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BBC Brasil: Se Lula chegar ao poder em 2022, Forças Armadas não criarão impedimento, diz Jungmann

Ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública durante o governo Temer, Raul Jungmann conhece como poucos civis os meandros da elite das Forças Armadas brasileiras

Caio Quero, BBC News Brasil

Observador privilegiado de alguns dos principais episódios das recentes crises entre militares, civis e o Judiciário — desde o controverso tuíte do general Villas Bôas ao 'prende e solta' de Lula, em 2018 —, no final de fevereiro Jungmann publicou uma carta aberta aos ministros do STF onde enumera o que vê como riscos da política armamentista do presidente Jair Bolsonaro.

No documento, ele pede uma "intervenção" dos ministros do Supremo para suspender as portarias e decretos presidenciais de Bolsonaro que desburocratizam e ampliam o acesso a armas e de munição por cidadãos comuns e por aqueles que têm registro de CAC (colecionador, atirador e caçador).

Em entrevista à BBC News Brasil, Jungmann argumenta que tais políticas estão "erguendo o espectro horripilante de um choque, um conflito de brasileiros contra brasileiros e isso tem um nome na história: guerra civil".

"Quando você teve o armamento de populações, a História nos ensina, sempre vieram a reboque ou deixaram um rastro de genocídio, de massacre de etnias, de populações, de golpes, tirania e, inclusive, do ovo da serpente: do fascismo italiano e do nazismo alemão", disse à BBC News Brasil.

Na entrevista, Jungmann também afirma que, apesar dos pedidos de "intervenção militar" por parte de setores radicalizados da sociedade, "as Forças Armadas não darão suporte ou apoio a qualquer desvio constitucional, qualquer golpe ou qualquer interrupção da democracia".

Questionado sobre as eleições de 2022, Jungmann diz não antever qualquer tipo de interferência ou "maiores problemas" por parte dos militares, "seja com Lula... Mandetta, Moro, Huck... e, evidentemente a continuidade do Bolsonaro".

Confira os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - Em fevereiro, o senhor escreveu uma carta aberta aos ministros do Supremo Tribunal Federal em que diz que a política do governo Bolsonaro de ampliar acesso às armas de fogo coloca em risco a democracia no Brasil. Como, em sua opinião, tais políticas podem ser uma ameaça às instituições?

Raul Jungmann - A questão do armamento ou não da população sempre foi um assunto de debate na área da segurança pública. Alguns achavam que isto reduziria a violência e outros, como nós, baseado em ampla literatura técnica, achávamos que não, pelo contrário: mais armas mais mortes, menos vida.

Acontece que o presidente da República fez um deslocamento do debate da área da segurança pública para a área político-ideológica quando ele diz que é preciso armar todo o povo para resistir a tiranias, para resistir a perda de liberdades. Ora, não pesa sobre o país nenhuma ameaça, seja real ou imaginária, de que você venha a ter uma tirania, pelo contrário, ainda que sob pressão nossas instituições estão funcionando até aqui. E, também, não existe nenhuma força política hoje de relevância ou mesmo de pouquíssima relevância que esteja fora do jogo democrático.

Então, isso nos leva a três questionamentos, a três graves problemas: em primeiro lugar, ao se propor o armamento da população, está se propondo a quebra do monopólio da violência legal, que é privativa ao Estado Nacional. Na verdade, o certificado do nascimento de um Estado Nacional é quando ele passa a deter o monopólio da violência legal. Em segundo lugar, ao quebrar o monopólio, você está desfazendo do papel constitucional das Forças Armadas, que são, digamos assim, a ultima ratio, o último suporte da integridade desse Estado Nacional e da nossa soberania, então isso também representa um ataque às Forças Armadas e é preciso defender o papel delas. Terceiro e último, ao propor o armamento da população, se nós não temos nenhum inimigo, nenhuma ameaça externa, então, ainda que não esteja visível no horizonte, você está erguendo o espectro horripilante de um choque, um conflito de brasileiros contra brasileiros e isso tem um nome na história: guerra civil.

Quando você teve o armamento de populações, a História nos ensina, sempre vieram a reboque ou deixaram um rastro de genocídio, de massacre de etnias, de populações, de golpes, tirania e, inclusive, do ovo da serpente: do fascismo italiano e do nazismo alemão.

Então, por isso que eu entendo que essa proposta de armar a população, pelo o que aqui narrei, representa um risco sério e precisa ser afastado, precisa ser devidamente evitado, de uma quebra de nossa estabilidade e por isso me dirigi ao Supremo Tribunal Federal, onde tramitam vários pedidos de suspensão dessa política armamentista do governo federal.

BBC News Brasil - O cenário que o senhor pinta é bastante preocupante. Na avaliação do senhor, qual o objetivo do governo Bolsonaro ao facilitar esse acesso a armas? O senhor acha que estas são consequências que o governo não está antevendo ou existe algo deliberado nesse sentido?

Jungmann - Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o presidente Bolsonaro sempre teve essa pauta. Eu fui colega dele durante 12 anos na Câmara dos Deputados, então ele está sendo absolutamente honesto quando faz a defesa dessa pauta. Em segundo lugar ele atende à base que o elegeu, que é uma base pró-armamentista, em larga medida. E, em terceiro lugar, aí eu acho que fazer uma interpretação literal não é possível, mas é possível dizer que este tipo de atitude conspira contra a estabilidade democrática. Basta lembrar o que aconteceu há pouco nos Estados Unidos, com a invasão do Capitólio, e nós temos eleição em 2022.

Então, independentemente das intenções, que não me cabe aqui avaliar, do senhor presidente da República, ele comete um enorme equívoco, que atenta contra o monopólio da violência legal pelo Estado Brasileiro, contra o papel da Forças Armadas e, evidentemente, contra a possibilidade de você ter conflitos entre brasileiros.

Imagine você que em 2022 nós temos um resultado eleitoral contestado — e aparentemente nós vamos ter uma reedição de polarização, igual a de 2018, aparentemente, apenas. Então tudo isso, evidentemente, agrava nossas preocupações e exige medidas imediatas para evitar que isso aconteça.

BBC News Brasil - O senhor foi ministro da Defesa e conhece como poucos civis as Forças Armadas. Na carta aberta, o senhor fala que essa política de facilitação do armamento atenta contra o papel das Forças Armadas. Mas, ao mesmo tempo, parte das Forças Armadas parece não estar tão incomodada com esse fato, pois temos um recorde de militares em cargos de ministérios e secretarias no governo Bolsonaro. Por que o senhor acha que isso ocorre, já que há um conflito entre o papel da Forças Armadas e essa política armamentista?

Jungmann - Em primeiro lugar é preciso dizer que o presidente Jair Bolsonaro, durante toda a sua carreira parlamentar, foi um parlamentar de nicho, ou seja, ele tinha duas clientelas específicas as quais ele se dedicava: primeira delas são os próprios militares e ele provém exatamente das Forças Armadas, mais especificamente do Exército Brasileiro e, em segundo lugar, os policiais.

No momento em que ele assume o governo, não tendo ele uma grande passagem junto às elites financeiras, empresariais, culturais, de mídia etc., etc. para compor o seu governo, ele volta-se para quem? Para os militares. Não se volta tanto para as polícias, porque as polícias são estaduais e não são nacionais, como são as Forças Armadas. Então onde é que ele vai buscar os quadros para governar com ele? Ele vai buscar isso exatamente com as Forças Armadas.

Do lado das Forças Armadas, além daqueles que evidentemente simpatizam com a agenda do presidente, existem outros que não simpatizam.

Mas aqui nós temos um problema que não é tanto das Forças Armadas e tampouco do presidente Jair Bolsonaro, que é o papel do Congresso Nacional.

Hoje se reclama muito da presença dos militares no governo, mas é preciso dizer que o Congresso Nacional tem prerrogativas constitucionais para estabelecer restrições sobre isso. Se o Congresso Nacional, se o poder político, se a elite civil e política não impõe travas a isso. Não seria necessariamente contra militares, mas exatamente para manter a separação que é fundamental institucionalmente entre governo e Forças Armadas, que têm uma missão constitucional voltada para o Estado e não para o governo. O Congresso falha ao não estabelecer isso.

Então, reclama-se por exemplo da presença (de militares no governo) — que eu acho, sobretudo em termos dos militares da ativa, excessiva —, mas não existe nenhuma trava. Em segundo lugar, sendo o presidente da República o comandante supremo das Forças Armadas, não havendo nenhuma trava legal, o que elas podem fazer?

Certa feita eu estava em um debate com o ex-ministro da Justiça Tarso Genro, e ele disse: "As Forças armadas precisam se pronunciar." E eu disse: "Não, elas não devem se pronunciar. Elas devem permanecer exatamente onde estão", que é exatamente voltadas para as suas atividades profissionais, elas não têm que entrar na política. Elas não têm que falar, diferentemente de outras corporações, elas não devem falar. Porque se começam a falar, vão falar hoje, vão falar amanhã e vão falar depois.

A verdade é que aqui há uma grande confusão, que é preciso esclarecer... Quem tem falado são militares da reserva que estão em funções políticas, mas eles não falam pelas Forças Armadas.

Não se deve cobrar que os militares se pronunciem sobre política. Evidente que militar é cidadão e tem gente lá que apoia o governo e tem gente que é contrária ao governo, como aliás acontece mundo a fora — mas elas (as Forças Armadas) devem e estão permanecendo voltadas a suas atividades profissionais.

Eu não represento e não falo pelas Forças Armadas, apenas fui quase dois anos ministro da Defesa, mas posso lhe assegurar pelo que conheço e pelo que conheci, que as Forças Armadas não darão suporte ou apoio a qualquer desvio constitucional, qualquer golpe, qualquer interrupção da democracia do nosso país.

BBC News Brasil - No mês passado também voltou à tona aquele famoso tuite do general Villas Bôas, então comandante do Exército, que ele publicou as vésperas do julgamento do HC do ex-presidente Lula, em 2018. O senhor tinha acabado de assumir como Ministro da Segurança Pública, saindo da pasta da Defesa. O senhor ficou sabendo desse tuíte antes?Como foi essa história? O senhor ficou sabendo de que haveria algum posicionamento por parte do general Villas Boas?

Jungmann - Não soube e nem caberia. Eu deixei o Ministério da Defesa no dia 27 de fevereiro de 2018 e o tuíte, se eu não me engano, foi no dia 8 de abril ou alguma coisa assim (o tuite de Villas Bôas foi publicado em 3 de abril). Então a cadeia de comando já não passava por mim de forma alguma.

Eu sou um admirador e tenho uma grande amizade com o ex-comandante Villas-Bôas, um amigo que considero pessoal. Mas acho que o tuíte, embora eu entenda as razões que ele apresenta a esse respeito e acho que são ponderáveis, mas acho que não é a forma adequada.

Eu defendi aqui exatamente que as Forças Armadas permanecessem focadas em seus aspectos profissionais e em linha com a Constituição. Eu acho que, em que pese as preocupações, em que pese o clima que estava vivendo, em que pese eu reconhecer que o general Villas Bôas é um democrata, mas aquilo não é a forma mais adequada de se, digamos assim, de exercer o exercício de pressão sobre uma Suprema Corte, o que é, repito, é inadequado.

Se ele me consultasse, o que não ocorreu nem ocorreria, porque, dada nossa amizade, ele iria me preservar, eu teria procurado dissuadi-lo. Mas veja, tenho convicção que outro fosse o resultado do julgamento, ele seria integralmente respeitado.

BBC News Brasil - No livro onde o general conta sobre o tuíte, ele fala que houve participação do Alto Comando do Exército, não foi o general sozinho que tuitou. Na época, o senhor declarou que "a fala do general foi no sentido da serenidade e do respeito à Constituição e às regras, o que é correto". O senhor continua mantendo essa avaliação, sabendo que foi o Alto Comando que planejou esse tuíte?

Jungmann - Em primeiro lugar, é preciso entender o seguinte: a decisão é do comandante e ela é intransferível, porque foi ele que o publicou. Se ele chegou a ouvir, como está dentro do livro e não nos cabe duvidar, pode ter sido uma atitude, digamos, mais formal.

De todo o jeito, é uma atitude que considero que não é adequada para a necessária separação que tem que existir entre instituições. Nós estamos aqui falando de um outro poder, que é o Poder Judiciário, e ao mesmo tempo do não envolvimento do Exército e das Forças Armadas em questões tópicas, em questões de governos, na medida que são instituições do Estado.

BBC News Brasil - O senhor foi o último civil a ocupar o cargo de ministro da Defesa e, para muitos analistas, o controle civil das Forças Armadas é fundamental para a democracia. O senhor concorda com isso, acha que é melhor um civil controlar as Forças Armadas?

Jungmann - Olha, o grande controle a ser exercido pelas Forças Armadas se dá através dos órgãos de controle e, particularmente, através do Congresso Nacional e, no caso de conflito, pelo Judiciário.

Eu já fui adepto da tese de que o Ministério da Defesa deveria permanecer apenas nas mãos dos civis. Mas o controle deve sobretudo não prescindir de duas coisas: que o poder político civil tenha liderança e projeto para as Forças Armadas, e não existe isso, sobretudo na área da Defesa. Nosso poder político não exerce a sua liderança e tampouco tem demonstrado apetite por projetos para a defesa nacional.

No meu entendimento, é muito frágil você dizer "o controle depende de um civil". Você pode botar um civil lá, vamos supor uma situação absurda, que seja simplesmente uma marionete, que não tenha nenhum poder, não, não é isso.

O controle efetivo dos órgãos do Executivo está na mão do Congresso, só que o Congresso não exerce isso. No início, confesso a ti, eu entendia que deveria continuar a linhagem civil, mas depois melhor refletindo, eu vejo que nações democráticas colocam (militares no comando).

Eu estive, por exemplo, com o secretário de Defesa durante o governo Trump, o Jim Mattis, e ele é um ex-fuzileiro. Você teve mais até que Secretário de Defesa, você teve o secretário de Estado, o Colin Powell (ex-general que comandou o Departamento de Estado dos EUA entre 2001 e 2005). E alguém coloca em dúvida o controle civil sobre as Forças Armadas dos Estados Unidos? Ninguém coloca.

Então a questão não é tanto por aí. A questão, para mim, tem dois níveis: primeiro, o poder político civil não exerce suas prerrogativas na área de Defesa e também nas Forças Armadas. Em segundo lugar, um problema mais abaixo, que é o seguinte: o Brasil talvez tenha o único Ministério da Defesa do mundo em que você não tem um especialista civil, um gestor civil, de carreira, atuando.

Você não tem parlamentares que hoje dialogam e entendam sobre as Forças Armadas. Pode ter um ou outro perdido entre 513. Me lembro de ir, enquanto Ministro da Defesa, em audiências públicas e confesso, eu percebia no debate o desconhecimento ou distanciamento que existia. Como é que você quer liderar?

Então, essa é a minha visão: pode ter ministro civil, pode ter ministro militar, mas tem que ter uma grande base civil, com capacidade técnicas e científica lá dentro, participando desse processo e você precisa sobretudo que o Congresso Nacional assuma o seu papel, e ele não vem exercendo isso.

BBC News Brasil - Semana passada tivemos uma reviravolta política, o ministro do STF Edson Fachin acabou por anular as condenações do ex-presidente Lula. Na Folha de S. Paulo um reportagem afirmava que os militares viram com reserva o discurso do ex-presidente Lula depois da anulação. Eles teriam dito que podem ter dificuldade de relação com o presidente caso Lula venha a ser eleito em 2022. O senhor acha que pode ocorrer um problema nesse sentido?

Jungmann - Olha, se em 2022, o Mandetta, o Huck, o Doria, o Moro ou o próprio Lula, chegarem ao poder, eu posso lhe assegurar que da parte das Forças Armadas não terão qualquer impedimento ou dificuldade para governar.

Dentro das Forças Armadas existem, sim, aqueles que são antipetistas, como há aqueles que também tem a outra opção e são petistas, socialistas ou liberais, ou conservadores. Enfim, isso está tudo representado lá dentro.

Mas, eu posso dizer que hoje é consolidado o sentimento, até porque já viveram o governo Lula anteriormente.

O governo do PT durou 14 anos, infelizmente terminou como terminou, mas a verdade é que é no governo Lula que acontecem duas coisas importantes para as Forças Armadas. Em primeiro lugar, foi a edição de uma política e de uma estratégica nacional de Defesa.

E, além disso, é reconhecido que é desse período, que foi um período economicamente muito mais folgado, que houve um grande investimento na modernização e atualização das nossas Forças.

Então, eu digo isso como alguém que fez oposição ao governo do PT durante 14 anos, mas tem que reconhecer as coisas que de fato aconteceram e é isso que a gente tem a narrar.

Eu não vejo maiores problemas, seja com Lula, seja com quem for que chegue lá, o Mandetta, o Moro, o Huck e, evidentemente a continuidade do Bolsonaro. Serão recebidos da mesma forma, em linha com a Constituição.

BBC News Brasil - O general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva escreveu que "aproxima-se o ponto de ruptura" após a anulação das condenações de Lula. O senhor não vê isso como refletindo o que se pensa dentro das Forças Armadas ativas hoje?

Jungmann - Militares que estão na reserva usualmente têm uma visão em boa medida da Guerra Fria, do combate ao comunismo, da subversão e tudo mais, da política de segurança nacional e tal. São homens que deram e contribuíram pra nação e para pátria, mas permanecem ainda imersos em um clima que já não existe mais, que já não faz mais sentido.

De um modo geral, a reserva é assim. Ela fica numa posição, digamos assim, pré-queda do Muro de Berlim e às mudanças todas que o mundo teve, inclusive o próprio processo de redemocratização. Na reserva é comum, por exemplo, que não se aceite que as Forças Armadas não tenham um papel moderador, não tenham mais o papel de tutela e tudo mais que tinham no passado. Então eu acho que isso é a expressão de um pensamento que já não é o pensamento da Forças Armadas.

Não quero dizer que não existam lá dentro militares que pensem assim, mas a cúpula, as escolas de formação, esses oficiais superiores, já não são inclinados ou se deixam levar por esse tipo de percepção. Eles pensam muito mais na profissão e no respeito à democracia.

BBC News Brasil - Sobre seu período como ministro extraordinário da Segurança Pública (2018-2019), surgiu no contexto das mensagens vazadas entre o ex-juiz Sergio Moro e a Força Tarefa da Lava-Jato um diálogo do procurador Deltan Dallagnol em que ele diz que a ministra do STF Carmen Lúcia teria ligado para o senhor no episódio da guerra de liminares que quase libertou o presidente Lula, em 2018. Ele teria dito para o senhor que o Lula não deveria ser libertado. O senhor se envolveu de alguma forma nessa ação?

Jungmann - No dia que eu chamo de "prende-solta" do Lula, que teve duas ordens para soltar e duas ordem para prender, alternadamente, eu recebi ligações de todo mundo, de formadores de opinião, de pessoal de comunicação, de editor, de autoridade, ministro, o próprio presidente da República ligou e pediu que o mantivesse informado do que estava se passando.

Um dos telefonemas que eu recebi, foi exatamente da ministra Cármen Lúcia para pedir informações: "Jungmann, como é que tá isso? Como é que tá acontecendo?". Eu narrei tudo o que estava acontecendo, o conflito que estava se dando e, evidentemente, a dificuldade que tem a Polícia Federal, executora da ação judicial, de lidar com essa situação. E em seguida, ela me disse: "Eu vou soltar uma nota sobre isso. Eu estou preocupada", e eu disse: "Faça isso, senhora presidente". E nada mais trocamos.

Então, eu vou repetir o que eu disse quando me fizeram pela primeira vez essa pergunta: isso é uma mentira. Repito: é uma mentira. Não houve esse diálogo. A ministra é uma juíza e sabe que se ela assim procedesse, estaria incorrendo no crime de obstrução da Justiça. Se eu, porventura, recebesse - que não recebi - esse pedido, eu estaria incorrendo em obstrução de Justiça, o que obviamente não fiz.

Por isso mesmo, eu resolvi interpelar o senhor Deltan Dallagnol para que ele confirme e desminta isso, porque não faz nenhum sentido. Não houve nada disso de parte da ministra Cármen Lúcia, que então presidia o Supremo, e da minha parte.

Pelo amor de Deus, quando a Polícia Federal está trabalhando junto ao Judiciário, o ministro da Segurança Pública e da Justiça não tem poder nenhum, está se passando em outro poder. A Polícia Federal trabalha de mãos dadas com o Judiciário e quem poderia autorizar ou solicitar isso é exatamente o juiz da questão, o juiz do caso.

A mim não caberia e tampouco à senhora presidente do Supremo nenhuma ação, senão estaríamos cometendo um crime de obstrução de Justiça, o que nem ela e nem eu cometemos.


William Waack: Não ao mais do mesmo

A comoção nacional em torno da pandemia é o grande obstáculo à reeleição de Bolsonaro

Jair Bolsonaro ocupou a crista de duas ondas de grande amplitude política e social. A primeira o levou ao Planalto, num fenômeno que surpreendeu a ele mesmo. A segunda está muito próxima – se é que já não atingiu – do ponto de repetir em relação a Bolsonaro o que ocorreu na cabeça dos eleitores em 2018 diante de um candidato que representava Lula: a maioria não queria repetir mais do mesmo.

O “mais do mesmo” é a noção majoritária no público, e com alta probabilidade de se tornar irreversível, de que o governo Bolsonaro é incompetente para tratar da saúde e do bolso das pessoas. Em 2018 o presidente foi capaz de detectar as mudanças de sentimentos na política e como o “momento” se formava em seu favor. Agora, percebeu tarde, mas não entendeu a profundidade e a amplitude das emoções (e política é emoção) trazidas pela angústia, medo e insegurança ligados ao avanço da pandemia.

Uma boa parte da explicação para essa cegueira política está no próprio personagem Bolsonaro, refém de uma paranoica concepção segundo a qual tudo que lhe pareça adverso é resultado de conspirações de adversários reais ou imaginários para apeá-lo do poder e/ou impedir sua reeleição. Aliada a uma visão de mundo tosca e retrógrada, essa característica de personalidade – mais o fato de acreditar só na família – o levou a cometer grave erro político ao operar a troca do ministro da vez na Saúde.

Diante da pressão política e social causada pela percepção generalizada da incompetência governamental para combater a pandemia, Bolsonaro sentiu-se obrigado a sacrificar um peão, o general da Saúde que, involuntariamente, causou o maior dano recente à imagem da instituição à qual pertence, o Exército. Ocorre que essa percepção generalizada assume (corretamente) que os erros partem do próprio presidente, e que a troca de subordinados só teria efeito para inverter a narrativa dominante, fatal para quem quer se reeleger, se indicasse uma vigorosa correção de rumos.

Mas o que ficou no ar é a tediosa sensação de trocar seis por meia dúzia. Pior ainda, essa “mentalidade do bunker” à qual Bolsonaro está preso o levou a se isolar ainda mais na tentativa de aliviar a pressão política e social contra seu governo. Os que ele acusa, erroneamente, de tentar prejudicá-lo (governadores e prefeitos) são, na verdade, os que estão na primeira linha do combate ao vírus e mantêm uma relação direta com os parlamentares do Centrão, por exemplo. Que ficaram de fora.

No atual cada um por si é o Congresso que ocupa mal ou bem um papel central de coordenação de esforços e articulação num salve-se quem puder que está virando comoção nacional. Há forças políticas aliadas ao presidente dizendo a ele e ao público que essa comoção passa com a chegada em massa de vacinas e a esperada inversão das curvas de contaminação, hospitalização e mortes. E que a retomada da ajuda emergencial, mesmo mais tímida, permitiria a travessia do tempo necessário para que reformas como a administrativa (que corta despesas) e tributária (que reduz custos, ainda que não reduza a carga) sejam aprovadas e produzam efeitos.

É a tal janela de oportunidade da qual tanto fala o ministro Paulo Guedes. Em situação de tripla crise já seria uma aposta arriscadíssima, pois supõe que o tempo (e, de fato, falta muito até as próximas eleições) trabalharia a favor. Mas, no atual ambiente político no qual as opções de Bolsonaro estão se estreitando, a autoridade de seu governo se dissolvendo, seus adversários se organizando e a desmoralização da figura política do presidente atingindo avançado estágio de consolidação, virou uma aposta perigosíssima para ele.

Crises políticas e sociais da atual amplitude, abrangência e profundidade produzem em fases agudas respostas que a priori surgem como grandes surpresas, como foi a vitória de Bolsonaro em 2018. O cenário atual não indica que será a mesma resposta em 2022.


Correio Braziliense: Com possível corrida por reeleição estadual, Doria tem truco no PSDB

Os aliados precisarão correr atrás do governador paulista, que tem a alternativa de disputar a reeleição ao Palácio dos Bandeirantes, se o quiserem como candidato ao Planalto. No plano nacional, porém, o tucano enfrenta dificuldades e concorrentes

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

O governador de São Paulo, João Doria, cansou de ser chantageado e resolveu trucar na disputa interna do PSDB, ameaçando concorrer à reeleição. Primeiro, foi o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que se lançou pré-candidato e exigiu prévias na legenda. Depois, o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio também anunciou a intenção de participar das prévias; finalmente, o deputado Aécio Neves, recém eleito presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, anunciou que o PSDB pode não ter candidato a presidente da República e apoiar alguém de outro partido, o que foi interpretado como uma sinalização do ex-governador mineiro de apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cujas condenações foram anuladas pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin.

Doria enfrenta outras dificuldades com os aliados. O MDB, fundamental para viabilizar capilaridade nacional à campanha, assedia o vice-governador Rodrigo Garcia (DEM) para que se filie à legenda, o que complica a vida de Doria na sua própria retaguarda, porque o ex-governador Geraldo Alckmin, seu padrinho político, com certeza, concorrerá ao Palácio dos Bandeirantes se o PSDB não tiver uma candidatura própria. O DEM também subiu no telhado, desde a eleição para a Mesa da Câmara dos Deputados, quando traiu o apoio ao deputado Baleia Rossi (MDB-SP), deixando de ser uma legenda confiável no plano nacional por causa da aliança do ex-prefeito de Salvador ACM Neto com o presidente Jair Bolsonaro. E ainda tem a ala adesista do PSDB, que apoia Bolsonaro, como é o caso do senador Izalci Lucas (DF), vice-líder do governo no Senado.

Noves fora as conversas do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso com o apresentador Luciano Huck, cuja pré-candidatura à Presidência da República nunca foi assumida publicamente, num cenário como esse, a desistência de João Doria deixa os partidos do chamado centro democrático sem uma candidatura competitiva para enfrentar a polarização entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As outras opções são o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (GO), que também não conta com nenhuma garantia de que terá legenda no DEM. E o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, cuja candidatura é alicerçada no apoio popular à Operação Lava-Jato, um palavrão para a cúpula do PSDB.

Em vez de Doria buscar apoio, agora serão os aliados, se quiserem ter uma candidatura robusta à Presidência, que precisarão correr atrás dele, pois o governador paulista sempre tem a alternativa de concorrer à reeleição ao Palácio dos Bandeirantes, o vértice do sistema de poder que alicerça as alianças tucanas. Esse é o truco, o governador paulista dobrou a aposta. Foi decisiva para o gesto a entrevista de Aécio Neves, seu principal desafeto no partido, que ainda mantém grande influência na bancada federal, tanto na Câmara como no Senado. Suas declarações de que o PSDB poderia apoiar um candidato de outra legenda foram a senha para a “cristianização” de candidatura de Doria, que tem o precedente da aliança pirata do político mineiro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na campanha de 2002, colaborando para a derrota de José Serra (PSDB-SP).

Erros sucessivos

João Doria, porém, também tem culpa no cartório, porque cometeu vários erros na condução da política interna do PSDB. Primeiro, tentou expulsar Aécio Neves sem ter força suficiente para isso, apostando apenas na repercussão que o gesto teria na opinião pública. Segundo, tentou deslocar do cargo o presidente do partido, deputado Bruno Araujo (PE), num jantar em São Paulo no qual postulou a presidência do PSDB. O gesto foi muito mal recebido não somente pelo político pernambucano, mas por toda a cúpula do partido, abrindo espaço para que o governador gaúcho Eduardo Leite o desafiasse a disputar prévias, com amplo apoio das demais seções estaduais do partido.

Além disso, há dificuldades eleitorais propriamente ditas, porque Doria não larga bem na disputa pela Presidência. Tem à frente outros possíveis concorrentes, como Mandetta, Moro e Huck, todos de centro. O confronto com o presidente Jair Bolsonaro muito antes das eleições, por causa das vacinas, tampouco trouxe os ganhos eleitorais que imaginava, além de despertar uma oposição de direita ao seu governo constituída por setores que o ajudaram a chegar ao Palácio dos Bandeirantes. A candidatura do ex-presidente Lula também divide o eleitorado paulista, neutralizando o que deveria ser uma vantagem estratégica de Doria na disputa pela Presidência. Finalmente, como quase todo político paulista, o governador tem dificuldades para chegar junto aos eleitores do Norte e Nordeste, o que exige alianças com políticos dessas regiões. Como não tem nenhuma vivência parlamentar, seu trânsito acaba interditado no Congresso, tanto pelos desafetos tucanos como pelos aliados que querem levar vantagem em tudo.

Morre deputado que criticava vacinação

Morreu ontem, vítima de covid-19, em Cuiabá, o deputado estadual do Mato Grosso Silvio Antônio Fávero, autor de um projeto de lei que procurava vetar a obrigatoriedade da vacina. Fávero tinha 54 anos e estava internado desde o último dia 4 com complicações pulmonares. “O quadro de saúde se agravou nesta madrugada, chegando ao quadro de infecção generalizada”, informou a assessoria do deputado. Fávero apresentou, na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, um projeto de lei que visava a permitir que o cidadão optasse pela vacinação contra a covid-19. Na justificativa, alegou: “O projeto visa também a evitar que a vacinação seja compulsória, eis que, atualmente, subsiste insegurança quanto à eficácia e eventuais efeitos colaterais das vacinas”. Apesar de ser contrário à obrigatoriedade dos imunizantes, o deputado também apresentou projetos com o objetivo de desburocratizar a compra de vacinas.

Morreu ontem, vítima de covid-19, em Cuiabá, o deputado estadual do Mato Grosso Silvio Antônio Fávero, autor de um projeto de lei que procurava vetar a obrigatoriedade da vacina. Fávero tinha 54 anos e estava internado desde o último dia 4 com complicações pulmonares. “O quadro de saúde se agravou nesta madrugada, chegando ao quadro de infecção generalizada”, informou a assessoria do deputado. Fávero apresentou, na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, um projeto de lei que visava a permitir que o cidadão optasse pela vacinação contra a covid-19. Na justificativa, alegou: “O projeto visa também a evitar que a vacinação seja compulsória, eis que, atualmente, subsiste insegurança quanto à eficácia e eventuais efeitos colaterais das vacinas”. Apesar de ser contrário à obrigatoriedade dos imunizantes, o deputado também apresentou projetos com o objetivo de desburocratizar a compra de vacinas.


Almir Pazzianotto Pinto: O presidente e a reeleição

À semelhança da ditadura chavista, tudo será feito para repetir o regime militar

É inevitável a antecipação da campanha para as eleições presidenciais de 2022. O presidente Jair Bolsonaro lançou-se candidato à reeleição ao iniciar o governo. Renegou compromisso de campanha quando declarou que não tentaria reeleger-se. Seria honesto, mas tolo ou fracassado, se deixasse de fazê-lo. Ninguém abdica do poder, escreveu Maquiavel.

Ademais, promessa de candidato só compromete quem ouve. A frase, cujo autor ignoro, corresponde ao que há de mais mesquinho na política brasileira. Como os partidos não passam de legendas sem ideologia, promessas e programas de governo são redigidos para dar ao povo crédulo a sensação de que serão executados. Prometer algo que não se vai cumprir é estelionato eleitoral. Fosse punido, a maioria da classe política estaria na cadeia.

Jair Bolsonaro será candidato em 2022. Por qual partido ou coligação partidária não interessa. Será candidato graças ao instituto da reeleição, enxertado no Direito Constitucional brasileiro pela Emenda n.º 16, de 5 de junho de 1996, promulgada no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Não subestimem o capitão. Apesar de autoritário e rústico é esperto. Em seus planos deve estar o de filiação a legenda inexpressiva. Precisará apenas da legenda. Recursos e adesões serão obtidos pelo exercício abusivo do poder. Terá o apoio da ultradireita conservadora. Em cada quartel, clube de tiro e loja de armas encontrará aguerrido comitê eleitoral.

Quem busca a reeleição disputa uma corrida de obstáculos, com larga vantagem sobre os demais competidores. Ao ser dada a partida, terá a favor parcela apática do eleitorado. O elevado número de candidatos provoca, entretanto, dispersão dos votos e torna inevitável a segunda rodada de votação. No primeiro turno, os eleitores votam no candidato preferido. No segundo as possibilidades se igualam, pois a escolha é determinada pela rejeição.

São vários os nomes em circulação na bolsa de valores eleitorais. A quase certeza da derrota não evitará que partidos nanicos disputem com candidatura própria, ou em coligação.

Entre os grandes, no PSDB se apresenta o governador João Doria, mas depende da direção nacional, pois corre por fora o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. O insistente Ciro Gomes tentará pelo PDT. Fernando Haddad deve ser o preferido do PT, salvo se Lula resolver o problema da inelegibilidade. Guilherme Boulos virá pelo PSOL ou como vice do PT. O outrora poderoso MDB terá dificuldade para encontrar alguém apto a participar da prova. O melhor nome, deputado Baleia Rossi, é jovem e foi derrotado como candidato à presidência da Câmara dos Deputados.

Sergio Moro e Luciano Huck produzem ruído, mas falta-lhes cacife para jogar o pôquer eleitoral. Com os espaços congestionados, não será fácil para eles encontrar legenda, salvo se concordarem em concorrer à Vice-Presidência ou ao Senado.

Sob que panorama econômico e social serão disputadas as eleições de 2022? Essa é a questão. A vacinação em massa, boicotada por Jair Bolsonaro, será decisiva para o controle da pandemia. Não bastará, porém, para resolver os problemas da desindustrialização, do desemprego, da expansão da informalidade, do empobrecimento da classe média e da crescente miséria.

É possível e desejável que até o segundo semestre do próximo ano a pandemia tenha sido debelada. Dela, porém, ficarão terríveis marcas da morte de centenas de milhares de infectados. O tempo e o esquecimento cobrirão de silêncio a destrambelhada política do negacionista defensor das aglomerações e da cloroquina? Creio que não.

A política suicida do presidente Jair Bolsonaro, exposta pela maneira como conduziu o Ministério da Saúde, ao nomear para dirigi-lo general intendente do Exército, será relembrada por familiares dos mortos, infectados e precariamente tratados por falta de vacinas, de oxigênio, de vagas hospitalares.

Quanto à economia, dizem os pesquisadores ser provável que haja deterioração ainda maior neste e no próximo ano. A responsabilidade, na opinião de especialistas, cabe à falta de foco do governo e à incapacidade de avançar com agenda econômica liberal destinada a destravar os obstáculos enfrentados pelo País.

Como a oposição lidará com o problema e se organizará em frente única, é difícil saber. Afinal, os adversários do presidente Jair Bolsonaro revelaram, nos dois primeiros anos de mandato, total incapacidade de comunicação com a opinião pública. Não se ouviu na Câmara dos Deputados e no Senado um só discurso viril contra a criminosa maneira de o governo se conduzir diante da pandemia.

Há em curso projeto de permanência no poder a qualquer preço. À semelhança da ditadura chavista, tudo será feito para repetir o regime militar, desta vez com segunda eleição. Fica a advertência.

Com as vantagens asseguradas pelo exercício do cargo, controle do Tesouro Nacional e pacto com o “Centrão”, não será impossível nova emenda ao artigo 14, parágrafo 5.º, da Constituição.

*Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Fernando Gabeira: A vitória parcial do coronavírus

O desprezo pelo conhecimento fez do Brasil campo fértil para a devastação

Ainda não é hora do balanço final, mas já é possível afirmar que o Brasil foi devastado pelo coronavírus, com possibilidade de se tornar o país que mais sofreu com a pandemia. Sem mencionar as outras razões que nos isolam no mundo, o território brasileiro tornou-se um campo de observação para a humanidade, pois aqui surgiram perigosas mutações do vírus e nada garante que outras variantes não estejam em curso.

Com todo o respeito aos médicos e demais trabalhadores da saúde que batalham na linha de frente, comunicadores que tentam transmitir a dimensão do drama sanitário e grupos que se dedicam diuturnamente à solidariedade, todos combateram o bom combate, mas o saldo nacional é um grande fracasso.

Como é possível que um vírus triunfe sobre uma comunidade humana, neste momento de fácil comunicação e avanço da ciência? O que torna o Brasil tão vulnerável a um vírus mutante? Uma das razões é exatamente a nossa incapacidade de mudar com rapidez para enfrentar a nova situação.

Nenhum país teve um negacionista tão ativo na Presidência como o Brasil de Bolsonaro. Ele imaginou que o vírus seria uma grande ameaça ao seu governo, o impacto econômico poderia derrubá-lo. Daí seu esforço em negá-lo. E não apenas quanto à gravidade da contaminação, mas, sobretudo, no tocante às medidas necessárias para combatê-lo, como isolamento social e suspensão de algumas atividades.

Quando o novo coronavírus apareceu em Wuhan, na China, escrevi que ao chegar ao Brasil a única forma de combatê-lo seria uma resposta nacional e solidária. O comportamento de Bolsonaro mandou para o espaço a esperança de uma resposta nacional. Um passo importante nessa direção foi decapitar ministros da Saúde que reconheciam a importância do vírus e buscavam uma resposta articulada.

Graças ao STF, governadores e prefeitos tiveram reconhecido seu papel constitucional no combate ao vírus. Mas as constantes denúncias de corrupção enfraqueceram sua liderança em muitos Estados do País. No Rio, Witzel perdeu o cargo. A Polícia Federal fez incursões no Pará e no Amazonas. Respiradores foram comprados em lojas que vendem vinho. Em Santa Catarina o escândalo abalou o governo.

Esse processo na cúpula fortaleceu o ceticismo na base. O comportamento coletivo para atenuar os efeitos da pandemia não foi conseguido. Faltaram estímulos. Poucas foram as iniciativas de oferecer lugar para a quarentena, ou para levar água e facilitar a higiene. Poucas também para estabelecer conexão e facilitar aulas para as crianças, diversão para os adultos.

O negacionismo de Bolsonaro desarmou grande parte das iniciativas que a ciência aconselha. Testes foram esquecidos num depósito em Guarulhos. Para que testar? Não houve intenso esforço tanto para sequenciar o vírus quanto no caso das vacinas. Então o Brasil ocupou um lugar único: o presidente se opunha a elas, seja por ignorância científica ou por ignorância política, bloqueando os melhores produtos ocidentais e ironizando os do Oriente vermelho.

A luta contra o coronavírus numa população como a do Brasil é difícil. O vírus é invisível. Mesmo na Europa, os problemas radioativos provocados pelo desastre de Chernobyl encontraram muito ceticismo precisamente porque não eram visíveis.

Mas a ignorância de Bolsonaro não influencia apenas os 30% que o apoiam. Ela se estende por uma faixa da população que não se interessa por ele nem por nenhum outro político. Uma faixa que não vê benefícios em se ter um governo, muito menos em se sacrificar por um coletivo.

Quando Bolsonaro, na sua campanha obscurantista contra a vacina, insinuou que ela poderia transformar pessoas em jacarés, não estava pregando no vazio. Ele conta com a superstição popular. E não está totalmente equivocado. A ideia de pessoas se transformarem em bichos é presente no Brasil. A mula sem cabeça, por exemplo, é um mito que percorreu a nossa infância. Diziam que era uma linda mulher que virou animal porque transou com um padre. E quem se dedicar a estudar a religião tupi verá que os caraíbas, espécie de sacerdotes, difundiam suas crenças contra a religião colonial, mas se diziam capazes de transformar gente em bicho.

O Brasil perdeu a guerra contra o vírus porque ela dependia não só de disciplina, mas de conhecimento. Não somos disciplinados como os vietnamitas, por exemplo.

Mas, para além do individualismo, o desprezo pelo conhecimento fez do Brasil um campo fértil para a devastação. O governo subestimou remédios consagrados, como a vacinação em massa, e optou por falsas saídas, como a hidroxicloroquina.

Em todos os momentos o conhecimento foi espancado. Até mesmo na batida musical das festas clandestinas o Brasil celebrou a ignorância.

Pode ser que no balanço final alguns desses termos se alterem. Mas vista de agora, nossa derrota para o vírus foi a derrota de nossas lacunas educacionais, entendidas em sentido mais amplo, desde o estudo convencional, que nos faça acreditar no invisível, até o flagelo do obscurantismo oficial, a corrupção e uma incipiente cidadania que não acredita na ideia de um país.


Afonso Benites: Bolsonaro repete tática da chacota para mobilizar radicais e desviar atenção

Presidente testa de novo estratégia que até agora tem sido eficaz para manter sua popularidade em torno de 25%. A seu favor, Planalto tem ainda cúpula do Congresso. No entanto, atraso na gestão da vacina pode cobrar preço econômico e mudar jogo com empresários e investidores

presidente Jair Bolsonaro voltou a investir na sua política de confronto e de discursos diversionistas assim que confrontado com situações incômodas. O mandatário brasileiro dobra a aposta chamando de “frescura” e “mimimi” as práticas de distanciamento social quando há um recrudescimento da pandemia com mais de 1.600 mortos ao dia e após aumentarem as cobranças de governadores e prefeitos por uma coordenação nacional no combate à covid-19.

O ultradireitista choca e atrai para si os holofotes na semana em que seu primogênito, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), investigado por lavagem de dinheiro, comprou uma mansão de 6 milhões de reais em Brasília. Nem tudo, porém, cabe no script do ultradireitista. Diante da volta dos panelaços nas grandes cidades contra seu Governo, ele desistiu por dois dias seguidos de fazer um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão. E, apesar de ironizar a vacinação, tenta agora recuperar o tempo perdido para a compra dos fármacos sob a pressão de empresários que contam com imunização em massa para fazer a economia escapar de nova retração.

Nesta quinta-feira, Bolsonaro disse que quem defendia medidas restritivas de circulação de pessoas como uma das principais armas para conter o avanço da pandemia estava de “mimimi”. Na prática, retomou o discurso de um ano atrás, quando tentou emplacar a tese de que um isolamento social vertical, no qual apenas os grupos de risco se trancam em casa, seria o mais adequado para a sociedade brasileira. “Nós temos que enfrentar os nossos problemas, chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos de enfrentar os problemas. Respeitar, obviamente, os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades, mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?”, afirmou o presidente Bolsonaro durante um discurso em Goiás. A chacota contra as recomendações sanitárias ignora o sofrimento dos familiares e amigos de 260.970 pessoas que morreram de covid-19 no Brasil nos últimos doze meses.

Desde meados de fevereiro, diversos Municípios e Estados brasileiros passaram a intensificar políticas de distanciamento social, com o fechamento do comércio e escolas para conter a circulação da população e frear a circulação do coronavírus, já que ainda não há vacinas para todos os brasileiros. Menos de 5% da população foi vacinada no país. Com o discurso contrário, Bolsonaro tenta empurrar para prefeitos e governadores o custo político de medidas impopulares, além de atrapalhar as campanhas de conscientização pelo isolamento social.

Para um conjunto de juristas e segundo uma pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Conectas Direitos Humanos, Bolsonaro implementa uma política deliberada para sabotar ações contra a pandemia, e deveria ser punido penal e politicamente por isso. O presidente, porém, segue escudado por uma fisiológica base de apoio no Congresso Nacional ―recentemente reforçada por sua bem-sucedida operação ajudar a eleger a nova cúpula do Parlamento― que dificilmente apoiará um dos 60 processos de impeachment. Também conta, até agora, com um Procuradoria-Geral da República que não enxerga irregularidades em seus atos.

Seja como for, o presidente, contudo, tem tomado alguns cuidados. Ao mesmo tempo em agita sua extremista base de apoio, ele libera os seus subordinados a minimamente agirem contra a pandemia, sob pena de ver a economia naufragar e seus adversários políticos surfarem demais. Depois de o presidente e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, criticarem por dois meses as exigências feitas pela farmacêutica Pfizer, o Governo Federal decidiu avançar nas tratativas para a compra de 100 milhões de doses do imunizante dela até dezembro deste ano. O primeiro lote seria entregue em maio. Se aceitasse o contrato no passado, o país já teria recebido 70 milhões de doses em dezembro.

A corrida global pela vacina não é simples e o Planalto começa a colher reveses. Nesta quinta, ao conversar com apoiadores em Uberlândia (MG), ele reclamou das cobranças que recebe para adquirir os imunizantes. “Tem idiota nas redes sociais, na imprensa, [que fala] ‘vai comprar vacina’. Só se for na casa da tua mãe! Não tem para vender no mundo!”. É bem distinto da fala feita em 28 de dezembro do ano passado, quando afirmou que eram os vendedores quem deveriam buscar o governo brasileiro, e não o contrário. “O Brasil tem 210 milhões de habitantes, um mercado consumidor de qualquer coisa enorme. Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a gente? Por que eles não apresentam documentação na Anvisa?”, indagou a um grupo de apoiadores no Palácio da Alvorada. “Pessoal diz que eu tenho que ir atrás. Não, quem quer vender (que tem). Se sou vendedor, eu quero apresentar”, completou.

Jogo até 2022

A fórmula caótica de Bolsonaro tem lhe rendido lucros mínimos. Se ainda não tem ameaças graves no campo político um dos motivos é justamente a sua popularidade, com índices superiores a 25%. Além de ser um patamar considerado alto para que um presidente seja tido como descartável pelo mundo político, isso também quer dizer que, caso a eleição presidencial fosse hoje, muito provavelmente Bolsonaro estaria em um segundo turno. “As variáveis que tornaram possíveis a ascensão do bolsonarismo foram a crise econômica do Governo Dilma Rousseff [PT] combinada com a Operação Lava Jato. Esse movimento não se dissipa de um dia para o outro”, avalia o cientista político Antônio Lavareda, do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (IPESPE), que produz levantamentos frequentes atualmente para a corretora de investimentos XP.

Na visão de Lavareda, no entanto, a disputa eleitoral de 2022 pode mudar a equação porque acabará colocando quatro temas na mesa, todos em que Bolsonaro pouco progrediu: a atuação na pandemia, que tem sido catastrófica; a retomada da economia, ameaçada pela falta de vacinação em massa; o combate à criminalidade violenta; e a redução da corrupção. No mês passado, o levantamento XP-Ipespe mostrou que o presidente patina nos quatro grandes assuntos. Na condução do enfrentamento à pandemia, 53% consideram seu desempenho ruim ou péssimo. Com relação à corrupção, 48% acreditam que há a expectativa de aumentar a prática. Na percepção de 62% a violência e a criminalidade violenta aumentaram. E, para 57%, a economia segue no caminho errado. “A preço de hoje o presidente tem problemas importantes em três desses temas. E perdeu a grande dianteira que tinha no combate à corrupção, por causa de suas alianças atuais, pelo fim da Lava Jato e por causa dos casos mal explicados de seus filhos”, disse Lavareda.

Ao notar esses movimentos, o presidente persiste na radicalização de seu discurso e, como jamais desce do palanque eleitoral, espera confrontar algum adversário do campo da esquerda em um segundo turno. “Ao que parece, o presidente vai precisar ressuscitar os fantasmas de 2018, da corrupção, do descalabro econômico do Governo Dilma e da falsa ameaça comunista”, avaliou o cientista político.

De momento, o custo Bolsonaro não parece incomodar a Câmara dos Deputados, atualmente presidida pelo líder do Centrão e neobolsonarista Arthur Lira (PP-AL). Até agora poucos são os deputados fora do campo da oposição que defendem qualquer tipo de enfrentamento contra o presidente. A nova tentativa de atingir o Governo vem do pedido de criação da CPI do Auxílio Emergencial, que ainda colhe assinaturas para investigar fraudes que atingem o montante de 50 bilhões de reais na concessão do benefício.

Já no Senado, passaram a circular nos últimos dias conversas para que o presidente da Casa, Rodrigo Pachedo (DEM-MG), outro aliado tático de Bolsonaro, autorize a abertura da CPI da Saúde, que tem como objetivo investigar toda a atuação do Governo federal. Pacheco tem buscado argumentos para impedir a abertura desse grupo por entender que a apuração seria contraproducente no momento. Por ora, essa parede ainda protege Bolsonaro.


Fernando Abrucio: Bolsonaro nos afasta do século XXI

A covid-19 é o mal imediato, mas o problema mais profundo está na visão arcaica, míope e populista de nosso presidente

O Brasil chegou ao seu pior momento da pandemia e o governo Bolsonaro tem apenas sabotado o país. Milhões de casos, milhares de mortes, sistema de saúde em colapso, aumento da pobreza e da desigualdade, além do confronto com governadores, prefeitos e mercado, tudo de uma vez só. Esse é o retrato atual da nação. Mas é possível ver a luz do fim do túnel e imaginar que no segundo semestre, após a vacinação de boa parte da população e com os ventos positivos da economia internacional, sairemos do momento mais crítico da crise. O problema é que o dia seguinte da covid-19 deixará o rei nu, mostrando que o presidente não tem a menor ideia do que fazer para enfrentarmos os desafios do século XXI.

Muitos analistas já estão apresentando um cenário pós-pandemia alvissareiro, com melhor desempenho econômico em 2022. Por esta ótica, a crise sanitária da covid-19 é o “bode na sala”: basta retirarmos esse bicho que nos incomodou tanto que tudo voltará ao normal. Trata-se de uma visão míope, que olha apenas para o curto prazo.

Há dois grandes erros nesta percepção de que a pandemia é apenas o “bode na sala”. O primeiro deles deriva do fato de que haverá sequelas da crise impulsionada pela covid-19. Não será fácil apagar a dor dos parentes que viram seus próximos morrerem, das pessoas que sofreram com a doença, daqueles que perderam emprego ou tiveram sua vida virada de cabeça para baixo. A vacinação em massa e o impulso externo têm boas chances de ativar a roda da economia até o fim do ano, mas as taxas de desemprego dificilmente voltarão ao patamar anterior à eleição de Bolsonaro.

Uma das sequelas da crise é o aumento, ainda em curso, do contingente de descontentes que não mudarão sua visão apenas com a melhoria do cenário econômico. Puxando esse processo, há uma parcela significativa da população que avalia muito mal a gestão da política de saúde, algo que foi catapultado pelo fracasso inicial no processo de vacinação. Na verdade, consolidou-se num patamar próximo à metade do eleitorado, uma visão negativa sobre a capacidade de o governo gerir qualquer coisa. O fracasso não ocorreu apenas no plano sanitário. Ele também é nítido, especialmente para a população mais pobre, na política educacional, que foi abandonada por um MEC que nem consegue gastar o dinheiro que tem. A sensação de incompetência também aparece em outros setores, como meio ambiente e cultura, por exemplo, nos quais o bolsonarismo só fez por destruir.

Assim, além do radicalismo dos valores e da lógica política de guerra, o modelo bolsonarista caracteriza-se hoje, para grande parte da população, como um governo de incompetentes. Há uma enorme lista de ministros e auxiliares que são reconhecidos pela opinião pública como desastrosos. Mesmo que a economia seja puxada um pouco para cima, quase que naturalmente, pelo fim da pandemia, não parece haver muito espaço para Bolsonaro ampliar seu eleitorado por meio de políticas públicas.

Não por acaso a sua presidência alicerça-se numa concepção que independe ou é contraditória com uma lógica estruturada de políticas públicas. Bolsonaro busca legitimidade no terreno dos valores tradicionais, na criação de inimigos para seu séquito de apoiadores odiar e, cada vez mais, em medidas populistas que não são sustentáveis ao longo do tempo, mas que geram um alívio imediato em públicos-alvo importantes do bolsonarismo. Todo o debate recente sobre os preços dos combustíveis, com a mudança abrupta na gestão da Petrobras e a criação de um paliativo tributário, tem como objetivo contentar momentaneamente caminhoneiros, motoristas de aplicativos e afins. O que será feito para garantir no longo prazo essa política está fora do alcance do populismo bolsonarista.

Em poucas palavras, a crise da covid-19 revelou claramente que o governo Bolsonaro é adepto de um populismo imediatista, pouco preocupado em construir políticas públicas consistentes e bem estruturadas, seja porque seleciona basicamente gestores incompetentes, que estão lá porque têm juízo de obedecer, seja porque o bolsonarismo não tem nem um diagnóstico nem um plano para transformar o Brasil.

A falha da visão otimista alicerçada na teoria da pandemia como “bode na sala” vai além de não perceber as sequelas deixadas pela gestão populista da crise da covid-19. O maior problema do bolsonarismo reside na ausência de uma agenda para enfrentar os desafios do século XXI. O governo oscila entre a defesa de ideias completamente ultrapassadas e a proposição de ações puramente imediatistas. Trata-se um populismo que bebe em visões arcaicas de sociedade e do modelo político - incluindo aqui sua defesa nefasta da ditadura militar -, ao mesmo tempo que procura saídas fáceis para resolver as demandas do eleitorado, como mudanças no Código Nacional de Trânsito como forma de “libertar” os motoristas ou a ampliação gigantesca do uso de armas como forma de garantir a paz do “cidadão de bem”.

A opinião pública em geral e as elites econômica e política continuam discutindo as ações e os factoides de curto prazo criados por Bolsonaro, mas deixam de lado a ausência de uma agenda minimamente antenada com as principais questões contemporâneas. Esse fenômeno já vinha de antes, porém, aprofundou-se com o bolsonarismo: perdemos a capacidade de pensarmos o futuro do país e de dialogarmos com as principais tendências internacionais.

Por isso, quando sairmos da fase mais crítica da pandemia, precisamos elencar quais são os grandes desafios para os quais devemos nos preparar nos próximos anos. Cinco deles serão decisivos como passagem a um século XXI melhor: questão ambiental, educação, novas formas de desenvolvimento econômico, combate às desigualdades e aperfeiçoamento da governança democrática.

A temática ambiental é relevante para todo o mundo, todavia, é muito mais importante para o Brasil, por causa de nossa riqueza e diversidade de ecossistemas, especialmente da Amazônia. O meio ambiente tem que se transformar num ativo para o desenvolvimento do país. Qualquer outra perspectiva é anacrônica e nos levará a perder apoio econômico e geopolítico.

O segundo desafio é o da educação. O Brasil precisa, aqui, fazer duas tarefas ao mesmo tempo: acabar com as mazelas derivadas de um longo tempo de letargia educacional e, sobretudo, criar pontes para o futuro. Professores e gestores mais qualificados e em constante renovação, métodos didáticos inovadores que ampliem as possibilidades formativas dos alunos, formas colaborativas de gestão, parcerias com a sociedade e um modelo educacional comprometido com a maior equidade das crianças e jovens, eis os pontos que deveriam ser discutidos agora. Mas, no momento, o MEC está completamente ausente deste debate.

Explorar as potencialidades econômicas do país de uma forma criativa, antenada com as tendências futuras e captando as singularidades brasileiras deveria ser uma tarefa central hoje. Várias frentes de produção de riqueza podem surgir: atividades culturais e de entretenimento, melhor exploração do meio ambiente pela agroecologia e pelo turismo sustentável, empreendedorismo das periferias, criação de novos serviços com tecnologia da informação, reorganização dos grandes centros urbanos, uso de fontes renováveis de energia, avanço da infraestrutura sob bases mais modernas, para ficar em alguns dos temas mais contemporâneos e fascinantes. Há um enorme espaço para novas formas de desenvolvimento, que podem ativar e renovar o restante da economia.

O combate às desigualdades é essencial para mudar a cara do Brasil no século XXI. É preciso atacar as profundezas desse fenômeno, ampliando as oportunidades para um enorme contingente de pessoas que estão alijadas do processo de desenvolvimento. Não se trata de políticas compensatórias de curto prazo. Em vez disso, são necessárias ações estruturais, baseadas num planejamento de longo prazo. A redução das iniquidades de diversas ordens - de renda, racial, de gênero, regional - vai não só tornar o país mais justo e solidário (algo essencial para a melhoria da ação coletiva, como a pandemia comprovou), como também vai aumentar o espaço sustentável de desenvolvimento econômico.

O quinto e último desafio é aperfeiçoar e fortalecer a governança democrática do país. Isso passa pelas estruturas institucionais mais gerais, como as eleições, as relações entre os Poderes e a responsabilização da administração pública, bem como pela cultura política, incentivando o diálogo social permanente e o reforço das formas solidárias de ação coletiva. Ter mais e melhor democracia tem efeitos positivos sobre todas as coisas. Basta pensar que novas pandemias podem surgir no futuro, e o Brasil não poderá repetir a vergonha que foi ter conjunto enorme de indivíduos atuando de forma egoísta, sem respeitar o distanciamento social e ignorando o uso de máscaras, o que se somou a um líder nacional que não teve empatia com os milhares de cidadãos mortos.

Começar a refletir, debater e planejar para atuar nestes cinco desafios é tarefa urgente. O pós-pandemia, neste sentido, é muito mais complexo do que o debate rasteiro que tem sido feito no Brasil. Pior: Bolsonaro não quer dialogar ou mesmo ignora os desafios do século XXI. A covid 19 é o maior mal imediato, mas o problema mais profundo do país está na visão arcaica, míope e populista de nosso presidente.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas


Maria Cristina Fernandes: O léxico mortífero de Bolsonaro na crise sanitária

Prisão de deputado por ofensa a um poder contrasta com a inimputabilidade de um presidente que, ao longo de 12 meses, foi determinante para a posição do Brasil no pódio mundial da covid-19

1) “Obviamente temos uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é tudo isso que a grande mídia propaga pelo mundo todo” (10/2/2020)
Discurso para a comunidade brasileira em Miami, três dias depois de chegar à Flórida, onde jantou com o então presidente Donald Trump. Nas semanas que se seguiram, 23 integrantes da comitiva foram diagnosticados com o vírus. No dia seguinte, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu a pandemia. No dia 26 seria oficializado o primeiro caso de coronavírus. O Ministério da Saúde depois reconheceria que havia casos, sem diagnóstico, desde janeiro.

2) “O que está errado é a histeria, como se fosse o fim do mundo. Uma nação como o Brasil só estará livre quando certo número de pessoas for infectado e criar anticorpos” (17/03/2020)
Entrevista à rádio Tupi. No dia anterior, o Ministério da Saúde havia notificado a primeira morte por coronavírus, depois ratificado para 12 de março. No dia seguinte à entrevista, o presidente solicitou a calamidade pública para suspender artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal.

3) “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho” (24/03/2020)
Pronunciamento em rede nacional. No dia seguinte, o presidente baixaria decreto incluindo atividades religiosas de qualquer natureza e unidades lotéricas entre atividades essenciais durante a pandemia.

4) “O tratamento da covid-19, à base de hidroxicloroquina e azitromicina, tem se mostrado eficaz nos pacientes ora em tratamento” (25/03/2020)
Postagem em redes sociais. A produção de hidroxicloroquina pelo Laboratório Químico do Exército chegaria a 80 vezes a média histórica, com compra de insumo 167% mais caro que a média do mercado. Em maio a OMS suspenderia estudos sobre a hidroxicloroquina em função dos efeitos adversos do medicamento.

5) "Eu acho que não vai chegar a esse ponto [a situação dos Estados Unidos]. Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele". (26/03/2020)
Declaração a apoiadores em frente ao Alvorada. Nesse dia, a Secretaria de Comunicação do governo lança a campanha “Brasil não pode parar”, com a informação de que, no mundo todo, são raros os casos de vítimas fatais do coronavírus entre jovens e adultos”.

6) “O vírus está aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”(29/03/2020)
Declaração a apoiadores em aglomeração em Brasília. No dia seguinte, o Ministério da Saúde suspende as entrevistas diárias sobre a pandemia. Dois dias depois, Trump diz que avalia a possibilidade de banir vôos provenientes do Brasil.

7) “Ninguém vai tolher meu direito de ir e vir” (10/04/2020)
Declaração em aglomeração formada pelo presidente durante ida a farmácia em Brasília. Dois dias depois, o então ministro Luiz Henrique Mandetta se queixa, em entrevista ao Fantástico, que o brasileiro não sabe a quem escutar, se a Bolsonaro ou a ele, Mandetta.

8) “Eu não sou coveiro” (20/04/2020)
Responde a jornalistas na saída do Alvorada sobre a escalada de mortes da pandemia. Naquela semana, demitiu Mandetta e deu posse a Nelson Teich.

9) “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagre” (28/04/2020)
Em resposta a jornalistas à saída do Palácio do Alvorada. Brasil ultrapassa a China em número de casos confirmados. Estudo do Imperial College, de Londres, mostra que o país tem a maior taxa de contágio do mundo.

10) “Eu gostaria que todos voltassem a trabalhar, mas quem decide isso não sou eu, são os governadores e prefeitos” (01/05/2020)
Em ‘live’ por ocasião do Dia do Trabalho. Dias depois, acompanhado de empresários, atravessa a pé a praça dos Três Poderes para uma visita ao então presidente do STF, Dias Toffoli, a quem se queixa da decisão do Supremo pela autonomia dos Estados e municípios na gestão da pandemia.

11) "Os senhores, com todo o respeito, têm que chamar o governador e jogar pesado. Jogar pesado, porque a questão é séria, é guerra. Estou exigindo a questão da cloroquina agora também” (14/05/2020)
Em videoconferência com empresários. Na véspera, Teich alertara sobre efeitos colaterais da hidroxicloroquina. Presidente edita MP que isenta agentes públicos de responsabilização por atos e omissões na pandemia. Congresso não vota e a medida caduca.

12) “Quem for de direita toma cloroquina, quem for de esquerda toma tubaína” (19/05/2020)
Entrevista ao Blog do Magno. Brasil ultrapassa a marca dos mil mortos pelo coronavírus em 24 horas. Quatro dias antes, Teich se demitira. Assume interinamente o general Eduardo Pazuello, que adota protocolo para uso da cloroquina e da hidroxicloroquina.

13) “Alguém lembra da guerra do Pacífico? Os soldados chegavam feridos e precisavam de transfusão, mas não tinha doador. Começaram a meter água de côco na veia deles. Sem comprovação científica, salvou milhares de pessoas” (22/05/2020)
Declaração em live. Dois dias depois, EUA proíbem entrada de estrangeiros que tenham partido do Brasil. Dez dias depois, Bolsonaro passeia a cavalo por Brasília durante atos antidemocráticos.

14) “STF decidiu que os governadores e prefeitos é que são responsáveis por essa política, inclusive isolamento. Agora está vindo uma onda de desemprego enorme […] Não queiram colocar no meu colo” (07/06/2020)
Declaração à saída do Alvorada. Na véspera, governo tira do ar plataforma do Ministério da Saúde com informações consolidadas sobre a pandemia, levando os meios de comunicação a formar consórcios para atualizar os dados.

15) “Seria bom você, na ponta da linha, tem um hospital de campanha aí perto de você, um hospital público, arranja uma maneira de entrar e filmar. […] tem que fazer para mostrar se os leitos estão ocupados ou não, se os gastos são compatíveis ou não" (11/06/2020)
Declaração a apoiadores à saída do Alvorada. Universidade Johns Hopkins coloca o Brasil como o segundo em número de mortes. Uma semana depois, o Brasil ultrapassaria a marca de 1 milhão de casos.

16) “Eu sou a prova viva de que [a cloroquina] deu certo” (18/08/2020)
Declaração em inauguração de obra no Pará. Bolsonaro é diagnosticado em 6 de julho, no mesmo dia em que veta dispositivos da lei que obrigava estabelecimentos a fornecer gratuitamente a funcionários máscaras de proteção. Dali a um mês, quando o Brasil já contava 130 mil mortos, Pazuello seria confirmado na Saúde.

17) “Isso existe, os países se preparam para guerras, até com bombas. Aí tem a guerra nuclear, bacteriológica. Pessoal mexe com vírus em laboratório, pode ter escapado isso aí” (28/10/2020)
Declaração a apoiadores à saída do Alvorada. Na semana anterior, o Ministério da Ciência e da Tecnologia anunciara estudos sem evidências sobre inibição da carga com o vermífugo Anita.

18) "Está acabando a pandemia [no Brasil]. Acho que [o Doria] quer vacinar o pessoal na marra rapidinho porque vai acabar e daí ele fala: 'acabou por causa da minha vacina'. Quem está acabando é o governo dele, com toda certeza" (30/10/2020)
Declaração a apoiadores à saída do Alvorada no início da guerra das vacinas com o governador paulista.

19) “Lá no meio dessa bula está escrito que a empresa não se responsabiliza por qualquer efeito colateral. Isso acende uma luz amarela. A gente começa a perguntar para o povo: você vai tomar essa vacina?” (16/12/2020)
Entrevista à TV Bandeirantes. Dois meses depois, seria tornada pública carta da Pfizer com a oferta da vacina ao Brasil.

20) "A questão da máscara, ainda vai ter um estudo sério falando sobre a efetividade da máscara… é o último tabu a cair” (26/11/2020)
Declaração na ‘live’ semanal. Anvisa autoriza prorrogação excepcional da validade dos testes depois que o “Estadão” informou que mais de 6 milhões de testes perderiam a validade.

21) "Eu não vou tomar vacina e ponto final. Minha vida está em risco? O problema é meu” (15/12/2020)
Discurso na Ceagesp, em São Paulo. Na semana anterior, 11 ex-ministros da Saúde haviam publicado artigo- denúncia da estratégia de vacinação.

22) "A pandemia, realmente, está chegando ao fim […] pequeno repique pode acontecer, mas a pressa da vacina não se justifica” (19/12/2020)
Entrevista ao programa do filho, Eduardo Bolsonaro. Na semana seguinte, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) eleva o imposto de importação sobre cilindros que armazenam gases medicinais.

23) “Quem frequenta a praia pega um sol, e o sol é o que fixa a vitamina D no corpo. Tiveram problemas graves? Não. A solução está aí” (07/01/2021)
Declaração em live semanal. No dia seguinte, Supremo concede liminar para impedir que a União requisite agulhas e seringas contratados pelo Estado de São Paulo.

24) “Nós demos dinheiro, recursos e meios. Não fomos oficiados por ninguém do Estado na questão do oxigênio” (27/01/2021)
Declaração no Alvorada. Duas semanas antes, Pazuello dissera saber da crise de oxigênio. Governo escolheu Manaus, onde se acumulam mortes por asfixia, para lançar o aplicativo TrateCov, que sugeria hidroxicloroquina e ivermectina até para bebês.

25) “O pessoal fica buscando alternativas já que não existe remédio específico e, pelo que tudo indica, o tratamento da covid em casos graves tem tudo pra dar certo com esse spray” (16/02/2021)
Live gravada em Camboriú (SC) sobre a negociação de compra de um spray nasal de Israel, o único país que já conseguiu o patamar seguro de vacinação de sua população.


Murillo de Aragão: As crises e as oportunidades

O Brasil foi desarmado para a guerra contra a pandemia

Como disse Pedro Malan, no Brasil até o passado é incerto. Avaliar o debate sobre a PEC Emergencial antes de sua aprovação é temerário. No entanto, quando escrevia esta coluna o Senado já tinha aprovado a proposta de emenda constitucional de forma razoável: abrindo espaço para o auxílio emergencial com a manutenção do teto de gastos. E, em meio a intenso debate, a emenda provavelmente será definitivamente aprovada nesse formato.

A aprovação definitiva da PEC Emergencial respeitando a integridade do conceito de teto de gastos é apenas uma batalha na guerra travada neste momento pelo povo brasileiro. A questão fiscal permanece relevante com o futuro debate do Orçamento da União e o andamento das reformas constitucionais e infraconstitucionais. Mas outras batalhas estão em curso.

Meus leitores sabem que, no fim de janeiro do ano passado, coloquei aqui mesmo minhas preocupações com a epidemia que vinha da China. Alertava que seria um imenso desafio para governos e sociedade. E com repercussões alarmantes, caso se alastrasse. Tempos depois escrevi Ano Zero, livro que traz uma reflexão sobre a economia e a política no pós-pandemia e que está disponível em Veja Insights, no site desta revista.

“O auxílio emergencial foi essencial, mas não houve um programa de retomada do crescimento”

Embora minhas preocupações e as de outros tenham sido transmitidas às autoridades ainda em janeiro, o Brasil partiu desarmado para a guerra contra a pandemia. Eventos tão extraordinários como esta crise sanitária exigem foco, liderança e planificação. Aspectos que foram insuficientes ao longo da evolução da pandemia. Pela capacidade econômica do Brasil, nosso programa de vacinação deveria ter sido iniciado em dezembro do ano passado. Não fosse a “vachina” do Instituto Butantan, a nossa situação seria muito, muito pior. Em tempos de pandemia, cada dia desperdiçado resulta em vidas perdidas e atrasos na retomada das atividades.

No campo econômico, as respostas foram parciais e, de alguma maneira, não houve uma tragédia maior. O auxílio emergencial foi essencial, mas não se traçou um programa estruturado de retomada do crescimento econômico da magnitude que situações como a pandemia exigem. Não há saída de crises profundas sem esforços organizados. Foi assim na Grande Depressão, dos anos 30, no pós-­guerra dos anos 40 e após o crash de 2008.

Todos sabem que as crises também significam oportunidades. Perdemos a chance de debater soluções estruturantes para a miséria, a pobreza, a economia informal, a qualidade da educação e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Ficamos no meio do caminho cuidando da questão fiscal e distribuindo dinheiro para os necessitados. Não basta. Infelizmente, o país não para de validar a frase do economista Roberto Campos: “O Brasil não perde a oportunidade de perder uma oportunidade”.

A pandemia nos dá a possibilidade de encaminhar questões estruturais, que deveriam ser enfrentadas com determinação, organização e patriotismo. Sobraram chiliques, meias verdades, guerra de egos, conflito de competências, indefinição e negacionismo. Milhares de pessoas morreram. E essa tragédia poderia ter sido, pelo menos, minimizada.

Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728


Armando Castelar Pinheiro: Sabor de fim de festa

Pandemia, populismo, inflação alta e um cenário externo menos favorável vão complicar o quadro econômico

A matéria de Lucas Hirata, manchete do Valor de uma semana atrás, impressionou: A bolsa de valores “sofreu fuga recorde de capital externo após a intervenção do presidente Jair Bolsonaro na Petrobras. Investidores estrangeiros retiraram, segundo a B3, R$ 9,2 bilhões no período de três pregões desde o estouro da crise”. No mês, os estrangeiros tiraram R$ 6,8 bilhões da bolsa, depois de três meses investindo uma média de R$ 28,3 bilhões ao mês. Com essa virada, não surpreende o Ibovespa ter caído 5,1% em fevereiro.

Dois fatos determinaram esse movimento, nenhum deles provável de ser revertido nos próximos meses.

Primeiro, a percepção de que o “estilo populista” do presidente influenciará cada vez mais na política econômica, conforme as eleições se aproximem e a economia siga sem se recuperar.

Reflita um instante sobre a coreografia da crise da Petrobras. O mandato de Roberto Castello Branco estava acabando e ele logo poderia ser substituído, sem ruído ou o presidente se envolver. Este, porém, optou por comandar a mudança, via a imprensa, com grande alarde, supostamente para impedir uma paralisação de caminhoneiros. Como mostrou Malu Gaspar, porém, esse risco não existia (glo.bo/3kD06MY). A conclusão é que a “crise” foi construída do nada, para colocar o presidente do lado do “povo” contras as “elites”. Nas suas palavras: “O petróleo é nosso? Ou é de um pequeno grupo no Brasil?”.

Ao fim, a ruidosa destituição de Castello Branco rendeu o resultado que buscava: grande exposição do presidente na mídia.

Até aí, trata-se de estilo político. Ocorre que o evento trouxe grande prejuízo para os investidores, e não apenas os estrangeiros, e não apenas da Petrobras, mas de empresas estatais em geral. A gestão dessas empresas ficará mais difícil, afetando seu desempenho. A gestão da política econômica também se complica, inclusive nas negociações no Congresso, pois se perde segurança sobre que posições defender. Levar a MP de privatização da Eletrobras ao Congresso, ou iniciar o debate da reforma do monopólio postal, não muda isso: a chance de um dos dois avançar é mínima no quadro atual, em que pese o esforço dos envolvidos.

E fica no ar a dúvida de se algo semelhante ocorrerá em outras áreas da política econômica. Me preocupa, em especial, o não trivial ciclo de alta da taxa Selic que o Banco Central (BC) deve iniciar em sua reunião de daqui a duas semanas. A Selic a 2% está bem fora de lugar, considerando a perspectiva de uma inflação girando perto de 7% no meio do ano, a mudança no quadro externo e a necessidade de evitar riscos à estabilidade financeira. Será que o presidente manterá nessa nova etapa o mesmo apoio que deu ao BC quando este trouxe a Selic para 2%? Ou será que, com a economia estagnada, e a pandemia se agravando, veremos uma repetição do episódio Petrobras, se se opor à alta da Selic render popularidade?

O outro fato propulsor da saída dos estrangeiros foi a mudança de humor global em relação a ativos de países emergentes e ativos de risco em geral. Esta resultou da escalada dos juros pagos nos títulos públicos americanos, refletindo a expectativa de inflação e de juros reais mais altos. Isso porque a provável aprovação de um pacote fiscal de US$ 1,9 trilhão e o impulso advindo da vacinação, que já alcançou um quarto da população americana, devem aquecer fortemente a economia do país, levando o Fed, o BC americano, a subir os juros antes do que se esperava.

Uma economia americana mais aquecida fará o país ter um déficit externo mais alto, irrigando o mundo de dólares. Por outro lado, se os EUA forem vistos como o melhor destino dos investimentos, pela perspectiva de mais crescimento e de juros mais altos, o fluxo de recursos financeiros para lá será grande. O resultado líquido provavelmente será um dólar mais forte, que é algo ruim para emergentes e o Brasil em particular, que já está com o câmbio muito depreciado.

Difícil imaginar como evitar uma alta mais significativa da Selic nesse cenário. Especialmente porque o Brasil seguirá crescendo pouco e demorando muito para alcançar um nível mínimo de normalização sanitária, fatores que o tornarão pouco atraente para o investidor estrangeiro, mesmo na comparação com outros emergentes.

Durou pouco para nós, portanto, o clima de festa que emergiu com o anúncio da vacina contra a covid-19 no início de novembro. É verdade que a vacinação vai acelerar nos próximos meses, que com isso o desempenho da economia pode melhorar no segundo semestre, e que sempre há a esperança de o Congresso aprovar reformas que diminuam o risco fiscal e estimulem o investimento. Mas será que dá para apostar em avanços substantivos?

Pandemia, populismo, inflação alta e um cenário externo menos favorável do que se imaginava na virada do ano vão complicar o quadro econômico nos próximos meses. Turbulência e incerteza, em um mercado financeiro internacional também volátil, vão ser a norma até que as eleições de 2022 tragam alguma ancoragem às expectativas.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ 


César Felício: O grande eleitor e o fator de ruptura

Bolsonaro tem a sorte de poder contar com a oposição

A pandemia e a dificuldade do presidente Jair Bolsonaro em lidar com ela superaram as expectativas mais negativas do mais delirante pessimista. Tudo que pôde dar errado deu, desde escolhas equivocadas na definição das vacinas a serem usadas até o surgimento no país de uma variante especialmente maligna, pouco antes do início da imunização.

O próprio presidente também foi muito além do que se podia imaginar para quem esperava dele um papel de liderança. No dia em que a Nação começava uma escalada rumo ao abismo, à vertigem de mais de um morto por minuto, essa foi a palavra do chefe de Estado: “Nós temos que enfrentar os nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”.

Na sequência, quem começou o mimimi foi ele: “Fui eleito para comandar o Brasil, espero que este poder me seja restabelecido. eu sou um democrata, criticam decisões que tomam contra mim e eu não reajo”, argumentou.

Soma-se a esse desastre verbal a circunstância econômica. O auxílio emergencial virá, menor do que o do ano passado. Compensações para a redução de jornada e salário serão feitas, também, mas inferiores O espaço fiscal para crédito a empresas em dificuldades tende a ser mais reduzido. Estas três variáveis significam que a economia ficará muito mais exposta à devastação da pandemia neste primeiro semestre do que ficou em 2020.

Tudo isso desgasta o presidente, cuja popularidade encolhe na pobreza sem auxílio e cuja rejeição cresce nos segmentos urbanos desesperados com a lentidão da vacinação. O normal, nessas circunstâncias, seria considerar as perspectivas políticas de Bolsonaro sombrias. Foi um combo parecido com esse que terminou por derrotar Donald Trump. Mas aqui não é assim.

Nada, por agora, retira a dianteira de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022, mas antes a condiciona. O presidente torna-se mais dependente de variáveis que não controla.

“O Bolsonaro presidente não tem muito o que entregar para o Bolsonaro candidato”, comentou Antonio Lavareda, presidente do conselho científico do Ipespe, experiente em pesquisas de opinião. O grande eleitor de Bolsonaro, mais decisivo do que o eleitor evangélico e conservador, é a oposição, mais precisamente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O antipetismo ainda é mais relevante que o antibolsonarismo. Se Lula estiver no segundo turno contra Bolsonaro, a eleição presidencial parece resolvida a favor do presidente.

“Percebemos nas simulações que fazemos que, quando Lula é colocado na lista de candidatos, Bolsonaro cresce. Lula tem rejeição absolutamente cristalizada e acirra a polarização”, diz Lavareda.

O ex-presidente por ora está inelegível, dado que tem condenação por órgão colegiado, o que o enquadra na Ficha Limpa. A reversão desta restrição pelo Judiciário, contudo, está longe de ser improvável. A candidatura de Lula, mesmo fadada à derrota, é atraente para o PT. O partido talvez se preocupe mais em manter sua gorda fatia do fundo partidário e uma bancada expressiva no Legislativo do que tirar Bolsonaro do poder.

Se em vez de Lula o candidato petista for Fernando Haddad, o panorama fica um pouco menos risonho para a reeleição de Bolsonaro. “A personalidade política de Haddad está menos sedimentada para o eleitor. Embora ele tenha disputado em 2018, não ficou em evidência ao longo dos últimos anos e o eleitorado vai se modificando”, diz Márcia Cavallari, da Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec), a empresa para onde migrou boa parte do corpo técnico do antigo Ibope.

As opções contra a polarização patinam. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), antagoniza Bolsonaro com todas as pontes com o eleitor de esquerda rompidas, depois das campanhas de 2016 e 2018. Também briga dentro do seu próprio partido. “Ele não tem a direita, não tem a esquerda e não tem o centro”, comenta Lavareda. O ex-governador cearense Ciro Gomes (PDT) faz muito sucesso nas redes sociais, mas não sai do lugar. Essencialmente dialoga com um público fiel.

Para barrar o Fla X Flu entre Bolsonaro e PT, o mais factível seria o surgimento de uma novidade desestruturante, um fator de ruptura. Para Maurício Moura, do Instituto Ideia Big Data, que está permanentemente testando cenários para a eleição de 2022, a empresária Luiza Trajano tem potencial para exercer este papel. “Ela dá um passo além de ser uma simples novidade. É uma empresária, conhecida por ter lojas no Brasil inteiro com seu nome, que dificilmente se enquadra em um cenário de polarização”, comenta.

Em relação ao fator potencialmente disruptivo mais comentado, que seria uma candidatura do apresentador Luciano Huck, ela teria a vantagem de poder navegar em faixas do eleitorado nas quais ele tem dificuldades. Huck vai bem no eleitorado feminino, mais pobre, menos instruído, mais jovem, do Nordeste. É um eleitor semelhante à sua audiência. Luiza transita nesta faixa por inteiro, mas é capaz de entrar em um segmento de renda mais alta no Sudeste que não assiste o Caldeirão.

O ponto fraco de Luiza Trajano, caso ela se anime a se apresentar, é o fato de talvez chegar tarde demais. Tanto Lavareda, quanto Moura e Márcia Cavallari veem um cenário em 2022 adverso a entrantes de última hora.

“A atividade política hoje ganhou uma dinâmica inversa à que vínhamos tendo. Antes podia ser estratégico um candidato novo mas relativamente conhecido ter a menor campanha possível. Hoje a campanha precisa ser longa, para que dê tempo inclusive de se reagir a toda maré de informações negativas que podem surgir”, disse Moura.

“Não basta ser simpática e ter empatia, como Luiza Trajano tem. É necessário também ser vista como presidenciável. Huck faz este esforço há cinco anos e ainda não terminou este processo de construção”, comentou Lavareda.

Sem fato novo que surja a galope e com a improvável sociedade estabelecida com o PT, Bolsonaro parece livre para fazer qualquer bobagem e ainda assim ser reeleito. Da parte que cabe a si, e não à ajuda involuntária dos adversários, precisa ter atenção a dois limites: sua popularidade não pode baixar o patamar de 20% de aprovação e o mercado precisa seguir vendo-o como o mal menor. Do contrário até a conclusão do mandato está em risco.


Ruth de Aquino: Sem lockdown nacional, teremos 3 mil mortos por dia

Quem diz isso é o médico, neurocientista e professor catedrático Miguel Nicolelis. Sem 21 dias de lockdown nacional, o Brasil entrará numa “guerra explícita”, “um prejuízo épico, incalculável, bíblico”. E será já neste março. A pneumologista Margareth Dalcolmo receia que o mês seja lembrado como “o mais triste de nossas vidas”. A saída é lockdown ao estilo europeu: “Duas semanas ao menos. Zero circulação. Sem shopping, sem restaurante, sem BRT. A não ser serviços essenciais. Para reduzir a transmissão e desafogar hospitais, enquanto se produzem mais vacinas”.

Parece radical. Mas o Brasil é um dos poucos que jamais recorreram ao lockdown. Só jeitinho, embromação, apelo à consciência cívica. Países civilizados sabiam que não bastava pedir empatia a uma população instruída. Fecharam. A única forma de salvar milhares de vidas era o lockdown temporário, com auxílio emergencial aos mais pobres para ficar em casa. Toque de recolher, agora, é uma medida cosmética, porque o vírus circula muito mais durante o dia. O BRT lotado é um viveiro de Covid. 

No desespero, enfermos são transferidos para outras cidades em busca de ar. Jovens caem doentes. As novas variantes do vírus são mais contagiosas e mais letais. Os anticorpos de alguém que já teve Covid são nove vezes menos eficientes para combater a nova variante amazônica. Governadores choram diante dos frigoríficos da morte. Não adianta ter mais leitos apenas. Não tem mais médico nem enfermeiro. 

Em julho, Nicolelis previu 200 mil mortos até o fim do ano, se não fizéssemos testagem e isolamento social. Alarmista? Atingimos essa marca na primeira semana de 2021. Nicolelis deixa muito claras as opções para o Brasil. Lockdown. Lockdown. Lockdown. E, claro, vacinação em massa. No ritmo atual, ditado pela incompetência política, diplomática e logística do governo, só em dois anos e meio todos os adultos estariam imunizados. 

Em fevereiro, capitais como o Rio pararam de vacinar. Por falta de imunizante. Foram sete meses de conversa de Pazuello com a Pfizer. Agora, o ministro se confunde com datas e até de estado. A história das negociações de vacinas no governo Bolsonaro será enquadrada um dia como crime de guerra. Fomos vítimas de barganhas de preço, atritos diplomáticos e burocracias.

Nicolelis disse à edição brasileira do El País: “John Barry, o maior historiador norte-americano de pandemias, escreveu que, mesmo com a ciência moderna, o que decide o destino de uma sociedade na pandemia é a decisão política, a opção política dos líderes de defender a população. Por isso você é eleito, para liderar mesmo nos momentos em que a coisa correta a ser feita é impopular”.

Temos um simulacro de presidente que despreza máscaras e vacinas. Derrama palavrões, cloroquina e armas. Um líder covarde que culpa governadores, prefeitos e a mídia. “Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos”. Diante dos atuais 260 mil mortos, mais uma ofensa hoje às famílias que perderam : “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?” Até que o senhor seja deposto.

O Congresso, cúmplice, festejava sem máscara há dias e agora encena um minuto de silêncio. O Supremo age por espasmos. E por isso a população jamais entendeu a gravidade da pandemia. Só os cientistas alertam, mas são persona non grata no governo. O alerta da Fiocruz esta semana é dramático. Não há mais tempo.

Mas o Brasil tem estrutura para imunizar 1 milhão de pessoas por dia. Usando drive-thrus, escolas, ginásios, postos. Apelando para as Forças Armadas. Vejo jovens militares de farda camuflada vacinando civis nos Estados Unidos. Entendem de guerra. Essa é uma guerra biológica. Não sejam, aqui, soldados de Bolsonaro nessa matança. 

Engajem-se na vacinação. Se o mundo nos ajudar mandando vacinas, poderemos imunizar 2 milhões por dia. A palavra de 2021 é “colapso”. Colapso da vida e de uma nação. Se Bolsonaro temia um Brasil vermelho, agora o mapa está ficando roxo. Roxo de vergonha e luto.