentações em PowerPoint e videoconferências. 

RPD: Qual é, então, o principal problema tributário brasileiro?  
EM:  
O principal problema tributário brasileiro, à luz da minha experiência, é o processo tributário, que compromete a segurança jurídica e inibe investimentos.

Só no âmbito federal, os litígios tributários, no final de 2018, totalizavam R$ 3,44 trilhões. Os processos de execução da dívida ativa representam 38% dos 80 milhões de processos em tramitação na Justiça brasileira.

Esses litígios têm três fontes: o fisco, o contribuinte e a indeterminação de alguns conceitos.  

A litigiosidade gerada pelo fisco decorre da inexistência de limites para o lançamento. Autos de infração insubsistentes geram custos financeiros e reputacionais apenas para o contribuinte. Não há sucumbência para o fisco. A solução para esse problema consiste em estabelecer a integração entre o processo administrativo e o judicial, como havia sido proposto por grandes tributaristas, como Rubens Gomes de Sousa, Gilberto Ulhoa Canto e Geraldo Ataliba. Essa integração permitiria que a parte vencida no processo administrativo pudesse requerer revisão da decisão em um tribunal do Judiciário.

A segunda fonte de litígio é o contribuinte. A possibilidade de questionamento da matéria tributária no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, isto é, perante um juiz de primeira instância, pode gerar desequilíbrios concorrenciais entre contribuintes e insegurança jurídica, pois o tempo médio entre o ingresso da ação e o desfecho no STF é de 20 anos.  É nesse contexto que prospera a indústria das teses, pois a matéria tributária na Constituição tem extensão amazônica. Apenas como exemplo, o número de palavras do capítulo tributário da Constituição Brasileira é o dobro do número de palavras de toda a Constituição americana. É, por conseguinte, enorme a possibilidade de questionamento constitucional da matéria tributária.  

A terceira fonte de litígio são conceitos indeterminados que motivam controvérsias administrativas e judiciais, como planejamento tributário abusivo, dedutibilidade do ágio, interposição fraudulenta no comércio exterior.

Há claramente a necessidade de conferir-se nova construção normativa para esses conceitos, promovendo-se a resolução do contencioso atual por meio de transação.

Na pauta de problemas tributários, deve ser acrescentado o burocratismo, completamente esquecido nos projetos de reforma tributária. Por fim, há os problemas específicos dos tributos, como mencionado.   

RPD - Em relação aos perigos de expansão, fortalecimento, dos paraísos fiscais no mundo e o que isso pode trazer muitos problemas para nós, quais seriam as diretrizes do governo de forma a enfrentar esse problema?  
EM -
O Brasil foi o primeiro país do mundo que conceituou, objetivamente, paraíso fiscal. Em legislação de 1996, ficou estabelecido que paraíso fiscal é um país ou dependência que tributa imposto de renda da pessoa jurídica com alíquota igual ou inferior a 20%. Além disso, estabeleceu contramedidas para os negócios com paraísos fiscais, ao elevar de 15 para 25% a retenção na fonte nas operações de remessa e tornar obrigatório o ajuste por preços de transferência ainda que o negócio fosse realizado por empresas não vinculadas.

Somente em 1918, a União Europeia estabeleceu critérios para qualificar uma jurisdição tributária como paraíso fiscal. Ainda que tenha admitido a possibilidade de adoção de contramedidas, nenhum país as implementou, sem que fosse surpreendente, porque, na União Europeia, se encontram vistosos paraísos fiscais, como Luxemburgo e Irlanda.  

A erosão das bases tributárias, como deslocamento de lucros para paraísos fiscais, é seguramente o maior tributário contemporâneo. Dois exemplos dessa patologia: os investimentos diretos em Luxemburgo são equivalentes aos efetivados na China e nos Estados Unidos; os investimentos em empresa de fachada no mundo são maiores que o PIB da Alemanha e da China.

Esse problema é tão grave que, em 2013, o G-20, reunido em Moscou, decidiu conferir mandato à OCDE para desenvolver um programa chamado BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), com o objetivo de indicar soluções para esse problema. Apesar de muito ambicioso, o programa não apresentou, até agora, nenhum resultado concreto.  

"A EROSÃO DAS BASES TRIBUTÁRIAS, COMO DESLOCAMENTO DE LUCROS PARA PARAÍSOS FISCAIS, É SEGURAMENTE O MAIOR TRIBUTÁRIO CONTEMPORÂNEO. DOIS EXEMPLOS DESSA PATOLOGIA: OS INVESTIMENTOS DIRETOS EM LUXEMBURGO SÃO EQUIVALENTES AOS EFETIVADOS NA CHINA E NOS ESTADOS UNIDOS"

RPD: Você considera os problemas da centralização tributária um óbice à reforma? E a progressividade dos nossos tributos é uma outra questão problemática?  
EM
: Começo com a centralização. É difícil falar se há ou não centralização tributária, quando sequer temos um federalismo fiscal bem estruturado. Não se sabe com clareza a repartição de responsabilidades públicas entre os entes federativos. Então como se falar em centralização? A precisa partilha de receitas coexiste com uma imprecisa e lacunosa repartição de encargos públicos.  

A previsão constitucional (art. 23, parágrafo único) para regulamentar por lei complementar o federalismo cooperativo jamais prosperou.  

Quanto à progressividade no sistema tributário, a verdade é que não existe estudo consistente sobre a matéria no Brasil. Os trabalhos divulgados estão assentados em hipóteses frágeis e juízos de valor questionável.

Cada vez se fortalece a convicção de que a progressividade melhor se efetiva pelo lado do gasto público.  

A despeito disso, há situações específicas de evidente regressividade no sistema tributário, como a extinta dedutibilidade da correção monetária do patrimônio líquido das empresas no âmbito do IRPJ. Por conta dessa regra, grandes empresas em circunstâncias de inflação elevada praticamente não recolhiam aquele imposto.  

A eliminação dessa dedutibilidade, em 1995, abriu espaço para adoção de inúmeras medidas, como a redução das alíquotas nominais do IRPJ, a adoção dos juros remuneratórios do capital próprio, a isenção na distribuição de resultados, a ampliação do limiar do lucro presumido, a instituição do Simples para as pequenas e microempresas, etc. Como consequência dessa reforma, entre 1996 e 2002, o IRPJ, como proporção do PIB, cresceu, 50% e a arrecadação teve um aumento de 117% acima do IPCA. Portanto, funcionou, deu certo.  


Míriam Leitão: Estados e os nós da reforma tributária

Quem está otimista com a aprovação da reforma tributária deve prestar atenção no que disseram cinco governadores. Ronaldo Caiado, de Goiás, alerta que o relatório do deputado Aguinaldo Ribeiro será “o Judas a ser malhado” e que os impasses começarão assim que o texto for apresentado. Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, diz que o governo federal dificulta a tramitação do projeto, pela sua postura de confronto e má comunicação. Renato Casagrande, do Espírito Santo, acha a proposta da equipe econômica tímida. Helder Barbalho e Rui Costa temem que os estados percam autonomia sobre as suas receitas, com a criação de um fundo único de repasse dos recursos.

São muitos os nós da reforma tributária, e a visão dos governadores, que participaram de um evento promovido pela Febraban semana passada, mostra que o tema continua longe de consenso para votação. Além das dificuldades usuais de se passar uma PEC dessa natureza, há outros agravantes: o texto terá que ser votado em momento de crise, quando todos os entes da federação estão com perda de receitas, o governo federal não enviou sua proposta na íntegra, e uma coleção de projetos de emendas à constituição foi enviada ao mesmo tempo ao Congresso.

— Estamos todos de acordo com a necessidade da reforma tributária. Mas na hora que se redigir a primeira lauda será cada um para um lado. Já não concordo aqui, já não concordo acolá. A disputa começa mesmo quando se coloca no papel — alertou Ronaldo Caiado.

Os governadores se dizem traumatizados com as perdas que sempre alegaram ter tido com a lei Kandir, de 1996. A exportação foi desonerada, mas a União se comprometeu a compensar os estados pelas perdas com ICMS. Os estados foram ao STF por entender que a União pagou menos do que deveria, em uma disputa bilionária ainda em aberto. Por isso, veem com desconfiança a criação de um fundo para recolher o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), que seria repassado aos estados, simplificando impostos e acabando com a guerra fiscal.

— É preciso discutir a autonomia dos estados no comitê de gestão desse fundo. A proposta dá peso exagerado à União. Já que a maioria dos recursos é de ICMS, não é possível que os estados fiquem ainda mais reféns de um posicionamento da União — disse Rui Costa, governador da Bahia.

Helder Barbalho, governador do Pará, defende que a emenda 192, apresentada pelos secretários de fazenda estaduais, seja incorporada à PEC 45, ampliando a participação dos estados no fundo. Ele teme que o conselho sofra interferência política e lembra perdas que teriam tido com a lei Kandir:

— A compensação da lei Kandir chegou ao STF. O governo federal chegou a dizer que não devia nada, e os estados chegavam na conta de R$ 40 bilhões desde 1996. Se continuar no modelo de conta única, com repasse aos estados, isso pode se transformar em imbróglio institucional, podendo regredir o projeto e não avançar.

O governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, diz que o estado perderá R$ 1 bilhão por ano se a cobrança do IBS passar ao local de consumo. Lembra que seu estado começou a fazer o ajuste fiscal antes dos outros e que por isso é o único com classificação máxima no ranking fiscal do Tesouro. Não poderia se desestruturar financeiramente com a reforma.

— Tem que ter um fundo para apoiar as regiões, porque nem todos os estados têm a mesma capacidade de atrair empreendimentos. O incentivo fiscal hoje é muito criticado, mas é um instrumento para que possam atrair atividade econômica para os seus estados — justificou.

Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, cobra liderança do governo federal na condução de uma proposta que mexe com interesses tão conflitantes.

— Nossos secretários de fazenda se mostraram favorável às PECs do Congresso, a disposição conjunta de governadores existe. Mas quem deve liderar é o governo federal. A postura belicosa do governo acaba sendo uma dificuldade adicional para uma reforma que já é difícil.

Tudo isso é sobre as propostas articuladas no Congresso — uma na Câmara, uma no Senado — sem a presença do governo federal, que discorda desse fundo. Até agora, o governo enviou apenas a fusão do PIS com a Cofins. E disse que outras mudanças virão em fatias. Com a desconfiança geral, e o governo federal arredio, é difícil acreditar que a reforma será aprovada.


Bernard Appy: A reforma tributária e a crise

No curto prazo nenhum setor da economia será prejudicado pela aprovação da PEC 45

Uma preocupação que surgiu no debate sobre a reforma tributária diz respeito a seus efeitos sobre as empresas, num momento em que vários setores da economia vêm sendo afetados pela crise do coronavírus. Como a reforma tende a provocar uma redistribuição da carga de tributos, alguns setores prejudicados pela crise atual temem ter sua recuperação dificultada por um aumento da tributação.

Trata-se de uma preocupação pertinente, especialmente no caso de uma mudança que afetasse a distribuição setorial da carga tributária num período curto, na saída da crise. Este não é o caso, no entanto, da proposta de reforma tributária consolidada na PEC 45/2019, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, que prevê a substituição de cinco tributos atuais – PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS – por um único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Caso a PEC 45 seja aprovada neste ano ou no início de 2021, o IBS só começará a ser cobrado em 2023, em razão da necessidade de aprovação da legislação complementar e montagem da estrutura de administração do novo imposto (que será gerido conjuntamente pela União, pelos Estados e pelos municípios), inclusive dos sistemas informatizados necessários para a sua operação. Adicionalmente, nos dois primeiros anos de operação o IBS será cobrado à alíquota de apenas 1%, sendo seu custo dedutível do valor devido de Cofins, não afetando, portanto, nenhum setor da economia. Ou seja, até 2024 a aprovação da PEC 45 não resultará em aumento da tributação de nenhuma empresa, e mesmo após esse período haverá uma transição em mais oito anos.

Isso não significa, no entanto, que a aprovação da PEC 45 não tenha impactos no curto prazo. Há, sim, um efeito positivo sobre as expectativas dos agentes econômicos, que tende a se refletir numa queda dos juros de longo prazo, a qual pode ser muito importante para reativar a demanda na saída da crise. Esse efeito é consequência da perspectiva de melhoria da solvência do setor público decorrente do impacto da reforma tributária sobre o potencial de crescimento da economia no longo prazo.

Segundo estudo do economista Bráulio Borges, mantendo o teto dos gastos federais até 2036 (com uma pequena flexibilização em 2027), no cenário sem reforma a dívida pública chegaria a cerca de 100% do PIB no final do período. Já no cenário que considera a aprovação da PEC 45, supondo a mesma regra para os gastos, o maior crescimento da economia levaria a dívida pública a menos de 30% do PIB em 2036. Tais cálculos demonstram que o aumento do potencial de crescimento resultante da reforma tributária pode ser determinante para a solvência do setor público, o que tende a ser antecipado pelos agentes econômicos, contribuindo para a saída da crise.

O aumento do potencial de crescimento também é essencial para entender o impacto da reforma tributária sobre os diversos setores da economia. Mesmo setores cuja tributação tende a crescer em termos relativos serão beneficiados pelo maior crescimento da renda. No caso dos serviços prestados a pessoas físicas, por exemplo, um cálculo simplificado sugere que, para cada 1% de aumento de renda das famílias, a demanda por esses serviços cresce cerca de 1,5%. Isso significa que, se a reforma tributária elevar a renda das famílias em 20 pontos porcentuais em 15 anos – como indica o estudo citado acima –, a demanda por serviços pode crescer cerca de 30 pontos porcentuais acima do que cresceria sem a reforma.

Em suma, no curto prazo nenhum setor da economia será prejudicado pela aprovação da PEC 45. Ao contrário, o efeito positivo da reforma sobre as expectativas e os juros de longo prazo tende a beneficiar todos os setores na saída da crise.

No longo prazo há, é verdade, mudanças na distribuição da carga tributária entre setores. Mas mesmo os setores cuja participação no total da tributação tende a crescer serão beneficiados pelo maior crescimento resultante da reforma tributária.

*Diretor do Centro de Cidadania Fiscal


Zeina Latif: Já assistimos a esse filme

Guedes enfrenta uma queda de braço com ministros que pressionam por mais gastos

O presidente Bolsonaro sentiu o gosto do impacto do auxílio emergencial sobre sua popularidade. Não será mais o mesmo, o que implica maior risco fiscal daqui para frente.

A sensação é de déjà vu. Uma grave crise justificando políticas de estímulo econômico, em meio a demandas legítimas ou não. Na corrida em que ninguém quer ficar para trás, a classe política se regozija com as frentes de negociação abertas e as benesses a vários grupos organizados. A maioria aplaude; os críticos ora são ignorados, ora taxados de pessimistas, ora acusados de insensíveis. Cedo ou tarde, a conta chega.

A crise de 2008 foi gatilho para uma miríade de medidas de estímulo. Não tardou para excessos serem cometidos, quando já se recomendava a suspensão das políticas. A disciplina fiscal, pilar dos primeiros anos do governo Lula, foi para as calendas. O crescimento de 7,5% do PIB em 2010 foi, em boa medida, artificial. Eleição vencida.

Dilma dobrou a aposta com estímulos e artificialismos para todo lado. Cruzou o limite da responsabilidade. Vale o dito: remédio demais é veneno. A reeleição foi garantida em 2014 e se adiou uma recessão contratada.

O início daquele filme guarda semelhanças com o momento atual.

Bolsonaro não é afeito a reformas – declarou que fazia a da Previdência a contragosto – e repetidamente freia o Ministério da Economia – como ao evitar reformas que afetam o funcionalismo – e os técnicos do governo – como ao ameaçar demitir quem questionasse o fim do subsídio à energia solar. Seu comportamento influencia o Congresso. Afinal, por que ser mais realista que o rei?

A concorrência na política, um pilar da democracia, se distorce quando o assunto é aumentar gastos. A descrença da sociedade no Congresso exacerba a dificuldade de defender a disciplina fiscal. 

Já nos EUA, há o saudável debate no Congresso sobre a extensão do benefício aos desempregados. E os republicanos, disputando a reeleição de Trump, defendem a interrupção em setembro! Aqui, nem sombra disso.

Como se não bastasse, o presidente está em mutação. Populista e pragmático, ele se molda aos novos tempos. Especialistas, como Maurício Moura, apontam mudanças na sua base de apoio: saem os decepcionados das classes mais favorecidas e entram os estratos mais populares beneficiados pelo generoso auxílio emergencial. Essa nova dinâmica poderá implicar inflexão da agenda econômica.

Faltam fiadores da disciplina fiscal no governo. Paulo Guedes, isolado, enfrenta uma queda de braço com ministros que pressionam por mais gastos. Não falta criatividade para evitar as amarras fiscais previstas em lei. Chegou-se a imaginar uma conta de restos a pagar às avessas: libera-se o recurso para investimento em infraestrutura e habitação este ano, por meio de crédito extraordinário para emergências e executam-se as obras depois. Dupla criatividade: nem seriam gastos elegíveis a crédito extraordinário, nem faria sentido liberar o recurso antes da execução.

A lista de pedidos é extensa, incluindo a capitalização de estatais ligadas ao Ministério da Defesa; vinculação de 2% do Orçamento para as Forças Armadas; prorrogação da desoneração da folha; e criação da renda básica (meritória, desde que bem desenhada). Fora o que já foi aprovado, como a expansão do BPC e o novo Fundeb.

Especula-se estender o período de calamidade pública (implica suspensão das regras) para cobrir as medidas de caráter temporário. E as de caráter permanente? Há cheiro de flexibilização da regra do teto e de aumento de carga tributária (para atender à Lei de Responsabilidade Fiscal) no ar. Não há propostas de contenção de gastos obrigatórios.

Não estamos diante de riscos extremos, com a revogação da regra teto e desrespeito explícito à LRF, a julgar pela reação dos investidores e das instituições de controle (TCU). Seria algo intermediário, tentando preservar as aparências, mas preocupante diante da grave situação fiscal.

É preciso mudar o enredo desse filme.


Míriam Leitão: Os ricos e os pobres na visão de Guedes

O ministro Paulo Guedes vê a ação de ricos se escondendo atrás dos pobres nas críticas a um imposto sobre movimentação financeira. Na ida dele à Comissão Mista do Congresso sobre reforma tributária, o ponto mais tenso foi sempre a CPMF. Não aceitou o nome, mas diante de qualquer referência a ele Guedes ou se defendia ou atacava. Disse que só “maldade ou ignorância” levam as pessoas a comparar o imposto que ele quer criar com a velha CPMF. Ele falou isso num disparo contra o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), relator da reforma. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) disse que no caso dela era “ignorância” porque ignora qual é a proposta do governo, dado que ela ainda não foi apresentada.

Somando-se todas as falas, fica claro que, sim, o ministro pensa em tributar as transações financeiras. Mas ele diz que é apenas um imposto sobre as grandes empresas de tecnologia. Paulo Guedes defendeu a tese de que os ricos no Brasil falam em regressividade da CPMF para se esconder atrás dos pobres.

— Se eu falar que há alinhamento com um imposto de movimentação financeira, Deus me livre. Já caiu o Secretário da Receita, cai todo mundo que fala disso. Parece que é um imposto interditado. Muita gente não quer deixar as digitais em suas transações. Escondido atrás do pobre. Se o pobre que ganha R$ 200 de Bolsa Família, e falar que é um imposto de 0,2%, são R$ 0,40. Qualquer aumento de R$ 10 ou R$ 30 já tirou. Não dá para rico se esconder atrás de pobre. O rico é o que mais faz transações, o que mais consome serviços digitais. E está isento. Esconde atrás do pobre — disse o ministro.

Tudo é mais complexo. O imposto distorce preços, camufla a carga tributária, é indireto. E quem demitiu o secretário da Receita que falou no assunto foi o presidente Jair Bolsonaro.

Logo no começo da sessão, o ministro criticou o relator. Disse que Aguinaldo Ribeiro havia cometido um excesso quando disse que o imposto (a CPMF) era medieval:

— Ele sugeriu que a Google e o Netflix existiam na Idade Média quando falou que o imposto digital é medieval. Os padres, os bispos nas catedrais góticas usavam Netflix, Google, Waze.

O deputado João Roma (Republicanos-BA) disse que o relator se referia ao “absolutismo” de um governo que impõe um tributo sem explicar qual é. A senadora Simone Tebet propôs que o governo mostrasse todo o seu projeto:

— Vossa excelência diz que quem está falando de CPMF é por maldade ou ignorância. Eu me incluo entre os ignorantes. Eu quero entender se essa contribuição vai atingir as plataformas ou qualquer um que com um cartão de crédito compre um remédio na esquina.

O ministro não tirou a dúvida da senadora. E reclamou da imprensa, que o faz, segundo ele, ficar o tempo todo se defendendo. Perguntado pelo senador Reguffe (Podemos-DF) se atualizaria a tabela do Imposto de Renda, ele disse que fez as contas:

— Custa R$ 22 bilhões elevar a faixa de isenção para R$ 3 mil. É um Fundeb. Se for estendido às demais faixas a conta vai para R$ 36 bi. A classe política tem de decidir isso. O congressista foi eleito para tomar decisão.

Guedes lembrou que não atualizar a tabela do IR é uma forma oculta de tributar, mas atualizar seria indexar. Em outros países, disse, “todo mundo entende inflação como perda”. Na época da campanha, a promessa era elevar a faixa de isenção para R$ 5 mil.

O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) criticou o aumento do PIS-Cofins (CBS) sobre livros. Guedes de novo falou da divisão entre ricos e pobres:

— O deputado seguramente não quer ser isentado quando compra um livro, né? Ele tem salário suficientemente alto para comprar e pagar imposto como todo mundo. Ele está preocupado com as classes baixas. Essas, se nós aumentarmos o Bolsa Família, vamos estar atendendo. Agora, acredito que eles estão mais preocupados em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos.

O ministro disse que “quem tem poder em Brasília” consegue pagar menos imposto e por isso “há R$ 300 bilhões de desoneração”. E quem tem dinheiro “não paga imposto e vai pra Justiça” e assim há um contencioso de R$ 3,5 trilhões.

O que o ministro não explica é por que não cumpriu a promessa de campanha de acabar com os R$ 300 bilhões de renúncias fiscais e por que manteve as isenções da Zona Franca de Manaus, já que me disse que “não deixaria o Brasil todo ferrado” para manter a Zona Franca. Entre os conflitos verbais do ministro e os fatos há uma certa distância.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro e Guedes querem tirar bilhões dos ricos da classe média

Reforma tributária do governo reduz FGTS, aumenta IR e custos de serviços para o 10% mais rico

A reforma tributária Bolsonaro-Guedes quer tirar R$ 32 bilhões por ano dos trabalhadores com carteira assinada, porque pretende diminuir a contribuição patronal para o FGTS. Quer acabar com as deduções com despesas médicas e educação no Imposto de Renda ou limitá-las —se acabasse com tudo, seriam outros R$ 20 bilhões anuais.

O imposto que substituiria o PIS/Cofins, a CBS, deve aumentar a carga tributária, em particular pesando mais sobre serviços consumidos pelos mais ricos, que se chamam de classe média (que pagam escolas e outros cursos, profissionais de saúde, terapeutas em geral, advogados, arquitetos etc.). Uma nova CPMF vai encarecer tudo para todo mundo e vai reduzir ainda mais o rendimento das aplicações financeiras. Lucros e dividendos seriam mais tributados, pegando de jeito profissionais liberais.

Em resumo, o 10% mais rico do país, que tanto votou em Jair Bolsonaro, não parece ciente de que está para levar uma tunga do seu eleito. Esse 10% mais rico se chama de “classe média”, pois mede seu padrão de consumo com a escala de países como Estados Unidos e aqueles da Europa ocidental. A maioria de fato não é “rica”, nesse critério, mas está no topo da pirâmide da pobreza brasileira.

O governo quer reduzir a contribuição patronal para o FGTS de 8% para 6% —seria um corte de R$ 32 bilhões na arrecadação anual do fundo (segundo dados de 2019).

Em 2019, a Receita Federal estimou que os 12,9 milhões de declarantes do IR pelo modelo completo deixaram de pagar R$ 4,6 bilhões de imposto por causa da dedução com instrução e outros R$ 15,5 bilhões com a dedução de despesas de saúde. Nas contas dos economistas Fábio Goto e Manoel Pires, a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (que o governo quer no lugar do PIS/Cofins) aumentaria a carga tributária (publicaram essa análise no Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia, Ibre, da FGV).

Essas contas são meras primeiras aproximações. Não é assim que se calcula efeito de imposto. A redução do custo do FGTS pode de fato ajudar a criar algum emprego, diminuindo a perda de receita total do fundo (mas não o pagamento para cada trabalhador). Acabar com as deduções de saúde e educação pode ser um tiro pela culatra (os contribuintes podem recuperar as perdas declarando pelo modelo simplificado), para dar outro exemplo. Mas vai ter tunga, caso o plano Bolsonaro-Guedes vá adiante.

Em alguns casos, não se trata de má ideia, a depender do destino desses dinheiros. O problema é que a reforma tributária do governo vai sendo chutada, vazada, rumorejada ou apresentada à matroca. Desde o ano passado, é um monte de balões de ensaios, de “vamos ver se cola”, de tentativas reiteradas de dar um jeitinho de passar uma CPMF. Etc.

Isso não presta.

Bolsonaro está para chegar à metade do seu mandato (está em 40%) e seu governo não tem um plano organizado de reforma tributária (sim, eu sei, é uma crítica retórica, não existe governo em quase parte alguma).

Não é possível entender uma reforma de impostos sem conhecer suas partes, como se deixa de arrecadar, como se passar a recolher imposto etc. O óbvio. Não é possível fazer contas ou saber quem paga a conta. Nada. É uma mixórdia, parece conversa de quem faz rolo (como Bolsonaro dizia de seu amigão Fabrício Queiroz), de quem gosta de conto do vigário, de negócio da China.