Pedro S. Malan

Pedro S. Malan: Fazendo o diabo II?

O enorme desafio do Banco Central será ainda maior se não houver apoio do lado fiscal

Pedro S. Malan / O Estado de S. Paulo

Esse foi praticamente o título do artigo que publiquei neste espaço em 12 de outubro de 2014, entre o primeiro e o segundo turno das eleições daquele ano. A expressão havia sido usada em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff: “Nós podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. No caso, busca por reeleição, no exercício do cargo. Como é sabido, seu marqueteiro a reelegeu fazendo o diabo a quatro.

O artigo concluía com observação sobre a herança que “(...) a presidente Dilma vem construindo em seus discursos e debates de campanha, em especial nos últimos dois meses, criando para si própria armadilhas adicionais às que construiu com as políticas que implementou ao longo de seus quatro anos. São estas que estão sob o escrutínio agora, quando a presidente pede ao eleitorado mais quatro anos do mesmo, já que não reconhece problemas e, portanto, não vê necessidade de mudanças para enfrentá-los”.

Deu no que deu, uma vitória de Pirro. A conta não tardou a chegar, mas quando isso ocorreu a recessão já havia começado (para só terminar em dezembro de 2016), a renda per capita caíra quase 9% e a taxa de investimento, cerca de 30%, e o número de desempregados já superava 13 milhões. Em parte, legado do “fazendo o diabo, custe o que custar”.

O comunicado divulgado ao final da reunião de cúpula dos chefes de Estado da Europa de junho de 2012 dizia: “Nós reafirmamos nosso compromisso de fazer o que for necessário para assegurar a estabilidade financeira na Eurozona”. Menos de um mês depois, o presidente do Banco Central Europeu (Mario Draghi), referindo-se aos custos políticos que alguns países pagavam para refinanciar suas dívidas, afirmou: “O BCE está pronto a fazer o que for necessário (wathever it takes) para preservar o euro”. E emendou: “Acreditem em mim, isso será suficiente”. Esse recurso retórico, que permitia antever a superação das conhecidas resistências alemãs, foi o que moveu corações, mentes e nervos nos mercados. Mais recentemente, já sob a covid-19, os países europeus acordaram a criação de um fundo de ¤ 750 bilhões para programas de investimentos nas economias da região. Algo que dificilmente ocorreria, não fosse a pandemia, a exigir o espírito do “whatever it takes” – expressão da qual o fazendo o diabo, custe o que custar vem a ser versão mais rústica.

Nos EUA, o mesmo espírito presidiu o enfrentamento da grande depressão, nos anos 30 do século passado. Bem como da crise financeira global sistêmica ao final de 2008, após a falência de Lehman Brothers, quando foi adotado pacote de

US$ 700 bilhões. É também esse espírito que pode ser encontrado por trás dos ambiciosos programas de gastos públicos do governo Biden, ainda em difícil negociação no Congresso daquele país: mais de US$ 1 trilhão em infraestrutura, mais US$ 3 trilhões na área social.

Permito-me apontar característica central do sistema orçamentário dos EUA que mereceria ser mais conhecida no Brasil. Lá, os dois grandes grupos de despesas do governo são aquelas discricionárias e as mandatórias. Estas últimas são determinadas por lei e seguem, ano após ano, em piloto automático, a menos que o Congresso altere as leis em questão. Em 2019, representavam 61,6% do total de gastos (os juros, 8,4%). As despesas discricionárias (30% do total) exigem, a cada ano, aprovação pelo Congresso, sem a qual devem ser encerradas. No Brasil, as despesas obrigatórias representam atualmente cerca de 93% do total dos gastos primários. Em razão de sua extraordinária rigidez e tamanho, não temos por aqui espaço fiscal sequer comparável àquele existente nos EUA.

Em junho deste ano, três respeitados economistas – Olivier Blanchard, Josh Felman e Arvind Subramanian – publicaram artigo sob o título-pergunta O novo consenso fiscal nas economias avançadas viaja para os mercados emergentes? Propunham-se a responder a três perguntas: a situação macroeconômica é a mesma? Existe mais incerteza sobre os resultados fiscais? Existe mais incerteza sobre o diferencial entre taxa de juros e a taxa de crescimento da economia? não, sim

As respostas foram e sim, após análise de dados relevantes de Índia, Brasil, Indonésia, África do Sul e Turquia. Vale dizer, as situações não são as mesmas, e as duas incertezas são muito maiores em mercados emergentes que em países mais avançados. Estes podem se permitir um “whatever it takes” que mercados emergentes dificilmente poderiam manter, exceto em situações de extraordinária e temporária emergência.

O presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, afirmou no mês passado que o BC faria “o que for necessário” em termos de elevação da taxa básica de juros, para trazer a inflação (que chegara a cerca de 10% no acumulado de 12 meses) para uma trajetória de convergência para a meta. Esse enorme desafio será ainda maior se não houver apoio do lado fiscal; se tiver de lidar com outros “whatever it takes” da parte do resto do governo, do chefe do Executivo e do Congresso – operando na outra direção, “fazendo o diabo”, excessivamente preocupados desde agora com o resultado das urnas em outubro de 2022.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,fazendo-o-diabo-ii,70003864055


Pedro S. Malan: Espesso nevoeiro

Efeitos da pandemia estarão conosco no que resta deste trágico 2021 e ainda em 2022

A tarefa de construir uma coalizão em torno da ideia de um “centro ampliado” tornou-se ainda mais complexa. Trata-se agora de se diferenciar, aos olhos do eleitorado, em duas frentes: a de Bolsonaro e a de Lula, ou de quem vier a ser seu candidato. Em ambas haverá que formar uma visão minimamente clara sobre onde estamos, e como chegamos até aqui, como base indispensável para projetar uma visão do futuro – que é o que importa.

Quanto a Bolsonaro, suas perspectivas dependem da avaliação de seu governo, que por sua vez depende do avanço da covid-19 e da evolução da economia, inexoravelmente imbricados, pelo menos nos próximos 12 meses. Em instigante artigo recente, O paradoxo do bolsonarismo e a tragédia brasileira (Folha 28/03), João Cesar de Castro Rocha identifica um paradoxo: “O êxito do bolsonarismo na guerra cultural implicaria o fracasso do governo Bolsonaro na administração da coisa pública”.

Cobra preço alto o esforço cotidiano do presidente e de seu núcleo duro para manter suas redes digitais permanentemente mobilizadas, em constante estado de excitação, em torno de fatos alternativos e realidades paralelas. Preço particularmente alto em razão da postura do presidente diante da tragédia da pandemia. Ele deriva da percepção, cada vez mais clara, da inépcia em implementar políticas públicas consistentes nas áreas não só de saúde, como de educação, cultura, meio ambiente e relações internacionais, para citar as deficiências mais patentes de um governo disfuncional. Bolsonaro pode chegar a um segundo turno, mas, talvez, ser derrotado então. Tudo vai depender dos próximos 18 meses, ou menos que isso.

Lula, ao que tudo indica, deve disputar a eleição presidencial em 2022. Seria a nona vez, diretamente ou por interpostas pessoas. Das cinco primeiras, perdeu três (1989, 1994 e 1998), duas das quais no primeiro turno; e ganhou duas (2002 e 2006), em ambas tendo de enfrentar um segundo turno. Na sexta (2010) escolheu aquela a quem chamou de “melhor gerente” que o Brasil teria conhecido – gerente que o próprio Lula bem conhecia, já que era chefe de sua Casa Civil havia cinco anos. Na sétima (2014), a contragosto talvez, manteve-se ao lado de Dilma. Na oitava, com Haddad. Foram atropelados, ambos – e o próprio Brasil –, não por um candidato de “centro” (eram vários), mas pelo fenômeno Bolsonaro.

Chega agora sua nona chance. Muitos o consideram imbatível. É estranho que, a 18 meses das eleições, tantos julguem que o jogo já está decidido: será Lula contra Bolsonaro. Cuidado com o que desejas, diz o velho ditado. Há jogo pela frente.

Indicação importante disso foi a carta de 22 de março assinada por seis pré-candidatos ou potenciais candidatos. Enquanto os mais céticos não viram na carta maiores consequências, muitos lhe atribuem importância mais do que simbólica: sinal de que os seis conversaram e de que estão abertos a conversar ao longo dos próximos meses. Porque a alternativa é a dispersão e fragmentação, e o consequente risco de termos em 2022 uma polarização como em 2018. Cabe àqueles que julguem que essa não seria a melhor solução para o Brasil – e não queiram limitar-se a especular sobre isso em suas bolhas – envolver-se da forma que lhes pareça mais apropriada. E assim, talvez, ajudar na construção de coalizão eleitoralmente competitiva. Não é fácil. Mas é preciso acreditar que não é impossível.

Exemplos não faltam. Na semana passada, nada menos que dez ex-ministros da Justiça assinaram carta aberta Contra as Armas e pela Democracia. Posicionaram-se contra a política de armamento da população como potencial instrumento de ação política e sugeriram ação junto ao Congresso e ao Judiciário.

Também na semana passada, o fundador e presidente do PSD, Gilberto Kassab, afirmou em entrevista que “quem errou na pandemia terá dificuldades nas eleições”. Que dizer de erros na Educação, que desde o início deste governo teve 4 ministros (se incluída a escolha de Decotelli), 4 ou 5 secretários-gerais, 5 secretários de educação básica, 4 chefes do Inep, 3 secretários de educação superior? Com tanta gente competente na área de educação, o Brasil tem, na cúpula desse ministério tão relevante, há mais de 2 anos e 3 meses, um deserto de ideias. E pensar que se trata de área tão determinante para definir o que seremos ou não seremos no futuro.

Na educação, assim como em outras áreas-chave, nosso truncado desenvolvimento econômico e social é função de investimentos que não fizemos no passado e, não menos importante, de investimentos mal feitos – que fizemos e tanto nos custaram, custam e ainda custarão. Na área de infraestrutura física, infraestrutura humana (educação, saúde) como no combate gradual, mas consistente, à desigualdade de oportunidades, que está na raiz da permanência de miséria e pobreza no País.

Como está também na percepção, justificada, de iniquidade e de injustiça que existe em nossa sociedade, agravada em muito pelas graves consequências da pandemia sobre a economia, o emprego, a renda e a saúde pública. Consequências que estarão conosco no que resta deste trágico 2021 e, certamente, ainda em 2022.

* Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC 


Pedro S. Malan: 2022, o ano que vem chegando mais cedo

Aung San Suu Kyi: ‘O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem’

 “Creio que nenhum homem tem plena consciência das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do conhecimento de sua própria pessoa” (Joseph Conrad). Seria possível imaginar o mesmo de um país? Dizer, como o personagem de Shakespeare (em Macbeth): “Ai de ti, pobre país, quase com medo de conhecer a si próprio”. O Brasil sob o bolsonarismo parece cada vez mais enredado no autoengano e na autocomplacência, empenhado em perder-se em engenhosas artimanhas para escapar ao conhecimento de si próprio.

Mas a terrível sombra está a ficar mais visível com o agravamento da pandemia, e com suas consequências. Paradoxalmente, é o que poderá talvez permitir que escapemos, nos próximos 18 meses, do autoengano coletivo, que seria trágico. Terrível como possa ser, o Brasil, a duras penas, pode estar se conhecendo melhor. Afinal, Bolsonaro e sua grei são parte integrante de nossa realidade. Cumprirá a cada um de nós procurar construir coalizões – de pessoas, de partidos – aptas a apresentar-se à sociedade em geral (não apenas a nichos identitários, corporações estabelecidas e interesses consolidados) como alternativas de poder viáveis e construtivas.

Não será fácil. No presidencialismo à brasileira o poder incumbente dispõe de enormes vantagens, particularmente quando a busca da reeleição constitui sua inequívoca prioridade. O poder que detém o presidente de nomear, demitir, vetar e cooptar não deve ser subestimado. Nem sua presença nas redes sociais ou o expressivo contingente do eleitorado que lhe confere o status de mito.

Em algum momento será preciso convergir para nomes, a política assim o exige. Mas tão importante quanto o quem é com quem mais (pessoas, partidos, grupos sociais), com que tipo de proposta sobre os principais desafios do País, com que tipo de interpretação sobre onde estamos, como até aqui chegamos e para onde se está propondo que caminhemos.

Carlos Pereira, em artigo recente (Folha 8/2), comenta a diferença entre montar uma coalizão para uma disputa eleitoral e gerenciar uma coalizão para efetivamente governar, à luz das dificuldades de coordenação, custos de governabilidade e perspectivas de sucesso legislativo. Após um ano e meio de recusa, Bolsonaro foi obrigado a aceitar uma coalizão e a empenhar-se pessoalmente na eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado. Mas, como notou o autor, “estando o presidente disposto a jogar o jogo do presidencialismo multipartidário, precisa aprender a gerir a sua coalizão de forma profissional e não amadora”. Sua forma de gerir a coalizão alcançada tem se mostrado volátil e estouvada, mas claramente concentrada em sua reeleição. Que depende da consolidação e ampliação de seu eleitorado fiel, do cultivo das corporações que tem como suas e da transferência de responsabilidades para governadores, prefeitos e para a mídia profissional.

A extraordinária disfuncionalidade do Executivo federal no combate à covid é o exemplo mais flagrante e doloroso dessa inépcia, mas não o único. Afinal, é de nosso presidente a afirmação: “O País está quebrado, e eu não consigo fazer nada”. Eis a continuação da mensagem, implicitamente sugerida: porque não me deixam fazer o que eu gostaria, ou o que precisaria ser feito, a culpa não é minha. Em outra fala, saiu-se com variante muito mais grave: “Alguns acham que posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo”. Nada surpreendente para quem em janeiro afirmara que “quem decide se um povo vive sob uma democracia ou uma ditadura são as Forças Armadas”. As duas frases não deveriam surpreender a quem conheça sua trajetória, no Exército e no Congresso, ou a quem se dê ao trabalho de assistir, na íntegra, ao vídeo da famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020, verdadeira ressonância magnética de um organismo disfuncional.

A História ensina que uma sociedade enjaulada em acerbas polarizações é particularmente vulnerável a populismos fraudulentos. Existem sempre instigadores que despertam e incendeiam a ambição de populistas e tiranos em potencial. Como existem sempre os facilitadores que, ainda que percebam o perigo representado por aquela ambição, imaginam-se capazes de controlar os arroubos autoritários do populista (ou do tirano) enquanto se beneficiam de seu estilo de assalto a instituições estabelecidas. Como aponta com pertinência Aung San Suu Kyi, “não é o poder que corrompe, mas o medo. O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem. E o medo do açoite do poder corrompe aqueles que estão sujeitos a ele”. Persio Arida retomou o tema em excelente live recente, a propósito do Brasil de hoje.

Nos próximos 18 meses o Brasil deverá decidir se afinal deseja assumir-se como uma democracia vibrante, reconhecida como tal pelo resto do mundo; ou se persistirá na trajetória de incerteza crescente sobre nosso futuro econômico, social e político. E a correr sério risco, à luz de eventos dos últimos dias, de reeditar o tipo de polarização que marcou tanto nossa experiência em 2018 como os últimos trágicos 12 meses de pandemia.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Pedro S. Malan: Corredor estreito, tempo curto

Podemos estar escrevendo a crônica de um fim de linha preanunciado
“A função intelectual exercita-se sempre por antecipação (sobre o que poderia acontecer) ou com atraso (sobre o que ocorreu); raramente sobre o que está acontecendo, por razões de ritmo, pois os eventos são sempre mais rápidos e prementes do que as reflexões sobre os mesmos”


Umberto Eco

As palavras de Eco retêm especial relevância e atualidade à luz do que está a acontecer no mundo e no Brasil da pandemia. Estamos em meio ao mais severo choque global dos últimos 75 anos. Os impactos, diretos e indiretos, da covid-19 estarão conosco muito além deste dramático ano de 2020, e não ficarão restritos a questões de saúde pública.

A pandemia criou problemas econômicos e sociais, derivados de choques negativos simultâneos da oferta e da demanda que se reforçaram mutuamente em infernal círculo vicioso. Perderam-se dezenas de milhões de empregos, é inédita a contração da atividade econômica, elevaram-se em escala global os níveis de pobreza, vulnerabilidade e desigualdade.

“Quando chegaremos ao pós-covid?” é a pergunta que se ouve com frequência. Não é, lamentavelmente, pergunta muito apropriada. Não há “novo normal” no horizonte. O curso da História nada tem de normal, sempre esteve pleno de peripécias, instabilidades e surpresas. Quando medicamentos eficazes tiverem surgido, vacinas aprovadas e aplicadas em bilhões de pessoas – mesmo então, e muito além, estaremos a falar do “mundo pós-covid” para designar o que se tenha seguido a 2020. Ano em que, além da pandemia, e por causa dela, se exacerbaram tendências preexistentes.

Em particular no que diz respeito ao crescente descontentamento com a globalização, que a crise de 2008-2009 fez eclodir de forma contundente. Descontentamento com os efeitos dos avanços tecnológicos sobre o mercado de trabalho e o consequente agravamento da percepção de excessiva desigualdade na distribuição de oportunidades. Essa tendência é duradoura e continuará a exigir respostas econômicas e políticas dos governos e, paradoxalmente, inescapável cooperação internacional. O mundo já é outro no pós-2020 – e o Brasil também.

Nesta mesma página, o sempre sereno Fernando Gabeira publicou artigo intitulado Beco sem saída (2/10), no qual registra que “o que o Brasil precisa (…) os economistas do governo não conseguem oferecer”. Cabe talvez acrescentar: o que o Brasil precisa o governo, na sua disfuncionalidade, não consegue oferecer – a saber, articulação e coordenação não só dentro do Executivo, como também deste com lideranças do Congresso Nacional, para fazer avançar a agenda de interesse do País; com uma visão que não contemple, sobretudo, a próxima eleição, mas as próximas gerações. Estamos, neste outubro de 2020, em rota absolutamente insustentável quanto à nossa situação fiscal, da qual a maioria ainda não parece ter-se dado conta. Podemos estar escrevendo a crônica de um fim de linha preanunciado, como num coro de tragédias de antanho.

A necessária correção de rumos exige enorme esforço – que envolve análise de evidências, pensamentos e ações coordenadas e que será preciso empreender ao longo dos próximos dois anos. A interação da política com a economia, que sempre foi relevante, é particularmente importante em crises graves como a que atravessamos. É preciso, com grande sentido de urgência, conectar o presente com narrativa crível sobre o passado e, mais importante ainda, com sinalização honesta sobre caminhos futuros. Há escolhas difíceis a fazer, tão sérias quanto inescapáveis.

É estreito, cada vez mais estreito, o corredor para opções e saídas. Exemplos alentadores do que seria possível fazer para alargá-lo nos trouxe o debate (6/10) que reuniu Paulo Hartung, Arminio Fraga e Marcelo Trindade, por ocasião do lançamento do excelente livro de Trindade O Caminho do Centro: memórias de uma aventura eleitoral. Imperdível conversa sobre o que aconteceu, o que poderia acontecer e o que está acontecendo no Brasil de hoje.

As palavras de Eco em epígrafe neste artigo vêm de um texto do livro Cinco Escritos Morais, no qual o autor nota que a reflexão sobre os eventos não pode servir de escape “ao dever intelectual de entender o próprio tempo e dele participar melhor”. Segundo Eco, “mesmo quando escolhe espaços de silêncio, o exercício da reflexão não exime de assumir responsabilidades individuais”. Na introdução desse livro, Umberto Eco diz, a propósito de características comuns aos Cinco Escritos: “Apesar da variedade, os temas são de caráter ético, ou seja, referem-se àquilo que seria justo fazer, àquilo que não se deveria fazer e àquilo que não se pode fazer em hipótese alguma”.

Os sinais, posturas e exemplos emitidos pelas lideranças políticas de um país, em particular por seus chefes de Estado ou de governo, são fundamentais nesse sentido. Para o bem como para o mal, e disso não faltam exemplos no mundo de hoje. Resta lembrar que apenas em democracias é possível ao eleitorado corrigir, pela via pacífica, eventuais erros cometidos em escolhas passadas. Sempre que haja um mínimo de reflexão e debate sobre o presente, sobre como a ele chegamos e, obviamente, sobre o futuro.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Pedro S. Malan: Apesar de tudo, a esperança não morre

Espero que não nos deixemos abater por desalento, desencanto e excessivo ceticismo

"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço” (Ítalo Calvino, "Cidades Invisíveis"). Angústias acerca do Brasil de hoje me levam a recorrer a Calvino, a quem voltarei ao final deste artigo.

Há mais de 26 anos temos uma moeda dotada de relativa estabilidade de poder de compra. Há mais de 21 anos temos um regime cambial de taxas flutuantes que vem servindo bem ao Brasil, bem como um regime monetário de metas de inflação que também vem servindo bem a este país, que até o Real detinha o desonroso título de campeão mundial da inflação acumulada (do início dos 1960 ao início dos 1990).

Há mais de 20 anos deveríamos também ter um regime fiscal sólido. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), aprovada pelo Congresso Nacional em maio de 2000, consolidava relevantes avanços dos anos 90: a renegociação das dívidas de 25 Estados e cerca de 180 municípios, a reestruturação do sistema financeiro por meio do Proer e do Proes, este último voltado para os bancos estaduais, então mais de 30. E a implementação rigorosa do programa fiscal para 1999-2001, anunciado pelo governo federal ainda em 1998.

A LRF foi, desde o início, contestada por aqueles, numerosos, que acreditam que a responsabilidade fiscal é incompatível com responsabilidade social e com crescimento econômico. Trata-se de grave equívoco, traduzido de forma eloquente na famosa expressão “gasto é vida”. É a ideia de que a maior parte do gasto público, na verdade, não é gasto, mas um “investimento no futuro” – ainda que se trate de custeio, salários, isenções, deduções e desonerações de impostos e gastos financiados com créditos subsidiados. É a crença de que a expansão da demanda promovida pelo governo cria sempre sua própria oferta doméstica. Esse caminho foi definido em 2006, acentuado na crise de 2008-2009 e levado ao extremo em 2014 para assegurar a reeleição.

As consequências foram contundentes: a taxa de crescimento médio anual do PIB nesta segunda década do século 21 será praticamente zero, a renda per capita do brasileiro em 2020 será inferior à de 2010. Não foi, está claro, por falta de aumento do gasto público, que superou em muito a inflação e o crescimento real da economia.

Já discuti neste espaço as causas subjacentes à pressão por aumento dos gastos públicos no Brasil. Não pode haver dúvida de que essas pressões continuarão, até porque incluem razões legítimas, que têm que ver com nossas deficiências nas infraestruturas física e humana (educação e saúde) e com a necessidade de combater a pobreza e a assimetria de oportunidades que está na raiz da desigualdade social que caracteriza o Brasil, tão dramaticamente escancarada pela covid-19.

Sem a pandemia, a situação fiscal, que constitui nosso calcanhar de Aquiles macroeconômico, já era precária. A covid exigiu respostas emergenciais, e justificadas. O estado de calamidade aprovado pelo Congresso tem vigência até o fim deste ano, mas não tenhamos ilusões: as pressões por maiores gastos, novos programas (não apenas o Renda Brasil) e novos investimentos não cessarão com o fim do ano-calendário e, com ele, talvez, do estado de calamidade. A expressão “pós-covid”, usada para expressar o elusivo desejo de uma volta, tão rápida quanto possível, ao normal, é enganosa. O mundo pós-covid começou, na verdade, no início de 2020; suas consequências, aí incluídas as respostas de governos, e as expectativas que estas possam ter gerado, estarão conosco por muitos e muitos anos. A margem para velhos ou novos erros diminuiu de forma drástica.

Os três níveis de governo estão próximos do limite de sua capacidade – de tributar, de bem gastar, de se endividar, de reformar, de gerir, de investir. Os governantes hesitam em empreender ações dolorosas, mas necessárias, para assegurar o rumo apropriado para o crescimento de longo prazo. Os problemas se agravam e se acentuam as incertezas sobre a sustentabilidade da dívida e dos déficits públicos.

Volto a Calvino: a citação da abertura é precedida da fala de outro interlocutor: “É tudo inútil se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito”. Espero que um número expressivo de brasileiros – suficiente para fazer a diferença – se recuse a acreditar que “é tudo inútil”, que nosso último porto como país só pode ser a cidade (polis, política) infernal para a qual a corrente nos estaria levando. Que não nos deixemos abater por desalento, desencanto e excessivo ceticismo. E que escolhamos – ao longo dos próximos e cruciais dois anos, e ainda muito adiante – o segundo dentre os caminhos contemplados por Calvino: reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

*Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC


Pedro S. Malan: Espinhosa travessia

O desafio histórico para verdadeiros líderes é gerir a crise enquanto constroem o futuro

A crise em que se veem o Brasil e o mundo é a um só tempo sanitária, econômica e social. Para enfrentá-la precisamos, mais que nunca, de serena combinação de humildade e confiança da parte de suas lideranças. Humildade para reconhecer o alto grau de incerteza e riscos presentes, confiança em que teremos capacidade para nos erguermos à altura dos desafios. É preciso também reduzir conflitos - com o Congresso, governadores, comunidade científica, mídia profissional, parcela expressiva da opinião pública e até mesmo com os fatos.

Marcus André Mello recorre a Maquiavel na abertura de seu belo artigo na Folha desta semana: “Os príncipes devem transferir decisões importunas para outrem, deixando as agradáveis para si”. O autor mostra quão complexos podem ser os mecanismos de “reivindicação de crédito e de transferências de culpas por decisões impopulares”. E conclui: “Na atual pandemia, são três as lições a tirar para Trump, Johnson e Bolsonaro: ter começado mal importará pouco; transferir responsabilidades não funcionará. (...) E mais importante, a crise revelará sua real capacidade de liderança, não há como escapar”.

A velocidade de contágio do vírus atesta de forma dramática as interações necessárias do mundo da política nacional, regional e internacional. Em artigo recente, Henry Kissinger afirma que nenhum país poderá superar de forma isolada um problema que é global, e cujas consequências econômicas e políticas estarão conosco por gerações. Para o experiente analista, impõe-se aos EUA um grande esforço em três áreas: contribuir para aumentar a resiliência global a doenças infecciosas; fazer mais do que foi feito em 2008/09, porque a situação agora é muito mais complexa; e lembrar as razões que levaram os EUA a cooperar com outros países nos arranjos internacionais que marcaram o mundo do pós-guerra. O desafio histórico para verdadeiros líderes é administrar a crise enquanto constroem o futuro.

Com efeito, lideranças nacionais serão inevitavelmente avaliadas não só pela opinião pública doméstica, como também pela percepção dos outros países. Importa como nos vemos, mas importa também como somos vistos por outros. Afinal, 2020 será marcado por uma brutal recessão na economia mundial e no comércio internacional, muito mais intensa que a de 2008/09. A magnitude dos efeitos sobre oferta, cadeia de suprimentos, demanda e, portanto, sobre emprego e renda não permitirá uma recuperação rápida em 2021. Pesa, ademais, o receio de uma segunda onda da covid-19 ainda em 2020.

“Abril é o mais cruel dos meses” escreveu o poeta T. S. Eliot (A terra desolada, 1922). Está sendo em 2020. Mas não terá sido menos cruel março, quando a epidemia virou pandemia e atingiu, em mais de 140 países, o primeiro milhão de casos registrados (certamente uma subestimativa), que terão alcançado 2 milhões nos primeiros 12 dias de abril. Aguarda-se maio com trepidação.

Graças ao trabalho extraordinário da mídia profissional - que deu e dá espaço inestimável a epidemiologistas, médicos e profissionais da área -, parte expressiva da opinião pública compreendeu que a capacidade do sistema nacional de saúde não comportaria um fluxo excessivo de demandas por cuidados hospitalares, em particular leitos com respiradores em UTIs. Daí a necessidade de políticas de isolamento social, para que o pico da epidemia fosse menos intenso e diferido no tempo. A política do Ministério da Saúde foi explicada com clareza e transparência pelo ministro Mandetta e sua equipe. A política de assistência emergencial aos mais vulneráveis, aos informais, às pequenas e médias empresas, e à preservação do emprego, era e é absolutamente necessária e pôde apoiar-se na aprovação pelo Congresso da declaração de calamidade pública.

O vírus e a necessidade de respostas simultâneas que ele impõe vêm desvendando de forma dramática a extensão de nossas desigualdades e fragilidades sociais - nas áreas de saúde pública, saneamento, educação. São temas que vieram para ficar, com intensidade renovada, e estarão presentes em qualquer debate futuro, muito após o momento em que houver sido superada a atual pandemia.

O Brasil sairá diferente, e espero que melhor, ainda que gradualmente, se algumas importantes lições desta sofrida experiência puderem ser aprendidas. Se alcançarmos grau de capital cívico mais elevado, renovação relevante de lideranças políticas, maior confiança e credibilidade dos governantes junto à maioria da população.

Decorrido quase um terço de século da Constituição de 1988, o sonho de criação de um Estado de bem-estar social está a passar por seu mais sério teste. O Brasil descobre quão difícil é implementar o generoso (e de todo desejável) objetivo de construir um Estado garantidor do alento de aposentadoria para todos e de serviços de saúde e educação universais. Isso envolve custos elevados para a sociedade, e exige clara definição de prioridades numa visão de médio e longo prazos, que alcança o País em que gostaríamos que nossos filhos e netos pudessem viver.

As lições do vírus paradoxalmente ajudam nesse importante diálogo do País consigo mesmo; diálogo sobre um futuro que com frequência permitimos seja adiado.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Pedro S. Malan: Peso do passado e pressão para prometer

Na retomada dos trabalhos legislativos, PEC da administração pública é urgência maior.

Avanços na área de sequenciamento de genoma humano indicam a possibilidade de se descobrirem predisposições genéticas a determinados tipos de doenças. Ocorre-me que, se fosse viável o mapeamento genético-cultural de nações, nosso país revelaria, dentre outras, marcada predisposição a tomar por natural a propensão à expansão continuada do gasto público, em descompasso com o comportamento da arrecadação, da inflação e da capacidade produtiva da economia.

Nas últimas décadas o Brasil fez avanços importantes em matéria de reformas e construção institucional. Seu regime fiscal e sua administração pública, no entanto, deixam ainda muito a desejar. Expectativas consistentes de crescimento sustentado exigirão uma percepção menos irrealista das restrições fiscais que se impõem à ação dos três níveis de governo.

A aprovação da reforma da Previdência deve ser comemorada, mas é claro que não equacionou de vez o problema fiscal do País. A população de idosos (mais de 60 anos) passará de 30 milhões em 2018 para cerca de 73 milhões em 2060. A faixa entre 20 e 60 anos cairá de 120 milhões para 95 milhões e a de menos de 20 anos, de 60 milhões para 45 milhões. A taxa de crescimento da população de idosos, cinco vezes superior à da população total (que, de resto, terá parado de crescer em meados dos anos 40), aponta, por sua vez, para aumento expressivo e continuado dos gastos em saúde.

A experiência brasileira com inflação crônica, alta e crescente deveria ter deixado mais clara a relação entre conflito distributivo e déficits orçamentários. Ele se manifestava, como ainda hoje, por disputas entre grupos de interesse, incluídas as corporações do setor público, para manter e de preferência aumentar suas fatias do Orçamento. A inflação não está mais aí (nunca mais, esperemos) para acomodar essas disputas. Mas o conflito distributivo continua vivo, e crescente. Em 2014 o peso das decisões passadas havia se tornado visível a olho nu. 2020 será o sétimo ano consecutivo de déficit primário nas contas fiscais. 2021 deve ser o oitavo. 2022 é ano eleitoral... Não por acaso, Previdência e salários são as duas principais contas nos gastos do setor público. No caso do governo federal, superarão R$ 1 trilhão neste ano de 2020, comprimindo todos os gastos discricionários, particularmente investimentos e prestação de serviços públicos.

Nesta retomada dos trabalhos legislativos, a urgência maior são as PECs emergenciais e a da administração pública. Cerca de um quarto dos 11 milhões de servidores públicos deve se aposentar até 2023. Entre 2017 e 2019 dobrou (para dez) o número de Estados com mais aposentados e pensionistas que servidores da ativa; os valores das aposentadorias do setor público são em geral maiores que a média da remuneração do servidor da ativa. Existem no Executivo federal mais de 200 carreiras distintas, representadas por mais de 150 associações. Em alguns Estados o número chega perto de 100. Multipliquemos por 27, adicionemos as carreiras de municípios – e estará clara a magnitude da tarefa que nos desafia.

Em 30 de janeiro o ministro Paulo Guedes afirmou que a reforma administrativa seria enviada em duas semanas ao Congresso, a quem caberia “dar o ritmo”. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, classificou, por sua vez, de decisivo o envolvimento ativo do Executivo. A experiência mostra, com efeito, que são determinantes empenho e mobilização do Executivo, notadamente quando a agenda legislativa se encontra, como agora, sobrecarregada. E o tempo, curto.

Em seu primeiro discurso de posse, Dilma Rousseff disse: “O Brasil optou (...) por construir um Estado provedor de serviços básicos e de Previdência Social pública. Isso significa custos elevados para toda a sociedade”. Passada uma década, talvez a sociedade possa enxergar com alguma clareza que os “custos elevados para toda a sociedade”, outrora mascarados pela inflação recorde, assumiram a forma de retração de investimentos, deterioração da infraestrutura e de serviços de educação, saúde e saneamento – sentida principalmente pelos mais pobres.

O Estado brasileiro, como disse Rodrigo Maia, “custa muito e serve pouco”. É um grande distribuidor dos recursos que por ele transitam, tarefa que executa mal – sem adequada definição de prioridades, avaliação e controle da qualidade dos serviços prestados. É de Ken Rogoff o diagnóstico: “É lamentável que neste debate sobre os limites das ações do governo haja muito pouca discussão sobre como fazer do governo um provedor de serviços eficiente. Aqueles que desejam um papel mais amplo do setor público estariam fortalecendo sua posição se estivessem preocupados em encontrar formas de fazer o setor público mais eficaz”.

É preciso acreditar que isso não seria impopular. Contrariamente, portanto, à crença ainda predominante entre nós e que tem profundas raízes em nosso inconsciente coletivo. É possível, se conseguirmos reunir e manter juntos, racionalidade, esforço e esperança. Sobre esta última, vale lembrar um velho ditado: “A esperança não morre, mas pode atravessar angustiantes fases de vida”.

* ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC. E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM


Pedro S. Malan: ‘Presidencialização’ da política?

O papel de lideranças políticas responsáveis é reduzir – não aumentar – os graus de incerteza...

“Poderão as democracias sobreviver quando são as crenças pessoais e não os fatos que sustentam nossa visão de mundo? Esta é a pergunta que deverá marcar não apenas 2020, mas os anos seguintes.” Ela foi feita neste jornal (27/12) por Pedro Doria e é especialmente relevante no Brasil de hoje, marcado por uma certa presidencialização da política.

Não se trata, está claro, de peculiaridade de nosso país. Em seu último número de 2019, a revista The Economist comenta (pág. 125) o resultado de amplo mapeamento feito pela empresa Chartbeat, que mede audiências para jornalismo online. O universo inclui 5 mil sites e 4 milhões de artigos, divididos em 34 tópicos (pessoas e temas). Assim como no ano anterior, em 2018 o presidente Donald Trump dominou as atenções: foram 112 milhões de horas diárias na leitura de peças jornalísticas, em média mais de 300 mil horas por dia e picos de mais de 600 mil ou 700 mil. Nenhuma outra palavra ou tema rivalizou ao longo do ano, em termos de interesse sustentado, com Trump. Pudera, em apenas um dia de dezembro o presidente dos EUA emitiu nada menos que 123 tuítes. (O evento recordista, mas apenas por um dia, foi o incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris.)

Trata-se da presidencialização da política, versão EUA. O presidente é fonte inesgotável de notícias e de sua multiplicação através das redes sociais – por seguidores, pelos que discordam, por robôs de ambos os lados. O que importa é estar em evidência e ocupar sempre espaços na mídia, a favor ou contra; é manter permanentemente mobilizado o eleitorado.

É natural, compreensível, que o poder incumbente esteja no centro das atenções. Em regimes presidencialistas, o chefe do Poder Executivo ocupa lugar privilegiado. Não é surpresa que Jair Bolsonaro – que, como sabido, tem Trump como modelo – tenha visibilidade na mídia muito superior à de outras lideranças políticas. A Folha de S.Paulo (31/12/2019) listou suas próprias manchetes do ano, 365. Bolsonaro ocupa posição mais de duas vezes superior à do segundo colocado (governo); e está mais de três vezes e meia à frente do terceiro colocado – Lava Jato e Previdência, empatadas.

E quais os traços centrais dessa política presidencializada que caracteriza o Brasil de hoje e tende a predominar ao longo do próximo triênio? Decididamente, o presidencialismo à brasileira não é, desde a eleição de Bolsonaro, o conhecido presidencialismo de coalizão. Além de rejeitar coligações partidárias no Congresso, nosso presidente implodiu o próprio partido pelo qual foi eleito. (As liberações para emendas parlamentares, no entanto, bateram recorde em 2019.) Tampouco tem sido um presidencialismo de cooptação, de animação ou de isolação, como já os tivemos.

O nosso é um caso de presidencialismo de confrontação, à moda de Trump, para manter um eleitorado fiel permanentemente mobilizado. Para quê? Para 2022, decerto; talvez já para 2020, se o novo partido estiver regularizado até lá. E para mais também, talvez. O principal mentor intelectual de Bolsonaro, filhos e alguns ministros assim se expressou em vídeo recente(outubro de 2019): “A política não é uma luta de ideias, é uma luta de pessoas e de grupos. Tem que parar com essas concepções ideológicas gerais que não levam a parte alguma. O que você tem que saber é exatamente o que fazer no momento decisivo”. Ainda em outubro de 2019, via tuíte, já havia postado que “só uma coisa pode salvar o Brasil: a união indissolúvel de povo, presidente e Forças Armadas”. O que seria o mencionado momento decisivo? Ainda cumpre esclarecer.

A pergunta feita por Pedro Doria, relembrada acima, faz pensar em Aldous Huxley: “A sobrevivência da democracia depende da capacidade de um grande número de pessoas de fazer escolhas realistas à luz de informação adequada”. A observação, feita em 1958 (Admirável Mundo Novo Revisitado), permanece tão atual quanto relevante. Raymond Aron sempre apontou o fato de que, no mundo da política, crenças prevalecentes numa sociedade podem e devem ser vistas como parte integrante de teias de fatos, percepções e circunstâncias que configuram aquilo que chamamos realidade. Keynes, a seu turno, atribuía grande importância ao que denominou degrees of belief (graus do acreditar) prevalecentes em determinada sociedade. Entre nós, o tema foi tratado com brilhantismo por Eduardo Giannetti em seu livro O Mercado das Crenças, que antecipou os estudos do Prêmio Nobel Jean Tirole sobre produção, consumo e investimento em crenças. São todas, segundo penso, observações mais que relevantes para o Brasil de hoje.

Em Diários Intermitentes (póstumo, recém-lançado), Celso Furtado reflete sobre os políticos profissionais que conheceu de perto: “... um político puro, em última instância, decide em função das chances pessoais que tem para continuar ocupando espaço”. A observação é verdadeira, mas pode ser ampliada: não existe vácuo na política, espaços estão sempre a ser disputados. A estratégia voltada para a sua conquista, manutenção ou ampliação é constantemente revisitada à luz de fatos novos, crenças pessoais e, espera-se, alguns valores, lealdades, princípios e espírito público.

O papel de lideranças políticas responsáveis, em particular do presidente da República e seus principais colaboradores, é o de contribuir para reduzir – e não aumentar – os graus de incerteza sobre o futuro. Não com promessas, bravatas e discursos contra inimigos do País e do povo, internos ou externos. Mas com propostas de políticas públicas, o que exige exercício consistente de abertura ao diálogo, com base em moderação, serenidade, postura e compostura; exercício apto a inspirar um mínimo de confiança e cooperação na busca de (compartilhados) objetivos maiores. Árdua tarefa.

* Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Pedro S. Malan: A linguagem dos mitos

Estamos na categoria dos países grandes que criam problemas para si próprios? Penso que sim

“Na linguagem dos mitos, bem
como na das fábulas e do
romance popular, toda empresa
portadora de justiça,
reparadora de ofensas, resgate
de uma condição miserável, vem em geral representada como a
restauração de uma ordem ideal anterior; o desejo de um futuro
a ser conquistado é garantido pela memória de um passado perdido”
Italo Calvino

Ao reler o texto do autor (Por que ler os clássicos) é impossível não pensar na campanha pelo Brexit e seu lema, “take back control” (vamos tomar o controle de volta), ou no mantra de Trump, “make America great again” (vamos fazer a América grande de novo). Ou ainda em Putin, que vendeu aos seus a visão de que a Rússia volta a ter a grandeza de uma potência mundial; e no governo chinês, que olha com confiança seu futuro, mas sempre remetendo ao passado de glórias milenares como “Império do Meio”.

E o Brasil? Acreditamos, nós também, que o desejo de um futuro a ser conquistado é garantido pela memória de um passado perdido? Ou no contrário – que teremos um grande futuro independentemente da qualidade de nossa memória, e de nosso entendimento sobre o passado?

É difícil alcançar visão de futuro ali onde não há consciência social do passado e reconhecimento dos principais desafios do presente. Desafios que sempre serão o legado de nossas ações e omissões, e de nossas cambiantes formas de relação com o resto do mundo. Escrevi na introdução a um livro recente: “Ao longo destes 130 anos de República, não sabíamos (como não sabemos hoje) se ao caminhar estávamos pisando nas cinzas do passado ou nas sementes do futuro, juntas e misturadas, como sempre, sob nossos pés e em nossas memórias. Sempre conviveremos com o peso do passado e a promessa do futuro – e ambos têm traços de teimosa permanência”.

Dentre os quase 200 países soberanos contam-se nos dedos de uma mão os que estão, simultaneamente, na lista dos dez maiores em termos de extensão territorial, população e tamanho de sua economia. Uma década antes do surgimento da sigla Bric, George Kennan antecipou que os países em questão – China, Índia, Rússia, Brasil –, além dos EUA, tinham o que chamou de hubrys of inordinate size: “Certa falta de modéstia na autoimagem do grande país; um sentimento de que seu papel no mundo deveria ser equivalente à sua dimensão (nas três áreas acima) com a consequente tendência a superlativas pretensões e ambições... em geral, o país grande tem uma vulnerabilidade a sonhos de poder e glória aos quais Estados menores são menos inclinados”. Os países-monstro, como os designa o autor, “por vezes criam problemas para si próprios, mesmo quando não constituem problemas para outros”.

Por trás de todas essas questões está a maneira como cada país define os contornos de seus “interesses nacionais”. Para o decano dos estudos de relações internacionais dos EUA, Joseph Nye Jr., “numa democracia, o interesse nacional é simplesmente aquilo que os cidadãos, após deliberação apropriada, afirmam que é (...); lideranças políticas e especialistas podem apontar para os custos de indulgência em certos valores, mas se o público informado discorda, os especialistas não podem negar a legitimidade dessas opiniões”. O essencial dessa reflexão, está claro, são as expressões após deliberação apropriada e (por parte de) público informado – que nem sempre ocorre em algumas democracias. É possível ainda que mesmo após deliberação coletiva surja um país profundamente dividido: o Brexit teve 51,8% dos votos contra 48,2%, Trump perdeu no voto popular por quase 3 milhões de votos, Bolsonaro foi eleito por 39% do eleitorado total. Como bem sabemos, a expressão de desejos coletivos não se traduz, naturalmente, em políticas efetivas que os transformem em realidade.

Interesses nacionais não são apenas expressos nas relações internacionais e na política externa. Há interesse nacional em demonstrar ao resto do mundo a capacidade de resolver ou, ao menos, de encaminhar soluções para os principais desafios domésticos. EUA, China, Rússia e Índia têm, cada um à sua maneira, certa ideia compartilhada por suas lideranças políticas sobre seus interesses nacionais. Expressam-na com maior ou menor clareza, mas a têm, sempre sujeita ao debate doméstico, aberto nos EUA e na Índia, ou em circuitos internos de poder, como na China e na Rússia.

E o Brasil? Estamos na categoria dos países grandes que “criam problemas para si próprios”? Penso que sim: no irrisório crescimento, na desigualdade de oportunidades, na dificuldade de fazer reformas, no baixo investimento em infraestrutura, com relação ao meio ambiente; e na educação, essa que, em última análise, definirá o que seremos – ou não seremos – nas próximas décadas.

Permito-me apenas sublinhar aqui a importância de um dos problemas mais urgentes com que nos defrontamos: tentar aprovar no Senado uma PEC paralela que permita aplicar a Estados e municípios termos da reforma da Previdência aprovada na Câmara dos Deputados.

Impossível imaginar que 27 Estados e duas a três centenas de municípios, a maioria em precária situação fiscal, possam de forma autônoma reformar seus respectivos sistemas previdenciários. A ninguém escapa a dificuldade do debate com as respectivas corporações, que têm maior poder de pressão sobre governos locais do que sobre o governo federal; a ninguém escapa a gravidade da incerteza que longas e acerbas disputas imporiam sobre a economia – e sobre a discussão da reforma tributária. Não deve haver dúvida: a conta desse processo recairia sobre o governo federal, ele próprio em situação de sabida fragilidade em suas contas.

Mas há sinais de avanços, e não apenas expressos no resultado da recente votação da Previdência, de que parte da opinião pública e parte das lideranças políticas e empresariais do País se estão dando conta da gravidade da situação (doméstica e internacional) e se dispondo a colaborar para superar a malaise atual – evitando a linguagem dos mitos.

* Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC


Pedro S. Malan: O primeiro inverno do governo Bolsonaro

É difícil de imaginar que possamos seguir com o grau de surpresas e incertezas visto até aqui

“O orgulho nacional é, para os países, o que a autoestima é para os indivíduos: uma condição necessária para o autoaperfeiçoamento. Orgulho nacional excessivo pode produzir belicosidade, excessiva autoestima pode produzir arrogância. Mas, assim como muito pouca autoestima torna difícil dispor de coragem moral, orgulho nacional insuficiente torna improváveis debates políticos vigorosos e eficazes” (Richard Rorty)

Há exatos 16 anos comecei a escrever neste espaço. Assim abria meu primeiro artigo (Falsos dilemas, difíceis escolhas): “Nos últimos 12 meses, o Brasil mostrou ao mundo que continua avançando em termos de maturidade política e nível do debate econômico – apesar das aparências em contrário”. Havia, então, razões para um realismo esperançoso; para crer que estávamos em processo de aprendizado que poderia vingar – se a ele fosse dada continuidade.

O governo Lula tinha, então, a mesma idade do governo Bolsonaro, que tem à frente problemas domésticos e internacionais não triviais. As circunstâncias de hoje são muito mais adversas que as de então. Ali, o contexto internacional era cada vez mais favorável, a herança não era maldita e a política macroeconômica não era aquela que o PT havia defendido – pelo contrário.

Dada a gravidade da hora, é valiosa a recomendação final da epígrafe de Rorty: tentar tornar prováveis debates políticos “vigorosos e eficazes”. Isso exige a superação da excessiva polarização atual e o gradual deslocamento para o centro; exige atenuar as posições extremadas que hoje marcam o precário debate nas redes sociais.

Rorty escreveu a propósito de seu país, os EUA. Argumentou que a “esquerda” americana não deveria deixar a “direita” se apropriar totalmente da bandeira do orgulho nacional e do patriotismo; e que os debates não seriam “imaginativos e produtivos” a menos que “o orgulho sobrepujasse a vergonha”. Raymond Aron, por sua vez, recomendava que espectadores engajados deveriam evitar excessos, tanto de entusiasmo quanto de indignação. E Eduardo Giannetti, que os dois gumes da lâmina contivessem os excessos, seja de otimismo seja de pessimismo. Todos – Rorty, Aron e Giannetti – tinham em mente a necessidade de evitar polarizações excessivas que impedissem o diálogo e a busca das convergências possíveis. Que sempre existem.

O importante é que ganhem espaço a moderação, o diálogo e a tolerância. Esse sonho tem de ser construído ao longo dos próximos meses e anos. Porque é difícil de imaginar que possamos seguir com o grau de surpresas e incertezas que marcou os primeiros seis meses deste governo. Seria possível argumentar que essas incertezas são apenas reflexo de longo processo de aprendizado em curso; dores do crescimento de uma ainda jovem República democrática. O fato é que antes de Bolsonaro, e desde 1945, o Brasil elegeu, pelo voto direto, oito presidentes da República. Quatro antes do regime militar de 1964-1985 (Dutra, Vargas, Juscelino e Jânio); e outros quatro desde então (Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma). Nada menos que quatro destes oito não terminaram seu mandato. O atual presidente desempatará este 4 x 4 – de uma maneira ou de outra.

Em qualquer país do mundo, a grande maioria da população tem pouca memória em relação ao passado geral e escasso horizonte de longo prazo à frente. Tomada pela vida privada, afazeres cotidianos, carece de paciência para conceitos, discussões técnicas e informações estatísticas. Apesar disso, pude perceber na prática, ao longo de décadas, o acerto da observação de um dos mais perspicazes analistas do desenvolvimento econômico, social e político. Refiro-me ao excelente texto de Albert Hirschman sobre democracia e debates públicos.

“Com grande frequência, os participantes desse debate têm apenas opinião inicial e incerta sobre as questões de políticas públicas. Anunciam com convicção sua visão, mas sua posição mais articulada surge apenas através da discussão, por vezes de prolongadas deliberações; cuja função é desenvolver argumentos, obter informações. Posições finais podem distar muito das iniciais – e não apenas como resultado de compromissos políticos com forças opostas.”

Neste processo estamos e não temos alternativa senão nele persistir. Há exatos quatro anos concluí com a seguinte observação o artigo Tudo muito pouco usual, neste espaço: “Estamos, talvez, no começo do fim de um ciclo, ao longo do qual uma determinada visão e uma determinada política ultrapassaram, por larga margem, sua funcionalidade, relevância e utilidade”. Não tenho nada a modificar nessa conclusão; exceto retirar a palavra talvez.

As razões para tal são hoje conhecidas: o investimento no Brasil começou a declinar no terceiro trimestre de 2013, caiu 26% até o final de 2015 e 33% até o final de 2016. Hoje, está ainda 27% abaixo de seu pico. A economia cresceu de 2011 até 2018, em média, 0,6% ao ano, o que significa uma queda da renda per capita, que ainda hoje é inferior ao nível de 2010. É a mais grave crise que jamais tivemos, e a de mais longa duração. São inegáveis as consequências em termos de desemprego, qualidade dos serviços públicos, desalento, distribuição de renda e carências sociais. Este 2019 será o sexto ano consecutivo de déficit fiscal primário do governo federal. Ao que tudo indica, 2020 será o sétimo e 2021, o oitavo, dada a crise das finanças estaduais e municipais. Turbulenta década esta segunda do século 21.

Ainda assim, neste primeiro dos invernos do governo Bolsonaro, o Brasil não tem alternativa senão continuar a tentar. Tentar mostrar, a si próprio e ao mundo, que é capaz de avançar em termos de maturidade política e de elevação do nível do debate econômico sobre questões fundamentais: por que crescemos tão pouco, por que é tão desigual a distribuição de oportunidades; por que é tão penoso fazer as reformas. Volto ao realismo esperançoso de Hirschman: há que tê-lo. Apesar – e por causa – das aparências em contrário.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC.


Pedro S. Malan: Começos – o principal agora

Executivo precisa de grande habilidade para conduzir a sua agenda legislativa

“O PRINCIPAL, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros (começos), foi estabelecer alguma ordem na administração.” Assim escreveu Graciliano Ramos em relatório de gestão da prefeitura de Palmeira dos Índios endereçado ao governo de Alagoas. A palavra principal está grafada em maiúsculas no original. O eventual leitor perguntará: mas Graciliano numa hora destas? E logo sobre um assunto tão árido, uma citação velha de 90 anos? São várias as razões que me fazem começar puxando esse fio, que, creio, tem muito que ver com nosso presente – e com nosso futuro.

Primeiro, porque o Brasil tem 5.570 prefeitos, que estarão, ao longo dos próximos 18 meses, a preocupar-se não só com a administração de suas cidades e com seus vereadores, como também com sua reeleição ou sucessão em outubro de 2020. Estarão atentos à relação com os respectivos governadores e com o que acontece em Brasília e no resto do Brasil (o que não é exatamente a mesma coisa). Impossível dizer quantos desses prefeitos – presentes e futuros – terão o estilo objetivo, seco, direto ao ponto de Graciliano (seus dois relatórios são imperdíveis). Mas para a grande maioria o principal problema, de que depende a solução de todos os outros, é a extensão em que conseguirão “estabelecer alguma ordem” nas suas respectivas administrações.

Segundo, porque há também 27 governadores que entram agora no quarto mês de seus mandatos e estarão chegando quase à metade deles em 18 meses mais, e com as mesmas preocupações dos prefeitos de hoje, de olhos postos em outubro de 2022. Para a esmagadora maioria também vale a observação inicial de Graciliano. Alguns Estados estão à beira da insolvência, resultado da falta de “alguma ordem” na administração passada de dívidas, derivadas, por sua vez, do excesso de crescimento de gastos sobre o crescimento de receitas. Em alguns casos, mais preocupantes, da transformação de receitas transitórias em gastos permanentes e crescentes – em particular com as duas rubricas mais importantes: pessoal e, crescentemente, inativos e pensionistas. Vários governadores em início de mandato são, basicamente, gerentes de folhas de pagamento, que em alguns casos excedem 70% de sua receita corrente líquida.

Penoso e aborrecido como possa parecer, esse é o principal problema para a maioria dos gestores públicos. Um problema que exige conhecimento do nível, composição e eficiência de suas despesas e receitas, presentes e futuras. Exige, em particular, cercar-se de pessoas qualificadas e dotadas de capacidade de execução. Disso depende não só o controle da trajetória de sua dívida, como também, e principalmente, a qualidade e quantidade dos serviços públicos que têm a obrigação de prestar às respectivas populações. Alguém dirá – e não sem razão – que por mais que Estados e municípios possam fazer nesse sentido, estarão sempre afetados positiva ou negativamente pelo contexto mais amplo do desempenho da economia do País; que, por sua vez, é fortemente influenciado pelas políticas do Executivo federal, deliberações do Congresso Nacional, decisões do Judiciário – e pelo grau de funcionalidade das relações entre os Poderes, em particular entre Executivo e Legislativo.

Esse é o terceiro ponto. O novo governo está no poder há cem dias. O novo Congresso assumiu há 70 dias. Muitos dizem, e dirão por algum tempo ainda: “É muito cedo, as coisas vão se acomodando e o Executivo acabará por formar sua base de apoio no Congresso, suficiente para a aprovação, em prazo razoável, de uma ampla agenda legislativa”. O tempo dirá, mas este terceiro aspecto envolve uma pergunta de importância crucial: a que responde cada congressista, num Parlamento repleto de novatos, em que nenhum partido tem mais que 11% (Câmara) ou 15% (Senado) dos votos?

A quatro fatores, é a resposta que arrisco esboçar. 1) À família nuclear imediata e estendida de cada congressista, que começa por pais, mães e filhos e alcança compadres, agregados e amigos; quem já viveu em Brasília sabe da importância desses vínculos, dada a quantidade de empregados no setor público. Posturas e votos sobre a reforma da Previdência, por exemplo, sempre foram, e agora serão mais ainda, afetados por estes vínculos. 2) A seu eleitorado potencial, sua base eleitoral no respectivo Estado, região e município, a ser atendida por emendas e obras que consiga; e, para muitos, às suas alianças corporativistas de caráter nacional, que nunca devem ser subestimadas. 3) Ao que percebem como o cambiante “sentimento geral” da opinião pública mais ampla, tal como refletida nas mídias – rádio, televisão, jornais, revistas e, cada vez mais, redes sociais. 4) Por último, mas não menos importante, ao que percebem como o grau de empenho e convicção do Executivo federal, dos ministros e da respectiva capacidade de articulação, convencimento e conhecimento do tema em deliberação, inclusive, e muito importante, do presidente da República.

Cada deputado e cada senador tem antenas muito sensíveis para os pontos acima mencionados, todos sentem que têm legitimidade: afinal, seus mandatos também emergem das escolhas do eleitorado. Julgam que o Legislativo sempre pode, e deve, “aperfeiçoar” os projetos encaminhados pelo Executivo, pois a Constituição assegura a independência dos Poderes. Se os partidos são fracos, o Congresso, em seu conjunto, quando quer, e puder, é forte. O Executivo precisa de grande habilidade e lideranças experientes para conduzir sua agenda legislativa, em particular quando esta envolve mudanças constitucionais. A eventual percepção por parte do Congresso de que o Executivo não está coeso e de que o próprio presidente não está convencido dos rumos pode ser algo nefasto nos meses que faltam deste crucial ano de 2019, afetando negativamente as expectativas de retomada do investimento e do crescimento do País. É muito sério o que está em jogo nestes “começos”.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC.


Pedro S. Malan: Sete semanas

Talvez nunca tenha sido tão importante o voto informado e consciente dos que não acreditam em messianismos salvacionistas, em voluntarismos extremados, tampouco em puros exercícios de “autoridade” como solução para problemas da complexidade dos nossos

“Este é um trabalho muito pouco analítico, mas com ambição exagerada. Pretende convencer intuitivamente o poder incumbente que será eleito em 2010 de que: a) o Estado brasileiro é o mais pesado entre os que têm PIB per capita semelhante; b) essa é uma das causas importantes do nosso baixo crescimento; e c) sem ‘bala de prata’ ou choques duvidosos, existem muitas trilhas viáveis para reduzir o problema e recolocar o Brasil no caminho do desenvolvimento acelerado. Isso dependerá de muita perseverança, de razoável paciência e de alguma inteligência.”

Essa é a abertura de A agenda fiscal, texto do ilustre ex-ministro Delfim Netto publicado em Brasil Pós-crise: Agenda para a Próxima Década, organizado por Fabio Giambiagi e Octavio de Barros (Campus 2009). O trabalho encontrou ouvidos moucos de parte do poder incumbente eleito em outubro de 2010 e - o marqueteiro João Santana fazendo o diabo a quatro - reeleito em outubro de 2014. Afinal, desde 2005 o mote do grupo em questão era o famoso “gasto é vida”.

Novamente às vésperas de eleições, o artigo de Delfim continua atual e relevante. Avançamos na compreensão da magnitude dos desafios, forçados pelas circunstâncias, especialmente após o fracasso da política econômica do governo Dilma, essa que já havia sido figura-chave do governo Lula, definida por este após cinco anos e meio de convivência estreita como “a melhor gerente deste país”. Eleita, Dilma teve mais cinco anos para pôr suas ideias em prática. Deu no que deu.

Delfim Netto é hoje mais sintético, mas não menos mordaz. “Talvez possamos ter sucesso se o eleito tiver condições de eliminar a ‘causa causans’ que nos assalta há três décadas: a despesa primária do governo cresce em torno de 5% ao ano, enquanto o PIB cresce a 2,4%. Todo o resto é chantili!” (Folha de S.Paulo 29/8).
Em exatas quatro semanas mais emergirão das urnas dois candidatos a se tornar o “poder incumbente”. Talvez nunca tenha sido tão importante o voto informado e consciente dos que não acreditam em messianismos salvacionistas, em voluntarismos extremados, tampouco em puros exercícios de “autoridade” como solução para problemas da complexidade dos nossos.

Nunca na nossa História recente o Brasil precisou tanto de um candidato reformista, de centro, aberto ao diálogo, honesto, experiente e que não tenha ou venda ilusões. Ao contrário, que conheça bem a situação das contas públicas do País, o drama secular da educação, a tragédia da corrupção e da violência urbana. Que tenha refletido, cercando-se de pessoas experientes, tecnicamente competentes e que sejam capazes de vislumbrar o País no mundo, e não fechado em seu labirinto. Os eleitores decidirão, espero que tendo presente a diferença entre disputar uma eleição e efetivamente governar, com o Congresso que sairá das urnas, um país complexo como o nosso.

O desafio das reformas que o novo governo enfrentará reside em quatro grandes áreas, que por sua vez se desdobram em três tempos: o restante deste crucial ano de 2018, o próximo quadriênio e o longo período pós-2022, aí incluído o resultado das eleições desse ano, que definirão, juntamente com os avanços que o próximo governo possa alcançar, e os retrocessos que consiga evitar, o resto da década e boa parte dos anos 2030.

As quatro áreas são a macroeconômica, a área “não macro”, a das reformas propriamente ditas (em particular a da Previdência, a tributária e a da reorganização do Estado) e a área-chave para a definição do nosso futuro como sociedade civilizada, que é a área social, a qual inclui as legítimas demandas pela redução de desigualdades na distribuição de renda e, especificamente, de oportunidades, por meio de reformas em nosso sistema educacional.

A área da política macroeconômica encerra a discussão de seus três regimes fundamentais: monetário, cambial e fiscal. Os dois primeiros estão definidos há quase 20 anos e vêm servindo bem ao País. Seria importante que os candidatos pudessem reafirmar a importância de sua consolidação, que por sua vez depende do equacionamento de nosso grave problema fiscal, como fica cada vez mais claro para a opinião pública menos desinformada. O equacionamento de nossos problemas fiscais não é um fim em si mesmo, mas condição necessária para alcançar objetivos mais importantes para a população.

A área “não macroeconômica” não é menos relevante. Ela diz respeito ao sistema de incentivos e desincentivos a decisões de investidores, poupadores e consumidores dados pelo sistema de preços relativos tal como afetados por decisões sobre preços administrados, desonerações fiscais e subsídios. Como vimos, o excesso de ativismo do governo pode levar a distorções na alocação de recursos e ao aumento de incertezas jurídicas, que afetam decisões de investimento. O contexto regulatório e a defesa da competição são cruciais, a reforma do Estado passa pela avaliação permanente da qualidade do gasto público e pela análise sistemática de custo/benefício da miríade de programas governamentais.

O próximo governo deverá ser “reformista” caso pretenda efetivamente governar o País e, principalmente, recolocá-lo no rumo do desenvolvimento econômico, político e social. O espaço para acertar é reduzido, e enorme aquele para erros - velhos e novos. O passado se foi e não pode mais ser alterado. O presente está constantemente a se transformar em passado.

Mas sempre haverá um futuro a ser construído - se sobre ele uma sociedade for capaz de formar certas ideias compartilhadas, algumas que sejam. Para tal é melhor que tenhamos uma boa ideia de onde estamos e de como chegamos à situação atual e seus desafios. Não será fácil - nunca o foi e nunca será. Mas o Brasil e os brasileiros não temos alternativa senão acreditar no poder da persistência, do diálogo, da não violência - e de alguma racionalidade em meio às paixões, os interesses e os conflitos da vida real.

* Pedro S. Malan é economista, foi ministro da Fazenda no Governo FHC