reforma política

Luiz Carlos Azedo: As velhas raposas

O velho Piantella não perde a majestade. Na noite de quarta-feira, ao contrário da maioria dos deputados que gostam de futebol e foram assistir ao clássico Flamengo e Botafogo pela televisão (um zero a zero dos mais sem graça, no campo do Engenhão, no subúrbio carioca do Engenho de Dentro), um grupo de velhas raposas do Congresso se reunia nos fundos do velho reduto dos deputados Ulysses Guimarães (PMDB-SP) e Luiz Eduardo Magalhães (PFL-BA). Ambos pontificaram na política nacional tecendo grandes acordos políticos que garantiram a transição à democracia, o primeiro, e o sucesso do Plano Real, o segundo. Ambos deixaram discípulos na arte da política.

Estavam lá o atual decano da Casa, Miro Teixeira (Rede), eleito pela primeira vez nas eleições de 1974 com um caminhão de votos, Heráclito Fortes (PSB-PI), Benito Gama (PTB-BA), José Carlos Aleluia (DEM-BA), Rubens Bueno (PPS-PR) e Tadeu Alencar (PSB-PE), que é novo no grupo, mas respeitado porque é muito sensato e bom advogado, o que é muito importante nessas horas nas quais a criatividade pode selar o destino do país com uma boa saída jurídica. O assunto da conversa entre essas velhas raposas da política não poderia ser outro: desatar o nó da reforma política, em discussão na Câmara, que havia acabado de encerrar a sessão sem conseguir votar nenhuma proposta. Motivo: absoluta falta de clareza da maioria sobre o que fazer com o sistema eleitoral e o financiamento das campanhas.

Nessa roda de conversa, todos são contrários ao “fundão” de R$ 3,6 bilhões e a favor de uma forma de financiamento privado, com limite de arrecadação e previamente controlado pela Receita Federal. Se a fórmula que discutem será emplacada, não será a primeira vez que isso acontece. O grupo costuma jogar conversa fora em público e garante grandes acordos nos bastidores do plenário da Câmara. A maioria articulou os dois impeachments aprovados na Casa, do Collor de Melo e de Dilma Rousseff. Algumas conversas decisivas foram em almoços e jantares fechados na casa de Heráclito, no Lago Sul, sem a presença de jornalistas, lobistas e boquirrotos. Quem vaza conversas nesses encontros está fora do jogo. O convidado mais recente do grupo foi o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que resolveu sair da toca por causa do prefeito paulistano, João Doria.

Não há acordo no grupo sobre a outra proposta polêmica, o “distritão”, projeto que tem como um dos seus patronos o deputado Miro Teixeira. Seu amigo Rubens Bueno é radicalmente contra a proposta. Para Miro, o “distritão” não é problema, é solução. Elege-se com facilidade e se livra das amarras da Rede, embora não diga isso em nenhum momento. Para Rubens, é o fim dos partidos, principalmente os pequenos, com menos tempo de televisão e recursos, porque o leilão do troca-troca partidário já é uma realidade na Câmara. Benito Gama se diverte com a polêmica. Como bom baiano, ironiza a situação. E comemora o fato de o Congresso reagir às pressões da opinião pública. “Quem vai dar uma solução para crise política somos nós, os políticos, não são os juízes, promotores e militares. Democracia é assim!”

Essa é a questão de fundo da crise ética. Não há a menor possibilidade de uma solução a la Emmanuel Macron, o novo presidente francês, que deixou o governo do socialista de François Hollande, criou um movimento que, em um ano, filiou 200 mil militantes e derrotou gaulistas e socialistas, os tradicionais partidos franceses, levando de roldão a direita chauvinista de Marine Le Pen. A solução da crise terá que sair das eleições de 2018, é a regra do jogo democrático, cuja primeira condição é a manutenção do calendário eleitoral; a segunda, a possibilidade de alternância de poder.

Mas as regras da eleição estão sendo decididas por muitos líderes políticos acuados pela Lava-Jato e um baixo clero à beira de um ataque de nervos por causa do desgaste do Congresso. É nesse universo que essas raposas jogam no meio de campo e armam suas jogadas. A sociedade já detonou o “distritão” e o “fundão”. Até ministros do Supremo que votaram a favor do financiamento público já estão revendo suas posições contrárias ao financiamento privado. Miro Teixeira já queima as pestanas pra encontrar uma fórmula que salve o “distritão” do naufrágio. No momento, a ideia é “distritão” com voto em legenda. É uma tremenda jabuticaba, não existe em lugar algum. Mas ainda não colou!

Las Ramblas

Em 23 de junho, em férias, estava flanando por Las Ramblas, cujo nome é uma corruptela do árabe “ramla”, tão comum na Península Ibérica, que nesse caso significa leito de rio seco. A longa avenida de 1,2 km tem um grande calçadão que desce da Praça da Catalunha ao Porto Velho, no coração de Barcelona, pelo qual transitam diariamente de 230 mil a 310 mil pessoas. O atentado de ontem deixou ao menos 13 mortos e uma centena de feridos, de pelo menos 18 nacionalidades. Nenhum brasileiro, embora seja impossível fazer aquele trajeto sem ouvir os sotaques de diversas regiões do nosso país. O mundo está cada vez mais perigoso, não é só o Rio de Janeiro que tem motivos de sobra para se vestir de branco pela paz universal. (Correio Braziliense – 18/08/2018)


Míriam Leitão: Triste vitória

O que o governo apresentou ontem eleva o déficit até 2020. Todos os cálculos dos resultados negativos foram revistos para pior. Na hora de anunciar os cortes, o governo poupou os militares do congelamento dos salários. A equipe econômica venceu no final, mas foi uma vitória triste, porque não houve ajuste, mas sim um aumento menor do rombo em relação ao que os políticos queriam.

Os militares foram poupados na reforma da Previdência e agora foram retirados do congelamento dos salários. O ganho com esse adiamento dos reajustes seria de R$ 11 bilhões e caiu para R$ 5 bi. O governo protegeu também exportadores. Eles continuarão tendo isenção fiscal para exportar, no benefício chamado Reintegra. Só não terão mais o aumento da isenção que estava previsto para 2018.

O peso recaiu principalmente sobre os servidores civis do executivo, já que os outros poderes têm autonomia. Eles não terão reajustes no ano que vem, perderão vantagens financeiras ao serem transferidos e também o auxílio-moradia será limitado a quatro anos e com uma redução gradual do valor.

Os funcionários do Legislativo e Judiciário poderão ter seus reajustes e manter por tempo indeterminado o auxílio-moradia, benefício que cria inaceitáveis distorções.

Pela proposta do governo, o rombo total do setor público consolidado, incluindo governo federal, Previdência, estados e municípios, será de R$ 514 bilhões na soma dos anos de 2017 e 2020. Com as mudanças nas metas, o déficit previsto nesse período teve um crescimento de R$ 199 bilhões em relação ao estimado anteriormente.

Assim, o país chegará a 2020 sem ter superado a crise fiscal. Antes havia a previsão de que naquele ano haveria superávit de R$ 23,2 bi, mas agora foi previsto outro rombo, de R$ 51,8 bi. Ou seja o governo Temer, se for até o final, entregará o país com um déficit anual de R$ 159 bilhões e uma LDO projetando um déficit de R$ 137 bi, além da previsão de continuar o vermelho no segundo ano do próximo governo.

O debate nas últimas horas dentro do governo era o que se poderia fazer pelo lado da receita. Os ministros políticos, com os reforços que conseguiram na sua área, vetaram sucessivamente tudo que foi proposto. Os ministros da economia pensaram em ampliar o programa de privatização e concessões, mas algumas ideias enfrentaram resistência dos políticos, como a venda dos aeroportos de Santos Dumont e Congonhas.

Sobre 2017, não há muito a fazer, a não ser calcular corretamente quanto se conseguirá de receita com a venda das hidrelétricas que eram da Cemig, e a concessão não foi renovada por decisão da administração Dilma.

— O problema é que a única forma de cortar despesas discricionárias no próximo ano é reduzindo o tamanho do Estado, fechando alguns órgãos públicos. Os políticos não querem apoiar uma medida dessas. E nenhum político quer ouvir falar em fechar órgão público em novembro e dezembro — disse um integrante da equipe econômica.

A ideia de aumento do IOF sobre crédito foi estudada e deixada de lado porque é muito ruim e encareceria o crédito. Por isso houve apenas uma mudança na forma de cobrança do imposto que incide sobre os fundos fechados de investimento. Agora, pagarão como os fundos que são abertos aos investidores em geral. Era um privilégio dos muito ricos que eles deixarão de ter. O ganho com isso será do ano que vem. O grande temor em relação a 2017 é ocorrer uma nova frustração de receita, mesmo com um déficit de R$ 159 bilhões.

Pelos dados que os ministros apresentaram, a queda da receita, pela recessão e desinflação, é realmente muito grande. Só para o ano que vem, a diminuição da arrecadação prevista é de R$ 44 bilhões. O ministro Meirelles repetiu à exaustão que a queda da inflação é boa para o país, mas explicou que com isso encurtam também as receitas que o governo consegue obter.

Há medidas de ajuste mais permanente, como a revisão das carreiras. O governo contrata, com salários muito acima do mercado, profissionais que passam a ter várias outras vantagens e a estabilidade. Mas não haverá ganho imediato. Ao fim da longa batalha das metas conclui-se que a equipe econômica venceu, se é possível chamar isso de vitória, e o déficit ficou em R$ 159 bi, subindo R$ 50 bilhões em dois anos.

* Míriam Leitão é jornalista

 


Rubens Bueno: 2018, eleitor e partidos na berlinda

O Brasil vive nos últimos anos a política do precipício. Quando parece que a situação vai melhorar, caímos novamente no poço sem fundo da corrupção, chaga que impede a prestação eficiente de serviços públicos, abala a nossa economia e afeta a credibilidade externa do país.

A reversão desse quadro não se dará apenas com o combate efetivo a esse crime de lesa pátria, como vem fazendo a força-tarefa da Operação Lava Jato. Depende também, e principalmente, da mudança de postura dos partidos e do eleitor.

O ano de 2018 poderia se transformar no ponto de partida para essa virada. Teremos eleição do novo presidente da República, de governadores, deputados e senadores. É uma ótima oportunidade para expurgamos do meio político aqueles que chafurdam na corrupção e utilizam seus mandatos em benefício próprio. E qual o dever de casa que cabe a cada participante desse jogo?

Aos partidos cabe apresentar propostas claras para o país. Propostas e candidatos a presidente. Afinal, um partido que realmente deseja merecer o respeito e o voto do eleitor precisa dizer a que veio. E a eleição presidencial é o principal palco para isso.

Não é mais admissível, por exemplo, que o maior partido desse país, o PMDB, não lance candidato a presidente desde 1989.

A pluralidade faz bem a democracia e, numa eleição em dois turnos, nada melhor para o eleitor do que contar com uma ampla opção de escolha. Já está provado que a dicotomia política, o nós contra eles, o PT versus PSDB, não tem feito bem para a política brasileira.

Os partidos também devem ter o compromisso de escolher com critérios seus candidatos, de não vender espaço em suas chapas em troca de dinheiro, de afastar conhecidos corruptos de seus quadros evitando que famosos estelionatários eleitorais ludibriem o eleitor. Também precisam formar seus candidatos, prepara-los para exercício do cargo que desejam alcançar. Afinal, a incompetência também alimenta a corrupção, nem que seja por falta de ação.

Ao eleitor cabe também deixar de vender seu voto por uma promessa de emprego, por um convite para um churrasco ou por uns trocados quaisquer. O voto não é moeda de troca.

O voto certo, limpo, dado com consciência, pode melhorar a educação, a saúde, a segurança e o desempenho da economia do seu país.

Já o voto vendido alimenta a corrupção, suga os recursos públicos e impede que o país saia do atraso. Depois, não adianta nada sair por aí dizendo que são todos ladrões, que todo político é corrupto. Até porque quem vende seu voto se torna parte integrante da quadrilha.

O eleitor precisa ter em mente que o voto não é só um direito, é uma responsabilidade do cidadão com a construção de uma sociedade mais justa e ética. Por isso, é fundamental que cada um analise as propostas dos candidatos, pesquise sua vida pregressa, debata com familiares e amigos e até participe da campanha daquele político que considera melhor para o país, para seu estado ou sua cidade.

A resposta que será dada nas urnas, o voto consciente ali depositado, é que pode promover uma virada nesse país. Os políticos que hoje envergonham a sociedade não caíram de paraquedas. Alguém os botou lá. E esse alguém é o eleitor.

2018 está aí. O país vai mal e partidos e eleitores estão na berlinda. Vamos deixar tudo como está?

* Rubens Bueno é deputado federal pelo PPS do Paraná

 


José Anibal: A reforma política ideal, a possível e a reprovável

A missão essencial da classe política é colocar de fato como prioridade os interesses do país e da população. Não se trata de uma frase ingênua. Ao contrário, o que os atuais ocupantes de mandatos mais precisam é se reaproximar de seus eleitores, mostrar que, a despeito de todas as dificuldades que o país vive, existe compromisso com o que é melhor para o Brasil.

Por isso, se for aprovada a reforma política que se desenha, com soluções esdrúxulas e tomadas de costas para a sociedade, será o mesmo que assinar o divórcio entre eleitores e eleitos e colocar em xeque os rumos do arcabouço institucional do país.

O primeiro ponto a ser fortemente combatido é adotar o chamado distritão. Trata-se de um sistema deplorável mesmo como alternativa de transição para o almejado sistema distrital misto, adotado em países como a Alemanha e discutido agora pela França.

Esse modelo combina o maior número de vantagens dos outros sistemas – a eleição de um deputado por distritos pequenos, o que barateia o custo de campanha, e a defesa de bandeiras partidárias no âmbito estadual, permitindo a representação parlamentar das minorias –, assim como minimiza as imperfeições inerentes a qualquer regramento eleitoral.

Mudar o atual sistema para o distritão é jogar por terra o pouco que nos resta de ideologia, coesão partidária e coerência política e reduzir as eleições parlamentares a uma votação de programa de TV. Para o cidadão já descrente com a classe política, será que vai ser tão diferente escolher um deputado ou um vencedor de reality show?

Aí é que está o ponto crítico do distritão e o brutal erro de avaliação de seus defensores. Acreditar que um deputado tem maior chance de reeleição numa disputa personalizada e estritamente majoritária é fechar os olhos à realidade.

Um sistema como o proposto seria um convite à radicalização do discurso antipolítico, à chegada de subcelebridades ou de aventureiros financiados sabe-se lá como e por quem, em disputas ainda mais caras que as atuais, já que os candidatos continuarão tendo que percorrer estados inteiros, em vez de se concentrarem em um território menor, como prevê o modelo distrital.

A perspectiva da reforma política deve ser o eleitor, e não o eleito. Deve ser o anseio da sociedade por campanhas mais democráticas, menos perdulárias e dispendiosas, e não a busca de subterfúgios para a manutenção dos que hoje detém o poder. Nesse sentido, a proposta de um fundo bilionário para as campanhas, diante do atual cenário de crise fiscal e ajuste das contas públicas, chega a ser um escárnio.

Melhor seria incentivar doações privadas mediante um sistema mais rígido e rigoroso de controle, com limites claros e austeros tanto em relação a doações quanto aos gastos, coibindo pirotecnias e produções hollywoodianas. Seria um gesto importante evitar o uso de mais dinheiro do contribuinte, cansado de ver seus impostos revertidos em um poder público pouco eficiente, tomado de assalto por interesses corporativistas e pelo patrimonialismo.

A boa política é feita no caminhar entre o ser e o dever-ser, entre a decisão possível, tomada pela ética da responsabilidade, e o objetivo ideal, formado pela ética da convicção.

Nem sempre conseguiremos fazer avançar a proposta mais adequada, concessões são feitas para se atingir um degrau mais alto na escada da evolução.

O que é reprovável é apostar num tiro no escuro, acreditar em mudanças que não só não resolvem como agravam os problemas existentes. Em vez de renovar os pilares da representatividade e fortalecer a conexão entre eleitores e eleitos, a reforma política tal como se ameaça aprovar abala os mais essenciais fundamentos da democracia.

 

* José Aníbal é presidente nacional do Instituto Teotônio Vilela. Foi deputado federal e presidente nacional do PSDB

 

 


Roberto Freire: Por uma reforma política digna do nome

 

A pouco mais de um ano para as eleições de 2018, é chegado o momento de o Congresso Nacional se debruçar sobre as necessárias alterações no sistema político-eleitoral. Tenho afirmado que a mais efetiva reforma política de que o Brasil precisa é a instituição do parlamentarismo, um modelo avançado, dinâmico e flexível que permite a superação de impasses agudos sem traumas institucionais.

Já existe uma Proposta de Emenda à Constituição, de autoria do então deputado Eduardo Jorge e relatoria de Bonifácio de Andrada, que institui o parlamentarismo no Brasil. O texto, apresentado em março de 1995, já passou por todas as comissões da Câmara e está pronto para ser votado em plenário desde 2001. Em caso de aprovação, evidentemente precedida por um referendo popular, a mudança no sistema de governo valeria a partir de 2022, de modo que o país teria um tempo razoável de adaptação.

No parlamentarismo, quando não se consegue obter uma nova maioria parlamentar, a Câmara é dissolvida e são convocadas novas eleições. Não por acaso, trata-se do sistema vigente na maioria dos países do mundo democrático – à exceção dos Estados Unidos, todas as grandes nações desenvolvidas são parlamentaristas. O presidencialismo, por sua vez, é filho direto do absolutismo monárquico e gerador de impasses e crises permanentes. Especialmente no Brasil, esse sistema impulsiona os “salvadores da pátria” ou demiurgos que exercem um poder quase imperial.

Outro avanço fundamental seria a adoção do voto distrital talvez já para as eleições municipais de 2020, como uma espécie de transição. Nossa posição é favorável ao voto distrital misto, utilizado com êxito na Alemanha. Por esse modelo, metade dos representantes dos Estados da federação seria eleita pelo voto proporcional em lista partidária, e a outra metade, eleita majoritariamente em distritos eleitorais. O eleitor votaria duas vezes: no partido (em lista pré-ordenada de candidatos), valorizando o componente ideológico e programático; e em um candidato do seu distrito, o que aproximaria o representante do representado.

Infelizmente, o que temos observado é uma preocupante tendência pela aprovação do sistema eleitoral conhecido como “distritão” – uma evidente distorção da representação política no Parlamento. Seriam eleitos os candidatos mais votados a deputado, independentemente das coligações que integrassem ou dos partidos aos quais pertencessem, que se transformariam em meros cartórios para o registro de candidaturas. A Câmara seria formada por 513 entidades autônomas, cada uma valendo por si só, o que faria com que os governos tivessem de se articular sem qualquer mediação partidária com cada um desses “deputados de si mesmos”, inviabilizando totalmente a indispensável interlocução entre Executivo e Legislativo.

O absurdo da proposta é tão clamoroso que tal modelo vigora atualmente apenas no Afeganistão, na Jordânia e em pequenos países insulares. Já foi utilizado pelo Japão em uma única eleição, no pós-guerra, e imediatamente revogado diante de tamanho fracasso.

Ao invés de nos ocuparmos com teses despropositadas como o nefasto “distritão”, deveríamos trabalhar para corrigir as distorções de uma legislação que impede a oxigenação do ambiente político e afasta qualquer possibilidade do surgimento de novas forças representativas da cidadania. A chamada cláusula de barreira, cantada em prosa e verso como a solução para todas as nossas mazelas, atende apenas aos interesses dos grandes partidos e serve para manter a primazia da velha ordem.

Ao contrário do senso comum, as anomalias do modelo eleitoral brasileiro não têm relação com a possibilidade de criação de novas agremiações. Partido político é direito de cidadania e não pode ser tutelado ou regulamentado pelo Estado. Na realidade, o grande imbróglio é o acesso indiscriminado ao Fundo Partidário e ao tempo de propaganda eleitoral no rádio e na televisão. Criou-se no Brasil um amplo mercado de negociações espúrias e tentativas de enriquecimento fácil à custa do dinheiro público, com uma profusão de pedidos de registro de novos partidos.

Mal comparando, é algo semelhante ao que ocorre no sindicalismo, cada vez mais dependente dos valores provenientes do imposto sindical, felizmente abolido. Ou o que se vê com a proliferação de igrejas por força de uma imunidade tributária assegurada por lei, o que leva, infelizmente, à consolidação de um verdadeiro “negócio”. Nossa proposta é de que apenas os partidos que atingirem, pelo voto, uma representação mínima na Câmara dos Deputados tenham direito aos recursos do Fundo. Seria uma espécie de cláusula de desempenho para as legendas terem acesso ao Fundo Partidário, mas de forma a não impedir a representação política e o exercício dos mandatos.

Se o Congresso não se deixar levar por respostas fáceis e erradas para problemas complexos, pode fazer história e proporcionar uma mudança de patamar em nosso sistema político-eleitoral. Chegou a hora de termos um regime que permita o fortalecimento dos partidos e a participação mais ativa da sociedade. O Brasil precisa de uma reforma política digna do nome, e não de uma contrarreforma que agrave as distorções já existentes. Queremos avançar.

 


O Globo: Entenda o que é distritão e de onde virão recursos para campanhas

Comissão especial da reforma política aprovou mudanças no sistema eleitoral

Entenda o que é o distritão e de onde sairão os recursos do fundo partidário:

O que é o distritão?

Com a adoção do distritão, a eleição de deputados e vereadores passaria a ser majoritária. Ou seja, os mais votados em cada estado ou município seriam eleitos, independentemente dos resultados de seus partidos. Não há voto em legenda nem quociente eleitoral.

 

Na prática, o que mudaria?

Os chamados "puxadores de voto" não teriam mais influência no tamanhos das bancadas de seus partidos, levando consigo candidatos com menos votos. Por outro lado, o modelo favorece candidatos mais conhecidos e com mais recursos financeiros. Por isso, beneficia parlamentares que concorrem à reeleição.

Como funcionam os sistemas eleitorais

O distritão pode valer para as eleições de 2018?

Para que a mudança aprovada na comissão entre efetivamente em vigor na próxima eleição será necessário alcançar 308 votos entre os 513 deputados e 49 votos entre os 81 senadores em duas votações em cada Casa, até 7 de outubro. Contrários à inclusão da emenda no texto da reforma política, representantes de seis partidos ( PT, PCdoB, PSOL, PR, PRB e PHS), que somam 142 deputados, reuniram-se para lançar uma frente contra o sistema.

O distritão é aplicado em algum outro país?

A regra só é aplicada em quatro países — Afeganistão, Jordânia, Vanuatu e Pitcairn.

MAPA INTERATIVO: OS SISTEMAS ELEITORAIS NO MUNDO

 

O que dizem os críticos do modelo?

A principal crítica ao distritão é que ele privilegia políticos conhecidos, famosos ou em busca da reeleição, além dos que têm mais recursos financeiros.

Jairo Nicolau, professor de ciência política da UFRJ e especializado em sistemas eleitorais considera que “de todos os modelos propostos, o distritão, é sem dúvida, o pior”. Ele diz que “é razoável imaginar que o novo sistema estimule, por exemplo, candidaturas de lideranças religiosas e de organizações da sociedade civil e personalidades do mundo esportivo e cultural”.

O modelo também deixa sem representação todos aqueles votos dados a outros candidatos no distrito. Um partido, por exemplo, pode ter grande votação nacional e nenhum representante no Congresso, por não vencer nos distritos.

MERVAL PEREIRA: O DISTRITÃO EM DEBATE


O que diz o autor da proposta?

Para autor da proposta, deputado Miro Teixeira (Rede-RJ) o sistema respeita vontade do eleitor e livra candidatos do poder das cúpulas partidárias.

- O distritão estabelece a verdade eleitoral. Se há dez vagas a serem preenchidas, os ocupantes são os dez mais votados. O voto vai direto para o candidato, não passa para outro. A vontade do eleitor é absolutamente respeitada. A frase "todo poder emana do povo" não pode ser uma frase perdida na Constituição - afirma.

 

EDITORIAL: DISTRITÃO É UM DOS ERROS DA REFORMA POLÍTICA

 

O que é o fundo de financiamento eleitoral?

É um fundo, abastecido com verba pública, destinado a financiar as campanhas eleitorais em todo o país. A ideia surgiu após a proibição das doações de empresas a partidos e candidatos.


Qual o montante de recursos do fundo?

O relator da reforma política na Câmara, deputado Vicente Cândido (PT-SP) dobrou o valor que estava previsto para o montante de recursos públicos que seria usado ao financiar campanhas.

Na versão anterior de seu parecer, Cândido tinha estabelecido que 0,25% da receita corrente líquida do Tesouro Nacional seria o valor usado no financiamento. A exceção seria para a eleição do ano que vem, 2018, em que o valor do fundo seria de 0,5% — também da receita corrente líquida. Isto corresponde a R$ 3,6 bilhões.

Agora, no parecer apresentado na quarta-feira (9) , Cândido reformulou o texto e instituiu 0,5% da receita corrente líquida do Tesouro como regra.


De onde viriam os recursos?

Os recursos públicos viriam dos cofres da União e poderiam estourar o teto de gastos que limita as despesas do poder público ao crescimento da inflação. O fundo seria previsto no orçamento da União em anos eleitorais e também poderia receber recursos de doações.

 


Luiz Carlos Azedo: A gaiola dos perus

O que mais assusta os deputados é a proposta de “distritão”, uma velha tese do presidente Michel Temer, ressuscitada pelo relator da reforma, deputado Vicente Cândido (PT-SP)

Por causa da reforma política, o clima na Câmara ontem era de gaiolas de perus às vésperas da ceia de Natal. A algazarra era grande porque a proposta de mudança das regras do jogo nas eleições — do atual sistema proporcional uninominal para não se sabe ainda qual o modelo — pôs em risco a sobrevivência de muitos, principalmente os que conquistaram seus mandatos graças aos votos da respectiva legenda. O que mais assusta os deputados é a proposta de “distritão”, uma velha tese do presidente Michel Temer, ressuscitada pelo relator da reforma, deputado Vicente Cândido (PT-SP), que virou uma espécie de magarefe dos colegas. O “distritão” consiste na eleição dos deputados mais votados de cada estado, não importa a votação dada aos demais candidatos de cada partido. Foi aprovado na comissão especial por 17 a 15 e agora vai a debate em plenário.

O sistema só existe em quatro países: Afeganistão, Jordânia, Vanuatu e Pitcairn. Teoricamente, beneficiaria os campeões de votos e acabaria com o que é considerado por muitos como a uma grande distorção, a eleição de deputados graças à proporcionalidade da distribuição de cadeiras entre as legendas, de acordo com a ordem de votação em cada partido. Isso faz com que campeões de votos, em alguns estados, não consigam uma cadeira porque seu partido não alcançou a votação necessária, enquanto outros deputados são eleitos com votação irrisória beneficiados pelo voto de legenda. Isso faz com “puxadores” de legenda, como Tiririca (PR-SP), por exemplo, carreguem com a sua votação deputados menos votados do que os que não passaram a linha de corte da proporcionalidade entre as legendas.

A proposta caiu como uma bomba na comissão especial da reforma, que se reuniu ontem. É resultado de um acordo entre os caciques do PMDB, PSDB e DEM, que tentam blindar as legendas do desgaste da Operação Lava-Jato, mas o PT roeu a corda e, de olho nas alianças de 2018, resolveu liderar a reação contrária à proposta, que inviabilizaria os pequenos partidos de esquerda e outras legendas menores. “Nós já contamos com 200 deputados e vamos chegar a 250”, anunciou o líder da Minoria, deputado José Guimarães (PT-CE).

Na base do governo, a reação negativa também é grande. O líder do PPS, Arnaldo Jordy, também anunciou que a bancada é contra o “distritão”. Até mesmo dentro do PMDB, PSDB e DEM, há deputados que veem a proposta como uma ameaça eleitoral. Com isso, cresce a possibilidade de permanência do sistema atual, que tem sobrevivido a todas as tentativas de reformá-lo, com o fim das coligações e a cláusula de barreira. Outra possibilidade é a adoção do sistema distrital misto, no qual uma parte dos deputados é eleita pelos critérios atuais e a outra, pelo distrito eleitoral.

Passando do habitat das aves para o dos mamíferos, a alegria dos deputados tem o pomposo nome de Fundo Especial de Financiamento da Democracia, com ampla aceitação. O aumento do fundo partidário para 0,5% da receita corrente líquida da União, o que corresponderia hoje a cerca de R$ 3,6 bilhões, é como perguntar a macaco se quer banana. Com o fim do financiamento privado, a cobiça dos deputados em relação a esses recursos gerou uma espécie de leilão na Câmara, pois a divisão do fundo partidário é feita entre os partidos de acordo com o número de integrantes de cada bancada. Com isso, cada deputado valeria R$ 7,01 milhões. A conversa de bastidor na reforma política, por causa da janela para troca de partido que será aberta, na maioria dos casos, é na base de quanto cada um vai levar do botim ao entrar ou mesmo ficar em cada legenda. A orientação programática das siglas vale muito pouco nesse tipo de conversa.

Imunidades

Atualmente, a Constituição define que o presidente da República não pode ser preso por crimes comuns enquanto não houver sentença condenatória, nem pode ser investigado por fatos anteriores ao exercício do mandato. Em caso de indício delituoso, se for denunciado, o processo no Supremo Tribunal Federal (STF) depende de prévia aprovação da Câmara. Essa regra, pelo relatório de Vicente Cândido, seria ampliada para toda a linha sucessória da Presidência da República: vice-presidente da República e presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal (STF). A proposta faz parte do conjunto de medidas que visam blindar a cúpula do Congresso contra a Lava-Jato.

A propósito, pegou mal o encontro da nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, com o presidente Michel Temer na noite de terça-feira, fora da agenda oficial, para tratar da sua cerimônia de posse. Cogita-se que seja no Palácio do Planalto e não na sede do Ministério Público Federal. Até aí nada demais, pois uma das posses do atual procurador-geral, Rodrigo Janot, também foi lá, durante o governo Dilma Rousseff. O problema é que o encontro não constava da agenda da Presidência e a conversa derivou para a queda de braços entre Temer e Janot, o que desgastou a nova procuradora-geral da República entre seus colegas de MPF.


O Globo: A proposta de uma antirreforma política

São inconcebíveis R$ 3,6 bilhões para campanhas e o ‘distritão’, de que se beneficiarão apenas políticos conhecidos, em prejuízo dos partidos e da renovação

A proximidade de outubro, quando se esgota o prazo para que mudanças na legislação eleitoral vigorem no pleito do ano que vem, agita um Congresso preocupado com as finanças da campanha. E como o tempo é curto, amplia-se a margem de risco da aprovação de medidas de um modo geral equivocadas, e, no caso do financiamento dos gastos eleitorais, contrárias ao interesse do contribuinte.

O perigo é real, como demonstra uma miscelânea batizada de reforma, sob relatoria do deputado Vicente Cândido (PT-SP), que ganhou notoriedade ao embutir emenda no projeto para que candidato condenado a até oito meses do pleito não seja preso. Logo recebeu o nome de “emenda Lula”, líder máximo do partido do deputado e condenado em primeira instância por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

O reluzente chamariz desse projeto é o inconcebível aumento do Fundo Partidário, já em elevados R$ 800 milhões, para R$ 3,6 bilhões ou o equivalente a 0,5% da receita líquida da União. No pleito de 2022, seria reduzido para 0,25%. Em nada alivia para quem paga imposto.

É certo que a democracia tem um custo. Mas é preciso debater esta opção de uma contribuição compulsória de R$ 3,6 bilhões, pelo contribuinte, enquanto as contas públicas continuam muito desequilibradas, e persistem efeitos sobre a população da abissal recessão de 2015 e 2016. Na falta de emprego e na queda da renda.

Este projeto também avança em outro desatino, com a instituição do tal “distritão”, pelo qual cada estado seria um distrito, em que os mais bem votados ocupariam os assentos da bancada estadual, em ordem decrescente.

O sistema é muito simples de entender e, à primeira vista, irretocável do ponto de vista de preceitos democráticos. Afinal, entrariam na bancada os mais votados. Mas é positivo só mesmo à primeira vista.

Ao atender o senso comum — algo quase sempre perigoso —, o “distritão" só beneficiará candidatos à reeleição, portanto, já conhecidos, e famosos em geral. Irá em sentido contrário à necessidade de renovação na política, e ainda deixará em plano secundário os partidos, cujo fortalecimento é crucial para a democracia representativa.

Esboça-se a possibilidade da volta daquele clima de feira livre que o então presidente da Câmara Eduardo Cunha criou em 2015, ao tentar votar uma reforma política a toque de caixa, sem qualquer maior reflexão.

Enquanto isso, está em fase final de tramitação na própria Câmara proposta de emenda constitucional, já aprovada no Senado, com uma reforma eficaz, na medida certa: cláusula de desempenho para exigir que partidos tenham um mínimo de votos, a fim de ter acesso a prerrogativas como o uso do dinheiro do Fundo; e a extinção das coligações em pleitos proporcionais, para não ser distorcida a intenção do eleitor. Não se deve perder esta oportunidade.

Editorial O Globo

 


Eliane Cantanhêde: Em causa própria

Congresso prepara ‘surpresas’ contra a Lava Jato e a favor dos parlamentares

O Congresso Nacional já está levando palmadas da Lava Jato, broncas da opinião pública e notas baixas nas pesquisas, mas aproveita o recesso para fazer mais peraltices. Como o Estado vem antecipando, os parlamentares tentam usar a reforma política e a reforma do Código Eleitoral para favorecer os alvos da Justiça, do Ministério Público e da Polícia Federal.

Um dos exemplos mais lustrosos é a tal “emenda Lula”, que aumenta de 15 dias para oito meses o prazo em que os candidatos às eleições já de 2018 não podem ser presos, a não ser em flagrante delito. Oito meses é uma eternidade. Principalmente para cometer crimes impunemente.

Quem assume a ideia é o relator da comissão especial da reforma política, deputado Vicente Cândido (PT-SP), e fica evidente a intenção de garantir duas blindagens para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o único nome que os petistas de fato consideram para 2018. De um lado, dificultaria a prisão de Lula. De outro, garantiria a sua candidatura.

O argumento de Vicente Cândido é realista: caso aprovada, a mudança não beneficiaria apenas Lula, mas dezenas, ou centenas, de candidatos que estão com a PF, o MP e a Justiça no cangote. Logo, ele prevê um acordão para a votação em plenário. E nós, o que prevemos? Que haverá dezenas, ou centenas, de candidatos pintando e bordando por aí, ilesos.

A outra bondade coletiva gestada no Congresso, conforme o Estado de ontem, é numa outra comissão, a do Código de Processo Penal. Se nunca aprovou e até articulou estraçalhar as dez medidas anticorrupção sugeridas por procuradores, a Câmara agora tenta partir para cima de três pilares da Lava Jato: a delação premiada, a prisão preventiva e a condução coercitiva.

O relator é o deputado João Campos (PRB-GO), que pretende apresentar seu parecer em agosto, para votação em plenário já em outubro. Isso, claro, é só uma esperança dele e dos interessados diretos, que temem justamente as delações, prisões e conduções coercitivas. É improvável, porém, que haja clima para passos tão ousados na contramão da opinião pública.

Além dessas mudanças, há outras no Congresso sob encomenda para favorecer os próprios parlamentares. Exemplo: o projeto de parcelamento e perdão de dívidas tributárias e previdenciárias. Pois não é que os deputados e senadores que vão votar esse negócio de pai para filho devem R$ 532,9 milhões à União? Se isso não é legislar em causa própria, é o quê?

Essas iniciativas caracterizam o típico corporativismo, ou espírito de corpo, já que a maioria dos partidos (incluindo todos os maiores) e grande parte da Câmara e do Senado são atingidos pela Lava Jato e temem as novas delações que estão sendo negociadas principalmente com a Procuradoria-Geral da República, mas também com a Polícia Federal – caso do publicitário Marcos Valério, pivô do mensalão.

Não custa lembrar que iniciativas anteriores para livrar políticos ou para limitar as investigações não deram certo. A gritaria da sociedade foi mais forte e os parlamentares foram obrigados a voltar atrás na descaracterização das dez medidas anticorrupção, na nova lei de combate ao abuso de poder e na inclusão de parentes de políticos nas benesses da repatriação de recursos ilegais no exterior.

Ou seja, por enquanto, as ideias das comissões são apenas ideias, rascunhos que podem ser muito bem alterados antes de ganharem corpo e serem submetidos aos plenários para virarem lei. E não serão aprovadas se a sociedade, escaldada que está, ficar alerta e de olho vivo. Mais uma vez, é melhor prevenir, enquanto são só projetos, do que chorar sobre o leite derramado, depois da aprovação no Congresso.

 

 


Gaudêncio Torquato: A saída para a crise

A crise que assola a democracia representativa, relembrando as lições de Rogér-Gerard Schwatzenberg, tem como fundamentos, entre outros, o declínio da força dos Parlamentos, a desideologização, o amortecimento dos partidos, o desânimo das massas eleitorais ante o desempenho dos representantes e a escassa capacidade da política para promover avanços nas estruturas do Estado.

Os efeitos da crise se fazem mais fortes em democracias ainda incipientes, onde as instituições não alcançam altos níveis de solidez e, por conseguinte, padecem de frequentes tensões. Nesses espaços, a corrupção acaba ganhando volume.

É o caso do Brasil, que, desde a instalação da República, em 1889, alternou ciclos democráticos com ciclos autoritários. Nossa primeira Constituição, em 1891, abrigou preceitos preservadores de direitos individuais e garantias democráticas, perdurando até 1930, quando o país passou a conviver com desajustes que levaram à centralização autoritária da Constituição de 1937.

O mando autoritário segue até 1945, após a ditadura getulista, reinstalando-se, com a Constituição de 46, os horizontes democráticos que vão até 1964.

O golpe militar fecha novamente os portões democráticos, que começam a ser reabertos a partir de 1982 com a eleição de governadores pela via direta.

Em 1986, o país abre as comportas da redemocratização, com eixos fixados na CF de 88.

Sistema híbrido

Em todo esse tempo, o Brasil conviveu com os elementos tradicionais que ancoraram o regime republicano: o presidencialismo, o federalismo, o bicameralismo, o multipartidarismo, o voto uninominal e dois tipos de sistema eleitoral (proporcional e majoritário), que acabam conferindo caráter híbrido à nossa democracia.

A presença do Estado sempre tem sido muito forte na vida dos cidadãos, a ponto de convivermos com uma “cidadania regulada”, forma que o historiador José Murilo de Carvalho designa de “estadania”, cujas origens apontam para a inversão da pirâmide dos direitos.

Ao contrário, por exemplo, da Inglaterra que, de acordo com Tomas Marshall, implantou, no século XVIII, primeiramente os direitos civis, e somente um século depois, os direitos políticos, fechando a pirâmide, bem mais tarde, com os direitos sociais. Por aqui, invertemos a tríade: implantamos os direitos sociais antes da expansão dos direitos civis.

Dessa forma, os direitos sociais apareceram não como conquista dos trabalhadores, mas como “doação”, um favor, um presente do ditador Getúlio Vargas, fato que acabou tornando as massas “refém” do Estado e da figura do presidente.

Na Inglaterra, tais direitos foram conquistados.

Não por acaso, o presidencialismo exerce entre nós forte atração, sendo o regime de governo mais simpático aos habitantes.

O país caminhou na direção contrária às Nações desenvolvidas, que reduziram o tamanho de seus Estados, conformando-os ao grau de cidadania de seu povo. Portanto, as mazelas geradas pelo patrimonialismo aqui são alimentadas pelas “tetas do Estado”, fato que impede rápidos avanços e dificulta a instalação de reformas fundamentais ao desenvolvimento.

Esse pano de fundo de nossa cultura política explica o agravamento da crise que consome as energias do país e dá vazão à tese: se a democracia representativa atravessa momentos turbulentos em outras regiões do mundo, por aqui vive seu ápice.

Não há mais como sustentar os pilares tradicionais de nossa República. Por isso, avoca-se a necessidade de discutir outras ferramentas que compõem as vias democráticas, a começar pelo sistema de governo.

Nosso presidencialismo já deu o que tinha de dar. Chegou a hora de abrimos um portão no condomínio do presidencialismo.

A via parlamentarista é uma boa saída para a crise. Já está amadurecida a ideia de conferir maior poder aos representantes do povo, atribuindo ao Parlamento o exercício de tarefas hoje atribuídas ao Executivo. Essa alternativa pode equacionar os impasses hoje vividos.

Reforma política

Há, porém, uma barreira para a mudança de regime: a baixa qualidade de nossa representação.

Não dispomos de um corpo parlamentar ajustado ao modelo parlamentarista. Ademais, não há condições de se estabelecer um regime parlamentarista sob o gigantesco balcão que acolhe 35 partidos.

Para a convivência entre os conjuntos da situação e da oposição, o Parlamento carece de um leque de não mais que 7 a 8 partidos. As correntes de pensamento e opinião estariam bem representadas.

O modelo brasileiro continuaria a preservar valores de nossa cultura política. A figura do presidente, por exemplo, ao contrário do simbolismo que detém no modelo alemão, poderia abarcar alguns poderes administrativos.

É o caso de adotarmos modelagem similar ao parlamentarismo francês, também chamado de semi-presidencialismo, um sistema híbrido com essas características: eleição pelo voto direto do presidente da República para um mandato de 7 anos, com direito à reeleição; um gabinete presidido por um Primeiro-Ministro nomeado pelo presidente dentre os deputados do partido ou coalizão majoritária.

O presidente ocupa-se da política externa e da defesa nacional e preside o Conselho de Ministros; nomeia e demite os ministros atendendo solicitação do Primeiro-Ministro.

Será difícil? Sim, mas não impossível.

O nosso conjunto parlamentar precisa enxergar o amanhã, não apenas as conveniências pessoais. Já tivemos experiências parlamentaristas no passado: no 1º e 2º Reinados, com o imperador exercendo o Poder Moderador e, entre 1961 a 1963, no governo João Goulart.

Ocorre que nossa tradição presidencialista sempre deu as cartas. O poder da caneta presidencial (também de governadores e prefeitos) exerce enorme atração.

O roteiro é este: reforma política limitando o número de partidos, implantação do sistema majoritário (ou misto) para a eleição de representantes, adensamento doutrinário das siglas, entre outros aspectos.

O fato é que o país chegou ao final da linha em matéria de vícios, distorções, contrafações e mazelas. Não haverá instituição forte se a política não mudar seus costumes. A taxa de corrupção seria menor com instituições sólidas.

As crises políticas não chegariam a abalar o país. A democracia brasileira daria um salto de qualidade.


* Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação


José Álvaro Moisés: Qual reforma política?

Reforma Política: Eleitores precisam se envolver e acompanhar as mudanças, sob pena de serem enganados

O sistema político brasileiro precisa ser urgentemente reformado. O modelo de financiamento de campanhas eleitorais vigente até há pouco, baseado principalmente na participação de empresas privadas, alimentou a corrupção, degradou o sistema e desequilibrou a competição eleitoral. Agora, sob o impacto das revelações da Operação Lava Jato, a urgência se reatualizou, pois o modelo de financiamento não está resolvido. Mas o momento é adequado para a reforma? Ela não será feita sob a égide do instinto de autodefesa dos citados em delações da Odebrecht e outras empresas que corromperam a Petrobrás?

O risco é evidente. As recentes articulações do presidente Michel Temer com o ministro Gilmar Mendes, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e os presidentes Eunício Oliveira, do Senado, e Rodrigo Maia, da Câmara dos Deputados – os últimos dois incluídos nas delações –, iniciadas por ocasião do envio da segunda lista do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ao Supremo Tribunal Federal (STF), suscitaram dúvidas extremamente preocupantes. Os Poderes da República precisam, sem dúvida, interagir e se entender para tirar o País da crise. Mas sobre isso, por que esses atores não agiram antes? Por que deixaram sem resposta os clamores da sociedade, que, desde 2013, sinalizou a sua insatisfação, se não com a democracia, com os governos do dia e com o funcionamento das instituições de representação?

O problema é que não existe um momento ideal para a reforma ser feita. Sempre haverá forças políticas a querer influenciá-la em defesa de seus interesses. E o argumento de suposta ilegitimidade do governo e do Congresso para enfrentar a questão é pueril, além de ser conceitualmente equivocado. O presidente Michel Temer e a maioria dos membros do Parlamento são impopulares, mas não é isso que define a sua legitimidade institucional, pois eles foram conduzidos às suas funções atuais pelo voto popular. Aliás, é por isso que no caso do processo de abuso de poder nas eleições de 2014, em exame pelo TSE, Temer é citado ao lado da ex-presidente Dilma Rousseff, e não em separado, pois ambos foram eleitos pelos mesmos eleitores numa chapa comum.

No caso da reforma, o que importa saber é do que se trata, ou seja, qual é a sua natureza. É isso que define sua pertinência. Nesse sentido, algumas questões são mais importantes do que outras: em primeiro lugar, é preciso ter claro que manter a proibição da influência do poder econômico nas eleições é fundamental. Como decidiu a maioria do STF em 2015, empresas não são cidadãos e não devem ter o direito de influir em eleições. Mas a alternativa do financiamento público precisa ser examinada com cuidado. A proposta que galvaniza o apoio dos políticos, no momento, é a que mudaria o sistema de representação proporcional com lista aberta para o de lista fechada. Isso pode ser positivo se vier a facilitar o fortalecimento dos partidos e a devida apresentação de seu perfil programático aos eleitores, cuja escolha, a exemplo do que ocorre em outras democracias, se tornaria mais qualitativa.

Mas, formulada para defender os políticos da Lava Jato, pode acabar fraudando a reforma. Isso por duas razões: primeiro, porque as decisões partidárias são tomadas, na maioria dos casos, de modo autocrático, sem garantir a liberdade de escolha de alternativas fora do desejo de suas oligarquias; e, segundo, porque a ideia de lista preordenada, destinada a reservar lugar prioritário aos atuais parlamentares – muitos dos quais querem manter o foro privilegiado para melhor se defenderem de suas acusações –, é anticonstitucional, pois quebra a isonomia com que os membros dos partidos podem disputar seu direito de se candidatar a cargos públicos.

Afora isso, é preciso ter em conta que ao lado dos problemas de financiamento de campanhas há outras distorções que comprometem o desempenho das instituições de representação. É o caso, em especial, do sistema de coligações eleitorais, cujos resultados tornam a escolha dos eleitores muitas vezes oposta à sua vontade original. Por outro lado, o fato de o voto de eleitores de alguns Estados valer mais que o de outros – por causa dos tetos de representação – agrava ainda mais a distância entre representados e representantes. A isso se somam características do voto em lista aberta, que, além de estimular a competição de candidatos do mesmo partido, enfraquece o sistema partidário em seu conjunto. Essas questões têm de estar na agenda da reforma.

Por último, duas questões importantes que também precisam ser examinadas pelo Congresso. Por uma parte, o debate atual não está dando atenção à necessidade imprescindível de limitar os gastos das campanhas. Não faz nenhum sentido que um país como o Brasil gaste as somas astronômicas registradas nas eleições majoritárias de 2014. Por outro lado, a reforma do sistema eleitoral precisa estar conectada com a necessidade de se resolver a fragmentação partidária atual, cujos efeitos dificultam a governabilidade. Para isso o Congresso tem de reexaminar as propostas de cláusula de barreira, ou de representação, para os partidos políticos. Isso levaria a que o sistema partidário brasileiro se consolidasse num patamar mais razoável, longe dos mais de 30 partidos de hoje.

Sem essas mudanças a reforma poderá ampliar a frustração e a crítica dos cidadãos ao sistema político. É certo que a democracia não está em questão no Brasil, mais de dois terços de entrevistados de pesquisas de opinião a defendem; o que está em questão é a sua qualidade e para enfrentar isso a reforma do sistema político é imprescindível. Mas, em vez de deixar para os políticos sozinhos a tarefa, os eleitores e a opinião pública precisam se envolver e acompanhar em que direção a reforma está sendo conduzida, sob pena de serem enganados.

* JOSÉ ÁLVARO MOISÉS É PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,qual-reforma-politica,70001704709

 

 


Roberto Freire: Por um Brasil parlamentarista

Com a recente instalação de uma comissão especial na Câmara dos Deputados, a reforma política voltou à pauta do Congresso Nacional. Após o desfecho do grave impasse político enfrentado pelo país, com o processo democrático e constitucional do impeachment que levou ao fim do governo de Dilma Rousseff, este é um bom momento para que os parlamentares se debrucem sobre mudanças necessárias que tornem o sistema político-eleitoral brasileiro mais avançado e dinâmico. A principal delas é justamente aquela que permite a superação de crises agudas sem traumas institucionais: o parlamentarismo.

No ano passado, participei de algumas sessões e audiências públicas em uma outra comissão especial da Câmara que analisava propostas para a reforma política. Lamentavelmente, na ocasião, houve pouquíssimos avanços e quase nenhuma alteração substancial – apenas algumas modificações pontuais ou propostas descabidas que configuravam uma verdadeira “contrarreforma”.

Em minhas intervenções, defendi que fosse enviada ao plenário a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 20/1995, de autoria do então deputado Eduardo Jorge, que institui o parlamentarismo no Brasil. O texto está pronto para ser votado desde 2001 e, caso aprovado, poderia entrar em vigor talvez já para 2018, após o encerramento do mandato do presidente Michel Temer. No regime parlamentarista, quanto maior a crise, mais radical é a solução.

Mesmo no processo deflagrado contra a ex-presidente da República, o impedimento votado pela maioria acachapante dos deputados e senadores ganhou contornos do “voto de confiança” característico do parlamentarismo. Só que, neste sistema, a queda do gabinete se dá sem que haja turbulência política ou institucional. Quando não é possível formar uma nova maioria, o Congresso é dissolvido e novas eleições são convocadas, o que proporciona uma participação maior da cidadania.

Outro ponto fundamental que a comissão deveria tratar é o acesso das legendas aos recursos do Fundo Partidário e ao tempo de propaganda eleitoral no rádio e na televisão. O maior problema da democracia brasileira não é a quantidade de partidos em funcionamento. Partido político é direito da cidadania e não deve ser tutelado, regulamentado ou restringido pelo Estado. Impedir a criação de novas agremiações, além de antidemocrático e inconstitucional, não passa de uma solução fácil e equivocada para um problema complexo.

O que se deve fazer para corrigir graves distorções é limitar o acesso indiscriminado aos recursos do Fundo e ao tempo de TV. Diante da enorme facilidade para que os partidos tenham acesso a esse montante, forma-se um amplo mercado de negociações espúrias à custa do dinheiro do contribuinte. De certa forma, é algo semelhante ao que ocorre no sindicalismo, dependente dos recursos provenientes das contribuições sindicais compulsórias, e também com as igrejas e templos religiosos, que muitas vezes se transformam em um negócio promíscuo em função da imunidade tributária garantida pela legislação.

Ao invés de restringir a criação de novos partidos, nossa proposta é de que apenas as legendas que alcançarem uma representação mínima na Câmara dos Deputados tenham acesso aos recursos do Fundo e à TV. Seria criada, então, uma espécie de cláusula de barreira, mas não aos mandatos. Os partidos que não obtivessem o índice mínimo funcionariam normalmente, assim como o parlamentar eleito exerceria o seu mandato, mas essas legendas ficariam sem a verba partidária e o tempo de propaganda televisiva.

A reforma política de que o Brasil precisa não será feita a partir de propostas paliativas ou remendos inócuos que nada resolvem. A essência do atual modelo precisa ser modificada, e a principal mudança será a instituição de um regime mais dinâmico, flexível e democrático, com partidos fortes, não tutelados, e uma sociedade mais atuante e participativa. O parlamentarismo é o primeiro passo, e também o mais importante, de uma longa caminhada. (Diário do Poder – 17/11/2016)

Roberto Freire é deputado federal por São Paulo e presidente nacional do PPS


Fonte: pps.org.br