reforma política

Bolívar Lamounier: Reforma política, muito barulho por quase nada

Confio em que Shakespeare não se amofinará por eu plagiar o título de sua celebrada comédia (Much ado about nothing). Creio, mesmo, que o bardo me concederá um duplo perdão, pois eu bem preferiria relembrar as peripécias dos amantes de Messina a discorrer sobre as frustrações que temos colhido, ano após ano, toda vez que o Congresso Nacional discute a chamada reforma política.

Para não parecer birrento, faço duas ressalvas iniciais. De um lado, minha eterna frustração se deve à timidez das propostas, ao chamado “fatiamento”, à falta de uma visão mais abrangente. Sabemos todos que o futuro econômico e social do Brasil está profundamente comprometido pela ruindade de nosso político. Quando vamos encarar a sério as deficiências de nossos sistemas eleitoral e de governo, o gigantismo paralisante do Congresso Nacional (três senadores por Estado!), as desproporções entre bancadas e populações estaduais e talvez, sobretudo, a necessidade de cortar a cabeça do nosso Estado-camarão, descentralizando e instituindo uma Federação viável e funcional?

Em segundo lugar, ressalvo – como é justo – a importância de uma das alterações cogitadas: o fim das coligações entre partidos nas eleições proporcionais (deputados federais e estaduais e vereadores). Devia ser um gênio o sujeito que pela primeira vez concordou com esse tipo de coligação, nele condensando uma notável coleção de falcatruas. Na quase totalidade dos casos, os partidos que recorrem a esse mecanismo o fazem apenas para somar seus votos com o intuito de atingir o chamado cociente eleitoral (a divisão do total de votos válidos pelo número de cadeiras a preencher em cada Estado). Como em todos os sistemas baseados na representação proporcional, só os partidos que atingem tal cociente (ou seja, que elegem pelo menos um parlamentar) participam das divisões sucessivas mediante as quais se dá a alocação de suas respectivas “sobras” de votos. E aí é que se dá o pulo do gato. Para o fim a que acabo de me referir, uma coligação é equiparada a um partido, por díspares que sejam suas ideologias, seus programas e objetivos políticos. Nada garante que se mantenham unidos após a eleição.

Outra falcatrua, à qual meus leitores talvez não tenham dado a devida atenção, é que os sistemas de representação proporcional foram inventados para permitir certo grau de diferenciação entre partidos, ou seja, a formação de identidades propriamente partidárias, ao contrário do que tende a ocorrer no chamado voto distrital puro, que personaliza muito mais a eleição, uma vez que a grande circunscrição nacional ou estadual é subdividida em circunscrições menores, cada uma elegendo apenas um candidato. Ciente da balbúrdia em que se transformou a nossa organização partidária, o leitor pode ficar com uma pulga atrás da orelha, pois já se acostumou a entendê-la como uma decorrência direta do método proporcional.

A pulga, quero dizer, a dúvida é compreensível, mas em termos históricos e teóricos o fato é indiscutível: a tendência mais partidária da representação proporcional contrapõe-se à mais individual do voto distrital (representação majoritária uninominal). Louvem-se, portanto, o fim das coligações e a adoção do salutar princípio do “cresça, depois apareça”: ou seja, a exigência de um lastro mais sólido dos partidos que se fazem presentes nos Legislativos, nos três níveis da Federação.

Não acolho com o mesmo entusiasmo as outras alterações propostas. Como registrei neste espaço poucos dias atrás, todo ano, quando nos pomos a discutir a reforma política, nosso Congresso permite entrever uma estranha inclinação a primeiro tentar agir, deixando para pensar depois. Esquiva-se, invariavelmente, de primeiro responder às questões-chave: reformar o quê, como, para quê? Em relação ao sistema eleitoral, por exemplo, em vez de responder a essas singelas indagações, a Câmara dos Deputados pôs sobre a mesa a esdrúxula ideia do “distritão”, como se substituir o vigente modelo de representação proporcional por uma fórmula plurimajoritária fosse a coisa mais simples do mundo. Graças aos céus, os nobres integrantes da Comissão da Reforma Política detonaram tal proposta com a mesma ligeireza que evidenciaram ao colocá-la em discussão.

Em seguida, quando se concentraram na chamada cláusula de barreira, deixei-me momentaneamente levar por um equivocado júbilo, querendo crer que os parlamentares se haviam finalmente convencido da necessidade de frear drasticamente a proliferação de siglas, simplificando e estabilizando a estrutura partidária, a exemplo do que fez a Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, onde um partido só tem acesso ao Bundestag se obtiver 5% da votação nacional (ou, desde 1957, três mandatos pessoais diretos, nos distritos uninominais). Começa que os nossos congressistas, a fim de tornarem o assunto mais simpático, evitaram a aspereza germânica de Sperr, que deve ser traduzido como barreira, mecanismo de exclusão, e rebatizaram o referido mínimo de votos como cláusula de desempenho. Mais importante, entretanto, é que a ideia de excluir nem lhes passou pela cabeça. Na verdade, o objetivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 282 é outro. É estabelecer que alguns partidos são mais iguais que outros. Teremos, de um lado, os partidos que, ao atingir a “barreira”, tornam-se membros plenos da Câmara, com direito ao funcionamento parlamentar e aos recursos financeiros do Fundo Partidário; e, do outro, aqueles que, não a tendo atingido, ficam com o direito de “funcionar”, mas sem acesso ao financiamento público e demais benesses. É fácil de prever a enxurrada de ações que vai inundar o Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade dessa cláusula.

Quando vamos encarar a sério as deficiências de nossos sistemas de eleição e de governo?

Confio em que Shakespeare não se amofinará por eu plagiar o título de sua celebrada comédia (Much ado about nothing). Creio, mesmo, que o bardo me concederá um duplo perdão, pois eu bem preferiria relembrar as peripécias dos amantes de Messina a discorrer sobre as frustrações que temos colhido, ano após ano, toda vez que o Congresso Nacional discute a chamada reforma política.

Para não parecer birrento, faço duas ressalvas iniciais. De um lado, minha eterna frustração se deve à timidez das propostas, ao chamado “fatiamento”, à falta de uma visão mais abrangente. Sabemos todos que o futuro econômico e social do Brasil está profundamente comprometido pela ruindade de nosso político. Quando vamos encarar a sério as deficiências de nossos sistemas eleitoral e de governo, o gigantismo paralisante do Congresso Nacional (três senadores por Estado!), as desproporções entre bancadas e populações estaduais e talvez, sobretudo, a necessidade de cortar a cabeça do nosso Estado-camarão, descentralizando e instituindo uma Federação viável e funcional?

Em segundo lugar, ressalvo – como é justo – a importância de uma das alterações cogitadas: o fim das coligações entre partidos nas eleições proporcionais (deputados federais e estaduais e vereadores). Devia ser um gênio o sujeito que pela primeira vez concordou com esse tipo de coligação, nele condensando uma notável coleção de falcatruas. Na quase totalidade dos casos, os partidos que recorrem a esse mecanismo o fazem apenas para somar seus votos com o intuito de atingir o chamado cociente eleitoral (a divisão do total de votos válidos pelo número de cadeiras a preencher em cada Estado). Como em todos os sistemas baseados na representação proporcional, só os partidos que atingem tal cociente (ou seja, que elegem pelo menos um parlamentar) participam das divisões sucessivas mediante as quais se dá a alocação de suas respectivas “sobras” de votos. E aí é que se dá o pulo do gato. Para o fim a que acabo de me referir, uma coligação é equiparada a um partido, por díspares que sejam suas ideologias, seus programas e objetivos políticos. Nada garante que se mantenham unidos após a eleição.

Outra falcatrua, à qual meus leitores talvez não tenham dado a devida atenção, é que os sistemas de representação proporcional foram inventados para permitir certo grau de diferenciação entre partidos, ou seja, a formação de identidades propriamente partidárias, ao contrário do que tende a ocorrer no chamado voto distrital puro, que personaliza muito mais a eleição, uma vez que a grande circunscrição nacional ou estadual é subdividida em circunscrições menores, cada uma elegendo apenas um candidato. Ciente da balbúrdia em que se transformou a nossa organização partidária, o leitor pode ficar com uma pulga atrás da orelha, pois já se acostumou a entendê-la como uma decorrência direta do método proporcional.

A pulga, quero dizer, a dúvida é compreensível, mas em termos históricos e teóricos o fato é indiscutível: a tendência mais partidária da representação proporcional contrapõe-se à mais individual do voto distrital (representação majoritária uninominal). Louvem-se, portanto, o fim das coligações e a adoção do salutar princípio do “cresça, depois apareça”: ou seja, a exigência de um lastro mais sólido dos partidos que se fazem presentes nos Legislativos, nos três níveis da Federação.

Não acolho com o mesmo entusiasmo as outras alterações propostas. Como registrei neste espaço poucos dias atrás, todo ano, quando nos pomos a discutir a reforma política, nosso Congresso permite entrever uma estranha inclinação a primeiro tentar agir, deixando para pensar depois. Esquiva-se, invariavelmente, de primeiro responder às questões-chave: reformar o quê, como, para quê? Em relação ao sistema eleitoral, por exemplo, em vez de responder a essas singelas indagações, a Câmara dos Deputados pôs sobre a mesa a esdrúxula ideia do “distritão”, como se substituir o vigente modelo de representação proporcional por uma fórmula plurimajoritária fosse a coisa mais simples do mundo. Graças aos céus, os nobres integrantes da Comissão da Reforma Política detonaram tal proposta com a mesma ligeireza que evidenciaram ao colocá-la em discussão.

Em seguida, quando se concentraram na chamada cláusula de barreira, deixei-me momentaneamente levar por um equivocado júbilo, querendo crer que os parlamentares se haviam finalmente convencido da necessidade de frear drasticamente a proliferação de siglas, simplificando e estabilizando a estrutura partidária, a exemplo do que fez a Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, onde um partido só tem acesso ao Bundestag se obtiver 5% da votação nacional (ou, desde 1957, três mandatos pessoais diretos, nos distritos uninominais). Começa que os nossos congressistas, a fim de tornarem o assunto mais simpático, evitaram a aspereza germânica de Sperr, que deve ser traduzido como barreira, mecanismo de exclusão, e rebatizaram o referido mínimo de votos como cláusula de desempenho. Mais importante, entretanto, é que a ideia de excluir nem lhes passou pela cabeça. Na verdade, o objetivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 282 é outro. É estabelecer que alguns partidos são mais iguais que outros. Teremos, de um lado, os partidos que, ao atingir a “barreira”, tornam-se membros plenos da Câmara, com direito ao funcionamento parlamentar e aos recursos financeiros do Fundo Partidário; e, do outro, aqueles que, não a tendo atingido, ficam com o direito de “funcionar”, mas sem acesso ao financiamento público e demais benesses. É fácil de prever a enxurrada de ações que vai inundar o Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade dessa cláusula.

Quando vamos encarar a sério as deficiências de nossos sistemas de eleição e de governo?

Confio em que Shakespeare não se amofinará por eu plagiar o título de sua celebrada comédia (Much ado about nothing). Creio, mesmo, que o bardo me concederá um duplo perdão, pois eu bem preferiria relembrar as peripécias dos amantes de Messina a discorrer sobre as frustrações que temos colhido, ano após ano, toda vez que o Congresso Nacional discute a chamada reforma política.

Para não parecer birrento, faço duas ressalvas iniciais. De um lado, minha eterna frustração se deve à timidez das propostas, ao chamado “fatiamento”, à falta de uma visão mais abrangente. Sabemos todos que o futuro econômico e social do Brasil está profundamente comprometido pela ruindade de nosso político. Quando vamos encarar a sério as deficiências de nossos sistemas eleitoral e de governo, o gigantismo paralisante do Congresso Nacional (três senadores por Estado!), as desproporções entre bancadas e populações estaduais e talvez, sobretudo, a necessidade de cortar a cabeça do nosso Estado-camarão, descentralizando e instituindo uma Federação viável e funcional?

Em segundo lugar, ressalvo – como é justo – a importância de uma das alterações cogitadas: o fim das coligações entre partidos nas eleições proporcionais (deputados federais e estaduais e vereadores). Devia ser um gênio o sujeito que pela primeira vez concordou com esse tipo de coligação, nele condensando uma notável coleção de falcatruas. Na quase totalidade dos casos, os partidos que recorrem a esse mecanismo o fazem apenas para somar seus votos com o intuito de atingir o chamado cociente eleitoral (a divisão do total de votos válidos pelo número de cadeiras a preencher em cada Estado). Como em todos os sistemas baseados na representação proporcional, só os partidos que atingem tal cociente (ou seja, que elegem pelo menos um parlamentar) participam das divisões sucessivas mediante as quais se dá a alocação de suas respectivas “sobras” de votos. E aí é que se dá o pulo do gato. Para o fim a que acabo de me referir, uma coligação é equiparada a um partido, por díspares que sejam suas ideologias, seus programas e objetivos políticos. Nada garante que se mantenham unidos após a eleição.

Outra falcatrua, à qual meus leitores talvez não tenham dado a devida atenção, é que os sistemas de representação proporcional foram inventados para permitir certo grau de diferenciação entre partidos, ou seja, a formação de identidades propriamente partidárias, ao contrário do que tende a ocorrer no chamado voto distrital puro, que personaliza muito mais a eleição, uma vez que a grande circunscrição nacional ou estadual é subdividida em circunscrições menores, cada uma elegendo apenas um candidato. Ciente da balbúrdia em que se transformou a nossa organização partidária, o leitor pode ficar com uma pulga atrás da orelha, pois já se acostumou a entendê-la como uma decorrência direta do método proporcional.

A pulga, quero dizer, a dúvida é compreensível, mas em termos históricos e teóricos o fato é indiscutível: a tendência mais partidária da representação proporcional contrapõe-se à mais individual do voto distrital (representação majoritária uninominal). Louvem-se, portanto, o fim das coligações e a adoção do salutar princípio do “cresça, depois apareça”: ou seja, a exigência de um lastro mais sólido dos partidos que se fazem presentes nos Legislativos, nos três níveis da Federação.

Não acolho com o mesmo entusiasmo as outras alterações propostas. Como registrei neste espaço poucos dias atrás, todo ano, quando nos pomos a discutir a reforma política, nosso Congresso permite entrever uma estranha inclinação a primeiro tentar agir, deixando para pensar depois. Esquiva-se, invariavelmente, de primeiro responder às questões-chave: reformar o quê, como, para quê? Em relação ao sistema eleitoral, por exemplo, em vez de responder a essas singelas indagações, a Câmara dos Deputados pôs sobre a mesa a esdrúxula ideia do “distritão”, como se substituir o vigente modelo de representação proporcional por uma fórmula plurimajoritária fosse a coisa mais simples do mundo. Graças aos céus, os nobres integrantes da Comissão da Reforma Política detonaram tal proposta com a mesma ligeireza que evidenciaram ao colocá-la em discussão.

Em seguida, quando se concentraram na chamada cláusula de barreira, deixei-me momentaneamente levar por um equivocado júbilo, querendo crer que os parlamentares se haviam finalmente convencido da necessidade de frear drasticamente a proliferação de siglas, simplificando e estabilizando a estrutura partidária, a exemplo do que fez a Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, onde um partido só tem acesso ao Bundestag se obtiver 5% da votação nacional (ou, desde 1957, três mandatos pessoais diretos, nos distritos uninominais). Começa que os nossos congressistas, a fim de tornarem o assunto mais simpático, evitaram a aspereza germânica de Sperr, que deve ser traduzido como barreira, mecanismo de exclusão, e rebatizaram o referido mínimo de votos como cláusula de desempenho. Mais importante, entretanto, é que a ideia de excluir nem lhes passou pela cabeça. Na verdade, o objetivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 282 é outro. É estabelecer que alguns partidos são mais iguais que outros. Teremos, de um lado, os partidos que, ao atingir a “barreira”, tornam-se membros plenos da Câmara, com direito ao funcionamento parlamentar e aos recursos financeiros do Fundo Partidário; e, do outro, aqueles que, não a tendo atingido, ficam com o direito de “funcionar”, mas sem acesso ao financiamento público e demais benesses. É fácil de prever a enxurrada de ações que vai inundar o Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade dessa cláusula.

* BOLÍVAR LAMOUNIER É CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA E MEMBRO DAS ACADEMIAS BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E PAULISTA DE LETRAS


Revista PD #48: A centro-esquerda deve unir o brasil

Partidos da centro-esquerda, como o PPS, o PSB, o PV e a Rede, devem buscar a união de todos os brasileiros que se reconhecem em um projeto democrático de prosperidade econômica e justiça social para o Brasil 

Por Júlio Martins
Revista Política Democrática #48

Devem fugir da disputa esquerda x direita que divide o país e que tem impedido a união de amplas forças democráticas. Essa convergência é necessária para que o país vença os gigantescos desafios do presente.

É preciso superar a polarização que se estabeleceu desde as eleições de 1994. De um lado, a aliança PSDB-PFL, que governou até 2002. De outro, a coligação PT-PMDB, que liderou o país até 2016. Tal polarização dividiu os progressistas e favoreceu ao atraso. Impediu uma agenda comum dos democratas social-reformistas para o avanço de várias reformas capazes de elevar a qualidade de vida do povo de maneira significativa e sustentável.

Para unir todos os democratas social-reformistas do Brasil, a centro-esquerda deve evitar dois extremos. De um lado, refutar uma aliança sem bases programáticas, como a que se verificou recentemente, quando o PT se uniu à direita (PP de Maluf) e à centro-direita (PMDB sarneysista) para combater o centro (PSDB) e a centro-esquerda (PPS, PSB, PV e Rede).

O resultado de tal aliança fisiológica foi desnudada pela Lava-Jato: um gigantesco esquema patrimonialista de utilização da coisa pública para fins privados e partidários. Um projeto de poder para um partido único, no lugar de um projeto para o país, negociado consensualmente por uma frente social e política multipartidária.

Além do desastre do mais profundo e mais duradouro ciclo recessivo da história da República, com graves consequências sociais de 14 milhões de desempregados e de queda da arrecadação para o financiamento dos serviços públicos na União, nos Estados e municípios, tal aliança populista desmoralizou perigosamente instituições democráticas fundamentais da democracia representativa, como os partidos e o Congresso, e abriu espaço para a emergência de candidaturas reacionárias e parafascistas.

Por outro lado, pela sua experiência histórica, partidos como o PPS, o PV e o PSB não devem avalizar frentes políticas estreitas, restritas à esquerda e à extrema-esquerda, com um programa sectário que não expresse, nem de longe, o consenso das forças democráticas do país.

Tal proposta, ao contrário da intenção de seus formuladores, diminui o poder transformador dos socialistas, ao colocar a esquerda política num gueto, isolada da maioria da sociedade e das forças democráticas, favorecendo as forças conservadoras, ainda que inadvertidamente.

É impossível governar o Brasil baseado tão somente em setores de esquerda e de extrema-esquerda, minoritários na sociedade e no Congresso. Aferrados a preconceitos ideológicos, as propostas de tais grupos estão presas ao passado e são caminho certo para o desastre econômico, com as consequências negativas que vivemos hoje no Brasil e em outros países da América Latina. Em vez de unir, elas dividem os brasileiros.

Sem exclusão de nenhuma força política democrática e reformista, a centro-esquerda deve mais uma vez, a exemplo da eleição de 2014, propor a união de socialistas, socialdemocratas e liberal-democratas em torno de um novo pacto político e social, com foco na transparência e fortalecimento da democracia representativa, no desenvolvimento sustentável e na promoção do bem-estar social.

A centro-esquerda deve superar a dicotomia estereotipada esquerda x direita. Ao mesmo tempo em que afirme sua responsabilidade social, em defesa de políticas que melhorem a qualidade dos serviços públicos em educação, saúde, transportes e moradia, deve mostrar seu compromisso com a responsabilidade fiscal e com um ambiente econômico necessário a um desenvolvimento autossustentado e ecologicamente saudável.

Aqui também deve evitar dois extremos. De um lado, rejeitar o Estado mínimo e o capitalismo sem regulamentação social em detrimento do interesse público. De outro lado, deve se distanciar de qualquer orientação populista irresponsável, que ponha em risco o equilíbrio das contas públicas, fundamental para uma retomada do crescimento em base sólidas.

Por cima de estreitezas ideológicas, é preciso unir cidadãos de diferentes e variados pensamentos para a tarefa comum de aperfeiçoar as instituições democráticas, com reformas políticas que ampliem o poder de controle dos cidadãos sobre o sistema político, os partidos, o Congresso, o governo e o poder econômico-financeiro.

A centro-esquerda tem estrutura, quadros e lideranças capazes de dialogar e unir o Brasil para os desafios do século XXI, como a integração soberana e competitiva do país na economia global; o enfrentamento do desemprego estrutural; a superação da crise do clima pela reconversão tecnológica, pelo uso de energias renováveis, pela preservação da natureza e pelo consumo consciente; a construção e o fortalecimento de instituições globais e multilaterais capazes de incentivar o diálogo e a cooperação econômica entre as nações e vencer as estreitezas nacionais, a
xenofobia e o terrorismo.

Apostar na polarização esquerda x direita, na velha disputa PT x PSDB, é apostar no passado, em mais do mesmo. A centro-esquerda deve dar respostas do futuro para as novas demandas da sociedade brasileira e do mundo.

* Júlio Martins é ensaísta e jornalista


Marco Aurélio Nogueira: A reforma que não cabe em si

Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendimento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonismo político imediato quanto no âmbito social mais amplo

Enquanto candidatos e postulantes a candidato cruzam o País em busca de cacife e visibilidade, no dia a dia da política o desacerto é grande. Fala-se muito, esclarece-se pouco.

É a reforma política, essa musa maltratada, menina dos olhos e objeto de desejo dos operadores políticos, que ressurge sempre que as brechas se fecham. Tratada como cataplasma universal, antídoto contra os males que afligiriam partidos, parlamentares e eleitores, funciona entre nós como um alarme de repetição. Ao se aproximarem as eleições, ele dispara. Alega-se que é para “salvar a política” e “resgatar o sistema”, mas na verdade o sangue ferve para que se ache um jeito de arrumar dinheiro com que financiar campanhas e facilitar a (re)eleição dos interessados.

Com isso, a agenda nacional é invadida por uma sucessão caótica de soluções salvacionistas para “melhorar a política”. O quadro fica tão confuso que se chega ao ponto de concluir que o melhor talvez seja deixar tudo como está para ver como é que fica.

Há duas maneiras de pensar as relações entre reforma e política. Falamos em “reforma política” quando queremos propor que as regras do jogo sejam modificadas para que respondam melhor às exigências da sociedade, sempre dinâmica e mutante. E devemos falar em “reforma da política” quando quisermos postular que o modo como se faz política precisa ser alterado.

Essas duas maneiras deveriam caminhar juntas, alimentando-se reciprocamente. O postulado institucionalista, bastante em voga, prega que condutas e valores são fortemente influenciados pelas instituições: as regras fazem o ator, mediante restrições, condicionamentos e incentivos. Isso, porém, nem sempre é verdade, ou não é verdade absoluta.

Sistemas concebidos para permitir a equilibrada representação das distintas propostas políticas – como ocorre com os sistemas eleitorais proporcionais – não levam a que necessariamente todas as propostas se façam representar, caso os mais fortes ajam de forma predatória ou degradem as disputas eleitorais. O voto distrital, por exigir a concentração dos votos em territórios determinados, promove uma inflexão localista e desestimula a discussão política geral, mas não impede que os partidos apresentem candidatos ideológicos e convidem os eleitores a fugir da província. Nenhum sistema incentiva a corrupção, e a maioria deles cria dificuldades para que ela se expanda. Mas a corrupção pode crescer de forma exponencial, caso alguns germes não tratados ganhem força na sociedade, no meio político ou administrativo.

O sistema político brasileiro não parece funcionar bem. A “classe política” não se mostra preparada para lidar com os novos tempos. É atrasada. Há partidos em excesso, constituídos como projetos pessoais, graças a uma legislação permissiva. Isso dá sentido a cláusulas de desempenho, que podem coibir a formação oportunista de legendas inconsistentes. O sistema se reproduz e funciona, mas entrega pouco à sociedade, não produz resultados nem consensos, ou seja, precisamente aquilo que é vital para a democracia. Não surpreende que os cidadãos não o valorizem.

O problema a resolver nesta fase crítica da vida nacional não é de natureza sistêmica. Não tem que ver com regras. O presidencialismo, entre nós, criou uma tradição para si, e não será sua substituição por uma modalidade de parlamentarismo que fará com que tudo passe a funcionar melhor. Dizer que o parlamentarismo ajudará a que se construam partidos melhores é algo que merece ao menos a dúvida cautelar. Podemos trocar o voto proporcional pelo distrital, e acordarmos no dia seguinte com os mesmos políticos e as mesmas práticas de sempre. Reduzir o número de partidos e rever a legislação que os regulamenta injetará maior racionalidade ao sistema e reduzirá a fragmentação parlamentar, mas não produzirá obrigatoriamente partidos melhores e decisões mais equilibradas nem eliminará a mixórdia programática e a pobreza de ideias.

Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendimento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonismo político imediato quanto no âmbito social mais amplo. Está difícil imaginar como é que o País encontrará eixo.

Na sociedade civil, coração ético do Estado, a intolerância só faz crescer, quase não há mais ação comunicativa, ainda que as redes sejam a praia dos falantes. Aí dorme o problema principal, pois, sem um ativismo democrático que articule interesses e pressione por um futuro melhor, pouco haverá de correção de rumos e recuperação do Estado.

Poucos percebem que a democracia perde qualidade não tanto porque o sistema político derrapa, mas porque os cidadãos democráticos não conseguem se articular entre si. Os liberais democráticos não se projetam, a esquerda moderada e a centro-esquerda são inoperantes e a esquerda “pura”, radicalizada, é prisioneira de seus fantasmas e idiossincrasias, esperneia e joga palavras ao vento, mas pouco faz. Tais vetores da democracia estão se distanciando da sociedade, perdendo a credibilidade conquistada ao longo da democratização do País.

Sem energia mediadora e disposição para que se alcancem zonas consistentes de entendimento, poderemos fazer a mais bem bolada reforma política, que pouca coisa mudará. Em suma, ou reformamos a política (a cultura, as condutas, os valores) ou é melhor deixar tudo como está. A reforma de que necessitamos poderá ser beneficiada por ajustes pontuais, mas só terá como se completar se vier acompanhada de cidadãos mais bem educados politicamente, capazes de se fazerem representar por uma “classe política” mais qualificada em termos intelectuais e ético-políticos.

Avanços políticos substantivos estão associados a como as relações sociais se reproduzem, à estrutura produtiva, à qualidade da cidadania, às interações entre governantes e governados. Em que medida o sistema político pode responder por tais avanços é algo sempre em aberto.


Gaudêncio Torquato: Reforma política? Meia boca  

O mês de outubro está à vista, mas a tão proclamada reforma política mais uma vez está em plena escuridão. Ameaça ser um fiasco, após meses de debate. A Comissão encarregada de apresentar uma proposta se vê às voltas de um novelo sem fim.

Ora é um fundão de R$ 3,6 bilhões para financiar as campanhas eleitorais, defendido por parcela significativa do conjunto parlamentar, mas repudiado pelo olho crítico da sociedade; ora é o distritão, sistema que cada transforma as 17 unidades federativas em distritos, onde seriam eleitos os candidatos de maior votação.

A polêmica se estende por outros vetores, como a cláusula de desempenho, que exigirá dos partidos 1,5% dos votos nacionais (ou 9 deputados) em 9 Estados, no mínimo, em 2018, índice que, gradativamente, subirá 3% até 2030; ou o fim das coligações proporcionais, essa parceria que pode juntar alhos e bugalhos no mesmo caldeirão, pelo qual o voto dado em um candidato da esquerda poderá eleger um candidato da direita.

O que teremos para 2018? As duas propostas, aprovadas na Câmara, irão ao Senado.
Qualquer que seja o resultado a ser alcançado pelo projeto de reforma política, pode-se garantir que estará longe do ideal. Será uma reforma meia boca.

O fim das coligações proporcionais é certamente um ganho na composição do sistema eleitoral, na medida em que corrige inaceitável contrafação: o eleitor escolhe um determinado representante e acaba contribuindo para eleger outro, que detesta ou com quem não possui afinidade. O avanço é pequeno diante do arsenal de desvios e absurdos que pavimentam os caminhos do voto no Brasil.

O sistema de voto
Vejamos o sistema de voto. Dispomos, hoje, de duas modalidades: voto majoritário, adotado para eleger o presidente da República, governadores e senadores; e voto proporcional, empregado na votação de deputados (federais e estaduais) e vereadores.

No primeiro, os mais votados são eleitos. Já no segundo sistema, os votos dados ao candidato e à legenda a que pertence são contabilizados e distribuídos proporcionalmente de forma a formar um quociente eleitoral que contemplará determinado número de eleitos, dentro da cota do Estado.

Ou seja, o voto no sistema proporcional acaba ajudando outros candidatos da legenda (ou da coligação), não sendo jogados na cesta de lixo, se for usado o sistema majoritário puro. O distritão, por exemplo, selecionará os mais votados, de cima para baixo, até completar a cota da unidade federativa. Se o eleitor escolher alguém que ficou abaixo da lista dos eleitos, seu voto será simplesmente desconsiderado, não ajudando outros nomes da legenda.

Maneira de corrigir esse desvio seria o emprego do voto distrital misto, pelo qual metade das bancadas seria eleita pelo voto dado ao candidato por um distrito e metade seria escolhida pelo sistema proporcional, nos moldes atuais. Esses últimos são votados em todo o Estado.

A metodologia, reconhecidamente a mais democrática, abre uma questão complexa: como organizar o distrito? Como escolher os candidatos distritais e proporcionais?

O debate será intenso, não havendo tempo para se achar a fórmula a ser empregada no pleito de 2018. Fala-se, até, em um semi-distritão, pelo qual seriam atribuídos dois tipos de votos: um para o candidato, outro para a legenda.

Nesse caso, o voto à legenda ajudaria outros candidatos, de forma a melhorar a posição dos partidos, ao mesmo tempo em que prestigia a escolha do eleitor. Como se aduz, as alternativas geram discussões acirradas.

O distritão será apreciado esta semana.

Recursos
Quanto ao fundão de R$ 3,6 bilhões, trata-se de outra condenável proposta em discussão. Primeiro, pelo despropósito que carrega, porquanto o país está no fundo de um buraco de R$ 159 bilhões, déficit fiscal que o governo apresenta em seu orçamento. Tempos de dureza, tempos de desemprego, tempos de contenção de gastos não combinam com arrumações de extraordinários recursos para financiar campanhas eleitorais.

Em tempos de fartura e economia saudável, financiamento público seria a melhor alternativa, por propiciar distribuição igualitária de recursos, a partir das densidades eleitorais das siglas. Nesse momento, abrir os cofres do Tesouro para jogar nas campanhas parece afronta ao eleitorado.
Alternativa razoável seria a doação individual, com tetos estabelecidos, transparência e controle rígido por parte do Tribunal Eleitoral. A massa arrecadada poderia não ser suficiente para bancar os custos de uma campanha geral.

Como se vê, a questão é complexa. Voltar com o sistema de doação de recursos por empresas privadas seria recuperar as estruturas que resultaram na Operação Lava Jato. É o que se pensa.
O momento não aceita uma volta ao carcomido sistema. Daí a necessidade de repensar as campanhas eleitorais. O dispêndio com marketing é alto. As campanhas devem ser mais objetivas, menos exuberantes e mais voltadas ao debate político.

O desfile cosmético de caras e bocas está saturado.

Esses custos serão bem menores quando o país contar com menor número de siglas, entre 8 a 10. É um exagero uma moldura com 35 siglas registradas oficialmente, das quais 25 têm representação congressual. Daí a extrema necessidade de aplicação da regra proibindo a existência de partido sem votos.

A cláusula de barreira se faz necessária. A aprovação do índice de 1,5% dos votos para deputado federal, percentual a ser atingido em pelo menos nove Estados pelos partidos, já é um bom começo.

Mesmo com a janela aberta, a criação de federações, que permitirá aliança entre as pequenas siglas.

O fato é que a existência de poucos partidos deixará mais clara a tábua do pensamento nacional, repartido entre ideários de esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita. O eleitor encontraria facilmente conteúdos, programas e ideários de sua preferência.

A política seria mais racional. O eleitorado acompanharia de perto o desempenho de seus representantes. E se motivaria a participar de modo intenso no processo político, engajando-se na vida partidária.

A renovação política seria a consequência do esforço pelo aprimoramento de nossa democracia.

* Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação

 


Foto: Agência Brasil

Alon Feuerwerker: O nó da reforma política não está nos eleitos, está nos eleitores

Busca-se, pela enésima vez, o modelo político-eleitoral ótimo, que idealmente será alcançado por meio de uma reforma amplamente desejada. Mais uma vez, entretanto, a montanha parirá um rato. O motivo disso seria a resistência do sistema, supostamente maligno, a mudanças supostamente benignas. É a explicação óbvia. Convém desconfiar dela.

Não é tão difícil desenhar modelos “melhores” que o atual. Mas, melhores para quem? Um problema é a dispersão de objetivos, conforme as conveniências. Quem está no governo, ou acha que vai chegar lá, quer facilitar a governabilidade. Mas só para si próprio. Além disso, os papéis flutuam conforme a conjuntura momentânea de cada ator.

Há, por exemplo, uma maneira simples de dar ao presidente eleito maioria sólida na Câmara dos Deputados. Basta combinar alguma cláusula de barreira com o seguinte dispositivo: cada partido ou coligação elegeria em cada estado uma bancada, em lista aberta ou fechada, proporcional aos votos válidos recebidos ali pelo seu candidato à Presidência.

Aliás esse mecanismo poderia ser facilmente replicado para governadores e assembleias, e para prefeitos e câmaras.

A dispersão cairia dramaticamente. Se a lista fosse fechada, o custo da eleição de deputado ou vereador iria para perto de zero. Diversos objetivos dos reformistas seriam atingidos. Haveria inclusive mais legitimidade para algum semipresidencialismo, dada a conexão direta entre o voto para o executivo e a escolha dos parlamentares que aprovariam o gabinete.

Mas nada parecido com isso será implantado. Num sistema assim, o PT e aliados próximos fariam em 2018 no mínimo 40% da Câmara. Os aparentemente fanáticos da governabilidade do governo Temer sabem fazer conta, principalmente as de chegada. A governabilidade do próximo presidente é desejável, desde que ele tenha determinada agenda.

O nó da nova reforma política tem a ver com esse detalhe. A caçada atual pelo “bom sistema” é apenas cobertura para a busca de algum mecanismo que garanta o apoio da maioria do próximo Congresso à agenda deste governo. Agenda que, infelizmente para os proponentes, não tem apoio social suficiente para passar tranquila no Legislativo. Neste ou no próximo.

Essa tensão entre o que se gostaria de aprovar no Congresso e o que é possível, dada a correlação social de forças, é o caldo de cultura de uma farta mitologia. Um mito fascinante é o da renovação. Repete-se que o problema está na dificuldade de eleger pessoas novas, e portanto (sic) boas. É o contrário. Nossa Câmara tem uma das maiores taxas de renovação do mundo, perto de 50%. Na dos EUA costuma ser de 10%.

Com o voto distrital ou misto (distrital+lista), a taxa de renovação nas eleições para o Legislativo despencaria. É só olhar pelo mundo. Mas o distrital é apresentado como a melhor alternativa pelos mesmos que insistem na premência de renovar os quadros políticos, para que os maus deem lugar aos bons. E que por isso não aceitam o distritão.

Não perca seu tempo, caro leitor, procurando racionalidade nesse debate. O problema dos nossos reformistas é que em quase qualquer sistema a vontade da maioria acaba se infiltrando em algum grau na representação política. O nó do alto custo político das reformas liberais não está nos eleitos, mas nos eleitores. E esses são mais complicados de reformar.

Sem chance de dar certo

Privatizar faz algum sentido quando é para abater dívida que custa mais do que a estatal entrega para o Tesouro. Ou para ter dinheiro para investir. Vender ativo para cobrir despesa corrente é ruim. Vendido determinado bem, a despesa continuará ali. Os mesmos empresários que pedem isso ao governo demitiriam o executivo que fizesse algo assim nas suas empresas.

O Brasil foi programado para quebrar. As despesas estão protegidas, especialmente as mais indefensáveis. Quando a receita cai, resta caçar fontes extraordinárias para fechar as contas. Se o Brasil não existisse precisaria ser inventado: o Estado quebrou nos três níveis, mas festeja-se a existência de uma lei de responsabilidade fiscal.

* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

 


Revista PD #48: A crise que rouba nossas energias não pode sufocar a esperança 

Já lá se vão cerca de três anos de Operação Lava-Jato, e o mesmo período de tempo, pode-se dizer e contar, de uma crise sem paralelo em nossa história, perpassa, como num filme de terror, a mente de todos nós brasileiros que, independente de posicionamentos ante o governo ou dos partidos, sofremos, dia após dia, o desenrolar de novas denúncias e de mais e mais autoridades nelas envolvidas.

Por Chico Andrade
Revista Política Democrática #48

As consequências desta danosa e impiedosa conjuntura, todos sabemos, e a maioria de nós sofre na pele ou na carne: desemprego alarmante, desconfiança por parte de investidores e do empresariado, ausência de projetos estruturantes para alavancar o desenvolvimento e perda ou diluição dos poucos avanços que até aqui havíamos obtido nos indicadores sociais que medem a pobreza e a desigualdade no país.

E basta um breve olhar para nós mesmos a fim de constatar que estamos nadando à exaustão para enxergar a margem do rio, mas a correnteza é por demais forte e nos sufoca e deprime, pois, como atores e agentes políticos somos os primeiros navegantes dessa nau desgovernada. E de tanto que nos empurra para baixo, a crise também nos encaminha para um torpe e vulgar divisionismo. Briga-se nas redes sociais, briga-se entre grupos ou companheiros, briga-se até entre as famílias, e nesse mar de ódios e xingamentos mútuos um vento veloz parece nos empurrar de volta para a barbárie.

Mas a história ensina: é em tempos revoltos, como o que vivemos agora, que urge recuperar algo da racionalidade cívica que um dia nos tirou das trevas da ignorância e nos colocou no estágio humano. Ou vamos todos morrer abraçados, quando tantas mãos ainda temos para nos dar?

Somos um país, composto por cinco regiões diferentes em costumes, origens, etnias e recursos. Somos uma federação formada quase a fórceps, se recordarmos um pouco as lutas por libertação e independência política de nossa história imperial e republicana. Dos príncipes aos coronéis. Dos nobres aos desvalidos, dos senhores e dos escravos. De brancos, pretos e do que resta de nossos primeiros habitantes indígenas. De pobres e ricos..., mas, é importante lembrar, somos um país com uma só língua e com um potencial de riqueza ainda imensurável.

Por tudo isso, temos a obrigação de reagir e virar este jogo. Mas não há como pensar em curar uma doença grave se o médico não diagnosticar corretamente. No caso brasileiro, em que herdamos além do patrimonialismo, traços e modos que hoje nos caracterizam como o país dos jeitinhos e, agora, possivelmente, o lugar do mundo onde a corrupção se encalacrou e virou condição de governar em todos os entes federados, isso requer que façamos uma leitura a mais detalhada possível das causas desta tríplice crise (política, econômica e de valores), para construirmos a saída e, talvez, para uma efetiva reconstrução cívica da nação.

Passar por tudo isso tem sido extremamente doloroso, mas vivemos uma verdadeira revolução nos modos de fazer a política e, provavelmente, de governar. Daí ser imperativo o reconhecimento da falência definitiva desse modelo presidencialista de conchavos e hiperconcentrador de poderes implantado no país pelo golpe de 1889. Com ele, é certo, formamos uma Federação, mas não fomos capazes de formar uma nação que respeitasse a pluralidade de nossas ricas e diversas origens.

Presidencialismo
Com o presidencialismo agora chamado de coalizão, saímos sim do atraso agrário, mas não enfrentamos adequadamente nossas diferenças e desigualdades e nem semeamos estruturas sólidas para caminharmos juntos, povo e nação. É fato, que as lutas para pôr fim à ditadura militar, instalada em 1964, nos fizeram sonhar que, elegendo diretamente um líder ou um “super-herói” presidente da República, estaríamos dando um passo grande para a superação de nossos crônicos problemas sociais e consolidando a democracia entre nós.

A sociedade que lutou pelas Diretas, com este pueril sentimento libertário, e o país com suas elites econômicas sucedendo-se no poder, sem perda alguma, pareciam querer superar seus traumas e suas históricas diferenças sem mais confrontos. Mas ressentíamo-nos, talvez, de mitigar com mais atenção os desafios pactuais postos em campo para dar curso a uma democracia duradoura, plural e com pleno sentido de equidade social. Esquecemos, provavelmente, também, de mensurar o impacto da disseminação sem controle, da perspectiva de alcance, em breve tempo, de múltiplos direitos sociais e de cidadania, e muito provável, sem as necessárias contrapartidas de deveres claramente acordados.

Embora nossas primeiras experiências políticas, ainda como colônia e depois no Império, tenham sido exatamente as Câmaras de Vereadores, ou seja, o Parlamento, pouco acumulamos sobre a ideia do compartilhamento do poder. O ideário positivista plantado entre nós foi nos levando, cada vez mais, para uma perspectiva autoritária na ocupação do Poder Central e, se bem recordarmos, quase nada avançamos com o nobre espírito republicano, além do legado de verdadeiras castas ou grupos familiares encastelados em cada canto da República nestes quase cento e vinte e oito anos de presidencialismo, contando os intervalos de ditaduras e de presidentes eleitos “livre e democraticamente”.

Disseminamos, é verdade, entre nós a bela ideia de cidadania, mas, infelizmente, pouco ou quase nada fizemos para formar cidadãos. E hoje é de cidadãos ativos e plenos o que de mais precisamos para sairmos do atraso educacional e cultural em que nos encontramos.

Agora vivemos como o doente em fase aguda, perpassando os intervalos entre os efeitos da morfina e o adormecimento. Temos tantos partidos que é impossível a um jovem, ainda que de boa iniciação educacional, entender o porquê disso, já que, em ideias, quase nada a maioria se diferencia, além do indiscreto desejo de alçar ao poder para lá se locupletar.

Efeitos
A crise e seus nefastos efeitos colocaram na rua milhões de trabalhadores e trabalhadoras, fizeram centenas de milhares de pequenos e micros comerciantes e empreendedores desistirem de seus sonhos, afastaram de nós os investimentos externos tão necessários, colocaram o país novamente no rol da desconfiança, mundo afora. E ante mais de uma centena de altas autoridades denunciadas por corrupção ou desvios éticos e morais, entre as quais, senadores, governadores, deputados e até o presidente da República, gente de quase todos os partidos, o que fazemos, além de contemplar no Jornal Nacional os capítulos renitentes da novela da Lava-Jato ou de ver governantes e autoridades dos três poderes quase em luta pessoal, em capítulos assustadores e bizarros?

Tiramos, pela segunda vez do poder, pelo impeachment, a maior autoridade da República, mas diante da epidemia de roubalheira e de insensatez política a que fomos submetidos, isso não foi suficiente para aplacar a crise e os ânimos beligerantes das principais facções em luta política. E por que essa A crise que rouba nossas energias não pode sufocar a esperança crise não passa? Porque suas causas principais não têm sido atacadas, ou enfrentadas adequadamente, haja vista a constatação de que a maioria dos atores políticos (partidos e seus líderes), não está nem aí para o país. Seu desejo é o poder, apenas, e para tanto, qualquer coisa vale.

E foi essa cultura de descompromisso e irresponsabilidade que alimentou este velho e carcomido sistema presidencialista e fez surgir entre nós falsos líderes, já que não fomos capazes de edificar caminhos libertadores para uma efetiva cidadania republicana. Já ficamos felizes em amortecer a pobreza por meio de programas sociais de pouca sustentação. Partidos da oposição ou de uma pretensa esquerda se encantaram com tal perspectiva de dominação, especialmente porque fizeram dos beneficiários ou dependentes de antes, sua clientela preferencial de agora.

Depois do PMDB, de José Sarney e de Collor, passando pelo PSDB, Lula e seu partido, principalmente após a proeminência das bolsas de toda a espécie, tinham um rebanho pra chamar de seu... Mas, alguns lá atrás já diziam que nenhuma bolsa, nenhum programa de transferência de renda em si transformará esses milhões de desvalidos sociais, se tais benefícios não se fizerem acompanhar de educação e de uma orientação realmente libertadora. A simples aplicação da receita assistencialista só poderia chegar aonde chegou: na ilusão torpe de um “pai ou de uma mãe dos pobres”, para continuarem pobres e dependentes e seguir alimentando o velho curral eleitoral inaugurado tempos atrás pelos coronéis...

Este o retrato atual desse despedaçado sistema presidencialista, que não prospera mais, já que as fontes que o alimentavam na corrupção agora estão sendo desmascaradas inapelavelmente. O poder central no país precisa ser compartilhado, melhor dividido e renovado profundamente e, para tal, temos a obrigação de começar, e já, a construção de uma alternativa que, em minha opinião, bem pode ser o parlamentarismo ou o semipresidencialismo, sistema que permite o enfrentamento ágil das crises, sem abalar as estruturas da República e sem causar os terríveis danos econômicos que hoje vivemos.

Debate
Só o que precisamos é juntar as pessoas e as lideranças de bem do país para iniciar pra valer este debate, sem pressa para implantar, porque não seria possível pensar em tal mudança já para 2018, uma vez que será necessária uma ampla e pedagógica discussão, no conjunto de toda a sociedade e de toda a Federação, para nos convencermos da importância de seus benefícios para a democracia brasileira e para erradicarmos, de vez, esta crise, que não pode mais seguir alimentando o ódio e a divisão entre nós.

Pacto, acordo ou concertação, é hora destas pessoas de bem – que se encontram provavelmente em quase todos os partidos ou entidades da sociedade civil ou fora delas, mas que ainda sonham com um país com outra história e com sua gente mais feliz – se unirem e darem as mãos em nome da harmonia, e de uma sociedade mais fraterna e justa.

E a despeito das atuais circunstâncias, em meio à possibilidade turbulenta do afastamento de mais um presidente, em face das denúncias em curso encaminhadas pelo procurador-geral da República, agora sim, é que o país e o povo esperam para ver quem será capaz de apresentar um caminho, que mitigando as disputas ou o impossível, nessa deprimente seara política, possa nos tirar da crise e apontar para uma convivência mais democrática e menos beligerante.

Um pacto pelo país! Uma reflexão pela harmonia! Um gesto de esperança e de retomada da solidariedade democrática! O parlamentarismo pode proporcionar isso. Vamos construir! A crise que rouba nossas energias não pode sufocar a esperança

 

* Chico Andrade é formado em História, pós-graduado em Ciências Políticas e assessor político/legislativo na Câmara dos Deputados

** Artigo publicado originalmente na Revista Política Democrática #48

 


Revista PD#48: Reforma Política e Governo Representativo

A reforma política é um tema que recusa ser esquecido, apesar da má vontade da classe política e de muitos intelectuais. De chofre, reaparece como uma artimanha das cúpulas partidárias emaranhadas nas teias da Lava-Jato. Seja como for, precisa ser enfrentada com seriedade e não sutilmente escanteada por meio do abuso ao senso-comum antipartidário dominante no país – atavismo da inadaptação nacional à democracia, como bem observara Sérgio Buarque de Holanda na primeira metade do século passado.

Por Hamilton Garcia de Lima
Revista Política Democrática #48

Um dos focos principais desse senso-comum se dirige contra a adoção da lista fechada no sistema proporcional, sob o argumento de que ela enfraqueceria o vínculo entre eleitores e candidatos, levando "à ditadura das cúpulas partidárias" em detrimento do direito de escolha do eleitor.

A crítica é fraca e falsa sob variados aspectos; vejamos alguns. Uma das razões para que a reforma política não saia da agenda do país é precisamente o fato de que o modelo vigente (lista aberta) levou, ao longo das últimas três décadas, o vínculo entre representantes e eleitores aos piores patamares da história republicana – não obstante o juízo de muitas autoridades acadêmicas que, nos anos 1990-2000, prognosticavam o amadurecimento do modelo.

Os motivos para essa deterioração crescente são muitos, mas deve-se destacar, em particular, a opacidade do método de distribuição das cadeiras legislativas pelo coeficiente partidário-coligacional, que faz a "mágica", aos olhos da sociedade, de eleger candidatos com os votos dos não eleitos, de tal modo que nem os políticos, em sua esmagadora maioria, sabem exatamente de onde vem os votos que efetivamente os elegem, nem os eleitores a quem seus votos efetivamente consagram, pois a grande maioria votou em candidatos que não se elegeram.

Não bastasse isso – em si, suficiente para explicar o estranhamento do eleitor em face de "seu" representante e o descompromisso desse em relação àquele –, a ideologia liberal reforça a alienação recíproca ao propalar uma abstrata primazia do eleitor que, supostamente, como vimos, escolhe o candidato usando para tal do discernimento natural. A fábula de uma razão descolada de contextos (interesses), estruturas (instituições) e tradições (cultura), só serve aqui para encobrir a farsa do sistema atual de escolha do eleitor.

Na verdade, ao contrário do que propõe essa ideologia, nosso eleitor encontra-se perdido num cipoal de siglas e nomes que pouco explicam/significam e que o impede de ter a visibilidade mínima para qualquer escolha razoável em termos, mesmo que apenas, de seu interesse individual. Sendo obrigado a votar em condições tão nebulosas, o cidadão acaba sendo naturalmente atraído pelos elementos mais visíveis no jogo: os candidatos-singulares, que se destacam pela capacidade ou acúmulo comunicativo, em meio ao mar de nulidades políticas individuais, ou pela oferta de alguma materialidade imediata, individualmente significativa, como vantagens pecuniárias ou acesso ao poder, tudo isso sem maiores considerações acerca dos efeitos colaterais de tais opções sobre a administração e o interesse público.

Na cabeça de significativos segmentos do nosso eleitorado – e até mesmo para alguns de nossos intelectuais ingurgitados de Lattes –, a oferta de serviços públicos por canais privados de clientela eleitoral, que oferecem privilégios em troca de voto, em nada se relaciona com a má qualidade do serviço público, em geral, sendo apenas uma forma supostamente inofensiva de remediá-la.

Descaminho
Mas, esse descaminho do Estado pelo sistema democrático de votação – sintetizada por uma liderança comunitária do Farol, em Campos dos Goytacazes/RJ, em 2007, nos seguintes termos: "o voto no Brasil corrompe" –, não produz efeitos apenas sobre as políticas públicas por ele impactadas, mas igualmente sobre o âmago do processo democrático, atingindo mortalmente a soberania do eleitor, sem que a abordagem liberal disso tenha a menor ideia.

Para muitos em nosso país – e isso não se limita aos pobres –,a soberania do voto se transformou numa relação fetichizada que, à semelhança do fetiche da mercadoria discutido por Marx em O Capital, transforma, em nosso caso por meio da gratidão ou ambição, o eleitor de portador da soberania do voto em tutelado por um patrono que lhe concede, sob a forma de favor, aquilo que formalmente está estabelecido como direito, distorção esta que, ao contrário daquela ensejada pelo poder econômico privado e seus enlaces de privilégios e superfaturamentos com a administração pública, não pode ser combatida por nenhuma Operação Lava-Jato.

Toda esta realidade, que fere de morte o direito de escolha do eleitor nas eleições proporcionais e subverte a essência do sistema democrático, transcorre sob a chancela da fetichista lista aberta, que, apesar de todas as evidências em contrário, continua sendo defendida pelos liberais programáticos como "garantia da liberdade de escolha do eleitor".

Não é por outro motivo que os antídotos às doenças da alienação eleitoral e da perversão democrática , insistem em voltar ao centro do tabuleiro político quando o tema da reforma política emerge, mesmo em meio à grossa neblina lançada ao vento pelos apóstolos da liberdade abstratamente concebida; me refiro ao sistema de lista fechada e ao voto distrital, que podem ser aplicados isoladamente ou combinadamente, com ou sem financiamento público de campanha.

Ambos têm uma qualidade cuja falta corrói nosso sistema político: a de responsabilizar os partidos pelos mandatos conquistados em seu nome, ao mesmo tempo que reforça os vínculos dos candidatos com seus partidos, já que ambas as fórmulas ensejam disputas internas reais pelas vagas de candidato ou sua ordenação na lista, com impactos importantes sobre a vida das agremiações políticas. De outro lado, elas também tornam transparentes ao eleitor/representante o destino/fonte de seu poder, criando condições efetivas para a sinergia político-programática entre o eleitor e o eleito. Em síntese, eleitores, eleitos e elites partidárias se tornam corresponsáveis pelo resultado dos mandatos conquistados e ninguém pode fugir às suas responsabilidades em caso de fracasso das apostas – o que, no caso do eleitor, implica seu deslocamento na direção de outra opção partidária.

Oligarquias
O efeito colateral criticado nesses remédios é o fortalecimento das oligarquias partidárias, embora ele já se manifeste patologicamente na ausência de sua administração, no sistema hoje vigente. Ao contrário de oligarquias, o que os medicamentos em tela poderão propiciar é o aparecimento de novas elites com base no pressuposto da transparência que deverá surgir no processo de construção de candidaturas, que hoje se instituem (fetichistamente) órfãs de pai e mãe, fruto de interesses escusos articulados em convenções anômalas, marcadas por um anonimato que apenas se rompe, pontualmente, com as escolhas de candidaturas no âmbito majoritário, sobretudo para o Executivo. Nas novas condições criadas pela reforma aqui discutida, os partidos oligarquizados terão que se abrir em alguma medida à sociedade, sob pena de ficarem exclusivamente dependentes dos velhos métodos de compra de votos e cooptação, mais fáceis de serem penalizados em face da brutal simplificação eleitoral propiciada pela lista fechada e o voto distrital.

Por fim, a manutenção da proporcionalidade, na modalidade lista fechada, trará uma vantagem importante em relação ao sistema distrital: o sistema de responsabilização/simplificação das eleições poderá ocorrer sem a perda da pluralidade política-ideológica duramente conquistada nas lutas pela redemocratização dos anos 1970-80. Ademais, a lista fechada tem um aspecto pedagógico não desprezível ao promover o fortalecimento da disputa programática entre os partidos em detrimento das personalidades.

Infelizmente, estamos forçados em nossa reforma política a realizar uma pauta novecentista: criar laços mais efetivos e duradouros dos partidos com a sociedade, por meio da formação de elites políticas genuinamente ligadas aos interesses sociais, que pudessem lastrear, como indicava Weber no início do século passado, os governos e as disputas que constituem a alma da democracia parlamentar.

O desafio não é pequeno. Em nosso caso, trata-se não apenas de um programa de reforma institucional (legal), mas de recuperarmos aquilo que se perdeu no naufrágio da democracia de 1946: uma cultura de poder que restaure a sociedade como a base do governo representativo.

* Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense - UENF

** Texto originalmente publicado na Revista Política Democrática #48

 


José Augusto Guilhon: Diante de incertezas, aposta de políticos trará caos ao País  

Tudo o que se pode dizer sobre o distritão com base em fatos, é que nada se pode dizer: um tal regime nunca existiu. O sistema sempre citado vigorou na dinastia Meiji no Japão até 1912. Ah, também se cita o Afeganistão, que nem sequer é um Estado, que dirá um exemplo.

Se vai eleger detentores de mandato, beneficiar caciques, famosos, religiosos, endinheirados, extremistas, representantes do crime organizado, não se sabe: apenas que trará o caos para o País e graves consequências sobre as expectativas dos investidores.

Enquanto estiver em pauta, provocará um arrefecimento das boas expectativas com que o investidor estrangeiro vem mirando nos negócios no País. Adotado, abre-se a possibilidade de estancamento e reversão da atual política econômica. Pior, a probabilidade da Câmara ser composta por inexperientes, sem compromissos claros com os eleitores, sem vínculo mínimo com ideias ou interesses, nem com o presidente eleito, é assustadora.

Conceitualmente, o distritão não é majoritário, que elege apenas o mais votado e exclui todos os demais. Tampouco é distrital, porque o mandatário não responde diretamente a nenhum local, nem representa algum interesse. Com isso, a falta de fidelidade do eleito ao eleitor será exponencialmente maior do que hoje.

Outra hipótese baseada em fatos é de que a maioria dos deputados diminuirá sua probabilidade de reeleição. Em São Paulo, por exemplo, a tendência desde 1982 foi de cerca de 25% eleitos com sua própria votação. Em 2014, provavelmente devido à proliferação de coligações, apenas seis dos 70 deputados federais se elegeram com o próprio voto (0,8%), enquanto 82% dependeram das sobras. Apenas 36 deputados federais de todo o País (7%) se elegeram com seus próprios votos.

A classe política brasileira, aceitando essa aposta para contornar as incertezas das próximas eleições, qual um Sócrates coletivo, não apenas bebe a cicuta, mas a prepara voluntariamente. Isto em benefício de uma nova classe “impolítica” de cujo perfil moral, social ou político nada se pode prever.

Caso se enterre o distritão, sem nada em seu lugar, fecha-se a brecha aberta pela crise geral e pela grave insatisfação difusa, pronta para explodir em indignação contra tudo e contra todos, sem que se tenham introduzido reformas produtivas.

Talvez fosse o caso de manter a discussão do distritão, e alguns de seus argumentos – como o suposto barateamento das eleições, e uma certa valorização dos que são mais votados – mantendo referências partidárias e minorias relevantes: trata-se de adotar distritos com até cinco assentos – isto é, um distrito com face humana, com forte enraizamento local – mantendo integralmente o voto proporcional, a que eleitores e candidatos já estão familiarizados, apesar de todas as insuficiências da proporcionalidade aberta. Se for discutido seriamente e eventualmente aprovado, a futura adoção de distritos uninominais combinada com voto proporcional de lista, tão elogiados e tão temidos, estará ao alcance da maioria dos 594 congressistas mediante lei ordinária.

* José Augusto Guilhon é professor titular de ciência política da FEA-USP

 


José Aníbal: Três poderes, uma só moral 

Enquanto a reforma política tem a urgência de ser aprovada até um ano antes da eleição de 7 de outubro de 2018 para entrar em vigor, o respeito ao limite salarial do funcionalismo público é ponto nevrálgico não só em função das contingências fiscais da União, dos estados e dos municípios, mas passo fundamental para uma efetiva moralização da República.

Sem dúvida, os agentes públicos eleitos pela população, assim como os partidos políticos, precisam retomar a conexão com a sociedade, deixar de lado interesses privados e escusos para colocar em primeiro plano o bem comum e coletivo. Por isso, é preciso rechaçar ideias como a destinação bilionária de recursos públicos para financiar campanhas eleitorais, dinheiro que deveria ser empregado em investimentos sociais, políticas de educação e saúde, transporte, segurança...

Mas não é só isso a panaceia dos problemas nacionais. Dinheirama de igual grandeza escoa mensalmente dos cofres públicos, nos três níveis de governo e nos três poderes, por meio de artimanhas e penduricalhos, criados por castas de juízes, desembargadores, promotores, procuradores, parlamentares, assessores legislativos, membros do executivo e outros, para engordar seus já polpudos salários. Auxílios das mais diversas naturezas não passam de subterfúgio para amealharem vencimentos que já superam, em cerca de 15 vezes, a média salarial dos brasileiros.

Num país em que o trabalhador comum recebe R$ 2,1 mil, ainda somos “brindados” por um juiz do Mato Grosso que não se contenta em ganhar no máximo R$ 33,8 mil, leva uma bolada de meio milhão de reais num único mês e diz que não está nem aí para a opinião pública! E o que é pior: muitos dos tribunais que promovem essa derrama de dinheiro dos contribuintes para uns poucos privilegiados nem sequer abrem suas planilhas ao escrutínio social. Oxalá a ordem do Conselho Nacional de Justiça para abertura dessas verdadeiras caixas-pretas seja enfim cumprida e os brasileiros possam calcular o peso e o custo dessas elites burocráticas.

Paralelamente, Executivo e Legislativo também devem prestar contas à sociedade e combater diuturnamente as brechas usadas para o pagamento de supersalários, aposentadorias e pensões desproporcionais à realidade brasileira. Propostas como a reforma da Previdência visam justamente tornar o sistema mais igualitário e sustentável, mas a grita corporativista mais uma vez age para bloquear os interesses nacionais. Da mesma forma, resistem a colocar em votação no Senado a PEC 63/2016, da qual fui autor, que acaba com todas as brechas na lei para fazer o teto do funcionalismo, nos três poderes, ser efetivamente cumprido.

Na ânsia de proteger seus privilégios, há quem veja as críticas aos supersalários como reação ou vingança de uma classe política acuada pelas investigações de condenáveis esquemas de corrupção e desvios. Nada mais falso. Ambas as situações, a seu modo, são entraves à transformação do Brasil em um país melhor para a população em geral, com menos pobreza e injustiça e mais oportunidades de emprego, inovação e crescimento.

Como se vê, a agenda de mudanças de que precisamos é extensa. Não será do dia para a noite, nem com soluções tiradas da cartola ou reducionismos típicos de redes sociais, que o estado brasileiro deixará de ser paternalista, submetido ao patrimonialismo e corroído pela ineficiência, pela corrupção e pelo corporativismo. Para sermos uma República não só de direito, mas principalmente de fato, precisamos unir as forças refratárias ao populismo maniqueísta e, juntos, dar os primeiros passos dessa longa caminhada.

* José Aníbal é presidente nacional do Instituto Teotônio Vilela. Foi deputado federal e presidente nacional do PSDB

 


Luiz Carlos Azedo: Notícia boa, notícia ruim 

A notícia boa foi a reação do mercado financeiro à decisão de que o governo pretende privatizar a Eletrobras. O Ibovespa, principal índice de ações brasileiras, fechou em alta de mais de 2%, atingindo, pela primeira vez em mais de seis anos, o patamar de 70 mil pontos. Com valorização de quase 50% nos papéis ordinários da Eletrobras, a empresa ganhou R$ 9,13 bilhões num único dia, muito mais do que renderia qualquer plano de reestruturação que fosse anunciado para melhorar seu desempenho.

Falou em vendê-la e a Eletrobras mudou significativamente de valor. As ações ordinárias, que dão direito aos acionistas de voto nas assembleias, subiram 49,3%, para R$ 21,20. Já as ações preferenciais, que permitem aos acionistas prioridade no recebimento dos lucros da empresa, avançaram para R$ 23,55 (32,08%). Os analistas de mercado exultaram com a decisão, que deixará de fora do pacote a Itaipu binacional, de propriedade do Brasil e do Paraguai, e a Eletronuclear, responsável pela produção e programas de energia nuclear.

A notícia ruim, porém, foi a assinatura do acordo de delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, anunciada pela Procuradoria-Geral da República. Trata-se do principal operador do caixa dois do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e de outros caciques do PMDB. Funaro promete revelar novos detalhes de esquemas de corrupção envolvendo o presidente Michel Temer e alguns de seus ministros. A prisão de Roberta Funaro, irmã do doleiro, a partir da delação premiada dos executivos da JBS, levou-o a fazer o acordo.

Com isso, o fantasma de uma nova denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente Michel Temer voltou a rondar o Palácio do Planalto. Cumpriria a promessa que fez ao anunciar que a faria até a entrega do cargo para Raquel Dodge, sua sucessora no cargo. Essa expectativa nos meios políticos acaba repercutindo no mercado e deixa inseguros os agentes econômicos. De certa forma, a antecipação do anúncio da privatização da Eletrobras pode ter sido provocada pela informação de que Funaro havia assinado a delação. Ao fazê-lo, Temer passou à ofensiva novamente junto aos meios empresariais, neutralizando o desgaste da notícia.

A narrativa do Palácio do Planalto de que a Operação Lava-Jato é autoritária e atrapalha a recuperação da economia já salvou o presidente da República de afastamento pela Câmara, com a rejeição da denúncia de Janot baseada nas gravações da conversa de Temer com o empresário Joesley Batista, da JBS. A privatização da Eletrobras é um sinal muito forte de que o governo o avança nas reformas econômicas, ainda que não consiga enxugar os gastos na Esplanada dos Ministérios e desencalhar a reforma da Previdência no Congresso. E que a Lava-Jato se tornou o maior problema para o país reencontrar seu rumo. Isso não resolve o problema de popularidade de Temer, mas ajuda a blindá-lo contra uma nova denúncia.

Reforma política
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), adiou pela segunda vez a votação da reforma política. Os deputados não conseguem se entender em relação às propostas em discussão. Afora as questões de mérito, a confusão quanto ao processo de votação é grande. Parte dos deputados queria analisar a PEC ponto a ponto, não o relatório completo. Mas, pelo regimento, o requerimento para fatiar a votação deve ser apresentado pelo relator ou ter o consentimento dele. Vicente Cândido (PT-SP), relator do projeto, havia concordado com o fatiamento, mas acabou pressionado e voltou atrás.

Pra aumentar a confusão, a relatora de outra comissão, a deputada Shéridan (PSDB-RR), anunciou mudanças na proposta de regras da cláusula de desempenho eleitoral para beneficiar partidos menores. Flexibilizou as exigências para ter direito ao tempo gratuito de rádio e televisão e acesso ao Fundo Partidário, da ordem de R$ 819 milhões em 2017.

Também propôs a formação de federações regionais, que teriam que se manter durante toda a legislatura. A exigência para ter direito ao dinheiro do fundo era o partido eleger pelo menos 18 deputados distribuídos em pelo menos nove estados; o número foi reduzido para 15 deputados.

Na fase de transição, até a implementação efetiva das medidas, de 2018 a 2030, o número de deputados eleitos pelo partido para ter acesso ao fundo também diminuiu. Manteve-se a regra alternativa, que determina que terão acesso ao fundo os partidos que alcançarem pelo menos 3% dos votos válidos nas eleições para a Câmara, distribuídos em pelo menos nove estados, com um mínimo de 2% dos votos em cada um. A federação é uma saída para os partidos que não atingirem as exigências mínimas de acesso ao fundo. Esta proposta abre espaço para manutenção do atual sistema de votação proporcional.

 


PD #48: A reforma que não pode deixar de ser feita

Se o leitor pensa que vou falar de reforma da previdência ou trabalhista está enganado. Não pelo fato das duas não serem relevantes, são. Embora não necessariamente da forma como estão, uma, proposta, e a outra, aprovada. Quero falar de uma reforma que apenas começa a adentrar o centro de debate político, E, por estar até ontem, na penumbra, arrisca trazer surpresas muito desagradáveis para o país. Tudo o que se faz nas madrugadas no Congresso Nacional caminha em sentido contrário aos interesses nacionais e servem para proteger interesses nem sempre pronunciáveis.

Por Elimar Pinheiro
Revista Política Democrática #48

Partilho da proposição de que uma reforma politica é imprescindível, mas este Congresso não tem a legitimidade de realizar a reforma estrutural que o país exige, devendo-se ater a uma reforma minimalista, presa às normas eleitorais. Não se pode escolher nossos próximos representantes com base em uma legislação que não tem dado resultados positivos e sofre o repúdio, senão da maioria, de uma grande parte da opinião pública. Portanto, mudanças devem ser adotadas para ampliar a legitimidade de nossas instituições políticas, que tendem a se esfarelar cada vez mais no embate das corporações diversas em que se divide o Brasil, e a se desfazer em meio ao furacão dos escândalos de corrupção, que ainda não estagnaram. Cunha, Palocci, Funaro, Mantega, entre outros, estão aí para não me deixarem mentir.

Sei que a questão é complexa, e existem dezenas de propostas e pontos de vista a respeito, além de algumas teorias sofisticadas a partir das experiências internacionais. Sei também que não existe sistema eleitoral perfeito. Qualquer modelo tem suas vantagens e desvantagens. Se tivéssemos mantido o sistema dos anos 1950/1960, quando votávamos em presidente e vice, separadamente, teríamos hoje uma situação distinta, porque o vice teria sido também eleito. E, portanto, revestido de legitimidade, como ocorreu com Jango Goulart. É possível até que nem fosse o Temer.

Sei também que não podemos nos calar em face do que se prepara no Congresso. Ideias estapafúrdias e oportunistas como a adoção de uma lista partidária para o eleitor votar, na qual se esconderão os corruptos de todos os quilates ou a impossibilidade de prisão para um candidato oito meses antes das eleições ou ainda um fundo eleitoral, exorbitante, quase 4 bilhões de reais, em que o contribuinte estará dando recursos para partidos com os quais não concorda. Normas que, se aprovadas, conservarão o caráter nocivo da atual representação parlamentar.

Pontos
Portanto, vou abordar alguns poucos pontos que não poderiam ficar de fora nas mudanças necessárias para as próximas eleições, partindo de algumas mazelas mais ou menos bem conhecidas. Muitos outros pontos não serão contemplados, seja porque não é o caso de uma mudança profunda, seja porque ocuparia demasiado espaço abordar todos.

Em primeiro lugar nosso sistema eleitoral é caro. Muito caro. Este é o seu principal problema. E, por ser desta natureza, convida a prática do Caixa 2, ilegal e ilegítima, permitindo a corrupção generalizar-se. Além de solapar o processo de escolha dos representantes e desvirtuar os resultados eleitorais com a intervenção do poder econômico. Assim, cria um espaço habitado de forma proeminente por atores moralmente espúrios, repleto de desvios. O que é estranho. Afinal, salvo uma organização criminosa, nenhuma outra tem, nem perto, cerca de cinquenta por cento de seus membros contraventores, como o Congresso Nacional.

Por que isso ocorre? Porque o alto custo das eleições convidam à contravenção, facilitam e quase obrigam os participantes do campo político a adotarem práticas ilegais. Por isso, é imprescindível mudar as regras para baratear o processo eleitoral e, dessa forma, atrair atores que não estejam apenas interessados em fazer negócios, e se enriquecer, ou que sejam obrigados a servir interesses econômicos estranhos e, por vezes, escusos.

Baratear o processo eleitoral é a primeira tarefa de uma mudança no processo eleitoral. E de onde provém os custos elevados de nossas eleições? Entre suas causas duas se destacam: o alto custo de produção da mídia nas rádios e, sobretudo, na TV; e, o vasto território da disputa eleitoral. A reforma tem, portanto, como primeiro objetivo eliminar os programas eleitorais obrigatórios na TV, com toda sua parafernália conhecida e enganosa. Apenas debates entre os candidatos, regulados pelo Tribunal Superior Eleitoral, seriam permitidos. Mas, sendo permitido o programa de propaganda partidária, gratuita, no rádio, que é de pequeno custo.

Ora, como então os eleitores podem se informar a respeito dos candidatos, quando eles são centenas no caso de deputados? O fim do programa gratuito na TV não os atinge, pois eles apenas têm tempo de dizer: “Meu nome é Eneas”. Aqui vem a segunda parte do barateamento das eleições: a redução do território. Por que um deputado tem que ser eleito por todo o Estado? Por que estes não são divididos em circunscrições eleitorais que variam de 2 a 5 vagas? Por exemplo, se o DF tem 8 deputados federais, posso reduzi-lo a duas ou quatro circunscrições, no caso de São Paulo entre 14 e 35, e assim por diante. Por outro lado, posso obrigar cada partido a apresentar apenas candidatos conforme o número de vagas naquela circunscrição, sendo eleitos os mais votados. O resultado é um número reduzido de candidatos para cada eleitor escolher, e um forte debate interno nos partidos para a escolha de seus candidatos. Com poucos candidatos reduz-se a “poluição eleitoral”, na qual o eleitor tem que escolher entre centenas de candidatos. O que permite um bom conhecimento das opções, ao mesmo tempo que os candidatos poderão se locomover com menores custos, utilizando meios mais baratos para dar a conhecer suas propostas.

Custos
Sem custos em TV e com território reduzido, os custos eleitorais deverão cair para bem menos da metade. E, muito provavelmente, sem prejuízo para a informação do eleitor. Claro que há também desvantagens. Afirma-se que certos tipos de candidaturas ficariam inviáveis. É discutível. Talvez até possível, mas dependerá muito do tamanho da circunscrição. Os ganhos serão, no entanto, maiores, pois haverá o ingresso de pessoas na política com outros interesses e compromissos que não a ilicitude. Afirma-se ainda que um partido poderia estar em segundo lugar em várias circunscrições sem qualquer representante. E, outro, que se apresentou na metade das circunscrições do anterior, ter um ou dois representantes eleitos. É possível. Mas, como se disse anteriormente, não há sistema perfeito. Em qualquer um teremos vantagens e desvantagens. Estou convencido hoje em dia que barateando o processo eleitoral teremos um outro corpo de representantes, mais próximo do eleitor e com menos desvio provocado pela intervenção do poder econômico.

Esse sistema, por sua vez, evita um segundo mal de nosso processo eleitoral: votar em um candidato e eleger outro, graças a coligações. Neste caso, não existiria. Cada partido teria seus candidatos e os eleitos seriam os mais votados em cada circunscrição. O eleitor, assim, terá o seu voto respeitado, e reconhecido. Apenas a nível majoritário seria permitido coligações, mas sem consequências no tempo de TV, como ocorre hoje, porque este não existiria.

O segundo problema é o financiamento. Não é problema fácil e os exemplos do mundo mostram normas distintas. Em alguns países as empresas podem contribuir, em outros não. Em alguns existe fundo partidário, em outros não. Sugiro distinguir dois casos. Nas eleições parlamentares (Câmara de Vereadores, de Deputados Estaduais ou Federais) e de prefeitos o financiamento seria de doações individuais de pessoas físicas, até um valor de 5% de sua renda declarada no ano anterior, podendo o mesmo abater de seu imposto de renda. Ou, um valor máximo por pessoa, definido previamente pelo tribunal eleitoral, sempre passível de ser abatido do imposto de renda.

No caso das eleições majoritárias de presidente, Senado e Governo Estadual, em que não existe a divisão da circunscrição eleitoral (Estado ou país), ademais das doações poderiam os partidos utilizar o fundo partidário, expressamente designado para esta finalidade. Claro que há um prejuízo para o contribuinte, mas seria ingênuo imaginar que seria possível realizar uma eleição presidencial apenas com doações de militantes, amigos e simpatizantes dos partidos e candidatos.

O terceiro problema que quero aqui abordar refere-se ao leque partidário que temos hoje em dia, extremamente aberto, com praticamente 40 partidos legalizados e mais de 40 solicitando inscrição. É um número excessivo, em qualquer ângulo de análise. Por outro lado, sabe-se que alguns destes partidos são simples cabides de emprego ou forma pouco lícita de ganhar dinheiro. Partidos de circunstâncias, sem ideologia, sem história, sem base social como ocorre com a maioria dos pequenos partidos, e mesmo de alguns médios.

Delações
As delações referentes à compra de tempo de TV de partidos políticos por parte do PT – caso do PDT – nas últimas eleições presidenciais confirmam esta assertiva. Não me parece correto proibir a criação de novos partidos, seria engessar a sociedade e atentar contra o direito de organização dos cidadãos, mas pode-se proibir o acesso ao fundo partidário àqueles que obtiverem menos de 3% dos votos do eleitorado, distribuído em pelo menos seis estados da Federação. E restrições outras, a serem implementadas no âmbito dos Parlamentos. Este tipo de cláusula de barreira é imprescindível para se criar o mínimo de condições para a governabilidade. Isso obrigará a partidos pequenos, de boa respeitabilidade, a se juntarem – como o PPS tentou fazer com o PSB – ou a ampliarem sua audiência.

Uma lição importante pode-se tirar das eleições francesas para facilitar a construção da governabilidade, atribuindo condições mais favoráveis a criação de maiorias parlamentares. Trata-se da decalagem entre a eleição residencial e as parlamentares. No caso do Brasil, poder-se-ia fazer as eleições parlamentares ocorrerem 45 dias após as eleições para o Executivo. Essa forma facilita a que os eleitos no Executivo tenham uma maioria no Parlamento respectivo, o que cria melhores condições de governabilidade. Embora a obtenção da maioria não seja automática, e no nosso caso, talvez até impossível. Mas daria maior poder ao Executivo e maiores chances de se estabelecer uma governabilidade mais estável e menos corrupta.

Um quarto problema diz respeito aos limites da legitimidade obtida hoje pelos partidos, absolutamente comprometidos e desprestigiados, sem capacidade de renovação. O que nos obriga a pensar na possibilidade de adotar o sistema de candidaturas avulsas. Afinal, pode ser um instrumento de renovação da política e de aumento da legitimidade dos parlamentos. Enquanto ela não é criada, partidos como a Rede Sustentabilidade tomaram a iniciativa de reservar uma parte de suas vagas a candidaturas desta natureza, na qual os candidatos não têm vínculo partidário, tendo apenas que observar as suas regras éticas de funcionamento. O ideal, no entanto, é que a legislação considerasse esta possibilidade, definindo suas condições, como a apresentação da candidatura por um percentual dos eleitores.

Finalmente, duas outras medidas poderiam ser adotadas. A primeira referente a prestação de contas, que deveria ser on line e de livre acesso a todos os cidadãos para que as eleições sofressem menos deturpações provenientes de forças econômicas ilícitas e, simultaneamente, ganhassem mais transparência e aumentassem o poder de controle da população. Assim como, sua aprovação pelo Poder Judiciário em tempo expedito. E, para concluir, aparentemente o sistema de reeleição mostrou-se pouco afeito a nossa cultura política, assim, seria recomendável extingui-la e propor uma ampliação de cinco anos para os mandatos.

Este pequeno conjunto de normas tem o poder de provocar uma renovação importante em nossa política e, sobretudo, uma melhoria na qualidade da representação política? Não se pode afirmar com certeza, mas os indícios de melhoria são evidentes. De toda forma, a melhoria na nossa representação está relacionada a um problema mais profundo, que as regras simplesmente não resolvem, embora possam auxiliar ou prejudicar, trata-se da cultura política dos eleitores. Com menores custos e maior aproximação entre representantes e representados é possível que a política ganhe um maior prestígio em nossa sociedade e, com isso, possa interessar mais aos cidadãos e se renovar com maior rapidez, e para melhor.

É uma aposta, mas é necessário fazê-la. Afinal, se as regras não definem toda a qualidade da representação política pode ser uma ferramenta favorável, ou desfavorável. O que está se desenhando no Congresso Nacional, tudo indica, não irá favorecer esta renovação. Por isso, é imprescindível uma aliança dos deputados e senadores que têm compromisso com a construção da nação e não apenas consigo mesmo, e por decorrência com suas corporações, para criar normas de arejamento da política. É a batalha do momento.

* Elimar Pinheiro do Nascimento é sociólogo político e socioambiental, professor permanente do Programa de Pós-Graduação de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília e do Programa de Pós-Graduação Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas

 


Júlio Aurélio Vianna: 'Olho da reforma é o de manter a oligarquização do sistema partidário' 

Pesquisador da Casa de Rui Barbosa acredita que distritão não melhora relação entre eleitos e eleitor

Por Marlen Couto, de O Globo

RIO - No livro "Viver em rede: as formas emergentes da dádiva" (7 Letras), com lançamento previsto para o início de setembro, o cientista político e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa Júlio Aurélio Vianna Lopes analisa as mudanças provocadas pela emergência das redes sociais no nosso dia a dia e sua relação com a atual crise das democracias em todo o mundo, pano de fundo, no Brasil, das manifestações de junho de 2013 e da reforma política atualmente em tramitação no Congresso. Em entrevista ao GLOBO, Júlio Aurélio afirma que toda mudança no sistema político só é válida se propõe o empoderamento do eleitor e critica a reforma proposta pela Câmara: "É mudar para não mudar".

No livro, o senhor afirma que um candidato doa aos eleitores propostas, que são retribuídas pelos votos, assim como os governantes doam políticas públicas e são retribuídos com apoio dos governados. Hoje, no Brasil, essa conta não fecha e, por isso, há descrença com a política?

O consumo não está só no campo da economia, mas também na política é assim. A democracia moderna se organiza dessa forma: os eleitores são consumidores de políticas públicas e pagam com seus votos. Daí, a competição entre os partidos. Qual é a crise? Na atualidade, os consumidores estão se tornando ativos e não mais passivos, com os direitos do consumidor, clubes de compras, e outras formas de organização, com as redes sociais. Da mesma forma, na democracia, os eleitores sempre foram passivos, objetos das ações políticas partidárias, e hoje todos os sistemas eleitorais estão em crise, sejam distritais, proporcionais, parlamentaristas ou presidencialistas, apresentam descolamento entre eleitos e eleitores, porque há uma emergência de eleitores que querem ser ativos e não mais passivos dentro da democracia.

Com frequência, se diz por exemplo que o eleitor que anula o voto é desinteressado na política. Na verdade, esse eleitor quer participar mais da política?

Não é um desinteresse pela democracia, mas pelo seu atual formato. O eleitor não adere aos partidos porque não lhe dão reciprocidade e, assim, perde sua identificação. Isso ocorre porque os partidos pressupõem um eleitor passivo, a agenda política é definida pelos partidos, não pelo eleitorado, como se o eleitorado não tivesse sua agenda. O eleitorado diz há anos em pesquisas de opinião que saúde é uma prioridade, por exemplo, e isso não se traduz em políticas públicas. Isso está por trás do desânimo, do mal-estar das democracias modernas, o que impõe uma reforma profunda das instituições democráticas. É só contrastar a baixa adesão aos partidos e a crescente intensificação do debate sobre política nas redes sociais. O debate nas redes é muito intenso, independente da qualidade, que acho muito ruim, das bobagens e asneiras ditas. Muita intensidade significa que há potencial e interesse. O que precisamos é que a democracia, a institucionalidade, seja adequada. Em todo mundo, ela não é adequada hoje.

O que podemos fazer?

O dado fundamental vem do movimento de junho de 2013. Constatei que junho de 2013 tem afinidade com outros três movimentos, Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, Plataforma Taksim, na Turquia, e os indignados, na Espanha. Eles tiveram efeitos diversos, mas todos têm críticas implícitas ou explícitas aos representantes, denunciaram em comum a falta de feedback político dos eleitos, a falta de vínculo e confiança, cada um a sua maneira. O modo como a crise da democracia moderna vai ser enfrentada tem que ser proposto. A proposta que trago no livro é o de uma democracia compartilhativa. Esses movimentos mostraram que as redes sociais têm potencial para apresentar agendas governamentais. O que a gente precisa num momento em que estamos nos tornando uma sociedade em rede é adequar a democracia a uma sociedade em rede. A participação esporádica tem que ser tão importante quanto a participação organizada.

Como fazer isso na prática?

A primeira característica é ter um eleitorado interativo, que compartilha suas ideias. A tecnologia já permite isso. No momento de votar, por exemplo, já se poderia por meio da tecnologia definir a pauta legislativa e as prioridades governamentais e do orçamento. São coisas simples que já podem ser feitas. Já temos isso pelo portal do Senado, com o e-cidadania.

Uma reforma política focada no processo eleitoral, como a que está em tramitação, é suficiente ou será preciso olhar também para o período pós-eleição?

Toda reforma política só é produtiva e valerá a pena, se tiver como norte o empoderamento do eleitorado. É isso que o eleitorado quer. Não é necessariamente o que os partidos querem. A reforma acentua o que já acontece no atual sistema. No atual, qual é o problema? 70% do legislativo não é eleito com votos próprios. São os campeões de voto que arrastam mais parlamentares. O distritão é uma proposta que solidifica isso. Já não são os partidos que são valorizados. No sistema atual, a pessoa já importa mais que o partido, no distritão isso se reproduz e se institucionaliza. E não resolve o tema do vínculo entre eleitor e eleitos. Não se empodera o eleitor. No distritão, pode-se ter até uma maioria excluída, porque os que votaram nos candidatos não eleitos não são contemplados e eles podem ser a maioria. Os partidos no Brasil já sofreram a maldição de um cara chamado Robert Michels (sociólogo alemão), que dizia que todos os partidos se tornariam oligarquias. Ele disse isso pouco antes da Primeira Guerra Mundial. E o sujeito foi acertando. Todos os partidos, de direita e de esquerda, foram se fechando em si mesmos. A reforma como está sendo pensada hoje é mudar para não mudar. Não muda a campanha eleitoral e faz-se um fundo bilionário. O sistema eleitoral deveria ser discutido junto do sistema de governo e do partidário. É um tripé. O olho da reforma é o de manter a oligarquização do sistema partidário. Os partidos impermeáveis e de aluguel ficam mantidos.

Por que não há reações e manifestações à discussão sobre a reforma política e ao governo Temer como as que ocorreram em junho de 2013?

As interpretações de junho de 2013 causam a atual polarização da política brasileira. As interpretações foram duas e formam o que o Pablo Ortellado (professor da USP) chama de polarização. Como movimento, junho de 2013 trouxe o tema da corrupção na política. Não podemos esquecer que a Lava-Jato é posterior, começou em 2014. Os protestos de 2013 foram um movimento pela qualidade dos serviços públicos republicano e democrático. A corrupção foi colocada como primeiro obstáculo a ser vencido para se ter saúde de qualidade, educação de qualidade, mobilidade urbana e serviços públicos em geral. A polarização não nasceu na eleição de 2014, mas a partir da interpretação do que foi esse movimento. Nenhuma duas interpretações sintetiza completamente o que foi de fato junho de 2013. Uma coloca que o PT é uma quadrilha responsável pela corrupção no Brasil, embora a manifestação tenha sido contra toda a classe política. A interpretação oposta é de que a corrupção não é o principal problema do país, mas uma distração para não enxergar as desigualdades sociais, os principais problemas. No entanto, essa interpretação não questiona a questão da qualidade dos serviços públicos, tema da manifestação de junho. Essa divisão da sociedade brasileira impede que haja manifestação, é uma trava. O que sustenta o governo Temer é essa divisão, a paralisia. Um lado não admite o outro e não conversa com o outro. Até para fazer e convocar uma manifestação, eles ficam sem chão. O governo Temer não resistiria, se houvesse uma manifestação unificada. Outra coisa é o cansaço. Mesmo nas manifestações contra a Dilma, havia um contingente que dizia assim: “sou contra todos esses políticos”. A maior parte do contingente em todas as manifestações pelo impeachment não era contra a Dilma apenas, mas contra a classe política. Tem gente que não participa dessa polarização, mas está cansada, desanimada. É o mal-estar da democracia moderna. Ele vai continuar e está fermentando.