reeleição

José Roberto Mendonça de Barros: Existe futuro para a indústria?

Estamos longe da trajetória de crescimento sustentável, se comparado com o PIB global nas últimas décadas

O Brasil deixou de acompanhar o crescimento global desde 1980. Esse distanciamento se acentuou depois do novo milênio e, em particular, após 2010: nesse período, o PIB global cresceu 31%, enquanto o nosso mal se moveu, expandindo-se até o ano passado pífios 2% na última década.

A pandemia aumentará essa diferença, pois, na estimativa do FMI, o crescimento mundial deste ano será robusto, de 5,5%, e, para o Brasil, de 3,6%. A expectativa da MB é de um crescimento mais fraco, de apenas 2,6%. O cenário está desolador, com recrudescimento da covid, falta de vacinas, recorrentes restrições à mobilidade, piora generalizada nas expectativas, enfraquecimento do mercado de trabalho, fortes pressões inflacionárias e consequente elevação de juros e forte incerteza fiscal. Todos esses elementos dominam completamente a situação, ao contrário do mundo de fantasia que se vive em Brasília.

Mesmo o mais otimista observador do cenário brasileiro há de concordar que estamos muito longe de uma trajetória de crescimento sustentável. 

Nos anos mais recentes, observamos uma desaceleração forte e sistemática do crescimento industrial. Isso explica boa parte da perda de dinamismo da economia como um todo. Sugere também que, sem algo novo na indústria, será difícil retomar uma trajetória construtiva. 

Ao lado da queda da indústria, observamos uma expansão sistemática da agropecuária, baseada em investimentos e crescimento de produtividade. Esse processo se tornou endógeno e está levando a uma crescente utilização de produtos industriais e serviços no processo de produção (o modelo da agricultura de precisão). Expandem-se cada vez mais a produção de novos energéticos, alimentos e materiais, a partir das matérias-primas agrícolas, gerando uma produção industrial sustentável e biodegradável. 

Será possível voltar a crescer sem a participação intensa da indústria? Não creio. Boa parte do progresso tecnológico ainda ocorre no setor. O Brasil ainda não tem maturidade nem massa crítica em ciência e inovação para ser um gerador de tecnologias, de forma a viabilizar a criação de valor sem indústria.

Como, então, explicar sua queda sistemática? Por que o setor agroindustrial tem sustentabilidade em seu crescimento? Existe alguma lição que se possa extrair para a indústria? 

Boa parte das análises produzidas pelas lideranças industriais coloca exclusivamente no ambiente externo (o “custo Brasil”) a razão fundamental da perda de dinamismo. Estará aí toda a verdade? 

Estamos no momento em que é imperioso debater valores e elementos das estratégias das indústrias para refletirmos a respeito de ações e políticas que possam alavancar seu desenvolvimento. 

Junto com João Fernando Gomes de Oliveira, elaboramos um pequeno texto no qual, sob o título desta coluna, buscamos resumir nossa visão sobre como chegamos até aqui e o que deveria ser incorporado na formulação de bases para uma nova fase do setor. 

Tendo isso como ponto de partida, combinamos com Marcos Lisboa e o Insper a realização de um webinar no dia 6 de abril, quando analisaremos também casos bem-sucedidos, que podem iluminar caminhos futuros. Participarão adicionalmente do evento João Paulo Gualberto da Silva, diretor superintendente da WEG Energia, Eduardo Augusto Ayrosa Galvão Ribeiro, presidente da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), e Paulo Hartung, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores. (www.insper.edu.br/agenda-de-eventos/existe-futuro-para-industria) 

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Consolidou-se a percepção de que a escassez de vacinas e a piora na situação da pandemia irão reduzir o crescimento esperado para o ano, levando muitos analistas a diminuir as projeções feitas em janeiro.

Embora não tenhamos alterado nossa previsão de crescimento (2,6%), elevamos a do IPCA para 5%.

Em consequência, agiu bem o Banco Central ao iniciar a normalização da política monetária nesta semana, embora tenha demorado para perceber que a pressão inflacionária é mesmo forte e tem de ser enfrentada. 

*ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE


Luiz Sérgio Henriques: Os bárbaros entre nós

Há setores da esquerda dispostos a sacrificar os direitos humanos se as ditaduras são ‘amigas’

Nem mesmo quando a pandemia grassava nos Estados Unidos sem perspectiva de controle, e o então presidente Donald Trump perdia o trunfo de alguns ganhos econômicos que podia alardear, era totalmente certa sua derrota nas urnas. Não importava muito que os democratas houvessem encontrado em Joe Biden uma saída equilibrada e confiável, de resto quase sempre à frente na maioria das pesquisas pré-eleitorais. Na verdade, tão espalhado é o mal-estar difuso nas democracias, tão grande a crise do político, mais além das crises convencionais da política, que o campo aberto à disposição dos demagogos parece inesgotável, possibilitando-lhes passes de mágica e ilusionismos vários até há pouco próprios só do realismo fantástico.

Convém ter isso claro ao analisar o momento atual do presidente Bolsonaro no penúltimo ano de mandato, já se podendo prever, sem margem a dúvida razoável, o quadro catastrófico que se abriria em caso de reeleição. Os números negativos sobre seu desempenho no (não) enfrentamento da pandemia – um evento excepcional – ou na administração regular dos problemas do País podem até subir consistentemente, como parece ser a tendência, mas sempre sobrará para esse tipo de líder a tentação do desatino fatal: o ataque frontal às instituições, iconicamente representado no assalto ao Capitólio.

Além disso, a derrota de Trump ao fim do primeiro mandato – como assinalou Yasha Mounk, que de populismo autoritário entende – não seguiu o padrão habitual. É que, em média, tais líderes tendem a ficar mais tempo no poder do que primeiros-ministros e presidentes comprometidos com as regras da alternância, e os eleitores só os defenestram depois de já seriamente comprometidas as instituições.

Nada simples desvendar o segredo de tal resiliência, mas o fato é que esses dirigentes autoritários expressam e estimulam um contexto em que há imensas falhas tectônicas entre os territórios da política e da economia. A primeira, ainda basicamente vivida e pensada em termos nacionais; a segunda, crescentemente globalizada, sem instituições que a regulem e garantam a correção dos desequilíbrios provocados por seu movimento “cego”. Retomar o controle nacional sobre o movimento da “máquina do mundo”, fechar fronteiras, destruir os fóruns de cooperação mundial e, por certo, acirrar conflitos externos e a guerra interna de classes, eis a substância da distopia que incendiou a imaginação de políticos e ideólogos do novo populismo.

Por isso o léxico de que se valem os nacionalistas autoritários é impressionantemente monótono: a “América primeiro”, de Trump, é o lema que tentaram, ou tentam, retraduzir em suas nações Salvini, Erdogan, Orban, Le Pen. Entre nós, o “Brasil acima de tudo” trouxe em si o aspecto irônico de ser um nacionalismo contraditoriamente dependente de outro, e ademais, com a vitória de Joe Biden, agora órfão na parte ocidental do mundo. E o “Deus acima de todos”, independentemente do que pensarmos sobre a profundidade da vida espiritual de quem nos governa, sintetiza no plano retórico a disposição de usar, sem moderação e a despeito dos processos de secularização que supúnhamos consagrados, a arma do fundamentalismo religioso.

O cardápio envenenado implica a volta aos valores de um passado muitas vezes pré-iluminista, a proposição de uma modernidade reacionária e amputada da dimensão do individualismo democrático, para nada falar do marxismo, seja lá a extensão ou o sentido a ser atribuído a esse termo. O recuo às fronteiras nacionais, por óbvio, tem como consequência abdicar da capacidade de pôr de pé uma ordem mundial minimamente cooperativa e pacificada: até o comércio entre as nações se torna a continuação da guerra por outros meios. Em cada país individualmente considerado, as marcas evidentes são a democracia sem liberalismo, o Führerprinzip como a realidade por trás do slogan do “povo no poder”, bem como o recurso permanente às rançosas lutas culturais, na falta de projeto hegemônico consistente. E naturalmente, com o isolacionismo, a intensificação do racismo e da xenofobia.

Tudo seria simples demais, os campos estariam bem demarcados e só restaria partir para o bom combate do voto e das ideias, não fosse o fato perturbador de que também há setores da esquerda de orientação “soberanista” e antiliberal, dispostos a sacrificar o legado iluminista e até os direitos humanos, quando os ditadores são “nossos” e as ditaduras, amigas. Não se trata só de crasso erro prático, capaz de minar a prática das alianças e das amplas frentes em prol dos valores democráticos. Trata-se, também, de insuficiência teórica que impede ver em toda a sua amplitude os processos de democratização política e social, bem como o papel que neles tiveram os “subalternos”, em geral representados por socialistas em conflito – mas também em colaboração – com liberais e mesmo conservadores.

É essa dinâmica aberta e generosa, historicamente decisiva, que convém restaurar o quanto antes, mesmo porque os bárbaros estão às portas e, ai de nós, em alguns casos já as derrubaram.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Paulo Fábio Dantas Neto:Democracia como vacina política e as cloroquinas de ocasião

Dedico a coluna de hoje ao Dr. Severino Elias, médico com profundo sentido de missão, que nos deixou ontem, depois de semanas de luta pessoal contra a Covid. Essa foi, porém, apenas a sua batalha final. Antes desse desfecho, chorado por quem perdeu o amigo e a referência profissional, houve um ano de dedicação e bravura cotidianas para não abandonar seus pacientes, apesar dos mais de 70 anos de idade e quase 50 de serviços prestados. Dele é possível dizer, sem exagero, que doou sua vida a uma vocação. Eis a razão desta homenagem, que me vale, também, de estímulo para escrever o que segue.

Peço perdão a Cabral (o João) por passar agora da evocação de uma morte e vida severina, alegórico exemplar do seu poema imortal da humanidade brasileira, para uma alusão à mais abjeta negação de qualquer humanidade. Incluo, a contragosto, entre as reflexões de hoje, as mais recentes agressões psicopáticas do presidente da República à dor infinita do povo que ele deveria defender. Evocar seus ares debochados com as vítimas da falta de ar e o seu incentivo perverso a saques e outras violências incalculáveis é um introito necessário ao argumento que aqui procurarei desenvolver.

O desespero de incontáveis pessoas está fazendo com que se disponham a pagar qualquer preço para que Bolsonaro seja tirado, o quanto antes, do lugar de poder que ele desonra. Compreensível desejo que não pode, contudo, nos distrair da hipótese de que um Putin militar esteja nos aguardando na esquina. O que o Dr. Marcelo Queiroga está prometendo fazer caso assuma mesmo o Ministério da Saúde pode dar ideia do que seria o resultado da substituição do presidente por seu vice, se feita de modo imprudente, sob pressão desse desespero, ou por sua manipulação. Seria cloroquina, nada mais.

Confirmam-se, no MS, sombrias conjecturas. O que era péssimo com o general Pazuello, ensaia piorar. Sua queda banal - que para muitos parecia ser cirurgia providencial, a ponto de se apostar fichas numa CPI de tempestividade e eficácia duvidosas - não diminuiu a premência da vigilância constante da fera, pela  comunidade da saúde, imprensa e sociedade, assim como não provou ser medida mais eficaz do que o tratamento paliativo, tópico, atenuante, conservador, com que a atitude prudencial do Congresso e do sistema político de um modo geral, contém efeitos dos impulsos de morte emanados do palácio. 

O médico que se quer impor ao ministério é mais perigoso do que o general destrambelhado. Ele pode destilar o veneno da dúvida na opinião técnica, dividi-la, isso resultar em maior desorientação ainda da população e essa desorientação, por sua vez, alimentar ainda mais aglomerações e outras atitudes de risco, às quais terão que corresponder atitudes mais duras de polícias estaduais. Tudo isso gera um altíssimo potencial de conflito político entre poderes e de confrontos de rua, inclusive físicos, entre pessoas. Em síntese, o caos social expresso em desordem. Essa é, ao fim e ao cabo, a meta que Bolsonaro persegue, enquanto finge preocupar-se apenas com as urnas. Resistamos ao autoengano: se urnas prometem, cada dia mais, ser um pesadelo para ele, não se deve esperar que marchará para elas como se fosse um líder democrático, porque ele é a antítese disso. É claro que precisamos estar cientes de que o subversivo fará tudo que estiver ao seu alcance para virar a mesa antes disso.  E que quem comanda nossas instituições não pode vacilar um só dia na vigília para impedi-lo de tornar seus planos realidade.

Impedir não é, contudo, virar a mesa antes dele, permitindo que o impulso autocrático que ele encarna retorne ao jogo com força. O tratamento conservador, da democracia sem atalhos, continua sendo crucial para a saúde política e social desse paciente em estado crítico que é o nosso país, por mais enervante e angustiante que essa linha de conduta seja.  Democracia é a vacina, tudo o mais, cloroquina.

Embora a queda de Pazuello sequer tenha sido consumada na prática, as primeiras pistas oferecidas pelo agente Queiroga, um projeto de Dr. No (personagem de romance de Ian Fleming, popularizado pelo cinema, ao fazê-lo antagonista de James Bond, o agente 007), permite também imaginar o que seria um pós-bolsonaro antecipado sob a batuta salvacionista do ex-general Mourão. Ou mesmo a investidura desse último, como quer a procuradoria do MPF junto ao TCU, na gestão do combate à pandemia. Nenhuma morte já marcada para ocorrer, por falta de remédios, oxigênio, ou leitos, deixaria de ocorrer. Mesmo se um anti-bolsonarista autêntico (que nem de longe é o perfil do ex-general em causa) chegasse ao MS, levaria semanas, talvez meses, para conseguir o que hoje falta para salvar vidas de novas dezenas, talvez centenas, de milhares de brasileiras e brasileiros marcados para morrer anonimamente.

É preciso ver que se torna cada dia mais difícil conter a revolta e a suposição de alívio que a ideia de Bolsonaro ser logo afastado produz. Nessas condições, a solução proposta ao TCU, se considerada, poderá produzir mesmo algum alívio, se for uma tentativa de, ao menos, impedir o prolongamento da atual tragédia seguindo semestre afora, que é a missão dada, pelo visto, ao ministro que consta estar prestes a assumir. Ficam, mesmo assim, dúvidas, que nada têm de laterais, sobre o que ou quem levaria Mourão - caso assumisse a gestão da pandemia e até cancelasse a virtual nomeação de Queiroga - a tirar os militares do Ministério da Saúde e sobre até onde iria o seu poder para tirar, de agências governamentais externas ao MS, outros agentes que poderiam ajudar Bolsonaro a minar uma suposta nova política sanitária para perpetrar a próxima etapa do seu plano macabro. Questões em aberto.

A partir dessas dúvidas, alguém poderá argumentar, com alguma razão, que esse paliativo não resolve, sendo preciso afastar Bolsonaro, não apenas da gestão da pandemia, como do próprio cargo que ocupa. Mas ainda que sigamos esse raciocínio aparentemente pragmático, respaldado pela intensidade da atual tragédia sanitária, é preciso indagar, de saída, em que bases poderia surgir, de fato, um novo governo e não apenas a troca do ex-capitão por um ex-general no comando do mesmo governo. Quem, nessa situação ditada pelo desespero, poderia exigir de Mourão o desmonte do atual governo e do dispositivo paramilitar que foi nele introduzido e, com isso, constituir um governo de transição? Mais provável seria que tomássemos o caminho da Rússia, mudando expectativas e regras, para manter a situação.

Com isso não quero dizer que alternativas intermediárias arriscadas devam ser preliminarmente afastadas, em qualquer hipótese. Algo que se considera provável não é sempre uma fatalidade, claro. A política democrática pode criar caminhos onde parece haver apenas muros e precipícios. Essa é a sua missão legítima, desde que se respeite a Constituição, a premissa que a legitima. Mas o que não se pode é ser afoito, ou ingênuo, diante dos perigos. Para evitar risco de Rússia, o melhor é aguentar as pontas até 2022, no limite máximo do possível. E correr o risco de que tentem invadir, antes, o nosso capitólio. Será custoso defendê-lo, mas igualmente preciso.

O desafio à resiliência democrática já era grande, antes da reentrada de Lula no primeiro plano da cena política. Agora, a situação torna-se ainda mais complexa e precisa ser analisada por ângulos diversos. De um lado, é óbvio que mais gente do topo, do establishment, seja civil ou militar, tende a ser tomada, como se fossem ultra-esquerdistas voluntariosos, por uma súbita e suspeitíssima pressa de livrar logo o país de Bolsonaro e entregá-lo a um guardião que atalhe o caminho até as urnas, não para calar a voz do demos soberano, mas para modular a sua fala. De outro lado, a visibilidade que ganhou, há dez dias, uma primeira alternativa pré-eleitoral concreta a Bolsonaro pode fortalecer e animar democratas de várias orientações políticas a persistirem na aposta na democracia, apesar das tentativas de bloqueio a essa reta visão que, por vezes, tornam sinuoso esse caminho.

No horizonte está, como é óbvio, uma eleição daqui a um ano e meio. Ainda bem que assim é. Ligada a esse horizonte, sem se prender exclusivamente a ele, é que pode prosperar uma política de unidade democrática. Com o cuidado de não se fazer dela um evangelho oco, desligado da realidade cotidiana das pessoas comuns. Tão importante quanto pregar unidade é deixar claro o que se quer dizer com ela.

Proclama-se a torto e a direito a necessidade de uma “frente única” contra Bolsonaro. Essa frente única não é e nunca foi provável, do ponto de vista eleitoral. O que se pode ter, ou melhor, o que temos tido é uma frente amplíssima em defesa da democracia contra as investidas golpistas e autocráticas do palácio e de suas cercanias espúrias, visíveis e invisíveis. E mais recentemente nota-se também a formação de uma frente política e social igualmente ampla, em prol de vacinas, de vacinação e do provimento, na contramão da desorientação deliberada que Bolsonaro dá ao governo federal, de mínimas condições de governabilidade e de amparo médico, hospitalar e social nesse instante crítico da pandemia.

Mas isso é uma coisa e a questão pré-eleitoral é outra. Não há como juntar as forças políticas democráticas, de direita, centro e esquerda em torno de uma única candidatura já no primeiro turno das eleições presidenciais.  Se pensarmos bem, isso nem seria desejável, pois anteciparia o segundo turno para o primeiro sem que os eleitores pudessem captar o posicionamento atual de cada força política. Essa visão turva tenderia a reeditar o script de 2018 e o resultado dele, como sabemos, é o desastre que vivemos hoje. Lula e o PT podem até ser protagonistas no novo cenário, sem que isso signifique flertar com a tragédia. Flertar com a tragédia será, sim, repetir, não tanto os atores, mas aquele script. Entre a proliferação de candidaturas ao centro e à esquerda (como houve em 2018) e a antecipação de um segundo turno ainda durante o primeiro, um meio termo é desejável e possível.

Dois processos de agregação oposicionistas podem ocorrer, um na centro-direita, outro na centro-esquerda e ambos tenderem ao centro, com seus candidatos evitando, ao máximo, trocar farpas e assim prepararem terreno a uma aliança no segundo turno. A agregação da esquerda ao centro dificilmente se fará em torno de outro nome que não Lula e de outro partido que não o PT. Já a que pode ir da centro-direita ao centro é só incerteza se o critério for a intenção de voto, cuja medição, hoje, só pode refletir o recall de 2018. Se o critério for o capital político estimado como potencial de voto, a incerteza diminui e sobressai, como já comentei aqui na semana passada, o nome ex-ministro Luiz Mandetta. 

A possibilidade de uma saída desse tormento por uma via democrática torna legitimo que se fale, sim, abertamente, de política, em plena pandemia. Sei que o preço em vidas para manter a democracia está sendo muito alto. Mas os países que conhecem o seu valor, pagam, porque sabem que ela, a democracia, é a única vacina disponível e que, fora dela, não há solução melhor e mais sustentável do que as lentas e penosas soluções que, através dela, a política pode construir. Essa convicção - sem a qual uma sociedade se torna escrava – é que impede elites políticas e sociedade civil de alienarem a condução do país a autocratas, cloroquinas que estão sempre de plantão. Saber recusar, no meio de uma tragédia social, esse barato que afinal sairá mais caro, é teste definitivo de maturidade democrática. A sociedade que passa por esse teste não só se livra do inimigo - ainda que tarde e chore muitas perdas severinas - como submete à justa punição, na devida hora, quem a ele se aliou na hora de batalhas decisivas. 

 *Cientista político e professor da UFBA


Cristovam Buarque: Turno único

Democracia em risco

Diversos candidatos se propõem a impedir a reeleição do atual presidente. Na medida que a eleição se aproxime, disputarão mais entre eles do que contra o opositor deles. Porque vão concentrar a disputa na busca de chegar ao segundo turno. Seus adversários serão seus aliados. Ao concentrarem a disputa entre eles, os candidatos criarão antagonismos que serão levados até o segundo turno, por eles próprios e por seus eleitores.

Vimos isto em 2018, quando os candidatos que perderam no primeiro turno não se empenharam na campanha de Haddad, quando este chegou ao segundo turno. Muitos dos eleitores preferiram votar nulo ou branco ou simplesmente se ausentarem. Isto ocorre em qualquer tempo, muito mais em momentos de confrontos e acusações radicalizadas, como atualmente. Apesar de que Bolsonaro hoje assusta e indigna mais do que em 2018, depois de tantas acusações, será o envolvimento pleno dos perdedores, apoiando quem chegar no segundo turno.

Os candidatos democratas que percebem este risco têm a obrigação de evitar um segundo turno e consequentemente o risco de um novo mandato para o presidente atual. Devem perceber também que o papel desempenhado pelas Forças Armadas nestes dois anos e a farta disseminação de armas entre bolsonarista podem levar a um “terceiro turno” nas ruas, caso ele perca por uma margem estreita no segundo turno. As afirmações de que não acredita nas urnas eletrônicas e de que prevê fraudes indica uma possibilidade de se manter no poder, usando milícias para invadir Congresso e Tribunal Eleitoral, prender ou eliminar adversários.

As forças democráticas devem evitar este risco: construir uma aliança que una os partidos e os candidatos para vencerem logo no primeiro turno, por uma diferença indiscutível, e em função disto estruturarem um governo de concertação nacional, sem o qual será difícil levar adiante o novo governo diante das sequelas das epidemias e malditos que afligem o país.

É preciso colocar o país na frente dos interesses e posições de cada partido e de seus líderes, seus programas e ambições. Construírem uma unidade vencedora e capaz de conduzir o país. Para tanto, é preciso reconhecer os erros cometidos no passado, aceitar que não foi dada a devida prioridade para reformas estruturais que servissem às necessidades das camadas pobres, nem aquelas necessárias para ajustar o Brasil ao futuro, além de que foram mantidas indecentes mordomias e privilégios. Sobretudo, houve aparelhamento partidário da máquina do Estado que permitiram a corrupção avassaladora sobre as estatais.

Nada disto pode ser ignorado, e a Justiça deve ser feita. Cumprida a Justiça em relação aos crimes do passado, a Política precisa olhar o futuro. Os juízes devem prender quem for preciso prender, os políticos devem dialogar com quem for preciso para salvar o País. Em busca de vencer Bolsonaro no primeiro turno, por uma margem que acalme seus fanáticos desarmados e constranja suas milícias armadas.

Se não for possível o impeachment antes, ainda é tempo de construir-se um turno único contra Bolsonaro em 2022.

*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro


Armando Castelar Pinheiro: Heranças da pandemia

O Brasil terá pressões inflacionárias, juros externos mais altos, desemprego elevado e alimentos mais caros

 Chegamos ao meio de março sem conseguir acelerar o ritmo da vacinação nacional. Ao todo, foram 12 milhões de vacinas aplicadas a pouco mais de 4% da população brasileira. Em termos de vacinas por 100 habitantes (5,5 no Brasil), somos o 39º país de uma lista que tem Israel (110) no topo e, na sequência, Emirados Árabes Unidos (67), Reino Unido (40), Chile (40) e Estados Unidos (35). Por conta da focalização nos grupos de maior risco, nesses países já há alguma normalização da atividade econômica, como refletido em indicadores de mobilidade e emprego, por exemplo.

Essa “luz no fim do túnel” tem estimulado trabalhos que discutem a herança deixada pela pandemia, seja em termos de problemas que ficam por resolver, seja de lições para lidar com futuras crises.

Alguns desses temas foram discutidos no workshop “Macroeconomia de la pandemia y los impactos de Covid-19 en América Latina”, promovido pelo Grupo de Conjuntura do IE/UFRJ, que cobriu a experiência não apenas do Brasil, mas também de outros países da região. Destaco três dos tópicos vistos no workshop.

Primeiro, o atraso da América Latina na retomada da atividade econômica, em termos de PIB e emprego, por conta da forma ineficiente com que a região lidou com a pandemia. As novas projeções econômicas da OCDE reforçam esse ponto: tomando a média de Argentina, Brasil e México, as três maiores economias da região, tem-se que em 2022 seu PIB ainda estará um pouco abaixo do de 2019 (-0,2%). O mesmo estudo projeta um PIB mundial 6,1% maior ano que vem do que em 2019.

Ou seja, ficaremos relativamente mais pobres e, se vamos nos beneficiar do aumento da demanda externa por nossos produtos, em especial com preços mais altos de commodities, vamos também sofrer com pressões inflacionárias e juros externos mais altos. Desemprego elevado e preços altos de alimentos são uma combinação politicamente perigosa, especialmente quando as pessoas se sentirem seguras de voltar a se aglomerar.

Esse quadro complica outras duas heranças discutidas no workshop. Uma, a preocupação com a saúde financeira das instituições financeiras. Saberemos mais sobre isso conforme fique mais fácil diferenciar problemas de liquidez daqueles de solvência. Outra, a difícil situação fiscal de alguns dos países da região, com destaque para o Brasil que, junto com o Peru, gastaram muito em programas públicos de combate à crise. É fácil ver que baixo crescimento e juros em alta são agravantes de uma situação fiscal já difícil.

Este último ponto também é discutido no livro “Legado de uma Pandemia”, publicado no início do mês pelo Insper, com organização de Laura Muller Machado. O livro tem 17 capítulos, agrupados em quatro partes que lidam, respectivamente, com a ordem social, a ordem econômica, a organização do Estado e política e comunicação. Em todos os capítulos há uma preocupação em explicitar legados deixados pela pandemia e em fazer recomendações.

Dentre os diversos temas tratados no livro, os impactos distributivos, fortes e negativos, são um dos destaques. Foram os trabalhadores mais pobres que mais sofreram com a perda de ocupações e renda. Os negros também sofreram mais que os brancos, enquanto outras análises mostram que as mulheres saíram em maior proporção do mercado de trabalho do que os homens. O livro dá grande ênfase a um ponto em geral pouco discutido: houve um significativo impacto negativo sobre as crianças, pela falta de aulas, que foi mais importante para as crianças mais pobres, com menos acesso a equipamentos de informática e assistência familiar.

Essa discussão desemboca no livro em um debate que também apareceu no workshop do IE/UFRJ: quão desejável é redistribuir o custo econômico da pandemia por meio de tributações que retirem renda de grupos que sofreram menos para financiar os programas públicos de assistência social, evitando transferir todo esse custo para gerações futuras, por meio de mais dívida pública.

O livro do Insper também trata de como a separação entre o que é feito pelo Estado e o que cabe ao setor privado pode ser repensada após a pandemia. Uma conclusão é que, em crises, pode ser desejável o Estado participar mais planejando e coordenando as atividades, no financiamento e na produção, e se preocupando menos com temas como a defesa da concorrência. Esse quadro deve, porém, ser transitório. Mais permanente deve ser o apoio estatal a pesquisas científicas relacionadas à pandemia, mesmo que indiretamente, como na segurança alimentar, e a capacitar servidores públicos para lidar com momentos como o atual.

Diversos capítulos, ainda que não todos, encerram com uma visão positiva sobre o futuro, prevendo que a sociedade acordou para os problemas revelados pela pandemia. É o caso, em especial, dos “invisíveis”, aí compreendidos os inúmeros pobres que acorreram ao Auxílio Emergencial e dos quais não havia registro anterior. Não me convenci dessa visão. Mas concordo que, para avançar, precisamos de mais discussão pública sobre os temas tão oportunamente trazidos por todos esses pesquisadores. Parabéns.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ 


Ribamar Oliveira: O enigma do novo gatilho de 95%

PEC 186 não resolve problema de acionar as medidas de ajuste

Há uma unanimidade entre os analistas de que a despesa obrigatória da União, submetida ao teto de gastos, só vai ultrapassar 95% da despesa total em 2024 ou 2025. Este é o novo gatilho que dispara as medidas de ajuste das contas, introduzido pela PEC Emergencial, promulgada como emenda constitucional 109.

O problema do novo gatilho, no entanto, não está apenas na demora para ele ser acionado, mas também no fato de que se a despesa obrigatória chegar a 95% da despesa total, vários serviços públicos à população já estarão paralisados, ou, como preferem dizer os economistas, a administração estará em “shutdown”. Assim, a fixação do gatilho em 95% foi claramente um erro.

Em ofício ao Congresso Nacional, datado de 14 de dezembro de 2020, o ministro da Economia, Paulo Guedes, propôs mudança na meta fiscal deste ano e reestimou a receita e a despesa da União para 2021, uma vez que os parâmetros utilizados na elaboração do projeto de lei orçamentária anual (PLOA), em agosto do ano passado, estavam ultrapassados.

Nele, Guedes informa que o governo passou a trabalhar com despesas discricionárias de R$ 96,2 bilhões, incluindo neste valor as emendas parlamentares, que, embora sejam impositivas, podem sofrer contingenciamento. O valor corresponde a 6,47% da despesa total da União submetida ao teto. As despesas discricionárias são os investimentos e o custeio da máquina, que o governo não é obrigado por lei a executar.

As despesas obrigatórias submetidas ao teto, por sua vez, estão em 93,53% do limite total do gasto definido para este ano, de R$ 1.485,9 bilhões. Este percentual é uma aproximação porque o cálculo tem que ser feito, de acordo com a EC 109, para cada Poder e órgão público, pois eles possuem limites de despesa individualizados. Mas essa abertura de dados não está disponível no ofício do ministro. Sem as emendas parlamentares, as despesas discricionárias caem para R$ 79,9 bilhões neste ano, o menor patamar da série histórica.

Mesmo com esse nível muito baixo para os investimentos e o custeio da máquina, o gatilho não é acionado, o que mostra o equívoco cometido. Uma conta simples demonstra a armadilha que foi criada. As despesas discricionárias teriam que cair mais 1,47 ponto percentual (6,47% menos 5%) da despesa total para que as medidas de ajuste possam ser adotadas. Ou seja, para chegar a 5% da despesa total neste ano, as discricionárias teriam que ser reduzidas para R$ 74,3 bilhões, incluindo as emendas parlamentares, o que inviabilizaria a administração.

Em resumo, a EC 109 estabeleceu um gatilho que só poderá ser acionado quando a administração pública estiver em “shutdown”. Com um agravante: como não se pode reduzir as emendas parlamentares, que estão indexadas pela inflação, o aumento futuro das despesas obrigatórias terá que ser compensado sempre com o corte do investimento e do custeio.

As razões que levaram à escolha de 95% como novo gatilho das medidas de ajuste são um enigma. Importantes integrantes da equipe econômica do governo defenderam que o gatilho ficasse em 94%. Então, porque o percentual de 95% prevaleceu? Este colunista apurou que foi uma decisão política do governo e ouviu que, até hoje, ela gera incômodo na área técnica.

Se o gatilho tivesse ficado em 94%, havia o risco de ele disparar já em 2022, ano eleitoral, com a adoção obrigatória de medidas impopulares de contenção de despesas. É difícil acreditar que a razão tenha sido esta porque, para evitar desgaste eleitoral, o governo optou por um percentual que não será atingido, pois, antes disso, a administração estará em “shutdown”.

Para que o leitor não perca o fio da meada, o objetivo original da PEC 186 era corrigir o principal problema do teto de gastos. Devido à má redação da emenda constitucional 95/2016, que instituiu o teto, o gatilho que acionava as medidas de ajuste das contas não disparava. Não havia maneira de o governo adotar medidas de contenção das despesas. Como as despesas obrigatórias não param de crescer, os investimentos e o custeio foram minguando cada vez mais.

No texto da PEC 186 que o governo enviou ao Congresso, em novembro de 2019, o gatilho disparava toda vez que a chamada “regra de ouro” das finanças públicas, que proíbe o aumento da dívida para pagar despesas correntes, não estivesse sendo cumprida.

Este referencial foi alterado e o relator da proposta, senador Márcio Bittar (MDB-AC), com a concordância do governo, foi buscar o gatilho de 95% que constava da PEC 188. O resultado de tudo isso é que o gatilho que consta da EC 109 não permite acionar as medidas de ajuste para evitar o “shutdown” da administração e, portanto, não resolve o problema que estava colocado na EC 95.

Nova polêmica

Uma nova polêmica ganhou corpo entre os especialistas em finanças públicas. A PEC 186 instituiu, como foi dito nesta coluna em fevereiro passado, um novo marco para as finanças públicas. A âncora fiscal passou a ser a trajetória da dívida pública que será perseguida pelos governos federal, estadual e municipal. As metas de resultado primário serão definidas de forma a permitir que a trajetória da dívida seja cumprida. Para isso, os governos terão que adotar medidas de contenção de despesas e elevação de receitas que permitam alcançar as metas.

A raiz da polêmica está no fato de que o artigo da EC 109, ao tratar desta questão, prevê aprovação de lei complementar especificando “a trajetória de convergência do montante da dívida com limites definidos em legislação”. O artigo 52 da Constituição define que é competência privativa do Senado fixar, por proposta do presidente da República, limites globais para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados e dos municípios. A discussão é se a EC 109 invadiu uma competência do Senado.

Na interpretação do Ministério da Economia, não há conflito entre o artigo 52 da Constituição e a EC 109. A atribuição do Senado, de acordo com esse entendimento, é fixar limite máximo para o endividamento dos entes. E o objetivo da EC 109 é fixar limites prudenciais para definir uma trajetória para a dívida, que, se superados, acionam os gatilhos das medidas de ajuste.


Adriana Fernandes: É hora de abrir o olho para que as 'boiadas' não passem na pandemia

Não queremos a continuidade prometida pelo futuro ministro da Saúde

Mesmo sob ameaças e críticas daqueles que defendem a economia acima de tudo e das mortes de brasileiros que poderiam ser evitadas, esta coluna de análise econômica vai continuar apoiando e alardeando a necessidade de adoção de medidas restritivas de isolamento para conter a transmissão acelerada da doença. E também para salvar a economia do desastre maior. Repetir e repetir.

Para um país sem vacinas suficientes para imunizar em massa a sua população, é o único caminho apontado por cientistas para conter o colapso do sistema de saúde público e privado que transformou todo o Brasil numa grande Manaus e celeiro de variantes do vírus.

Necessitamos de medidas (efetivas), bem planejadas em cada localidade, que aumentem a taxa de isolamento, e não ações de prefeitos e governadores que vão sendo desidratadas e acabam resultando em ganho muitíssimo limitado por causa da pressão econômica e política dos seus adversários. Temos de parar de verdade. É preciso coragem política e espírito humanitário para afastar interesses eleitorais neste momento de descontrole, o maior colapso sanitário e hospitalar da história do País, na definição da Fiocruz.

A pandemia, infelizmente, está mostrando que a maioria dos governantes, parlamentares e lideranças empresariais brasileiras não está à altura do momento para enfrentar essa guerra que mata tantos de nós e destrói a economia. Há dez dias, chocou a notícia de que morreriam 3.000 pessoas por dia no Brasil. Hoje, o número é realidade.

Os empresários que fazem agora campanha contra o isolamento daqui mais um tempo vão pedir para as medidas serem adotadas. A razão é simples. Médicos e enfermeiros não são insumos que se compram na prateleira. O caos já derruba o PIB, desorganiza a economia e afasta investidores. O BC aumenta os juros de 2% para 2,75% (na aposta mais alta) em plena queda do PIB para conter a aceleração da inflação. Sinal de que as coisas não andam bem para a economia e já na primeira reunião após a aprovação da autonomia.

Não queremos a continuidade prometida pelo futuro ministro da SaúdeMarcelo Queiroga. Em vez de ficar em Brasília para instalar seu gabinete de crise, planejar a ação e orientar a nação, preferiu ir para o Rio de Janeiro, ao lado do general Eduardo Pazuello, para receber as primeiras doses da vacina da Oxford fabricadas no País. 

Não queremos mais cerimônias de chegada e distribuição de vacinas. Se ao menos o ministro tivesse ido a um hospital para ver a fila de pessoas doentes sem leito, teria sido um alento. É tarde para o governo Jair Bolsonaro “só” falar de mudanças de hábitos, usar máscaras, manter “um grau” de afastamento social e medidas hospitalares. Os países sérios fazem planos e executam. 

Neste momento tão dramático, em que o foco tem de ser o bom combate da doença, é desconcertante para aqueles que escrevem sobre economia continuar falando sobre temas outros que não a pandemia, a crise do sistema de saúde e os relatos particulares de cada um dos brasileiros.

É necessário, porém, seguir mostrando o impacto da pandemia na economia, falar sobre câmbio, juros, inflação, gastos públicos, estimular o debate que aponte rumos, pressionar para que ações emergenciais saiam rapidamente e não se perca mais tempo.

É um absurdo governo e Congresso enrolarem por meses a aprovação do auxílio emergencial e depois de a PEC ter sido aprovada, na sexta-feira passada, o benefício só começar a ser pago em abril. Não tem desculpa que justifique tamanha crueldade e falta de planejamento.

É hora também de abrir o olho, ser vigilante, para que as “boiadas” econômicas, assim como as ambientais, não passem com a justificativa da pandemia. A derrubada de vetos garantindo perdão tributária às igrejas e mais poder de emendas aos parlamentares mostram que as boiadas passam. As falhas e a falta de atenção nessa vigilância serão cobradas no futuro. Perguntaremos: onde estávamos?  

***

A coluna de hoje é dedicada ao seu Gomes, goiano e pai da repórter Lorenna Rodrigues da sucursal de Brasília do Estadão, que morreu de covid-19 após batalha incansável da família por atendimento hospitalar, que chegou tarde demais.


Míriam Leitão: BC surpreende e passa recado

A alta de juros era esperada. Mesmo assim, o Banco Central surpreendeu duplamente. Pela decisão de elevação em 0,75%, que era a aposta de um grupo pequeno no mercado, e por indicar que será mais rápido o ajuste da política monetária. O Banco Central preferiu fazer um movimento mais decidido, para aumentar as chances de cumprimento da meta de inflação e, ao mesmo tempo, combater a piora da confiança na economia brasileira. A alta de juros ocorre no pior momento da pandemia, com os governadores e prefeitos decretando paralisação de atividades, para tentar conter o colapso.

Difícil explicar como os juros podem subir numa hora dessas. A economia está parando, as expectativas de crescimento piorando e a pandemia se agravando. Pelo comunicado, a piora da pandemia pode reduzir a atividade e, portanto, a pressão inflacionária, porém o risco fiscal está elevado no país. Não só pelo aumento dos gastos necessários para combater a pandemia, mas porque os sinais de ajuste futuro não estão claros. Pelo contrário.

A encrenca do BC é que é cada vez mais comum a previsão de que os dois primeiros trimestres terão PIB negativo. Ou seja, a economia está recessiva. Mesmo assim, os preços dos alimentos e de matérias-primas sobem, e o câmbio está muito pressionado. Houve complicadores na decisão do Copom. Essa foi a primeira reunião após a aprovação da autonomia do Banco Central. A alta dos juros alimentará, portanto, as críticas ao órgão. E mais: nos Estados Unidos a decisão foi oposta. A economia está com forte projeção de crescimento e tem pressões inflacionárias, mas a decisão foi a de manter os juros no intervalo entre zero e 0,25%. E lá a vacinação está andando de forma célere depois da posse do presidente Joe Biden. O novo governo mudou completamente a orientação no combate à pandemia.

Aqui no Brasil, o ministro Paulo Guedes descreve uma realidade paralela. Segundo ele a economia está “decolando de novo” e houve criação recorde de empregos. Se o cenário fosse esse, seria até mais fácil para o Banco Central ter tomado a decisão que tomou, de elevar a Selic, como resposta aos sinais persistentes de inflação. O Ministério da Economia divulgou esta semana com fanfarras o dado de 260 mil empregos formais criados em janeiro, segundo o Caged. Teria sido o maior da série, passando inclusive janeiro de 2010, ano em que o país cresceu 7,5%. Que sentido faz isso? Os especialistas mostram que há vários problemas no dado.

— Houve uma quebra de série, a metodologia mudou no ano passado, portanto, não se pode fazer comparação histórica — diz o economista Bruno Ottoni, do Ibre/FGV.

Ele explica que a comparação da série antiga com a série nova, com base nos dados de 2019, quando ambas andaram juntas, mostra uma diferença de 74% a mais no saldo de empregos na nova forma de registro. O antigo Caged era feito com base nas declarações das empresas formais sobre contratações e demissões. O novo é feito a partir do e-social e conta também os temporários. É normal haver mudança metodológica, mas o que se faz é manter a série anterior por mais tempo para que os especialistas possam comparar e entender com se comporta o novo indicador. Quando o IBGE passou da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) para a PNAD Contínua, que agora mede o desemprego, o indicador antigo ficou por quatro anos. No caso atual ficou apenas alguns meses. O pior erro técnico, contudo, é comparar com a série histórica depois de ter mudado a metodologia do índice. Marqueteiros fazem isso, economistas, não.

O economista Daniel Duque, da FGV, admite que parou de prestar atenção no saldo do Caged, porque ele acha que não há nada que explique números tão fortes. Há total discrepância entre o Caged e os dados de mercado formal na Pnad do IBGE. O instituto registra queda de trabalhadores do mercado formal.

A alta de juros ocorre num momento em que o presidente continua boicotando medidas de combate à pandemia e dá sempre sinais contraditórios na área fiscal. A melhor política de estímulo ao crescimento e ao emprego seria uma coordenação federal eficiente no combate à pandemia, e um amplo programa de vacinação. Adianta pouco Guedes falar agora que é a favor da vacinação em massa. O Ministério da Economia, se tinha noção disso, deveria ter tentado convencer o presidente a mudar de atitude.


Bruno Boghossian: Dois ministros e nenhum plano na fase crítica da pandemia

Pazuello e Queiroga não falam em urgência porque Bolsonaro não demonstra angústia

O Brasil deve ser o único país do mundo que tem dois ministros para gerenciar uma política oficial desastrosa na saúde. No momento em que a média de mortes ultrapassou a faixa de 2.000 por dia, o general Eduardo Pazuello e o doutor Marcelo Queiroga apareceram juntos para mostrar que o governo continua sem um plano de emergência para a fase crítica da pandemia.

De saída, o militar parece interessado na missão impossível de salvar a própria imagem. Pazuello assistiu no cargo à escalada de mortes 15 mil para 285 mil em dez meses e seguiu as vontades mais descabidas do chefe. Ainda assim, ele acha que conseguirá evitar uma merecida condenação pública ao deixar o posto.

Pela segunda vez na semana, o general fez um balanço colorido de sua gestão. Nesta quarta (17), ao receber as primeiras doses da vacina contra a Covid-19 produzidas pela Fiocruz, ele disse que a imunização lenta no Brasil foi provocada por atrasos na chegada de insumos. Seria bom se o país tivesse um especialista em logística para contornar esse problema.

Pazuello discursou como um corretor imobiliário que vendia um apartamento com um ano de atraso. “Vou entregar a ele um ministério estruturado, organizado, funcionando e com tudo pronto”, disse, em referência ao sucessor. E fez questão de dizer que pouca coisa vai mudar daqui por diante: “O doutor Marcelo Queiroga reza pela mesma cartilha”.

Já o futuro ministro participou do evento como se já estivesse no cargo. Disse que pretendia “dar início ao maior programa de imunização” do país, dois meses depois da aplicação da primeira dose do imunizante. Depois, ele deixou a pregação bolsonarista de lado por um instante e defendeu o distanciamento social. Faltou dizer se o presidente vai parar de sabotar essas medidas.

Nenhum dos dois ministros fala em ações urgentes porque o chefe da dupla jamais demonstrou angústia com a tragédia nacional. Jair Bolsonaro passou a quarta em reuniões. Cancelou um evento no Planalto e nem chegou perto da Fiocruz.


Merval Pereira: Rejeição em alta

Todas pesquisas recentes revelam queda na popularidade do presidente Bolsonaro, que mantém ainda cerca de 25% a 30% de apoio, mas seu núcleo duro gira em torno dos 15%, segundo revela a mais recente pesquisa do Datafolha. São esses seguidores fanáticos, que o apoiam, faça o que fizer, que garantem um patamar mínimo para a manutenção de sua popularidade em níveis competitivos.

Esse grupo seria a base barulhenta que sustentou a candidatura de Bolsonaro em 2018 e ainda hoje é arregimentada para trabalhos sujos, como os ataques contra a médica Ludhmila Hajjar comandados pelos integrantes do gabinete do ódio de dentro do Palácio do Planalto. Os ataques diretos ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF) foram controlados pela reação rápida e até mesmo temerária do STF, que abriu inquéritos para investigar as ações desses grupos nas redes sociais.

Classifico de temerária porque o Supremo é investigador e juiz de casos de fake news que configuram ataques contra a própria instituição, sem a interferência do Ministério Público. Essa anomalia, no entanto, foi superada pelos fatos subsequentes, quando ataques à própria democracia foram realizados, com o apoio tácito do presidente Bolsonaro.

O Ministério Público pediu a abertura de inquérito, que também está sob o comando do ministro do Supremo Alexandre de Moraes, e a vinculação entre as duas investigações ficou evidente, revelando uma organização criminosa com financiamento até mesmo do exterior.

A prisão do deputado Daniel Silveira foi exemplar no sentido de tentar erradicar esses abusos da liberdade de expressão. Vários artigos da Constituição foram afrontados pelo deputado, como propagar ideias contrárias à ordem constitucional e ao estado de direito, além de crimes contra a honra dos ministros do STF, segundo a Lei de Segurança Nacional.

O uso abusivo desse entulho da ditadura militar pelo ministro da Justiça, André Mendonça, que aciona a Polícia Federal para perseguir qualquer pessoa que critique o presidente Bolsonaro, cria um ambiente de intimidação incompatível com a democracia. São perseguidos especialmente jornalistas e artistas, como o comediante Danilo Gentili, que, a pedido do Congresso, está sendo processado por ter dito que gostaria de dar um soco em deputados federais, apesar de ter se desculpado. Também o youtuber Felipe Neto, por ter chamado Bolsonaro de “genocida”, quando existem processos, já sendo analisados no Tribunal Penal Internacional de Haia, devido a acusações de grupos de defesa dos direitos humanos, como a Comissão Arns, que o acusam de “incitar o genocídio”.

Até mesmo um advogado, Marcelo Feller, foi enquadrado na LSN por ter criticado o presidente Bolsonaro durante o combate à pandemia da Covid-19. Também professores da Universidade Federal de Pelotas foram obrigados pela Controladoria-Geral da União a assinar um termo de ajustamento de conduta por ter criticado o presidente. A reação foi tão grande que o governo desistiu da sandice. A Faculdade de Direito da UNB soltou uma nota em que informa “à sociedade brasileira e em especial a todos os professores e alunos brasileiros que seguirá respeitando e garantindo a liberdade de ensino, sem ceder um único milímetro a quaisquer pressões de natureza despótica e inconstitucional”.

O caso mais ridículo é o de cartazes com críticas a Bolsonaro, considerados “crime contra a honra”, em Palmas (TO). Um diz que Bolsonaro “vale menos que um pequi roído”, gíria local para pessoas que não valem nada. O outro, que o presidente “mente”. Essas reações, além do espírito autoritário do governo, mostram como a imagem do presidente está desgastada.

O último Datafolha revela clara rejeição ao governo. É uma tendência inexorável, que não dá para recuperar, a não ser que faça mea culpa e mude de atitude. Caso contrário, Bolsonaro sairá da pandemia muito mais desgastado, e o país mais tarde do que poderia. Bolsonaro fez uma jogada política arriscada, pensando na reeleição. O governo deveria ter dado o auxílio emergencial mais rapidamente, mas não teve visão imediata dos problemas sociais que poderiam acontecer. Tentou minimizar a gravidade da crise sanitária e perdeu, fazendo com que perdêssemos todos.


Alberto Aggio: O que mudou

A decisão de 08 de março do Ministro Edson Fachin, do STF, que, no fundamental, garante elegibilidade a Lula (PT) na corrida presidencial de 2022, gerou um verdadeiro terremoto nas relações de força entre os principais atores políticos.

Na forma como se deu, contestando a validade do fórum de Curitiba no qual protagonizava o ex-juiz Sérgio Moro, o fato equivale a uma profunda derrota do chamado “tenentismo de toga” (Werneck Vianna) expresso na operação Lava-Jato durante os últimos anos. Em função da visão messiânica que visava a regeneração da Nação, tal movimento colocou em suspensão toda a política brasileira e o resultado foi a identificação da política com corrupção. A Lava-Jato foi mais uma face da ideia de que o País necessita de uma ruptura histórica e, por essa razão, contribuiu para a emergência de fenômenos de antipolítica que grassam desde 2013.

Independente das suas intenções e aparentemente sem uma estratégia definida, a adesão de Sergio Moro ao governo Bolsonaro, a partir de 2018, implicou uma aposta de alto risco que, por fim, fracassou. Sua saída do governo não redundou em força para o movimento. A Lava-Jato restou parada no ar e se enfraqueceu. Agora, atingida no coração, seu destino parece estar selado. Em sentido profundo, mitigar ou tentar eliminar a política e sobrepô-la pela dimensão jurídica, concentrando suas ações num único ponto, a corrupção, apenas confirmou que este não pode ser o caminho da política democrática com vistas a resolver os principais problemas do País nem o orientar em direção ao futuro.

O retorno de Lula ao centro da cena tem inúmeras repercussões e guarda muitos significados. De um ponto de vista conjuntural representou um respiro frente a um governo como o de Bolsonaro. Diante dele, a sociedade parece atônita e vulnerável, acossada pela pandemia e a persistente elevação do número de infectados e mortos. Lula se apresentou e rapidamente foi identificado com a vitalidade que a oposição deve ter. Com isso, a musculatura do polo petista sai fortalecida não só em função da sua popularidade, mas também porque isso gera desestabilização em outras candidaturas por seu poder de atração. Além disso, antigos aliados serão desafiados e o próprio Centrão, até agora em deriva inercial rumo à candidatura de Bolsonaro, deverá repensar seus futuros passos.

Mas há um engodo nessa história. Claro está que a retomada dos direitos políticos de Lula não equivale a absolvição de todas as acusações que existem contra ele. Essa narrativa é falaciosa, Lula não foi absolvido. O ex-presidente retorna à politica, com todos os seus direitos, por uma tecnicalidade jurídica que tardou a ser admitida e não por sua absolvição.

O discurso de Lula no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo serviu para instituir o teatro de que ele é a única contraposição à estratégia destruidora da democracia de 1988 que Bolsonaro vem estabelecendo desde sua posse. O que é outra falácia. Há resistência a Bolsonaro desde a posse, fortemente demonstrada nas eleições municipais de 2020, especialmente nas capitais. No contexto da pandemia tal resistência se expressa na defesa do SUS e na contraposição dos governadores, especialmente o de São Paulo, no tocante à vacina. Os petistas querem fazer crer que somente eles se opõem a Bolsonaro e mantêm o estilo de sempre: mitificam Lula, despreocupados em ampliar o arco de alianças para enfrentar Bolsonaro desde o primeiro turno.

Há uma soberba nisso tudo. Lula permaneceu em silêncio até esse momento e as agressivas manifestações bolsonaristas não são contra ele, mas contra aqueles que estão na chuva e no sol criticando o atual presidente. O PT tem feito uma política errática no Parlamento que contém lances de ambiguidade em relação ao bolsonarismo, tal como se observou na votação para as presidências das  duas Mesas no Congresso bem como nas principais comissões.

Por outro lado, há questões a serem recuperadas na história do PT e de Lula. Ambos coquetearam com a antipolítica desde as primeiras lutas pela redemocratização e foram vigorosos representantes dela no processo que gerou a Constituição de 1988. Ambos são a expressão de uma esquerda que promete a nova sociedade aos “de baixo” mas apenas lhes dá inclusão via consumo. Enquanto aos “de cima” garante estabilidade e ampliação de ganhos. Lula é a esquerda antirreformista que estabiliza o capitalismo brasileiro na fase da globalização, depois da integração a ela promovida por FHC. É uma esquerda adaptada ao contexto histórico, o que é positivo, mas é uma esquerda sem conceito, que negocia tudo para garantir seu projeto de poder com o apoio de movimentos fragmentados nascidos da sociedade pós-industrial. É uma esquerda mais do “mundo da vida” do que do “mundo da produção”, apesar de daí ter nascido. Lula não precisa de esforço algum para definir seu inimigo na contenda eleitoral de 2022. Ele retomará a posição de ataque a quem está no poder, como sempre fez, de Sarney a FHC, e assumirá a dissimulação de ser um ator benfazejo a todos e a todas.

 As reações de Bolsonaro à volta de Lula são evidentes, embora demonstrem alguma desorientação. A adoção de uma atitude mais responsável frente à pandemia é apenas um dado superficial. Do ponto de vista discursivo, Bolsonaro poderá recuperar a narrativa antissistema, criticando a decisão judicial que favoreceu Lula e identificando o petismo com o status quo. Bolsonaro será seduzido por seus apoiadores a radicalizar essa posição e voltar à lógica da guerra. A palavra de ordem desse grupo é o golpe. Provavelmente Bolsonaro vai ceder espaço a isso, evitando muito envolvimento. Aqui também a estratégia é a da dissimulação: retomará o antipetismo, embora tenha perdido seu aliado fundamental, o ex-juiz Sérgio Moro. Nesse sentido, a campanha de 2022 não poderá se servir inteiramente desse ponto de força como foi em 2018. Outro elemento de fragilidade de Bolsonaro está, como todos sabem, na desastrosa condução frente à pandemia, deixando o País sem as vacinas de que necessita.

Portanto, a estratégia de destruição de Bolsonaro não pode lhe garantir, como antes, uma passagem lisa e tranquila para o terreno eleitoral. Reduzir-se apenas aos seus, àqueles que professam essa estratégia, pode ser uma aposta de alto risco para chegar ao segundo turno e depois perder. Por fim, a última alternativa seria, fragilizando-se ainda mais, se reduzir a um candidato do Centrão, retornando à expressão de um candidato do “baixo clero” – e isso se o Centrão não se movimentar pragmaticamente em direção a Lula.

O terremoto provocado pelo retorno de Lula afetou diretamente a todos postulantes à presidência em 2022. É inevitável que Ciro Gomes mantenha sua beligerância tanto contra Lula e o PT, quanto contra o ex-juiz Sergio Moro. No entanto, sua resiliência não encontra equivalente em sua capacidade de agregação. Envolvido diretamente, Moro será forçado a se pronunciar: ou contra-ataca, lançando-se definitivamente candidato ou se retira de uma vez da contenda eleitoral.

O fato é que se o centro político já encontrava dificuldades de unificação em torno de uma candidatura, com os partidos inteiramente divididos, o retorno de Lula veio carrear mais obstáculos. Independentemente dos nomes ou pela profusão deles, o centro permanece invertebrado. Em verdade, ainda não existe do ponto de vista eleitoral e a grande incógnita é se conseguirá se configurar como um fator de poder para atrair aliados e eleitores.

A premissa de que o centro deveria ser um ponto intermediário entre dois extremos perde força com o retorno de Lula, que, a partir da esquerda, se move com facilidade para o centro. De outro lado, o desastre que significa o governo Bolsonaro impõe uma condição: não há como o centro se apresentar a não ser em oposição a Bolsonaro. Mas terá que buscar um discurso e uma estratégia distinta do lulopetismo, sem ser antagônica a ele. Pensando na rearticulação e no futuro da Nação, o centro terá que se reinventar: sua única saída é ser um “centro excêntrico”, um novo polo de agregação, com programa próprio e alternativo. Uma operação dificílima, obviamente, e talvez já tardia, ainda mais se tiver que cuidar também para que sua candidatura consiga fazer frente a duas “potências de audiência”, como Bolsonaro e Lula.

Tudo mudou, mas infelizmente o nosso flagelo frente a pandemia se agravou. Mas com força e resiliência, mais as vacinas, o País pode superar o vírus e … Bolsonaro.

*Professor Titular de História da UNESP-Franca-SP


Luiz Carlos Azedo: Pior momento de Bolsonaro

A estratégia de responsabilizar governadores e prefeitos pela crise sanitária, adotada por Bolsonaro, fracassou: 56% dos entrevistados o consideram incapaz de liderar

A pesquisa DataFolha de ontem confirmou o que mundo político já estava esperando: o governo Bolsonaro vive o seu pior momento, acumulando desgastes, principalmente em razão das suas atitudes negacionistas em relação à pandemia da covid-19, cujo descontrole assombra o mundo. Segundo o instituto, cresceu para 56% o número de brasileiros que consideram o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) incapaz de liderar o país. Em janeiro, eram 50%. A pesquisa caiu como uma bomba no Palácio do Planalto, a jaula de cristal na qual a bolha dos partidários do presidente da República nas redes sociais tem mais influência nas decisões do que todos os demais interlocutores do governo juntos.

Segundo o levantamento, o percentual de brasileiros que consideravam Bolsonaro capaz de liderar caiu de 46% para 42% de janeiro para março, com oscilação negativa no limite da margem de erro. Em abril de 2020, ele era considerado capaz de liderar o país por 52% dos brasileiros, em detrimento de 42% que o julgavam incapaz. Entre os que hoje julgam o presidente mais incapaz estão os mais ricos, que ganham acima de 10 salários mínimos (62%), os que têm curso superior (também com 62%) e moradores da região Nordeste, dos quais 63% julgam o presidente incapaz de liderar o Brasil. A base de apoio de Bolsonaro mais resiliente é formada por moradores das regiões Sul (51%) e Norte/Centro-Oeste (49%) e evangélicos 52%.

O desempenho de Bolsonaro na pandemia é que puxa sua avaliação para baixo: 54% dos entrevistados avaliam como ruim ou péssimo. Na pesquisa anterior, realizada em janeiro, esse índice era de 48%. Segundo o levantamento, 22% consideram ótima ou boa a performance do presidente da República na condução do enfrentamento à pandemia. O índice anterior era de 26%. Esse desempenho fortalece os aliados do governo no Congresso, que pediram a cabeça do general Eduardo Pazuello, defenestrado do Ministério da Saúde, mas não conseguiram emplacar no cargo o deputado Dr. Luizinho (PP-RJ), presidente da Comissão de Seguridade Social da Câmara. Bolsonaro nomeou o médico paraibano Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

A estratégia de responsabilizar governadores e prefeitos pela crise sanitária, adotada por Bolsonaro duramente a crise sanitária, fracassou completamente: para 42% dos entrevistados, a responsabilidade é do presidente da República. Os demais responsáveis se- riam: governadores, 20%; e prefeitos: 17%. As atitudes de Bolsonaro contra o isolamento social e o uso de máscaras, e a falta de uma campanha publicitária nacional de mobilização contra a pandemia, fruto também do negacionismo, se refletem no grau de responsabilidade atribuída à própria população: 1%. No ranking dos mais empenhados na luta contra a covid-19, governadores (38%) e prefeitos (28%) deixam Bolsonaro (16%) na rabeira.

Resiliência
Mas que ninguém se iluda, mesmo assim, Bolsonaro tem uma base de apoio muito resiliente, o que ainda lhe assegura um piso confortável de aprovação para quem pretende disputar a reeleição. Por exemplo, em relação ao impeachment, o índice oscilou dentro da margem de erro: 53% eram contrários à abertura de impeachment em janeiro, ante 50% agora; 42% eram favoráveis àquela ocasião; agora, são 46%. A mesma coisa em relação à renúncia de Bolsonaro: 51% avaliam que não deveria renunciar, contra 45% favoráveis. São números desagradáveis, mas não são irreversíveis se o governo se reposicionar em relação à pandemia.

A aposta de Bolsonaro é de que a situação pode ser revertida com a vacinação em massa da população, que está muito atrasada, porém, o governo iniciou uma corrida para comprar imunizantes, todos os que forem possíveis. O atraso nas vacinas existe porque a prioridade era outra, o tratamento precoce com cloroquina. Em outra frente, o Ministério da Cidadania prepara a medida provisória do auxílio emergencial, que Bolsonaro pretendia levar pes- soalmente ao Congresso ainda ontem, mas não ficou pronta. Sua aposta é de que o auxílio mitigará os desgastes com a pandemia, ao possibilitar um alívio à chamada população de “invisíveis”, que perdeu as fontes de renda com a pandemia.

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