negacionismo
Reinaldo Azevedo: Silveira sequestra turma do miolo mole. Ou: a nossa moral e a deles
Senhores da oposição, tomem cuidado com uma eventual cassação que poderia servir à impunidade do criminoso Daniel Silveira
O lugar de Daniel Silveira é a cadeia. Agora e depois. É preciso cuidado para não oferecer a ele uma tábua de salvação. Se cassado, seu caso vai para a primeira instância, com o risco de o desfecho ficar para as calendas gregas, aquele tempo sem tempo. A Procuradoria-Geral da República já o denunciou ao Supremo com base nos artigos 344 do Código Penal e 18 e 23 da Lei de Segurança Nacional. Que se torne logo réu.
Que seja julgado, condenado e preso em regime fechado, com consequentes perda de mandato e inelegibilidade. Tudo de acordo com o devido processo legal. Ele sonha com surras públicas de gato morto em ministros do Supremo e convoca uma guerra não só contra os magistrados, mas também contra um Poder da República. A propósito: o general Eduardo Villas Bôas e pares se deram conta da qualidade dos aliados que mobilizam? É com esses Bombadões de Plutarco que pretendem construir a terra dos "homens de bem", sobre uma montanha de quase 250 mil cadáveres? Atenham-se aos quartéis.
A correta decisão do STF gerou mais debate entre advogados do que entre os pares de Silveira. Pois é. O que une os livros "Como as Democracias Morrem" (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt), "O Povo contra a Democracia" (Yascha Mounk) e "Fascismo "“ Um Alerta" (Madeleine Albright), com olhares e ângulos às vezes bastante diversos? Os três registram a inércia dos regimes democráticos quando confrontados com a subversão reacionária.
Os Estados democráticos estão preparados para se defender de uma improvável disrupção revolucionária, mas não têm sabido responder, em tempos de redes sociais, ao devotado ódio dos extremistas de direita à democracia. Eles se apropriam de seus códigos para destruí-la. E podem encontrar aliados improváveis entre os ditos "progressistas" e liberais do miolo mole.
Confundir os crimes de Silveira com imunidade parlamentar —ou liberdade de expressão— corresponde a permitir que garantias constitucionais que protegem a democracia sejam usadas para solapá-la. Não há filigranas retóricas nem excertos supostamente sapientes que contestem essa evidência. Assim é no mundo.
No Brasil, a questão já passou pelo crivo do STF: a prerrogativa não acoberta crimes —e só por isso Jair Bolsonaro é réu duas vezes no tribunal. Ou se deveria, então, ter considerado a apologia do estupro protegida pela imunidade? Nesse caso, "progressistas" não fizeram coro aos bolsonaristas. Devem ter ficado com receio da vigilante militância feminista. Inexistem militantes "esseteefistas", né?
Flagrante discutível? Discutíveis são comida japonesa, o "Bolero de Ravel" e "single malt" defumado. O flagrante não. O artigo 302 do Código de Processo Penal define as condições da flagrância. O caso se encaixa à perfeição no inciso III do dito-cujo. Leiam lá. O CPP é de 1941, pré-YouTube, e veio à luz na forma do decreto-lei 3.689. A propósito: junto com o Código Penal, compõe o que alguns chamariam por aí de "arsenal da ditadura" —no caso, a do Estado Novo... Devemos evitá-los?
Defendo, noto, que a Lei de Segurança Nacional seja substituída pela Lei de Defesa do Estado Democrático, projeto do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), em parceria com juristas, liderados por Pedro Serrano e Lenio Streck. Mas não perderei a vida por delicadeza, como escreveu o poeta. Não combaterei o uso contra Silveira de uma "lei da ditadura", como dizem, para que ele possa esculhambar a República e defender o AI-5.
Será que eles podem, em nome de sua moral, pregar golpe de Estado, ameaçar as instituições, perseguir minorias, sabotar os esforços coletivos contra a Covid-19 etc.? E nós, os democratas, em nome da nossa —que compreende a defesa da liberdade de expressão— estaríamos impedidos de reagir, deixando, então, que nos engulam?
Ah, não sou peru de Natal de fascistoide. Não morro de véspera. Por isso, senhores da oposição, tomem cuidado com uma eventual cassação que serviria à impunidade. Silveira, como deputado, tem de ser julgado pelo Supremo. Segundo as mais severas regras do devido processo legal.
Ricardo Noblat: Sinceros votos de que o deputado Daniel Silveira dê-se mal
Para que sirva de exemplo
Não basta que logo mais à tarde a Câmara confirme a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal de mandar prender o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) que atentou contra o Estado de Direito em vídeo que ele mesmo gravou e postou nas redes sociais.
Para que provas a mais do seu crime? O vídeo é prova cabal, indesmentível de que ele é um criminoso confesso. Nunca antes na história democrática deste país um parlamentar pregou tão acintosamente o desrespeito à Constituição e aos seus zeladores.
Nem basta que na próxima semana o Conselho de Ética da Câmara, inativo há tantos meses, conclua que Silveira feriu o decoro parlamentar e deve ter seu mandato cassado. É preciso que o plenário da Câmara casse o mandato e que a Justiça o condene.
O tratamento dado a Silveira deve servir de exemplo aos que conspiram para cancelar mais uma vez a democracia, sejam eles vivandeiras de quartéis ou militares. Um traço no chão para além do qual ninguém se arrisque a ir imaginando que ficará impune.
Foi o bolsonarismo que pariu um feto mal formado como é Silveira. Com o agravante, no seu caso, de que ele acabou se elegendo deputado federal apesar da folha corrida repleta de antecedentes criminais. Não serviu para vestir a farda da polícia.
Por que serviria para ganhar um assento no Congresso? Atos de violência física pontuaram toda a sua trajetória até aqui. Ousou dar um salto mortal, sem rede, ao enveredar pelo caminho estranho para ele da violência verbal. Está aí um corpo estendido no chão.
Faltaram a Silveira a cultura, a sutileza, o domínio das palavras e, principalmente, a farda que permitiram ao general Villas Bôas, à época comandante do Exército, interferir com sucesso no resultado de um julgamento do Supremo. Foi em abril de 2018.
Tanto o deputado quanto o general afrontaram a Constituição. A diferença é que um tinha tropas bem armadas para atender ao seu chamado – o outro tinha nada. Por ignorante, acreditou que o direito à livre manifestação o liberava para dizer o que quisesse.
De nada adiantou a Jair Bolsonaro invocar o direito à livre manifestação e a imunidade parlamentar para se livrar de ações no Supremo. Ali, ele é duas vezes réu por incitamento ao estupro. Os processos voltarão a andar depois que deixar a presidência.
O gato escaldado tem medo de água fria. Bolsonaro já quis confusão com o Supremo, não quer mais. Por ser réu e porque seus filhos investigados poderão ser promovidos à igual condição. Daí o seu silêncio exemplar e barulhento quanto à sorte de Silveira.
Pedro Doria: O deputado, o Centrão e o algoritmo
Há uma lógica diretamente ligada à estrutura das redes sociais no vídeo que custou a prisão ao deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ). Silveira é, dentre os bolsonaristas, um tipo ainda mais agressivo do que o padrão do grupo, já uns tantos tons acima do normal. Mas, neste vídeo em que deseja uma surra aos ministros do Supremo embalado por atos institucionais da ditadura, sua agressividade não é apenas um ato político antidemocrático. É, também, uma técnica conhecida de fazer com que a audiência potencial do filmete seja maior. A intenção lá atrás, quando se tornou conhecido pelo gesto de quebrar a placa da vereadora assassinada Marielle Franco durante a campanha, também era a mesma.
O algoritmo, o código de computador que seleciona quem será exposto a que foto, texto, vídeo, compreende muito da natureza humana. É uma inteligência artificial que compreende nossas fraquezas. E uma delas é que, quando a pressão sobe, e a adrenalina corre, ligamos o alerta. Ficamos mais atentos quando as emoções são fortes. Quem nos deixa mais indignados, nas redes sociais, ganha mais pontos para aparecer mais.
Silveira sabe disso, como sabe Carlos Bolsonaro quando opera as contas de seu pai, o presidente da República. Como, aliás, sabem quaisquer influenciadores.
A esperança que a internet trazia quando surgiu é que o debate político seria democratizado. Não seria mais necessário ter uma verba imensa para contratar as melhores pesquisas, as mais capazes equipes de vídeo e, assim, costurar publicidade eleitoral de primeira. O mercado de ideias enfim se realizaria, utopicamente, permitindo que, nos diálogos constantes da praça digital, as melhores emergissem pela criação de consensos. A democracia é tão bonita nos livros e tão difícil na prática. Pois a entrada da inteligência artificial no jogo confirmou as previsões só pela metade. Não é preciso mais dinheiro para se sobressair. Mas as regras do jogo fazem com que, no mercado real das ideias, sejam os mais radicais que chamem a atenção.
Para prender Silveira, o ministro Alexandre de Moraes fez uma leitura perigosa do princípio de flagrante. Se o vídeo está no YouTube, e pessoas estão constantemente expostas a ele, então o crime é continuado. Como já disse alguém, se isso for verdade, quem tem Twitter, tem medo. Tudo o que já se escreveu na rede e ficou pode ser usado para criar o flagrante.
Mas, interpretação à parte, Moraes — e os outros dez ministros do Supremo que unanimemente concordaram com a decisão de prender o deputado — estão certos em se preocupar. Nada é mais radical politicamente do que um ataque à democracia. É defender o rompimento do regime, o fim da liberdade, da igualdade de direitos.
A violência, afinal, pode começar retórica, pode ser um truque para deslumbrar o algoritmo e, assim, conquistar mais curtires e visitas. Mas ela não fica só aí. A violência retórica, o discurso contra a democracia, ilude eleitores e constrói eleitorado. Nós, os brasileiros, entendemos de ditadura — só na República tivemos três. A de Deodoro e Floriano, a de Vargas e a dos generais. Podemos dizer com tranquilidade que não entregam países melhores. A última nos deixou um legado de analfabetos e hiperinflação que custou à democracia uma década para resolver. Ainda assim, mesmo porque, no tempo das fake news, até a história é falsificada, tem gente convencida de que ditadura é bom jogo.
A lição que os EUA de Donald Trump nos deixaram é que a violência iniciada no algoritmo tampouco para na conquista de um nicho de eleitorado. Ela vai além, se torna real e invade Parlamentos. O Centrão que abra o olho — é com eles também.
Bernardo Mello Franco: Bolsonarismo tenta usar armas da democracia para matá-la
Na denúncia apresentada ao Supremo, a Procuradoria-Geral da República descreve Daniel Silveira como “um ex-soldado da Polícia Militar do Rio, instituição na qual se notabilizou pelo mau comportamento”. O deputado fez da indisciplina um trampolim para trocar o quartel pelo palanque. Não é sua única semelhança com Jair Bolsonaro.
A exemplo do capitão, o ex-soldado usa a misoginia para se promover. Bolsonaro atraiu holofotes quando chamou uma colega de “vagabunda” e disse que ela “não merecia” ser estuprada. Silveira se projetou ao vandalizar uma homenagem a Marielle Franco, vereadora executada pela milícia.
Os dois descobriram que a truculência pode render votos. O mau militar enfileirou sete mandatos até chegar ao Planalto. O mau policial foi premiado com uma cadeira na Câmara.
O caso do deputado marombado impõe um teste à democracia brasileira. Desde que subiu a rampa com Bolsonaro, a extrema direita mantém as instituições sob ataque permanente. Agora surgiu uma oportunidade de frear a escalada autoritária.
Na Quarta-feira de Cinzas, o Supremo esqueceu as divisões internas e manteve a prisão de Silveira por 11 a 0. Hoje será a vez de a Câmara decidir o futuro do extremista.
O bolsonarismo não disfarça. Seu projeto envolve o aliciamento das polícias, a cooptação do Legislativo e a submissão do Judiciário. O deputado Eduardo Bolsonaro já havia sugerido fechar o Supremo com “um soldado e um cabo”. Silveira propôs uma solução mais violenta: espancar, cassar e prender os ministros da Corte.
Os golpistas tentam usar as armas da democracia para matá-la. O ex-PM evoca a imunidade parlamentar para defender a ditadura. Exalta o AI-5, mas quer liberdade de expressão para conspirar. Por ironia, ele foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, um entulho autoritário do regime dos generais.
A Câmara tem sido conivente com a pregação fascista desde 1999, quando um deputado exaltou a ditadura e defendeu o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso. Na época, os parlamentares optaram por deixar o extremista falando sozinho. A experiência mostra que a omissão foi um erro grave. Agora o Congresso pode começar a repará-lo.
Eliane Cantanhêde: ‘Nova política’, vade retro!
Bolsonarista Daniel Silveira empurra os três poderes para um acordão e enterra a ‘nova política’
O presidente Jair Bolsonaro e o Exército fecharam a boca, os três poderes se articularam e prevaleceu o bom senso para evitar uma crise institucional e superar o episódio “Daniel, como é mesmo o nome dele?”. O Supremo cumpriu sua função, o Congresso reagiu com maturidade, o Planalto não atrapalhou e o resultado é que o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) passa uns dias em cana e está isolado na Câmara.
O ministro Alexandre de Moraes decretou a prisão em flagrante de Silveira, que faz apologia do AI-5 e agride violentamente os ministros do Supremo; o plenário da Corte ratificou a prisão por unanimidade e em tempo recorde; o presidente da Câmara, Arthur Lira, ouviu Planalto, Senado e líderes partidários e articulou o acordão com o próprio Supremo. Duas coisas podem atrapalhar tudo: as ligações do deputado com a milícia e os dois celulares encontrados com ele.
Pelo acordo, a Câmara mantém a prisão, Moraes dá um tempo e depois usa a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para relaxar a prisão e trocá-la por tornozeleira eletrônica. Resta saber o que de fato acontecerá com o bolsonarista Silveira, que é uma ameaça à democracia e à sociedade. Ele será investigado pelo Supremo e pelo Conselho de Ética da Câmara. Pode ser suspenso, cassado ou... nada.
Por isso o STF não aceitou a primeira proposta do Congresso: a Câmara derrubaria a prisão, mas com o compromisso de abrir processo contra Silveira no Conselho de Ética. Como confiar, se o conselho lava as mãos até para a deputada e pastora Flordelis, condenada pelo assassinato do marido?
Enquanto os poderes têm de perder tempo e energia com gente assim, vale refletir em que contexto Daniel Silveira foi eleito deputado federal, depois de expelido da Polícia Militar do Rio por 26 dias de prisão, 54 de detenção, 14 repreensões e duas advertências. Com esse currículo, ele só pôde ser eleito na onda Jair Bolsonaro, ele próprio um militar que saiu cedo do Exército por insubordinação.
Essa onda da “nova política” tirou do Congresso (e de legislativos e governos estaduais) políticos experientes e de bons serviços prestados em comissões, lideranças e relatorias de temas essenciais. E pôs no lugar policiais, bombeiros, militares, procuradores – entre eles, toda uma gente que sempre passou ao largo da política. Pior: com horror à política e à negociação, diálogo, contraditório. Para não dizer democracia e instituições. Ao destruir a placa para a vereadora assassinada Marielle Franco, Daniel Silveira atacou o que ela representava: a política (entrou nela para destruí-la por dentro), mulheres, negros, gays, inclusão social, justiça e humanidade.
Agora, ele está preso e foi abandonado, mas não fala sozinho. O deputado Eduardo Bolsonaro já defendeu a volta do AI-5, o mais feroz instrumento da ditadura militar, e que “basta um cabo e um soldado para fechar o STF”. E o presidente da República, além de ouvir em silêncio o então ministro da Educação propor a prisão dos membros do Supremo, atiçou e participou de atos contra as instituições.
A “nova política”, porém, envelheceu rapidamente, com Wilson Witzel afastado do governo Rio por desvios, governadores do PSL e do PSC em apuros, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) rejeitada por multidões para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), um bando deles respondendo no Supremo por fake news e movimentos golpistas.
O próprio Bolsonaro está saindo de fininho, abraçado à “velha política” e ao Centrão e empenhado na aproximação com o Supremo. Os filhos que votem como bem entenderem sobre a prisão de Silveira, um bolsonarista raiz, porque papai Jair está mais preocupado em se dar bem no Congresso e no Supremo. Para os Silveiras e o resto, migalhas. Ou armas e munições à vontade.
Vera Magalhães: Governo normal faz diferença
Mais que o tradicional “bom dia” nos grupos de WhatsApp das famílias, uma expressão se espalhou pelas redes sociais no Brasil em tempos de governo Bolsonaro: “Não se tem um dia de paz”.
A constatação ganhou especial significado durante a pandemia. Nos aproximamos de forma célere dos 250 mil mortos, a vacinação se dá em ritmo de tartaruga, o auxílio emergencial ainda é um esboço, mas o país parou na Quarta-Feira sem Cinzas para acompanhar a prisão de um deputado da linha de frente da base bolsonarista que não via outra prioridade diante deste quadro que não fosse pregar a volta do AI-5, agressões físicas a ministros do Supremo e a troca sumária de todos os integrantes da Corte.
O chilique do valentão se deu porque o ministro Edson Fachin fez o óbvio: protestar contra a interferência indevida que o general Villas Bôas confessou ter sido feita com aval do Alto-Comando das Forças Armadas na decisão que o STF teria de tomar sobre um recurso do ex-presidente Lula em 2018.
A prisão do deputado ainda mobiliza os três Poderes da República três dias depois. Os deputados, antes prontos a correr em socorro do colega, agora entenderam que ele foi longe demais e que salvar sua pele pode implicar comprometer a própria. Da mesma maneira, Bolsonaro, sempre tão boquirroto quanto Daniel Silveira, fez boca de siri quando o amigo foi em cana. Natural: sabe que tem seus próprios passivos, que incluem os do filho Flávio e os do ministro Eduardo Pazuello, com o Supremo e não vai se queimar por um deputado de 31 mil votos que se notabilizou por rasgar uma placa com o nome de Marielle Franco.
Ainda que o presidente tenha esse gesto isolado de comedimento (que pode ser quebrado a qualquer momento, numa live ou num aglomeração no cercadinho do Alvorada), a própria existência de um Daniel Silveira como deputado e a necessidade de que ele seja preso para parar de atentar contra a democracia mostram quão disfuncional é o governo Bolsonaro, e quanto o Brasil paga dia a dia por isso.
A diferença entre um governo tresloucado e um minimamente normal pode ser vista de forma didática nos Estados Unidos. A simples retirada de Donald Trump de cena e sua substituição pela equipe de Joe Biden fez com que fosse triplicado o ritmo de vacinação no país, a média diária de casos de Covid-19 despencasse de 195.064 para 77.665, e coisas simples como usar uma máscara deixassem de ser tabus ideológicos.
Por aqui, o presidente segue buscando milagres para enfrentar o vírus, enquanto seu ministro faz promessas sem nenhum amparo na realidade de centenas de milhões de doses de vacinas, sem estipular um cronograma seguro e claro de como elas serão fornecidas a estados e municípios.
O resultado dessa completa inépcia de Bolsonaro e Pazuello e do show de horrores da ala bizarro-ideológica do bolsonarismo é que também a economia é profundamente afetada. Em vez de se ocupar do desenho do projeto para a volta do auxílio emergencial e das medidas adicionais necessárias para garantir que ele não estoure as já depauperadas contas públicas, o comando da Câmara passou os últimos dias quebrando a cabeça para tentar livrar a barra do troglodita sem afrontar o STF. Mas ficou claro que, desta vez, os ministros não deixariam barato nenhuma atitude corporativista que fragilizasse o Judiciário.
A votação unânime dos 11 ministros delimita uma risca no chão. O Congresso parece ter entendido isso. O silêncio de Bolsonaro mostra que ele também sentiu o golpe. Que os eleitores também entendam que só elegendo políticos comprometidos com a democracia, o que esses de turno não são, o país poderá sair da anormalidade absoluta para o mínimo de paz que todos pedem em vão nos seus posts no Twitter.
Valdir Oliveira: O justiceiro da vontade popular
Não existe quem possa defender a impunidade. As ações de combate a crimes de colarinho branco são apoiadas por toda a população. Não é de hoje que a sociedade repudia atos de corrupção. Noel Rosa, em 1933, já trazia essa pauta com a música Onde Está a Honestidade? O período do rock também foi muito rico nesse tema. Em Alvorada Voraz, Paulo Ricardo até citava os casos famosos de gente importante, como ele dizia. Com tantas insatisfações, Renato Russo chegou até a gritar: “Que pais é esse?”
Passaram-se ciclos de poder, com nomes e partidos diferentes, mas os casos de desvios se mantiveram presente como se a corrupção fosse parte do DNA do poder. A corrupção é parte da imperfeição humana, por isso, a sedução pelo dinheiro ou pelo poder é um perigo constante.Leia mais
Uma investigação mudou a história recente do Brasil e alterou os rumos do país. A partir dela, renasceu a esperança do fim da impunidade e, inevitavelmente, novos heróis nacionais. A operação, conhecida como Lava Jato, saiu da burocracia jurídica dos processos penais e ganhou as ruas, transformando-se em bandeira política de grande mobilização nacional. O que antes era crime de gente importante, como dizia a música de Paulo Ricardo, se transformou em crime hediondo, popularizando a repulsa pela corrupção, como a que sentimos com os crimes que nos chocam, nos atingem a alma.
Autores de crimes de colarinho branco sempre foram considerados inatingíveis pela polícia e pela Justiça. O dinheiro e o poder sempre foram a proteção à impunidade. A compreensão era de que, no campo jurídico, esse embate não lograria êxito. Assim como na operação italiana Mãos Limpas, que parece ter sido a inspiração para a operação Lava Jato, a estratégia usada foi levar a investigação e julgamento para as ruas, para que os acusadores conseguissem lutar no campo político, vez que no campo jurídico a lição mostrava insucessos.
Ao levar a investigação e o julgamento para as ruas, o juiz pôs em risco sua imparcialidade e comprometeu todo o processo. A política é tão sedutora quanto o dinheiro e a corrupção oriunda da vaidade é capciosa. O conhecimento público de um processo de interesse nacional não é ruim, desde que isso não seja maior do que o próprio processo e que não se torne bandeira de outros interesses que não o da própria Justiça. Caso ocorra, a mácula na Justiça atingirá a confiança daqueles que alimentaram a esperança de um país mais justo e colocará por terra a crença que a impunidade não resistirá aos homens de boa fé.
Ao ganhar as ruas, ancorado na esperança do povo brasileiro, o herói nacional correu o risco de transmudar seu papel, de juiz para justiceiro e, efetivamente, o fez. Adotou, como princípio, a máxima de que os fins justificavam os meios e transformou seu julgamento em guerra a qualquer custo, assumindo, também, o lado de acusador, abstendo-se, por consequência, da imparcialidade, fundamental em um processo justo. Existiram, assim, naquela operação, apenas dois polos: o da acusação e o da defesa.
Quem de nós já não se deparou com uma situação onde a raiva despertou a vontade de fazer justiça com as próprias mãos? Seja em um desencontro no trânsito ou no trabalho ou até em agressões a vulneráveis? O despertar da repulsa nos estimula a reagir impensada e impulsivamente, na profunda certeza de que, de fato, os fins justificam os meios. Porém, por vivermos em sociedade, não podemos permitir que esse limite seja ultrapassado. Caso contrário, como um bumerangue, tal processo tortuoso, um dia, voltará, inapelavelmente, contra nós mesmos.
Um justiceiro pode ser fruto de uma insatisfação profunda ou até da busca pelo fim impunidade. Pode ser, também, fruto da vaidade das conquistas individuais. Seja em um caso ou outro, o justiceiro sempre falha com a Justiça, porque, ao ultrapassar o limite da imparcialidade, da lei e das verdades dos fatos, ele contamina o resultado do seu trabalho. Um justiceiro, sob o manto da cegueira de suas razões, tende, ao final, a vitimizar o réu e passa a navegar, ele mesmo, nas águas da injustiça que se propôs a combater.
O fim da operação Lava Jato também traz nova mudança para os rumos do país. Assim, da mesma forma, a condenação a qualquer preço imperará no julgamento do justiceiro, decorrente da frustração, do engodo, do abuso da boa-fé, do sentimento da perda da oportunidade do combate eficaz e limpo da corrupção. O justiceiro se torna réu do próprio julgamento e, com isso, subtrai do povo a esperança da justiça e do fim da impunidade. A corrupção da vaidade é crime tanto quanto a corrupção de recursos públicos.
A história nos relega uma lição. O povo não deve personalizar irrevogavelmente a esperança. Afinal, somos todos imperfeitos, sujeitos a erros que, muitas vezes, nos igualam. O limite entre o juiz e o justiceiro está na lei e jamais devemos ultrapassa-lo, por mais que haja motivos que estimule essa ousadia. Afinal, como Júlio Cesar, na Roma antiga, devemos nos lembrar sempre que somos mortais e jamais poderemos estar acima do bem e do mal. A lei será sempre o limite do nosso poder.
*Valdir Oliveira é superintendente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) no Distrito Federal (DF).
Monica de Bolle: Auxílio Emergencial à deriva
Com o estado crítico em que o Brasil está, ainda pandêmico e com novas variantes perigosas do vírus em circulação, o governo contempla a adoção de um novo auxílio. Mas não se enganem. A proposta em nada se assemelhará ao esforço de 2020
Em 2020, quando o vírus chegou ao Brasil, escancarou-se uma porta para que discutíssemos medidas de proteção social, a despeito do desprezo do presidente pelos direitos humanos. A porta foi escancarada por uma conjunção de fatores fortuitos: o vírus ainda era uma novidade no país, todos o temiam — exceto o presidente —, as medidas de lockdown eram mais aceitas do que hoje, as mortes na Itália e na Espanha haviam impactado o país de um modo que as mortes de centenas de milhares de brasileiros não impactariam. A sociedade aproveitou então os espaços surgidos, tendo no Congresso um aliado de ocasião devido a suas lideranças, e pressionou para que o auxílio fosse criado rapidamente. A pressão de grupos e pessoas, ao lado da disposição do Congresso, foi capaz de implantar o maior programa de proteção social da história brasileira.
Apesar dos tropeços, mais de 70 milhões de pessoas foram atendidas, a economia foi sustentada e a catástrofe foi atenuada. A queda do PIB em 2020 foi da ordem de mais de 10%, tal como eu projetava em março, e só não foi maior por causa do auxílio. Infelizmente, tanto os líderes do Congresso quanto o governo se recusaram a agir em função do que já era sabido, ou seja, que a pandemia não terminaria em dezembro. Preferiram orientar sua ação por sua vontade e deixaram o auxílio expirar. Agora, com o estado crítico em que o Brasil está, ainda pandêmico e com novas variantes perigosas do vírus em circulação, as VOCs, o governo contempla a adoção de um novo auxílio emergencial. Mas não se enganem. A proposta, qualquer que seja, em nada se assemelhará ao esforço de 2020.
Sobram preocupações com tudo que não é urgente neste momento, em que a pandemia está prestes a se agravar. Sim, a se agravar. As VOCs são perigosas por serem mais transmissíveis, possivelmente causar doença mais grave, quiçá escapar do sistema imune. As vacinas nos protegem contra doença, não nos protegem contra infecção. E o Brasil está muito atrasado na campanha de vacinação. Logo, o cenário que temos hoje não se alterará tão cedo. Teremos uma prolongada pandemia aguda e depois, por conta da evolução do vírus, potencialmente uma pandemia crônica, como é hoje o caso da aids.
O que deveria ser o novo auxílio emergencial neste contexto? Minha proposta é de um benefício no valor de R$ 300, a ser pago, no mínimo, até o fim do ano, com cobertura equivalente ao programa que expirou em dezembro e com uma regra de transição. A regra de transição é importante, pois impede que o programa acabe subitamente, deixando dezenas de milhões de pessoas desassistidas, como ocorreu na passagem de 2020 para 2021. Imagino uma regra de transição de seis meses, em que o valor do benefício seja reduzido gradualmente, mês a mês, até chegar a zero. Em um país com um governo que não fosse antissociedade, a regra de transição estabeleceria a passagem para um programa de renda básica permanente, mas confesso que não tenho mais qualquer esperança de que algo do tipo venha a surgir em um governo que atua, por ação e omissão, para fazer e deixar morrer. Não é por acaso que se fala em necropolítica.
Antevejo a pergunta: De onde virá o dinheiro para isso? O programa é caro, evidentemente. Estamos falando de cerca de R$ 200 bilhões, caso os pagamentos se iniciassem em março para atender em torno de 70 milhões de pessoas. Já digo logo, sem qualquer temor de represálias, que certamente aparecerão: o programa deve ser financiado, majoritariamente, pela emissão de dívida pública.
O país não vai quebrar por causa disso. No ano passado, a dívida só não foi mais elevada por causa do auxílio emergencial.
Lembrem: ele evitou que tivéssemos uma recessão ainda mais profunda. E, convenhamos, o momento é de crise humanitária aguda. Estamos falando de salvar vidas, centenas de milhares de vidas. Trata-se de pôr o foco no lugar certo, nas pessoas. Não há nada mais importante nem mais responsável do que isso. Os tempos não são de normalidade. Não nos permitem ficar na ladainha da responsabilidade fiscal, porque, enquanto ela é desfiada, morre mais de uma pessoa por minuto por Covid. Em breve, esse número será ainda maior.
Portanto, é isso. Salvar vidas e reerguer o auxílio da forma como propus é encarar o problema tal qual ele se apresenta, a realidade tal qual ela é. Isso implica abrir mão da fantasia de que “a pandemia está acabando” e da ignomínia de que “é preciso salvar a economia, depois salvamos as pessoas”.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Cora Rónai: Não entendo quem busca aglomerações em plena pandemia
Não entendo a vontade de comemorar o quer que seja quando há tanta gente asfixiada nos hospitais, tanta gente morrendo
Não sei mais sair de casa. Não é nem por medo — eu já tive Covid-19 e, em tese, ainda estou relativamente imunizada contra o coronavírus. É que perdi a habilidade.
Sair envolve uma série de pequenos gestos e atenções. Não reparamos neles porque sair é o nosso normal desde que o primeiro hominídeo se mudou para a primeira caverna e, uma vez lá dentro, descobriu que a vida era lá fora.
Tudo está lá fora: o comércio, a natureza, os amigos.
Mas eu olho pela janela, vejo a vista mais deslumbrante do Rio de Janeiro e... sinto zero vontade de ir até lá. Sair deixou de ser automático. Preciso me concentrar na roupa e no sapato, preciso conferir se tudo o que preciso está na bolsa.
Antes eu sabia a minha bolsa de cor.
Antes eu abria o armário, assoviava, e duas ou três blusas vinham comer na minha mão: sempre as mesmas, apesar da quantidade de colegas. Hoje eu abro o armário, fico pensando e desisto.
Antes os meus pés encontravam as sandálias sozinhos, no escuro.
Já estive na rua algumas vezes desde o começo da pandemia, mas não consegui normalizar o mundo de máscaras, de álcool gel e de distanciamento social. Tenho uma dificuldade enorme de ficar alerta. Da última vez que saí, o elevador veio com dois vizinhos do andar de cima e eu já ia entrando. Fui à dentista, precisei calçar coberturas protetoras sobre os sapatos e só me lembrei que estava com aqueles paninhos nos pés dois quarteirões antes de chegar em casa, a própria louca do EPI.
Tenho a sorte de poder trabalhar de casa. Tenho a sorte ainda maior de ter um apartamento bonito e confortável, com todos os gatos e livros de que preciso. Os serviços de delivery me trazem tudo o que é necessário. Não faço nenhuma falta lá fora e começo a desconfiar que lá fora não me faz falta nenhuma também.
Mas não é por isso que não entendo quem busca aglomerações em plena pandemia.
Não entendo porque não percebo qual é a dificuldade em compreender o mecanismo de transmissão do vírus; não entendo porque não alcanço a absoluta falta de empatia de quem liga o “dane-se” a esse ponto.
Não entendo a realidade paralela em que vivem as pessoas que acham normal ir a uma festa durante a pior emergência sanitária que já vivemos. Não entendo a vontade de comemorar o quer que seja quando há tanta gente asfixiada e sem ar nos hospitais, tanta gente morrendo.
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Num vídeo gravado assim que a Polícia Federal foi buscá-lo em casa, o deputado Daniel Silveira, do PSL, se vangloriou da sua trajetória: “Eu já fui preso mais de 90 vezes na Polícia Militar do Rio”.
Eu só queria saber como um homem consegue ser preso mais de 90 vezes e continuar impune.
Há algo profundamente errado com um sistema que percebe 90 vezes que um homem representa um perigo para a sociedade, mas não consegue impedi-lo de se eleger deputado.
Vera Magalhães: Entubados, mas armados
Se depender de Jair Bolsonaro, o número de mortes pela Covid-19 passará em breve dos 300 mil brasileiros, sem que haja uma palavra de compaixão, reconhecimento da tragédia ou das múltiplas ações e omissões propositais que nos levaram a isso. O presidente não está nem aí, já se cansou de dizer.
Para este homem, este presidente incidental e lamentável, pouco importa que as UTIs colapsem com gente entubada em uma, duas, três ondas sucessivas e contínuas da pandemia, desde que ele passe com sua boiada de desmonte das políticas civilizatórias. Para isso, quanto menos gente estiver olhando, melhor.
Se for na calada da noite de um não carnaval ermo, sombrio, melancólico, em que as pessoas lamentam a alegria suprimida com as vidas das pessoas amadas, perfeito.
Para o presidente da República do Brasil, o “povo tá vibrando”. Bolsonaro conhece tanto de povo quanto de cloroquina: absolutamente nada. Sua noção de povo se limita a olhar gráficos de popularidade em pesquisas e, quando eles caem, se preocupar com o próprio pescoço.
É quando isso acontece, que ele se lembra de chamar algum auxiliar e ordenar uma medida que arrefeça a indisposição com seu governo, coalhado de ministros tão ineptos quanto o chefe, que só por isso estão onde estão.
Quem seria Gilson Machado em qualquer outra época que não fosse o governo Bolsonaro? Nem para tocar sanfona como calouro num daqueles programas dos anos 1980 serviria. Seria gongado por Aracy de Almeida. Sem o escrutínio daquele baluarte do bom gosto musical, somos obrigados a ouvi-lo não apenas tocar desajeitadamente o instrumento, como fazer perorações absurdas acerca de um suposto “castigo divino” que teria se abatido sobre nós pelos pecados do carnaval e teria resultado nas mortes por Covid-19.
Tal pessoa, saída de algum desvão da História onde deveria ter permanecido, é ministro do Turismo! Motivo de um indisfarçado orgulho de um presidente que se jacta de ser cercado de fracassados e ressentidos — com cada vez mais raras exceções que, se não se tocarem de onde estão enfiadas, vão virar a regra.
Depois de boicotar de todas as formas que conseguiu a vacinação dos brasileiros e comprar, fabricar e enfiar goela abaixo de doentes incautos um medicamento sabidamente ineficaz, Bolsonaro parece encantado com a possibilidade de a Covid-19 sumir com um spray nasal.
A droga, em fase inicial de testes, é desenvolvida por Israel, o que faz com que o presidente a considere “ideologicamente correta”. Surtiu efeito em, vejam só, 29 pessoas! Uau!
Mas onde estão as vacinas, presidente? Por que seu ministro-general da Saúde, que o senhor disse ser especialista em logística quando demitiu dois médicos, não consegue estruturar um plano de chegada de doses mínimas de imunizantes a estados e municípios que terão de paralisar a vacinação?
Por que, no lugar de editar de uma vez, na calada da noite, quatro decretos inconstitucionais e imorais, que liberam geral não apenas a posse de armas, mas de miras telescópicas e a fabricação de munição, e permitem transformar os amigos caçadores, atiradores e colecionadores em Rambos armados até os dentes, o senhor não estava cobrando de Pazuello que implemente um plano de vacinação capaz de tirar o Brasil da UTI, onde permanece entubado graças à incompetência do senhor e do seu estafe?
É inadmissível que assistamos anestesiados à completa inversão de prioridades numa crise sanitária. A vacina mingua no momento em que estamos no pico de casos e mortes, com a nova cepa do vírus se espalhando pelo país. O auxílio emergencial ainda está sendo estruturado, mas os decretos de armas estão aí, a desafiar o bom senso, o Supremo Tribunal Federal e um Congresso que é cúmplice da incitação à barbárie e à morte.
Folha de S. Paulo: Documentos mostram que Saúde usou Fiocruz para produzir 4 milhões de comprimidos de cloroquina
Medicamento sem eficácia para Covid foi fabricado com recursos emergenciais; Fiocruz diz que é para malária e não comenta uso do dinheiro
Vinicius Sassine, Folha de S. Paulo
O Ministério da Saúde usou a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) para a produção de 4 milhões de comprimidos de cloroquina, com o emprego de recursos públicos emergenciais voltados a ações contra a Covid-19 e com destinação prevista do medicamento a pacientes com coronavírus.
Documentos da pasta obtidos pela Folha, com datas de 29 de junho e 6 de outubro, mostram a produção de cloroquina e também de fosfato de oseltamivir (o Tamiflu) pela Fiocruz, com destinação a pacientes com Covid-19. Os dois medicamentos não têm eficácia contra a Covid-19, segundo estudos.
O dinheiro que financiou a produção partiu da MP (Medida Provisória) nº 940, editada em 2 de abril pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para o enfrentamento de emergência do novo coronavírus, como consta nos dois documentos enviados pelo Ministério da Saúde ao MPF (Ministério Público Federal) em Brasília. A MP abriu um crédito extraordinário, em favor do ministério, no valor de R$ 9,44 bilhões.
Para a Fiocruz, que é vinculada à pasta, foram destinados R$ 457,3 milhões para "enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus".
Na exposição de motivos sobre a MP, não houve detalhamento de como o dinheiro seria gasto. O texto da Presidência da República enviado ao Congresso fala em "produção de medicamentos".
Os documentos enviados ao MPF apontam gastos de R$ 70,4 milhões, oriundos da MP, com a produção de cloroquina e Tamiflu pela Fiocruz.
Os ofícios associam a produção dos dois medicamentos aos recursos destravados para a pandemia. As drogas se destinam a pacientes com Covid-19, segundo os mesmos ofícios, elaborados por uma coordenação da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde.
No Brasil, a Fiocruz é a responsável pela importação e produção da vacina desenvolvida pela farmacêutica AstraZeneca e pela Universidade de Oxford. A Fiocruz também desenvolve pesquisas para o desenvolvimento de uma vacina nacional.
Segundo a instituição, a produção de cloroquina e de Tamiflu não impactou as ações voltadas a pesquisas, testes e desenvolvimento de imunizantes, por se tratarem de unidades distintas no órgão.
Na sexta-feira (5), a fundação afirmou à Folha que Farmanguinhos, o instituto responsável pela fabricação de medicamentos, produziu cloroquina para atender ao programa nacional de prevenção e controle da malária.
"Farmanguinhos produz cloroquina somente para o que está previsto em sua bula. A bula descreve que a cloroquina é indicada para profilaxia e tratamento de ataque agudo de malária e no tratamento de amebíase hepática, artrite, lúpus, sarcaidose e doenças de fotossensibilidade", disse.
Nesta quarta-feira (10), após questionamentos da reportagem sobre os novos documentos, a Fiocruz reafirmou o que disse na nota anterior. "Farmanguinhos não produziu em 2020 ou está produzindo o referido medicamento para outras indicações."
Segundo a instituição, o Ministério da Saúde informou que poderia fazer uma solicitação, mas isso não teria se concretizado.
Farmanguinhos entregou 16,8 milhões de doses de Tamiflu para "tratamento e profilaxia de gripe em adultos e crianças com mais de um ano" e outro lote será entregue em 2021, cita a nota.
Nem a Fiocruz nem o Ministério da Saúde comentaram o uso dos recursos da MP voltada a ações contra o coronavírus para a produção dos dois medicamentos.
Em nota, o Ministério da Saúde disse que a aquisição da cloroquina não foi concretizada, que a produção deve ser explicada pela Fiocruz e que o Tamiflu não é para Covid-19, mas para influenza. "Ao atuar no tratamento da influenza, ele favorece a redução da sobrecarga ao sistema de saúde em função do aumento de doenças respiratórias."
Em 29 de junho, Farmanguinhos já produzia 2,5 milhões de cápsulas de fosfato de oseltamivir 30 mg, 2,35 milhões de 45 mg e 11 milhões de 75 mg, o que totaliza 15,85 milhões de doses. "Esses quantitativos em produção serão custeados por meio de recursos destinados à Fiocruz, pela medida provisória nº 940", cita o primeiro documento do Ministério da Saúde.
O investimento previsto era de R$ 70,4 milhões. "Dada a capacidade produtiva do laboratório público e a necessidade deste ministério, esses medicamentos serão fornecidos ao longo dos próximos cinco meses."
A mesma lógica valia para a cloroquina: "Também com esses recursos alocados à Fiocruz, por meio da Medida Provisória nº 940, está em processo de produção por Farmanguinhos/Fiocruz o montante de 4.000.000 de comprimidos de disfosfato de cloroquina 150 mg. Esse montante tem previsão de entrega nos meses de julho e agosto".
Um novo documento, elaborado em 6 de outubro pela mesma área do Ministério da Saude, confirmou as informações de junho. Dessa vez, a pasta informou que "foi realizada a aquisição" do Tamiflu, em julho, junto a Farmanguinhos, com o uso de recursos destravados pela MP nº 940.
"O Ministério da Saúde tem distribuído o fosfato de oseltamivir para o enfrentamento à pandemia e tem recomendado o uso concomitante com outros medicamentos por até cinco dias até exclusão de influenza, em pacientes pediátricos com diagnóstico de Covid-19", afirma.
O protocolo de uso do medicamento o recomenda para gripe e síndrome respiratória aguda grave.
O documento também dá o panorama sobre a cloroquina produzida na Fiocruz: "Com os recursos alocados à Fiocruz, por meio da MP nº 940, para a aquisição de medicamentos, encontra-se em processo de aquisição junto a Farmanguinhos o montante de 4.000.000 de comprimidos de difosfato de cloroquina 150 mg".
O medicamento "está sendo distribuído de acordo com as orientações do Ministério da Saúde para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19", afirma.
A cloroquina da Fiocruz se soma a outras ofensivas do Ministério da Saúde. O Laboratório Químico Farmacêutico do Exército produziu 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina, a um custo de R$ 1,16 milhão, a partir de pedidos feitos pelos Ministérios da Saúde e da Defesa. Já os EUA, ainda no governo de Donald Trump, doaram 2 milhões de comprimidos ao Brasil.
No sábado (6), a Folha mostrou que o governo Bolsonaro mobilizou pelo menos cinco ministérios, uma estatal, dois conselhos da área econômica, Exército e Aeronáutica para distribuir o medicamento.
Com base na reportagem, o PDT ingressou no STF (Supremo Tribunal Federal) com uma notícia-crime contra o presidente nesta terça-feira (9).
Dados do Ministério da Saúde mostram a distribuição de 5.416.510 comprimidos de cloroquina; 481.500 de hidroxicloroquina; e 22.380.510 de Tamiflu. O total gasto, segundo o Localiza SUS, foi de R$ 89 milhões.
O ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, passou a ser investigado nas esferas cível e penal pela distribuição de cloroquina.
Há procedimentos contra o ministro no MPF na primeira instância e na PGR (Procuradoria-Geral da República). Uma auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) apontou ilegalidade no uso de dinheiro do SUS com essa finalidade.
A cloroquina e o governo Bolsonaro
Março.2020
Bolsonaro começa a defender a cloroquina e diz já ter dado ordem para Exército ampliar a produção do medicamento em seu Laboratório Químico Farmacêutico
Abril.2020
Presidente publica medida provisória liberando crédito extraordinário a Ministério da Saúde e Fiocruz
Entre outros objetivos, previsão do dinheiro é para produção de medicamentos
Maio.2020
Parecer técnico do ministério recomenda uso de Tamiflu durante a pandemia em casos de gripe e síndrome aguda respiratória grave
Junho.2020
Fiocruz já produz cloroquina e Tamiflu com recursos liberados pela MP voltada a ações contra a pandemia
Julho.2020
Ministério adquire todo o Tamiflu produzido por Fiocruz
Agosto.2020
Guia do ministério é atualizado e orienta "tratamento precoce" com cloroquina. No mesmo mês, a Fiocruz anuncia acordo com AstraZeneca e Universidade de Oxford para produção de vacina contra a Covid
Outubro.2020
Está em andamento o processo de aquisição, pelo Ministério da Saúde, de 4 milhões de comprimidos de cloroquina produzidos pela Fiocruz
Janeiro.2021
Governo Bolsonaro, diante do avanço de investigações sobre o gasto de dinheiro público com medicamentos sem eficácia, começa a ensaiar um recuo na defesa da cloroquina
Pedro Fernando Nery: Como a pandemia afetará os nascimentos no País?
Brasil pode perder não só os brasileiros que faleceram, mas ainda os que deixaram de nascer
Foram quase 40 mil nascimentos a menos registrados neste janeiro na comparação com o janeiro anterior. Os dados são do Portal da Transparência do Registro Civil, e representariam uma queda de 15% no número de nascimentos no Brasil. Possivelmente, refletem o endurecimento da pandemia no 1.º semestre de 2020. O título da coluna pode ser distópico, mas há algo a observar nos próximos meses: como a pandemia afetará os nascimentos no País?
A queda teria ocorrido em 25 Estados e no Distrito Federal. Essa análise inicial e apressada poderia estar superestimando o impacto da pandemia nos nascimentos (por exemplo se houver uma defasagem grande entre os nascimentos e os registros no atual contexto). Porém, os mesmos dados indicam mais registros de óbitos em janeiro, compatível com a covid-19 – um alta também de 15%.
A redução de 15% no número de nascimentos não está distante da registrada inicialmente em dezembro na Itália (22%) – o primeiro país a sentir duramente os efeitos do vírus depois da China. Em um exercício simplório, se essa redução se mantivesse nos próximos meses, refletindo o avanço da primeira onda da pandemia em 2020, teríamos um primeiro semestre de 2021 com 200 mil bebês a menos.
O medo do contágio nos hospitais, a insegurança sobre os riscos do vírus a gestantes e recém-nascidos e a incerteza quanto a salários e empregos são explicações possíveis para o adiamento de gestações planejadas. Não é possível ainda afirmar para nenhum país qual seria a magnitude do fenômeno, e outras dúvidas se colocam.
O que em inglês tem se chamado de baby bust, será seguido posteriormente por um baby boom, um grande número de nascimentos – como ocorreu em vários países após a Segunda Guerra Mundial? Haverá um represamento nos nascimentos ou planos das famílias terão sido afetados para sempre? Os adiamentos estão somente à espera da vacina ou também à espera dos empregos?
A questão econômica, e não apenas a sanitária, é especialmente importante diante de uma pandemia que é pior para as mulheres. As que já têm filhos tiveram o desafio das escolas fechadas. Muitas se ocupavam no setor de serviços, particularmente afetado pelo isolamento social. A geração de emprego formal foi até positiva para homens na pandemia, mas negativa para as mulheres.
Demógrafos acompanham atentamente a evolução da taxa de fertilidade, que no Brasil e em muitos países já vinha em forte queda. Tem, assim, implicações futuras sobre a educação (mais recursos por aluno), a violência (menor número de jovens potenciais criminosos), a previdência (menos contribuintes), a economia (menos trabalhadores), a defesa (menos recrutas).
O paralelo inicial na demografia para analisar essa questão na atual pandemia seria a gripe espanhola, a partir de 1918. Ali observou-se a queda na fertilidade e um subsequente baby boom. A situação vai se repetir? Hoje é sabido que muitas mulheres têm filhos mais tarde – o adiamento para idades com fertilidade menor poderia levar parte delas a acabar não tendo filhos ou a ter famílias menores.
Em estudo publicado em dezembro, pesquisadores de Bangladesh, Estados Unidos e Reino Unido sugerem que o boom depois da gripe espanhola pode não se repetir. Eles avaliam que a alta mortalidade daquela pandemia fez com que muitas mulheres a tenham experimentado de perto – na família, na vizinhança – o que as estimulariam a ter mais filhos (Ullah et al., 2020). Os pesquisadores ressaltam que em epidemias e desastres naturais mais recentes os efeitos foram menores e variaram em cada episódio (como as epidemias de SARS em Hong Kong, zika no do Brasil, e ebola na África Ocidental).
Raquel Coutinho e outros pesquisadores das Universidades Federais de Minas Gerais (UFMG) e do Rio Grande do Norte (UFRN) apontam outra razão para que o pós-covid não seja equivalente à da pandemia de 1918. Para eles, o contexto atual “pode ter implicações distintas daquelas observadas em outros episódios registrados na história de alta mortalidade, sobretudo no que se refere ao possível aumento do número de nascimentos após o período de crise, já que os valores correntes com relação às normas sociais do tamanho ideal de família são bem diferentes do contexto da gripe espanhola” (Coutinho et al., 2020).
À revista Time, Dowell Myers – da University of Southern California – apontou que as taxas de natalidade seriam um “barômetro do desespero” no caso dos adultos jovens, pois refletiria a falta de otimismo com o futuro. Elas podem ser mais uma medida do custo humano da pandemia que castiga o nosso País. Os brasileiros que perdemos podem ser não só os que faleceram, mas também os que deixaram de nascer.
*DOUTOR EM ECONOMIA