Armando Castelar Pinheiro: Xadrez tributário

Há quem tema que os novos tributos irão abrir espaço para novos tipos de conflitos e processos na Justiça.
Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Há quem tema que os novos tributos irão abrir espaço para novos tipos de conflitos e processos na Justiça

Sexta-feira me pediram para ensinar a jogar xadrez. Tenho um tabuleiro e peças grandes, da época em que jogava regularmente, e fomos em frente. É um jogo complicado, com peças que se movimentam de formas variadas e que se joga pensando no agora e em vários lances à frente. Depois fiquei pensando como seria absorver e processar tanta informação.

Não muito diferente, conclui, do que ocorre comigo em relação à reforma tributária. Depois de seis reuniões que tivemos no Ibre sobre o tema, com alguns dos maiores especialistas no assunto, das áreas de direito, economia e ciência política, todos querendo o melhor para o Brasil, ainda não consegui formar uma opinião, ou entender tudo o que está em jogo.

Eis o que captei. Todo tributo incide sobre uma base: por exemplo, patrimônio, renda, movimentação financeira, folha salarial ou receita ou valor adicionado com a produção de um bem ou serviço. Esta última categoria, a tributação sobre bens e serviços, é o foco das propostas em discussão no Congresso: o PL 3887/2020, enviado pelo governo; a PEC 45/2019, de iniciativa da Câmara; e a PEC 110/2019, em tramitação no Senado. A proposta é cuidar desses tributos separadamente dos incidentes sobre as demais bases.

Tributos reduzem a eficiência econômica, alguns mais que outros. Quem defende a reforma argumenta que, na tributação de bens e serviços, aplicar alíquota única, uniforme em todo território nacional, incidente sobre o valor adicionado, cobrada no local de domicílio de quem compra, penalizaria menos a eficiência. Há, porém, dois problemas com isso.

Um, que a eficiência não é o único objetivo. Assim, há quem defenda uma tributação progressiva, com alíquotas mais baixas para itens que pesam mais na cesta de consumo dos mais pobres, como alimentos, e mais altas para os usados pelos mais ricos, como carros ou barcos de luxo. Há também quem defenda diferenciar alíquotas por preocupação com saúde (fumo e bebidas alcoólicas, por exemplo), educação (livros, escolas, cursinhos), meio ambiente (carros a álcool vs gasolina), ou política industrial. E há quem defenda a liberdade das unidades da federação fixarem alíquotas distintas para atrair investimentos.

Obviamente, levar tudo isso em conta é reproduzir o que temos hoje, com a briga das empresas por classificações favoráveis de seus produtos e a guerra fiscal. E esses outros objetivos podem e devem ser atingidos via outros instrumentos. Só que aí a coisa fica mais complexa e entra em cena a desconfiança quanto ao cumprimento de promessas.

Dois, que a capacidade do fisco arrecadar os tributos devidos não é a mesma em todos os setores e em todo o país. Em princípio, isso pode ser atenuado via a substituição tributária, como ocorre hoje em dia com combustíveis, em que o recolhimento se dá na refinaria, não no posto de gasolina. Mas desde os trabalhos de Frank Ramsey se sabe que é mais fácil e eficiente tributar bens e serviços cuja demanda é pouco sensível ao preço, o que explica porque eletricidade e telecomunicações são tão taxados. Em especial, um aumento da tributação em setores com muitas empresas e consumidores sensíveis a preço pode levar a um aumento da informalidade, frustando as projeções de receita e de aumento da eficiência. A manutenção do Simples mitiga esse problema, mas não se sabe em que escala.

Há um certo consenso de que pagar imposto no Brasil é complicado, dá muito trabalho e dá margem a disputas judiciais trilionárias, o que joga contra a eficiência e a capacidade do país atrair investimentos. Também há convergência de que muito disso se deve às chamadas obrigações acessórias, que dizem respeito à miríade de documentos que precisam ser apresentados ao fisco, e às regras que regem os conflitos entre o fisco, em busca de arrecadar mais, e os contribuintes, dedicados ao planejamento e à elisão tributária.

Mas há forte divergência sobre como resolver esses problemas, se é possível fazê-lo sem mudar a estrutura tributária, com medidas infra-legais, ou não. Também há quem tema que os novos tributos irão abrir espaço para novos tipos de conflitos e processos na Justiça. A coisa se complica pela necessidade, em caso de reforma, de um período de transição, que pode ser longo, para calibrar a alíquota a cobrar e permitir a amortização de investimentos realizados com a atual estrutura tributária.

Uma das reuniões foi sobre como avançar politicamente com a reforma. A experiência sugere que a forma como ela é apresentada ao eleitor faz bastante diferença, mas que o debate atual está centrado apenas em quem perde ou ganha com ela. Em paralelo, me parece, há um debate entre nossos enxadristas tributários, em que o público torce, mas não entende. Não soa como um caminho promissor para resolver nossos problemas nessa área, que não são pequenos.

Pode até ser que algum grupo dê um xeque mate nos outros, ou que uma torcida prevaleça sobre as demais, mas acho difícil. Mais seguro seria destrinchar esse debate para o grande público, mostrando as vantagens de cada alternativa em itens como produtividade, custo de cumprir as regras, litigiosidade etc.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ

Privacy Preference Center