Pedro S. Malan

Pedro S. Malan: Sentido de urgência e visão de longo prazo

A necessidade de consolidação fiscal exige diálogo, como na transição de 2002

O ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, e o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, tomaram a iniciativa de se oferecer para conversar com os economistas responsáveis pelos programas econômicos dos principais candidatos a presidente nas eleições de outubro. Mais que o simbolismo do gesto, o convite ao diálogo – e sua aceitação – tem importância que não deve ser subestimada. Nesta quadra difícil da vida nacional, como raras vezes na história recente do País, nunca foi tão importante formar uma certa ideia, mais ou menos compartilhada, sobre onde estamos. Mesmo quando há legítimas divergências sobre como chegamos à situação atual e, por certo, diferença de opinião sobre o que nos reserva o incerto futuro.

Vale relembrar, neste agosto turbulento, um aspecto de experiência da transição de 2002 para 2003, ou seja, de FHC II para o governo que resultasse das urnas de outubro daquele ano. Em agosto, o então presidente convidou para reuniões – separadas – no Palácio do Planalto os quatro principais candidatos à Presidência e seus principais assessores econômicos e políticos. Compareceram às reuniões os candidatos Luiz Inácio Lula da Silva, José Serra, Ciro Gomes e Garotinho, com seus assessores de maior confiança. A todos foram explicadas as razões que haviam levado o governo – dadas as então crescentes incertezas sobre o que poderiam vir a ser as políticas de um novo governo a partir de 1/1/2003 – a negociar nos meses de junho a julho um acordo preventivo com o FMI no valor (recorde à época) de US$ 30 bilhões, mais de 80% dos quais estariam disponíveis para o futuro governo. O Congresso já havia então aprovado a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com o superávit primário definido para 2003.

Os encontros transcorreram em clima civilizado e a imprensa registrou devidamente, à época, não apenas a longa entrevista do presidente FHC no mesmo dia (19/8/2002) descrevendo o encontro, como os pronunciamentos dos candidatos no dia e em várias ocasiões subsequentes.

Lula reiterou seu compromisso com palavras claras: “Nosso governo vai preservar o superávit primário o quanto for necessário de maneira a não permitir que ocorra um aumento da dívida interna em relação ao PIB, o que poderia destruir a confiança na capacidade do governo de cumprir seus compromissos”. Além de reafirmar compromissos de honrar contratos e controlar a inflação. Ciro Gomes foi na mesma linha. José Serra apoiou.

A situação das contas externas hoje é seguramente muito mais favorável do que era em 2002, dados o superávit comercial, o nível de reservas, o ingresso de investimento direto estrangeiro. Porém o grau de incertezas na área de finanças públicas e sobre políticas futuras é muito maior que em 2002, dados os déficits primários acumulados há anos (e por vir) e a insustentável situação da crescente dívida pública. A necessidade – urgente – de consolidação fiscal exige reformas e visão de longo prazo. E mais diálogo, como em 2002, embora, como sabemos, a história nunca se repita.

Apenas para ilustrar a magnitude do desafio das reformas, cabe lembrar que a taxa de crescimento da economia brasileira nos últimos 23 anos (1995-2017) foi de 2,4% ao ano em média, enquanto, segundo o FMI, o conjunto de 154 países emergentes e em desenvolvimento cresceu na média anual de 5,3% no mesmo período. Vale observar que, dividindo os 23 anos em três subperíodos – 1995-2002 (8 anos); 2003-2010 (8 anos) e 2011-17 (7 anos) –, as taxas de crescimento do Brasil e do mundo foram respectivamente: 2,4% e 4,2%; 4,1% e 6,8%; e 0,5% e 5%.

É evidente que temos problemas de natureza cíclica e problemas de natureza estrutural ou, dito de outra forma, problemas de curto, de médio e de longo prazos que exigirão reformas com o sentido de urgência que a situação requer.

O mais urgente desafio é a redução das incertezas sobre o grau de entendimento e de comprometimento das lideranças políticas (e do Congresso) com o processo de mudanças e de reformas. E, portanto, das grandes incertezas sobre a nossa capacidade de tê-las efetivamente implementadas em prazo hábil. Há limites para a procrastinação: está a esvair-se o bônus demográfico, e corremos sério risco de ficar para trás em relação a outros países relevantes e de nos tornarmos um país velho antes de nos transformamos num país rico.

Existem no Brasil visões distintas sobre identificação dos problemas mais relevantes, sobre suas inter-relações e, principalmente, sobre as formas mais apropriadas, desejáveis ou efetivas de com eles lidar. Essas legítimas diferenças de opinião, com frequência, se expressam de forma conflitiva como parte de um processo muito mais amplo que a tradicional visão de política como competição pelo poder, com ênfase nos processos eleitorais.

Na verdade, os conflitos numa sociedade de massa que procura se organizar como uma efetiva democracia pluralista, num país marcado por profunda heterogeneidade estrutural e disparidades sociais e regionais, podem ser vistos de duas maneiras básicas: a primeira, negativa, é de lhes conferir capacidade de gerar um tal nível de instabilidade política que possa chegar a comprometer o desenvolvimento econômico e social do país. A segunda maneira básica de ver os inúmeros conflitos que se desdobram continuamente entre nós é como algo que pode, eventualmente, contribuir para a progressiva consolidação da democracia, antes que para seu enfraquecimento.

Não há razão para que, entre nós, não possa prevalecer, ainda que gradualmente, a segunda visão acima mencionada: a de uma certa ideia de um Brasil decente, politicamente democrata e republicano, socialmente progressista e inclusivo, além de economicamente responsável, em particular na gestão das finanças públicas. Esta última não constitui um fim em si mesma, mas sem ela não haverá como o Brasil alcançar as taxas de crescimento da renda e do emprego que constituem o nada obscuro objeto de desejo da maioria dos brasileiros.
*Pedro S. Malan é economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Pedro S. Malan: Do querer ser ao crer que já se é

Há que buscar as convergências possíveis, que sempre existem, entre os mais moderados

A fantasia humana é um dom demoníaco. Está constantemente abrindo um abismo entre o que somos e o que gostaríamos de ser. Entre o que temos e o que gostaríamos que tivéssemos.” Assim escreveu Mario Vargas Llosa em La Verdad de las Mentiras. Pode um dom ser demoníaco ou a expressão é apenas um atroz paradoxo, produzido pela veia literária do autor?

Dom, afinal, significa qualidade ou característica especial, geralmente positiva. Demoníaco, algo negativo, relativo a ou próprio do demônio. A combinação das duas palavras tende a significar algo ruim se o abismo continuamente aberto pela fantasia humana leva a anomia, paralisia, desalento, inveja, ressentimento, cinismo, raiva. Mas poderia também evocar algo bom: a busca por desenvolver potencialidades, por crescer, enfrentar e superar com coragem as adversidades.

É instigante imaginar que o texto de Vargas Llosa possa aplicar-se também a sociedades e países, como o Brasil de 2018; e às perspectivas de consolidação da democracia nos próximos anos, entre nós como em várias outras partes do mundo, inclusive o desenvolvido. Ocorre-me a reflexão porque segue prolífica a temporada de livros sobre “suicídios” de regimes democráticos, alguns já mencionados neste espaço (O Estado de S. Paulo). Acabam de sair How Democracies Die, de S. Levitsky e D. Ziblatt, e Authoritarianism and the Elite Origins of Democracy, de V. Menaldo e M. Albertus, ambos ainda sem tradução. A maioria das obras procura lembrar como sucumbiram tantas democracias europeias nos anos 20 e 30 do século passado. Sobre a Tirania, de Timothy Snyder, e A Mente Imprudente e A Mente Naufragada, ambos de Mark Lilla, são belos exemplos de que há lições da História - recente - que não devem ser esquecidas. Afinal, os conflitos em questão levaram a dezenas de milhões de vítimas.

Umberto Eco recuperou o discurso feito em abril de 1938 por um Roosevelt acossado por nacional-populistas-isolacionistas e seus milhões de seguidores: “Ouso dizer que se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar por meios pacíficos as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país”. Eco sugere que este seja o mote: “Não esqueçam”. A literatura recente vem procurando compreender por que desde 1980 houve cerca de 25 casos de transições, não de ditaduras para democracias, mas de jovens democracias para tiranias variadas. Atenção especial tem sido conferida a tentativas não mais de aceder ao poder pela via eleitoral, mas de assegurar a continuidade no poder para muito além dos mandatos originalmente conferidos pelas urnas, não apenas por meio de rupturas democráticas, mas também de mudanças institucionais, via Legislativo e Judiciário.

Para além de golpes de Estado e de instâncias de fragilidade institucional há um terceiro fenômeno, insidioso e preocupante, a dificultar a consolidação de democracias estáveis e funcionais. Trata-se de carência de espírito público, de exercício constante de cidadania e de cooperação baseada na confiança mútua entre cidadãos no período que separa uma eleição da seguinte. A eleição não pode constituir álibi para o eleitor só porque este votou na data aprazada.

Esse é o risco que corre a consolidação da democracia brasileira. O risco do desalento, do ceticismo, do cinismo. Do desinteresse pelo mundo da política - porque “não me sinto representado”, porque “meu envolvimento não faz diferença”, porque “todos são iguais”. Não são. Há gente decente na política. Há que descobri-la, estimulá-la e envolver-se como possível. Quem não gosta de fazê-lo acaba sendo governado por quem gosta ou por aqueles que buscam as instrumentalidades do poder e as benesses de compadrios no aparato do Estado.

Na primeira metade do século passado três obras de ficção, imperdíveis, procuraram vislumbrar o futuro décadas à frente e se mostraram premonitórias em sua percepção sobre o desenvolvimento tecnológico e suas consequências políticas e sociais. A peça teatral R.U.R, Rossum’s Universal Robots (1920), de Karel Capek, na qual certamente Aldous Huxley se inspirou para escrever seu Admirável Mundo Novo (1932), e 1984, de George Orwell (1949), são clássicos que guardam enorme interesse em tempos de inteligência artificial, robotização e conglomerados privados gigantes que conhecem o que compramos, procuramos e compartilhamos. E de governos, como os da China e da Rússia, que se propõem com êxito a controlar o que é postado na internet por seus cidadãos.

Em carta enviada a Orwell em outubro de 1949, em que lhe agradecia o envio de seu 1984, Huxley reputa o livro “profundamente importante”, mas observa sobre o futuro que, em vez de uma bota oprimindo um rosto humano, as oligarquias dominantes encontrariam meios mais eficientes de satisfazer seus impulsos por poder - meios mais parecidos com os que descreve no seu livro de 1932, ao qual voltou em 1958, em seu Admirável Mundo Novo Revisitado.

Voltemos a Mario Vargas Llosa. O Brasil pode, nestas eleições de 2018, e ao longo do próximo quadriênio, utilizar seu dom demoníaco para reduzir a diferença abissal entre o que somos e o que gostaríamos de ser, entre o que temos e o que poderíamos ter? Qualquer esforço sério nesse sentido exige evitar voluntarismos e promessas de retorno a passados tidos como gloriosos. Exige paciência, persistência, perseverança, boa-fé e honestidade intelectual para mostrar à população que há escolhas difíceis a fazer e falsos dilemas a evitar. Há que buscar as convergências possíveis, que sempre existem, entre os mais moderados. Para tal é preciso humildade e prudência-com-propósito.

Como escreveu Ortega y Gasset em suas Meditaciones Del Quijote, “do querer ser ao crer que já se é vai a distância entre o trágico e o cômico, o passo entre o sublime e o ridículo”. Ao empregar seu dom demoníaco, o Brasil não pode incorrer nesse equívoco.

*Pedro S. Malan é economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC

 


Pedro S. Malan: Limites do autoengano?

A inimaginável tragédia que expressa o colapso econômico e o caos político da Venezuela de hoje pode constituir um ponto fora da curva, mas o fato é que não faltam experimentos populistas – de “esquerda” e de “direita” – na História da América Latina.

A carta que Perón, como presidente da Argentina, escreveu ao presidente do Chile, general Ibáñez (1953), é um dos exemplos mais admiráveis da postura que se encontra na raiz da crise venezuelana: “Dê ao povo, especialmente aos trabalhadores, tudo o que possa. Quando lhe parecer que lhes dá demasiado, dê-lhes ainda mais. Verá o efeito. Todos tratarão de assustá-lo com o fantasma de economia. É tudo mentira. Não há nada mais elástico que esta economia que todos temem tanto, porque não a conhecem”.

A data da carta é importante. O início dos anos 50, em parte por causa da guerra na Coreia, foi marcado por extraordinário aumento dos preços de exportação de países produtores de commodities, como Argentina, Brasil, Colômbia, Chile e Peru. A melhoria dos termos de troca e do volume da exportação permitiu um crescimento da renda em muito superior ao do produto doméstico, dando fôlego a certos experimentos como os sugeridos por Perón em sua carta, na suposição de que “nada é mais elástico que a economia”.

Os autores da expressão “efeito voracidade” (Tornell e Lane, 1999) no artigo que leva esse título já haviam tentado criar um modelo para explicar por que alguns países não apenas cresciam pouco, mas com frequência respondiam de maneira perversa a choques externos favoráveis – como elevações de termos de troca –, aumentando mais que proporcionalmente a “redistribuição fiscal dissipatória e investindo em projetos ineficientes”.

Vimos esse filme recentemente entre nós. Vimos também que a popularidade alcançada com esse tipo de política pode ser transitória, mas sua duração pode ser suficiente para acalentar sonhos de um “projeto” de permanência no poder no longo prazo. Como escreveu Perón na mesma carta: “É incrível até onde se pode ir neste caminho até capitalizar politicamente a massa popular. Uma vez em possessão dela, você não terá problema e o governo é uma coisa simples”.

Uma suposição endossada por muitos na América Latina nas décadas que se seguiram à carta de Perón. Inclusive no Brasil nesta segunda década do século 21, em que o governo acreditou (e levou muitos a endossar a ideia) que a aceleração do crescimento poderia ser assegurada por uma política dita “keynesiana” de caráter duradouro. Isto é, tanto pró-cíclica quanto anticíclica, já que nessa visão “gasto público é sempre investimento” em alguma coisa e teria sempre efeito multiplicador em termos de geração de renda adicional. Ainda há quem acredite nisso, apesar de todas as evidências em contrário. Quem duvida aguarde os discursos de alguns dos candidatos às eleições de 2018.

“A austeridade não é uma fatalidade” foi o mote da campanha vitoriosa de François Hollande à presidência da França, em 2012. Em artigo nesta página (13/5/2012) escrevi que a frase de efeito de Hollande expressava de forma sintética o sentimento, à época, de milhões de europeus e tinha dado renovado alento a um falso dilema; mais uma genérica dicotomia entre os “defensores da austeridade” e seus antípodas, “os defensores do crescimento”, como se essa fosse a fundamental, óbvia – e fácil – escolha europeia. E brasileira, diriam muitos.

Afinal, por que alguém preferiria sofrer as agruras da “austeridade” quando poderia, livremente, escolher maior crescimento, renda e emprego votando em quem se proponha a trazê-los de volta – pela força de sua vontade e autoproclamada capacidade para tal empreitada? No processo de tentar fazer valer a pura “força da vontade política” em condições muito adversas, governos podem tornar a situação ainda mais insustentável, como bem o sabemos.

E nas inevitáveis respostas a essas situações governos podem beirar os limites de suas capacidades (de tributar, de bem gastar, de se endividar, de reformar, de gerir, de investir), ficando tentados a seguir cursos indesejáveis de ação. Enquanto os políticos hesitam em empreender ações dolorosas, mas necessárias, para pôr a economia no rumo apropriado para o crescimento de longo prazo, os problemas se agravam e se tornam mais difíceis de resolver, levando ao aumento dos encargos da dívida pública, mais direitos (ou expectativas de direitos) frustrados ou inacessíveis. E a um crescente número de desfavorecidos.

A questão central é se políticas de aceleração do crescimento e de geração de emprego com inclusão social e redistribuição de renda estão sempre destinadas ao fracasso. A resposta é, claramente, não. Mas isso exigiria uma atenção muito, mas muito maior a certos riscos, que os populistas aparentemente não estão muito dispostos ou preparados para aceitar – especialmente na área fiscal (nível, composição e eficiência tanto dos gastos públicos quanto da tributação), dívida pública e quanto à absolutamente necessária elevação da produtividade em seus respectivos países.

O debate sobre austeridade versus crescimento, quando generalizado, é um falso debate. Assim concluí meu artigo de maio de 2012: “Por certo, há limites para a austeridade, que podem ser de natureza econômica ou político-sociais, e que sempre dependem do contexto específico de cada país. Mas também é verdade que há limites para o crescimento, que são ou deveriam ser conhecidos. Governos não decidem, por meio de atos de vontade política, quais serão as taxas de crescimento futuro de uma economia”.

Em resumo, há limites para austeridade, há limites para o crescimento e há limites para o voluntarismo. Nenhum deles é uma fatalidade. Ainda bem. O que pode ser fatal é a recusa a reconhecer realidades (e irrealidades) fiscais, os principais fatores de risco para uma moeda – e para o crescimento –, na suposição de que “nada é mais elástico que a economia”

 

* Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC

 

 


Pedro S. Malan: Entre o inconcebível e o inevitável

O Estado brasileiro tem de ser repensado e e reinventado, sem maniqueísmos e ilusões

Em discurso para a militância, na presença de Dilma, durante a campanha eleitoral de 2014, Lula disse que já se imaginava, em 2022, nas comemorações de nossos 200 anos de independência, defendendo, com Dilma, tudo o que haviam conquistado “nos últimos 20 anos”. Assim abri artigo neste espaço (14/12/2014), que continuava: “É perfeitamente legítimo a qualquer pessoa expressar de público suas ‘memórias do futuro’, para usar a bela expressão de Borges para caracterizar desejos, expectativas, sonhos e planos – quer se realizem, quer não”.

Notei no artigo anterior que antes de chegar às eleições de 2022 haveria, óbvio, que passar por 2018. E que não seria fácil explicar então as conquistas dos “últimos 16 anos”, como se fossem um coerente e singular período passível de ser entendido como um todo, como a marquetagem política tentou na eleição de 2014, com o discurso dos “últimos 12 anos”. Por quê? “Porque Lula 1 foi diferente de Lula 2; Dilma 1 diferente de Lula 2; e Dilma 2 será diferente de Dilma 1 – e o mais difícil dos quatro quadriênios. Quem viver verá. Ou já está vendo”, escrevi em dezembro de 2014.

Mas muito antes disso já tinha notado que a política econômica de Dilma 1 trazia seu prazo de validade (outubro de 2014) estampado no rótulo e que teria de ser mudada – qualquer que fosse o resultado das urnas.

Volto ao tema do infindável diálogo entre passado e futuro, instigado pelo discurso do ex-presidente Lula na cerimônia de posse dos novos membros do Diretório Nacional do PT, nesta última semana.

Na ocasião Lula teria dito: “Pensávamos o Brasil para 2022, mas não conseguimos construir o nosso projeto... Tudo que construímos, o direito de greve, as conquistas sociais no trabalho, eles estão desmontando... Não podemos aceitar que façam o ajuste em cima daqueles que são as maiores vítimas dos erros do governo, os trabalhadores... Agora eles estão desmontando o nosso país”. Era, por suposto, um discurso para animar a militância ali reunida. Mas Lula é hoje maior que o PT, assumidamente o candidato do partido à Presidência da República em 2018 – e o único do partido em condições de disputar com alguma chance de vitória.

Como já se escreveu, as próximas eleições serão a oitava campanha presidencial de Lula, quer seu nome esteja na urna eletrônica, quer não. Das sete campanhas anteriores, como se sabe, Lula disputou cinco diretamente (perdeu três e ganhou duas, em ambas teve de ir ao segundo turno) e duas por interposta pessoa. Os termos em que definirá sua participação no debate eleitoral não são irrelevantes para a definição do clima geral da campanha e para o real esclarecimento dos desafios a enfrentar de agora até 2018 – e adiante.

Por exemplo, o plenário do Senado deverá votar nos próximos dias a reforma trabalhista, já aprovada pela Câmara. Em artigo publicado neste jornal (Incluindo os excluídos, 4/7), José Marcio Camargo mostrou que (em 2015), dentre os 40% dos trabalhadores que recebem os menores salários, 50% estavam na informalidade e 20% desempregados. A CLT portanto regia apenas 30% dos contratos de trabalho. Por outro lado, dos 20% mais ricos da distribuição de salários, 80% tinham contratos de trabalho regidos pela CLT. A reforma ora em discussão permitiria incluir parte dos excluídos, em particular em setores nos quais a demanda é instável e intermitente. Mulheres (com taxa de desemprego 40% maior que a dos homens) e jovens de 18 a 24 anos (28% de desemprego) seriam beneficiados. Outros podem, legitimamente, discordar. O tempo dirá.

Sobre a divisão “nós x eles”: o Brasil é um país extraordinário em sua rica diversidade e enorme potencial, mas complexo de entender e difícil de administrar, como logo se dão conta aqueles que se propõem a fazê-lo. Não prestam muito serviço ao País aqueles que o dividem de maneira simplória e maniqueísta entre um vago “nós” e um não menos vago “eles”, recurso retórico destinado a incendiar a militância em discursos de palanque.

Mas que não contribuem em nada para a elevação da qualidade do debate e o entendimento da opinião pública em geral, tratando-a como se ela fosse portadora de uma doença infantil que só entenderia escolhas binárias, do tipo “só existem duas posições sobre qualquer assunto, a nossa e a deles”. O mundo e o Brasil são muito, muito mais complicados.

Toda sociedade precisa ter alguma consciência social de seu passado, algum entendimento do presente como História e um mínimo de senso de perspectiva, além de conviver com a inevitável competição entre narrativas sobre como e por que chegamos à situação atual. Mesmo quando sabemos que o que realmente importa é sempre o incerto futuro – e que a História nunca se repete, mas por vezes rima, com frequência ensina e, de quando em vez, a muitos desatina.

Como escreveu Larry Summers em trabalho recente: “É preciso estar preparado para observar longas cadeias de causas e consequências... pensar e debater sobre um problema, considerar propostas para sua solução não significa que o problema será rapidamente resolvido. Mas o debate afeta o clima de opiniões e as coisas podem evoluir da condição de inconcebíveis para a condição de inevitáveis”.

É o processo pelo qual o Brasil vem passando – e terá de continuar a fazê-lo. A reforma da Previdência, por exemplo, é inevitável: terá de ser feita, talvez em mais de uma etapa, a custos maiores. O próximo governo terá de enfrentar reformas na área tributária. É inevitável repensar e reinventar o Estado brasileiro. Sem maniqueísmos, sem ilusões. Sem busca de atalhos, sabendo que não é fácil lidar com interesses corporativos longamente constituídos.

Mas o País não tem alternativa se deseja crescer de forma sustentada a taxas mais elevadas, com justiça social, estabilidade macroeconômica e menos ineficiência em seu setor público. Não é fácil. Nunca foi. Nunca será.

* Pedro Malan é economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC