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Eliane Brum: O que significa cuidar de um filho numa pandemia?

O sofrimento das crianças na emergência da covid-19 deve levar os pais a responder à pergunta mais importante para a próxima geração — e agir

O menino é filho único e tem oito anos. Logo nas primeiras semanas da pandemia, ele elegeu dois bichos de pelúcia para serem seus parceiros. Quando jogava videogame, colocava um dos bonecos ao lado, com um controle no colo, como se estivessem brincando juntos. Os amigos seguiam com ele dividindo as atividades do dia. O menino fantasiava outros meninos para enfrentar a falta atroz de outras crianças. Uma mãe me conta, por tela, que seu bebê nasceu na pandemia e logo completará um ano sem nunca ter visto uma outra criança. Já começa a andar e a balbuciar algumas tentativas de palavras sem jamais ter encontrado ou tocado em outro bebê. Que tipo de efeito isso terá sobre a sua vida? E se a pandemia durar mais um ano?, ela pergunta, mas sem a esperança de uma resposta. Outra menina pede: “Mãe, me dá uma criança?”.

A pandemia forjou uma realidade de crianças sem crianças. Ainda não conhecemos totalmente os efeitos que essa experiência radical pode ter sobre quem estreia na vida. Também não sabemos quando esse cotidiano será superado, já que são muitas as variáveis: do tempo para completar a vacinação ao impacto das novas cepas que já começaram a circular. Negar a emergência sociossanitária, como alguns estão fazendo, é a pior escolha possível. Como os adultos de sua vida lidam com essa pandemia será um exemplo que marcará profundamente a formação de cada criança, porque todos os desafios e as escolhas éticas fundamentais de uma vida humana estão colocados nesse acontecimento. Pode faltar criança para brincar, mas não pode faltar ética para formar.

“Faltar” criança para conviver é um dado da realidade em uma pandemia. É duro, mas há que se lidar com ele. Faltar ética ao escolher como enfrentar a crise pode ser mais complicado e ter efeitos mais longos. As crianças estão observando o que os pais fazem com ainda maior atenção porque também elas sentem nos ossos a emergência. As lições do agora serão para toda a vida.

O que significa cuidar de uma filha ou filho numa pandemia? Ou o que significa cuidar da próxima geração numa emergência global de saúde pública, já que somos todos pais daquelas e daqueles que assumirão a responsabilidade por esse mundo nas próximas décadas? Essa questão vale para todos os adultos em qualquer país do mundo, mas no Brasil ela ganha contornos muito mais dramáticos.

Onde estamos metidos

O primeiro passo é entender onde estamos metidos. A ampla disseminação da ideia de que estamos vivendo algo surpreendente e inesperado, que teria pegado a todos de surpresa, é falsa. A ocorrência de pandemias não é novidade para Governos e instituições. Se foi, é por incompetência e irresponsabilidade. E também por essa praga que se pode chamar de síndrome do curto prazo, que é a escolha de governar com medidas de visibilidade imediata, porque têm mais impacto para as ambições do governante nas próximas eleições, do que com planejamento de longo prazo, cujos benefícios ultrapassam o mandato porque visam ao bem comum.

Quem acompanha o tema da saúde pública e as comunicações da Organização Mundial da Saúde sabe que o surgimento de mais uma pandemia era previsto. Assim como o fato de que as pandemias se tornarão mais frequentes, devido à emergência climática (causa e efeito da destruição de habitats de espécies) e à ampla circulação de pessoas e de mercadorias em um mundo globalizado. São o que o microbiologista francês Philippe Sansonetti, do Collége de France, chama de “doenças do antropoceno”: “as doenças que estão principalmente, senão exclusivamente, ligadas ao fato de os humanos terem dominado o planeta e ao impacto que estão causando sobre a Terra”.

Há protocolos para enfrentar pandemias preparados muitos anos antes do primeiro caso de coronavírus em Wuhan. Diretrizes de enfrentamento foram criadas principalmente a partir de 2003, com a emergência da SARS (síndrome aguda respiratória grave). Até mesmo o Banco Mundial oferece há anos uma linha de crédito para os países enfrentarem pandemias. Em 2017, por exemplo, lançou títulos especializados com o objetivo de garantir apoio financeiro ao Pandemic Emergency Financing Facility (PEF), um mecanismo criado para financiar países em desenvolvimento que enfrentam o risco de uma pandemia.

A surpresa pode ser para os cidadãos, que não receberam toda informação que deveriam ou se recusaram a acreditar na que receberam, caso da emergência climática que as lideranças indígenas alertam há décadas e os cientistas também. Mas não deveria ser surpresa para os Governos. E, se foi, é preciso entender o porquê e apurar responsabilidades.

É importante compreender também que a gestão pública da pandemia tem sido muito desigual. O Lowy Institute, um centro de estudos e debates da Austrália, publicou no final de janeiro uma pesquisa em que analisou os dados e a atuação de 98 países. O estudo mostrou o Brasil com a nota mais baixa na condução da pandemia (4,3) e a Nova Zelândia com a nota mais alta (94,4). É razoável supor que uma criança brasileira sofrerá muito mais impacto com a pandemia do que uma criança neozelandesa ou de países em que o Governo usou o conhecimento científico e especializado disponível para enfrentar a emergência sanitária.

Liderar o ranking de má gestão pública da pandemia, como é o caso do Brasil, tem consequências evidentes. A pior delas está exposta diariamente nas covas abertas para abrigar os mortos: atualmente, mais de 1.000 por dia, e quase 230.000 no total. Embora o Brasil seja o segundo país em número de mortes, essa tragédia é a realidade de vários países, e está intimamente conectada com a incompetência na condução do enfrentamento da covid-19. A má gestão é ainda mais evidente em países como o Brasil e a Inglaterra, que possuem sistemas públicos de saúde que, apesar de sucateados pelos Governos neoliberais, ainda assim são um exemplo para o mundo. No Brasil, o SUS não foi apenas sucateado, mas atacado pelo vírus do subinvestimento crônico desde o seu nascimento.

Diferentemente de outros países com evidente má gestão da crise sociossanitária, o Brasil se tornou um caso único, que entrará para os livros de história da pandemia de covid-19. O Governo Bolsonaro não ganhou o título de pior gestor por incompetência, mas por ter colocado em prática uma “estratégia institucional de propagação do vírus”. A partir da análise de 3.049 normas federais, um estudo da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e da Conectas Direitos Humanos, divulgado no último dia 21 pelo EL PAÍS, comprovou a ação deliberada do Governo para a propagação do vírus, com o objetivo de acelerar o contágio da população para poder retomar as atividades econômicas.

Um grupo de entidades religiosas, entre elas a CNBB e a Fundação Luterana de Diaconia, fizeram uma denúncia baseada no estudo junto ao Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos na semana passada. Relacionadas à covid-19, há pelo menos três comunicações por genocídio e outros crimes contra a humanidade cometidos por Bolsonaro e membros do Governo no Tribunal Penal Internacional. Outras devem chegar, tornando a hashtag #BolsonaroEmHaia cada vez mais forte.

Pelo menos mais um pedido de impeachment, esse dos professores da Faculdade de Direito da USP, a mais prestigiosa do país, baseou-se no estudo para somar-se nesta semana aos mais de 60 que já desembarcaram no Congresso. Como é sabido, Bolsonaro “comprou” a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado, estratégicos para decidir a abertura de um processo de impeachment. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o presidente que se elegeu mentindo que era “contra a corrupção” beneficiou 285 parlamentares com 3 bilhões reais de dinheiro extra em troca de votos. Nosso dinheiro, é importante lembrar.

“festa da vitória” de Arthur Lira (Progressistas), o novo presidente da Câmara, denunciado duas vezes por corrupção passiva e organização criminosa, reuniu 300 pessoas no mesmo espaço físico quando mais de 1.000 famílias por dia choram seus mortos. Como nomear o ato de um parlamentar, eleito presidente da Câmara graças à troca de dinheiro público por votos, troca feita pelo presidente da República para impedir a abertura do seu processo de impeachment, comemorar o escárnio dessa vitória reunindo 300 pessoas no mesmo espaço, a luxuosa mansão de um empresário denunciado por fraude, quando o Brasil soma quase 230.000 mortos por um vírus transmitido por proximidade física?

Às voltas com um Governo que comprovadamente recusou a oferta de testes e de vacinas em 2020 e, em 2021, ainda não conseguiu garantir um cronograma confiável de vacinação, a sociedade e as instituições têm pouca energia e recursos para debater e enfrentar as consequências da pandemia. Quando se acompanha a linha do tempo dos atos de Bolsonaro para disseminar o vírus e das reações do Judiciário, do Legislativo e da sociedade a esses atos, torna-se evidente que quase todos os esforços no Brasil têm sido investidos em bloquear ou neutralizar o boicote sistemático do Governo ao enfrentamento da pandemia.

Grande parte da energia da sociedade e das instituições está sendo gasta na redução de danos dos atos de Bolsonaro e de seus ministros contra a saúde pública. Isso significa que Bolsonaro se tornou um vírus que não só ajuda a disseminar o transmissor da covid-19, como também suga toda a capacidade de combate do sistema imunológico da sociedade. Não há como combater dois vírus ao mesmo tempo. A resposta para neutralizar o vírus Bolsonaro é óbvia e foi prevista na Constituição.

O que um adulto faz numa situação dessas?

Essa é a situação. E é com ela que nós, os adultos, precisamos lidar, para cuidar das futuras gerações.

Quando o presidente da República é comprovadamente o principal propagador do vírus, todas as pessoas precisam se posicionar e lutar para barrar o que alguns dos juristas mais respeitáveis do Brasil têm definido como crimes contra a humanidade. Votar é apenas uma pequena parte dos deveres de um cidadão numa democracia. Omitir-se diante de uma política de extermínio que já sepultou quase 230.000 brasileiros, ciente de que uma parte dessas mortes poderia ter sido evitada se as medidas corretas de prevenção e de enfrentamento tivessem sido tomadas, é a pior lição que se pode dar a um filho. É ensinar que, diante de uma ameaça, devemos nos deixar matar.

As crianças mais velhas já confrontam o pai ou a mãe ou ambos: o que é que você vai fazer? Em caso de alguns adolescentes, essa pergunta é jogada como desafio e em tom de afronta. Mas, prestando um pouco mais de atenção, é possível escutar o medo. O que está nas entrelinhas é: como você vai me cuidar?

Ao contrário de muitos países, especialmente na Europa, o Brasil nunca fez lockdown. A palavra em inglês, que já entrou no vocabulário da covid-19, significa “confinamento”. Significa fechar mesmo, não fazer de conta, como fazem a maioria dos Estados e dos municípios do país, ao submeter-se à pressão de empresários e comerciantes que nada entendem de saúde pública. Possivelmente, também não entendem de economia, já que há vários estudos sérios, feitos por gente séria, que mostram que o melhor para a economia é controlar a pandemia.

Se os governantes, aqueles que têm autoridade e responsabilidade de executar as políticas de saúde pública, preferem se submeter àqueles que financiam suas campanhas políticas em vez de cumprir sua obrigação constitucional de defender o conjunto da população, é necessário pensar melhor no voto da próxima eleição. Enquanto isso, adultos responsáveis tomam todas as medidas necessárias à prevenção a que têm acesso —isolamento e higiene e, caso sejam obrigados a sair, máscara e distanciamento.

Se um pai ou mãe não é capaz de mostrar ao seu filho ou filha, por palavras, mas principalmente pelo exemplo, que sua escolha individual deve ser tomada não em função de seus próprios interesses, comodidade ou privilégios, mas no interesse do coletivo e especialmente dos mais frágeis, que tipo de pai ou mãe ou que tipo de pessoa é você?

Aqueles que não podem promover seu próprio isolamento, porque estão submetidos à vontade dos empregadores ou porque trabalham em serviços essenciais, devem pressionar seus sindicatos e outras representações, quando elas existem, somando-se à parcela da sociedade que luta por medidas efetivas de combate à covid-19. E todos devem lutar para que os mais pobres, a maioria deles negros, que são também proporcionalmente os que mais morrem por covid-19, a maioria na informalidade, recebam auxílio emergencial.

Segundo o economista Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), o fim do pagamento do auxílio emergencial pode condenar uma parcela entre 10% e 15% da população brasileira a viver em pobreza extrema, dobrando o número de miseráveis no país. Isso significa que entre 21 milhões e 31 milhões de pessoas podem já estar passando fome. Campanhas para alimentar os famintos que se espalham por todo o país já se iniciaram promovidas pela sociedade civil organizada nessa nova onda de covid-19.

Quem individualmente menos precisa de ajuda é quem mais tem obrigação de lutar pelo coletivo.

Abrir ou fechar as escolas, eis a falsa questão

Se a premissa do debate sobre as escolas numa pandemia é uma oposição entre saúde e educação ou entre sociedade e professores ou ainda entre prevenção da pandemia e prevenção da saúde mental das crianças, o debate já começa muito, mas muito torto, e não pode terminar em nada bom. Infelizmente, é o que tem acontecido em várias instâncias.

frase “não podemos continuar mais um ano com as escolas fechadas” é equivocada. As escolhas de saúde pública, assim como as da vida, não são apenas uma questão de vontade, mas de responsabilidade e de estratégia. O que não podemos é continuar mais um ano com um presidente que dissemina o vírus, o que não podemos é continuar mais um ano com uma das polícias que mais matam no mundo, o que não podemos é continuar mais um ano com criminosos destruindo impunemente a Amazônia. Essas são situações criadas pela sociedade que estão matando a sociedade e que podem e devem ser mudadas por ela.

A pandemia exige estratégias diferentes para que possa ser controlada e, enquanto não for, mate o menos possível. Podemos e devemos reduzir seu impacto com medidas de prevenção da doença e garantia de vacinação, assim como devemos encontrar mecanismos de proteção dos mais pobres para que não morram por fome. Parte dessas medidas de saúde pública, porém, podem depender sim de manter os prédios das escolas fechados. A questão é que prédios fechados não deveriam significar escolas fechadas. Quando significam é porque há um problema com o entendimento do que é uma escola.

A experiência da pandemia mostrou algo à sociedade e aos adultos. Como tem sido dito por pesquisadores do tema da infância, como a psicanalista Ilana Katz, doutora pela Faculdade de Educação da USP, foram as crianças que apontaram o quanto a escola é essencial. “O debate precisou atravessar a simplificação do ‘abre e fecha a escola’, desimplicado das suas consequências territoriais, para considerar, com seriedade, a função da escola”, diz Katz. “Foi preciso dimensionar o seu lugar social e a importância de sua tarefa como agenciadora da cultura e da vida com todos os outros. Isso se colocou na forma de ausência e saudade no cotidiano das crianças e das suas famílias e tornou evidente onde, como e para o quê uma escola faz falta. Como consequência, apresentou a possibilidade de ampliação da compreensão da função da escola, sua centralidade no laço social e sua condição de serviço essencial”.

De certo modo, aconteceu com a escola pública o mesmo que aconteceu com o SUS. Era considerado imprestável por parte da sociedade até a pandemia mostrar que, apesar de terrivelmente sucateado nos últimos anos, o SUS é um trunfo precioso. Não fosse o sistema de saúde pública, o Brasil estaria numa situação ainda mais dramática. Já com a escola pública, poucos se importavam para além do discurso sem ação. Professores sempre mal pagos, escolas sem equipamentos, prédios depredados, alguns dos piores índices de aprendizado do mundo, crianças há anos na escola sem conseguir se alfabetizar, índices alarmantes de evasão e a tal da “normalidade” seguia.

Nos anos que antecederam o Governo Bolsonaro, a educação foi atacada pelo programa ideológico que se autodenominou Escola Sem Partido, mas mostrou-se escola com o pior partido, sofreu bullying por supostamente ser um “antro de esquerdopatas”, professores foram perseguidos e humilhados por ativistas de extrema direita e suas milícias digitais. Para piorar, o Governo Bolsonaro encontrou —propositalmente— a pior sequência de nulidades para colocar à frente do Ministério da Educação, páreo apenas para o atual ministro da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello.

Ao mesmo tempo, o Governo tenta retroceder alguns séculos de avanço civilizatório e colocar a família como uma totalidade que não precisa da sociedade, defendendo bobagens como o homeschooling (escola em casa), porque a família se bastaria. Não qualquer família, claro, mas a “certa”, aquela “de homem e de mulher”, de preferência o primeiro vestido de azul e a segunda de rosa. “Tudo pela família, tudo feito em casa, tudo protegido. Protegido de mundo, do outro, de alteridade”, comenta Katz.

E então a pandemia botou as crianças e os adolescentes em casa e, bem, o óbvio ficou óbvio para (quase) todos: não se faz educação sozinho nem entre quatro paredes. E, mais uma obviedade: é muito difícil ser professor. Nunca tantos pais exaustos perceberam o quanto os professores ganham pouco e recebem pouco apoio para fazer o seu trabalho. Pelo pior acontecimento, alguns pilares da democracia finalmente ficaram claros para (quase) todos: saúde e escola são essenciais.

A questão é o que se faz com o que se descobre. Uma parte importante do debate sobre a escola não é sobre a escola, mas sobre onde os pais vão colocar os filhos para poder trabalhar —ou, em alguns casos, para ter paz. Essa também é uma questão válida, mas não é a principal. “A escola não existe para resolver um problema dos adultos, ela existe para permitir que crianças sejam educadas num espaço de diversidade de experiências, e então possam se tornar pessoas responsáveis pela sua comunidade e capazes de desenvolver seus potenciais para a criação e a manutenção do comum”, diz Katz.

Assim, a questão de abrir ou não os prédios, que são apenas parte do que uma escola deve ser, é uma fração dessa conversa. Se a escola é essencial, então é passada a hora de realmente tratar a escola como essencial —e aí não estamos falando de prédios apenas, mas de toda a comunidade escolar, a começar pelos professores e funcionários. Se a escola é essencial então é preciso tratá-la como essencial —e não, mais uma vez, rearranjar o desarranjo. Numa pandemia, tratar a escola como essencial é determinar que é um serviço essencial e, portanto, professores e funcionários devem ser colocados na frente da fila de vacinação. Até agora, os professores não foram vacinados. E, sem medidas práticas, qualquer conversa é pura demagogia. Ou pior, é escolher o corpo do outro para que seja sacrificado. Sempre o do outro, claro.

É preciso se perguntar de forma mais profunda, comprometida e honesta do que tem sido feito: abrir as escolas para quê? Para que elas continuem sucateadas, negligenciadas, aviltadas? Obrigar os professores e os funcionários a trabalhar numa pandemia, fazendo apenas o mínimo (ou no máximo o mínimo) para protegê-los, da mesma forma que os obrigam a ensinar sem condições para ensinar? Esse é um momento terrível, mas é também um momento de possibilidades. Tanto no que se refere ao destino que a sociedade dará à descoberta de que o SUS é algo precioso, que precisa ser urgentemente fortalecido, quanto ao destino que se dará à descoberta de que a escola é essencial, para muito além do que antes era percebido no cotidiano.

Entre tanto material de qualidade produzido sobre esse tema, reproduzo aqui um trecho do manifesto Ocupar Escolas, Proteger Pessoas, Recriar a Educação, assinado por várias organizações ligadas à educação e à saúde:

“A pandemia desagregou o sistema educativo e a discussão sobre sua reorganização mantém-se no dilema da volta ou não às aulas presenciais. Um problema complexo, com vários níveis, dimensões e interfaces, foi simplificado como se fosse uma simples escolha dual: abrir escolas ou manter suspensas suas atividades. Pior, a suposta dicotomia rede pública e privada, utilizada com frequência para sustentar a desvalorização do que é público estatal, é falaciosa mesmo se tocarmos exclusivamente na questão da infraestrutura. É preciso construir caminhos para superar o negacionismo e os falsos dilemas no campo da Educação.

É necessário questionar desde logo o termo retorno. Não é possível retornar na vida, é preciso seguir e refazer, reinventar, recriar. As vivências desse período podem ensejar aprendizagens, a vida na pandemia se faz de acontecimentos que devem ser trazidos para as construções curriculares que acontecem no chão da escola, mesmo que agora em espaços virtuais. Não se trata de cumprir currículos ou repor saberes escolares, mas de fazer do processo vivido durante a pandemia uma oportunidade de troca de saberes e experiências, momentos de fortalecimento de laços pessoais e sociais. Momentos de resistência criativa e solidariedade com as comunidades escolares.

Nesse aspecto, são necessárias políticas de inclusão digital específicas para os estudantes que necessitem, com fornecimento de equipamentos e acesso à internet para atividades educacionais. Reabrir e ocupar os espaços institucionais da educação implica, enfim, questionar se, como sociedade, estamos satisfeitos/as com o modelo de escola que concebemos, construímos e reproduzimos ou se, ao contrário, vale a pena lutar para rever o que é a escola e, com isso, recriar a educação”.

Há um ponto levantado pelo manifesto que me parece crucial para botar rumo no debate: não há mesmo retorno possível. Se a escola, essa que é feita de gente viva e diversa, for reaberta nos parâmetros de antes da pandemia, como mero depósito dos filhos dos mais pobres, para que os pais possam exercer seus trabalhos precarizados e agora também se arriscarem a ser contaminados; ou então como commoditybusiness, instrumento de reprodução de privilégios, no caso das escolas privadas de elite, mais uma oportunidade histórica será perdida.

Diante da tragédia, mais uma vez teremos escolhido o pior como sociedade. Já se a escola for investida, com investimento de recursos e com investimento de tempo de todos os envolvidos, convertida em prioridade real, ela estará aberta mesmo que os prédios fiquem fechados (ou voltem a ser fechados) até os profissionais de educação serem vacinados e as autoridades sociossanitárias tiverem convicção de que é seguro abri-los.

O que as crianças podem ensinar aos adultos?

O menino que abre esse texto fez dos bonecos de pelúcia suas crianças imaginárias. Ao observarem sua fabulação, os pais procuraram outros pais da escola para criar um encontro regular pelas telas do game Minecraft. Ao se juntarem, o que as crianças construíram? Uma escola. Deram a ela o mesmo nome da sua. Um dia resolveram jogar também com monstros. Antes, porém, garantiram a fortificação da escola para que ela pudesse sobreviver ao ataque.

Essa cena não expressa apenas amor, mas cuidado. Crianças confinadas se juntando para cuidar da escola da forma que lhes é possível. E, cuidando da escola, cuidam uns dos outros, porque juntos, apesar do isolamento físico.

Essa história tão bonita e tão simbólica foi contada pela psicanalista Luciana Pires. Especialista em psicanálise com crianças e adolescentes pela Tavistock Clinic, de Londres, e doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, ela tem refletido sobre as brincadeiras da quarentena. Instigada pelas construções que seus pacientes vêm produzindo durante o isolamento (e pelo quanto ela tem aprendido com eles), Luciana Pires e o Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientae fizeram um chamado para que famílias, escolas e profissionais de saúde relatassem o que ela tem chamado de “brincário”.

As crianças inventaram mundos e se inventaram no mundo nessa pandemia. “No caminho da fantasia de movimentos, uma vez que estamos privados deles, um garoto de cinco anos passou dias falando e desenhando sobre o movimento da água nos canos da casa e finalmente para a rua. E, na mais franca brincadeira de realização de desejo, outro menino construiu um controle remoto de um drone com o qual viaja para todos os lugares que deseja”, conta a psicanalista. Outro garoto, esse com seis anos, passou os primeiros dias da quarentena construindo e brincando de Arca de Noé. Sonhava em salvar a todos do “dilúvio” que se apresentava, agora com o nome de covid-19.

O mais surpreendente é um fenômeno que une crianças de partes muito diferentes do planeta: elas estão criando casa dentro de casa. Tendas e barracas de todos os tipos, com os materiais disponíveis, de lençóis a pedaços de tecido, de caixas a sobras de madeira, embaixo de mesas, no canto de sofás, na esquina do corredor, em lugares possíveis e também impossíveis, meninas e meninos nunca construíram tanto como nessa pandemia. Um dos garotos inventou uma cabana no meio da sala e de lá pede tele-entrega. Logo, sentiu necessidade de aumentar a casa e construiu mais um cômodo, expandindo seu mundo dentro do mundo.

O que as crianças fazem lá dentro? “Nossas casas não são mais as mesmas e definitivamente ganharam novos contornos e sentidos. As casas precisam então ser repensadas e re-representadas a partir das brincadeiras”, diz a psicanalista. “Essas cabanas também permitem que se crie um ‘fora da casa’, um campo externo. Delimitam um espaço de dentro, deixando o resto de fora. Pois não só nos entocamos, mas passamos a fazer o que fazíamos fora de casa dentro: vamos à escola, trabalhamos, temos consultas médicas etc. Talvez as cabanas queiram recriar o íntimo dos lares no meio da casa invadida. Agora que a casa virou o mundo, a criança precisa ter uma casa no mundo.”

Como na fábula do menino que apontava que o rei estava nu, foram também as crianças que, nessa pandemia, apontaram que aquilo que os adultos chamavam de “normal” era bem precário. Num mundo que priorizou o indivíduo, nunca a rede fez tanta falta. De repente, a precariedade das relações e do cotidiano se revelou em todas as suas ausências. Como diz um ditado africano, para educar uma criança é preciso toda uma aldeia. Não basta a família, é preciso a escola. Não basta a escola, é preciso a comunidade. Só se faz gente junto com gente.

Também foram as crianças que apontaram que não seria possível rearranjar o mundo dentro de casa como se algo da dimensão do acontecimento de uma pandemia não exigisse lidar com as perdas e recriar o mundo. Com as suas possibilidades, juntando restos e retalhos do que vão encontrando, arrebanhando os bonecos, as crianças foram as primeiras a fazer a sua parte, inventando um mundo dentro da casa que virou mundo para serem capazes de viver com dentro e com fora. Agora, precisamos escutá-las, aprender com elas e criar um mundo em que elas possam viver. Porque, como diz uma adolescente chamada Greta Thunberg, “nossa casa está em chamas”. De dentro de suas cabanas fortificadas, o que as crianças nos perguntam é: e agora, o que vocês vão fazer?

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Luiz Werneck Vianna: As velas pandas de Ulisses Guimarães

A posse de Joe Biden na presidência dos EUA, a rigor uma solenidade cívico-religiosa concebida para reanimar as crenças nos temas e ideais fundadores da sua sociedade, ao menos por ora afasta em todos os quadrantes os riscos para a segurança comum representados pelo que foi o governo Trump em sua versão degradada do nacional-populismo. De fato, há o que comemorar, embora não se possa desconsiderar que Trump, mesmo que amplamente derrotado nas urnas, obteve mais de 70 milhões de votos e uma legião de fanáticos seguidores, uma parte deles organizados em milícias, vistas a olho nu na tentativa insurrecional de 6 de janeiro de barrar a certificação eleitoral da vitória de Biden. E, para eles, deixou suas últimas palavras de que por algum modo, voltaria.

O augúrio fúnebre tem como ser evitado, as forças democráticas foram testadas em sua vitoriosa campanha eleitoral em que deram provas de sabedoria política, agora confirmada pela decisão de apresentar o impeachment ao senado, e sobretudo pelas medidas de impacto já efetivadas nas frentes sanitária e econômica com que se espera diluir a influência do trumpismo. O processo do impeachment, como se sabe, pode culminar com a interdição definitiva de Trump da vida política. Caso bem-sucedidas, tais intervenções benfazejas põem por terra o projeto de arregimentar em novo partido com os salvados do trumpismo, o Patriota, de óbvia má índole fascista.

Nada disso é estranho à nossa sorte. Uma das marcas do trumpismo esteve na sua tentativa de criar uma internacional reacionária, missão confiada ao ex-estrategista do governo Trump, Steve Bannon, perdoado do crime de fraude num dos seus últimos atos, que conta entre seus aderentes personagens do governo Bolsonaro e da sua família. Tal como a  Hidra de Lerna, o trumpismo tem várias cabeças e somente pode ser exterminada com a amputação delas cauterizadas as suas feridas, sem o que renascem como na mitologia. O governo Bolsonaro é um sobrevivente da debacle do trumpismo nesta nossa América Latina que reinicia seu encontro com sua história de luta por liberdades. Barrar seu caminho importa, além de outros motivos relevantes impedir que nosso país se torne um reduto da central reacionária do trumpismo nesse sub-continente.

Na hora da partida para essa navegação difícil que temos que começar mesmo que ainda incertos os resultados pela miséria da nossa política, ouvem-se as lamúrias do Velho do Restelo para que recolhamos as velas e nos conformemos ao que aí está, por que tudo pode piorar.  Mas como as velas já se enfumam, como as queria Ulisses Guimarães, e de toda parte se ouvem os brados de basta, fora já? Bem mais arriscado do que o da hora presente foi o cenário do movimento das anti-candidaturas de Ulisses e Nelson Carneiro, apenas uma manifestação de força moral, com que se abriu, mais tarde, a via para o movimento em favor das diretas já que desaguou na derrota do regime militar em 1985.

Desde Maquiavel, que estudou as grandes batalhas da Antiguidade em Arte da Guerra, ecoam as lições de que os resultados das batalhas não se podem prever de antemão, eles se decidem no fragor da luta. No nosso caso, o teatro de operações que se tem pela frente, bem distante de desfavorável, apresenta-se como propício, quer pela conjuntura internacional, quer pela catástrofe sanitária a que estamos expostos pelo governo Bolsonaro. A rota do impeachment recém-descoberta como recurso de legitima defesa da sociedade ganha o caminho das ruas com as carreatas que proliferam e o adensamento da opinião pública em seu favor. Diante da miséria política do país, entretanto, nada garante a ela um final feliz.

As longas marchas começam com um pequeno passo. Logo ali, na próxima esquina, nos espera a próxima sucessão presidencial. A envergadura da frente política que ora se ensaia, com o movimento em favor do impeachment consiste no primeiro e decisivo teste que ela enfrentará naquele momento de importância capital. Quanto mais ela se ampliar politicamente, e mais se enraizar capilarmente na vida social em ações de protesto e de recusa a um governo maligno nas lutas imediatas atuais, maiores serão suas possibilidades de dar um fim – se não conseguir antes por outros meios –  ao pesadelo atual. É verdade que nos faltam Ulisses Guimarães e Tancredo Neves, mas contamos com suas histórias exemplares que bem poderiam emular o que nos sobrou.

Mas, entre tantas faltas a lastimar, não se pode deixar de contar com as novas presenças que nos vêm da vida do associativismo popular, dos profissionais e intelectuais das atividades da saúde, da nova safra de artistas populares e dos que se dedicam com brilho ao colunismo na imprensa e aos comentaristas políticos na TV e no rádio. Nesse rol igualmente devem ser mencionados os parlamentares e os partidos políticos que com sua resistência ao autoritarismo honram seus mandatos, sobretudo os ministros do STF que preservam a integridade da nossa Constituição. São eles que abastecem de oxigênio uma sociedade exangue por falta de ar.

Aos poucos se desvanecem as ameaças que nos prometiam a destruição da obra da nossa civilização, ainda incompleta e precária como se sabe, mas que aos trancos e barrancos teimávamos edificar. A resistência a este novo autoritarismo em nosso país, em meio a uma cruel pandemia, mostrou, mais uma vez, ser eficaz. Tudo somado nesses tempos sombrios, pode-se constatar que, dos salvados do incêndio com que pretendiam nos destruir, salvou-se a nossa alma da sanha de Bolsonaro, Paulo Guedes, Ernesto Araújo et caterva. Não é pouco para quem vivia como nós sob a ameaça de extinção dos nossos valores e das nossas melhores tradições.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio  


Monica de Bolle: Virologia Econômica - Os riscos que as mutações do coronavírus oferecem à economia

Não há economia sem saúde. O choque econômico proveniente de uma variante mais transmissível e traiçoeira do SARS-CoV-2 seria catastrófico para o Brasil

Que a saúde e a economia não são separáveis já deveria estar claro para todos depois de quase um ano de pandemia. Mas o que a virologia tem a ver com isso? O que essa área tão complexa e repleta de minúcias sobre redes de sinalização moleculares, receptores e proteínas, mutações e vigilância genômica tem a ver com a economia? Por que, mais do que nunca, é preciso entender essas relações com urgência?

Ao longo de 2020 fomos testemunhas do estrago causado por uma fita de RNA. A atividade econômica mundo afora entrou em colapso com os cordões sanitários da primeira onda pandêmica. Com seu colapso, a taxa de desemprego disparou, centenas de milhões de pessoas perderam fontes de renda. No Brasil, o PIB registrou queda de mais de 10% no segundo trimestre e as marcas da desigualdade e da pobreza, que sempre caracterizaram o país, ficaram ainda mais visíveis. Na época, grupos da sociedade se mobilizaram junto ao Congresso para erguer o auxílio emergencial, a única política pública que o Brasil desenhou para dar apoio direcionado à economia durante a primeira onda pandêmica. A medida foi possível após a emissão de Decreto de Calamidade, que permitiu a suspensão do teto de gastos durante sua vigência. O decreto expirou em 31 de dezembro de 2020, e com ele se foi o auxílio emergencial. O momento não poderia ter sido mais infeliz, uma vez que, ao longo de novembro e dezembro do ano passado, já se constatava a chegada de uma nova onda da covid-19.

Houve outro fato marcante nos últimos meses de 2020. O vírus, que até então acumulava cerca de duas mutações relevantes por mês, começou a mutar mais. Mutações são variação genéticas aleatórias que ocorrem quando o vírus se replica. Mutações relevantes são aquelas que podem conferir ao vírus certas vantagens, como maior transmissibilidade, ou mesmo capacidade de evadir nosso sistema imune com mais facilidade. Evasão imune é sempre uma preocupação, pois não só eleva os riscos de reinfecção como faz com que o vírus assuma características mais adaptadas aos novos hospedeiros: no caso, todos nós. Em novembro começaram a sair as primeiras notícias de que uma variante nova do SARS-CoV-2, o vírus causador da covid-19, estava circulando no Reino Unido. Logo em seguida, soubemos que outra nova variante havia sido identificada na África do Sul. Por fim, há poucas semanas, veio à tona a crise humanitária em Manaus, associada a uma terceira nova variante. Variantes são versões do SARS-CoV-2 que descendem de um ancestral, mas que dele são distintas o suficiente para chamar a atenção da comunidade científica. As três novas variantes, a do Reino Unido, a da África do Sul e a de Manaus, não compartilham o mesmo ancestral e pertencem a linhagens diferentes. Mas o que realmente assusta nessas três variantes é que, ao contrário dos padrões que vinham sendo observados, elas acumularam não duas, mas mais de uma dezena de mutações relevantes, sendo algumas semelhantes, outras distintas.

A variante identificada em Manaus contém uma mutação que torna o vírus mais transmissível. Essa mesma mutação também foi sequenciada na variante do Reino Unido. Além dessa, a variante de Manaus ainda apresenta uma mutação contida na variante da África do Sul e que pode estar relacionada à evasão imune. Portanto, há razões para crer que a variante de Manaus pode ser mais perigosa do que a do Reino Unido e a da África do Sul. Contudo, essa possibilidade, a ser investigada, tem sido tratada de forma circunscrita aos meios científicos e não tem merecido a mesma atenção pública que teve a variante do Reino Unido antes mesmo que se tivesse certeza da sua maior transmissibilidade. Não a contemplar é um perigo por diversas razões.

Se a variante de Manaus for não somente mais transmissível, como também mais capaz de evadir o sistema imune, a população suscetível inclui não apenas aqueles que não tiveram covid-19, mas, potencialmente, todos aqueles que já pegaram a doença. Ou seja, existe a possibilidade de que toda a população seja novamente vulnerável ao vírus, como era no início de 2020. São importantes as implicações econômicas dessa hipótese, pois não só teríamos de adotar novas medidas sanitárias extremamente restritivas, como teríamos de fazê-lo em momento de grande fragilidade econômica. A taxa de desemprego no Brasil permanece muito elevada, sobretudo quando se consideram as dezenas de milhões de pessoas que desistiram de procurar trabalho porque não acreditam mais na possibilidade de encontrá-lo. Aqueles que puderam sobreviver graças ao auxílio emergencial já não podem contar com o benefício. Como não temos mais decreto de calamidade, o teto de gastos voltou a vigorar, estrangulando o Orçamento da Saúde. Os recursos disponíveis para o SUS em 2021 são inferiores aos valores de 2020 em cerca de 35 bilhões de reais.

Por tudo isso, o choque econômico proveniente de uma variante mais transmissível e traiçoeira do SARS-CoV-2 seria catastrófico para o país. Além de mais um ano de fortíssima recessão, sofreríamos todas as suas consequências nefastas, agora magnificadas: o aumento da pobreza extrema, da fome, da desigualdade.

Mas e as vacinas? Por ora, não há evidências de que essas novas variantes, inclua-se na lista a de Manaus, afetam a proteção conferida pelos imunizantes recém-aprovados para uso emergencial pela Anvisa. No entanto, nesse instante a constatação traz pouco alento, já que sequer começamos a campanha ampla de vacinação. A razão principal é que o Governo teve dificuldades para adquirir tanto as doses da vacina da AstraZeneca/Oxford que recebera da Índia quanto os insumos importados da China para a fabricação de mais doses da CoronaVac pelo Instituto Butantan. Nesse ínterim, corremos o risco de que surjam ainda outras variantes, pois, com a pandemia fora de controle no Brasil, abundam oportunidades de mutações mais adaptadas. Para frear o vírus precisaríamos pensar em medidas para interromper as cadeias de transmissão. Não o estamos fazendo, e, mesmo que estivéssemos, precisaríamos que as eventuais medidas viessem acompanhadas de outras destinadas a proteger a capacidade de subsistência das pessoas e a economia.

Não há economia sem saúde. Também não há entendimento possível do o cenário econômico sem prestar atenção no que a virologia pode nos ensinar.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins e Pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics.


Cacá Diegues: O signo da esperança

Biden anunciava uma volta à normalidade democrática que sossegou nossos corações, como o triunfo dos Aliados

Uma irmã de minha avó, a quem chamávamos de tia Sinhazinha, foi enfermeira militar na Força Expedicionária Brasileira (FEB), lutando nos campos da Itália durante a Guerra no final dos anos 1940. Essa minha tia-avó, a tenente Olímpia Camerino, cuidava com afeto dos filhos de suas sobrinhas cada vez que a visitávamos depois de seu retorno vitorioso ao Brasil. Tia Sinhazinha nos contava então, com modéstia e simplicidade, histórias passadas durante a guerra que me fascinavam. Numa delas, cercada numa colina italiana por força inimiga muito mais numerosa, nossa tropa foi salva por um general esperto que mandou espalhar que os inimigos estavam doidos para se render, por pura exaustão. Como estavam sendo informados de que os italianos não aguentavam mais e queriam se entregar, nossos rapazes multiplicaram a valentia e derrotaram o bando de Mussolini que, ainda que majoritário, acabou se rendendo.

Me lembrei de tia Sinhazinha e de suas histórias durante a emocionante posse de Joe Biden, o líder sereno, e Kamala Harris, a vice afro-asiática, no Capitólio norte-americano. Depois de quatro anos de voluntarismo, caos autoritário e suplício trumpista, o novo presidente anunciava uma volta à normalidade democrática que sossegou nossos corações, como o triunfo dos Aliados há mais de 75 anos. Em 1945, a vitória militar era sobre a Alemanha, a Itália e o Japão, o famigerado Eixo. Mas se tratava sobretudo do fim do nazismo, que ameaçava o mundo com sua barbárie organizada e desumana, derrotado por ideais de fraternidade sem preço, liberdade individual e eventual igualdade. E pelo progresso que o mundo haveria de conhecer a partir dali.

Os Estados Unidos eram nosso jovem herói nessa saga, o país que acendia esse sol em nossas vidas, o responsável por essa luz que trouxe com ela os brinquedos e os objetos domésticos de plástico, as máquinas movidas a combustível fóssil, uma cultura universal imposta por filmes de cinema e música popular que ignorava o particular de cada um de nós. Nascia uma visão nada cínica da política, a fantasiosa esperança numa república democrática liberal, formulada e fundada quando nada do tipo existia no mundo e, dois séculos depois, ainda era original. O alvorecer era nosso.

Depois tudo isso foi passando, nossos sonhos foram sendo esmagados por uma Guerra Fria polarizada e triste, em que o Brasil também se dividiu radicalmente. Acho que tínhamos saudades de cowboys de verdade e bailarinas de mentira, mas era fraqueza revelar. Até que Joe Biden nos acorda para um novo sonho, a anunciar que nunca mais haverá supremacia branca, racismo e desigualdade de qualquer espécie, que nunca mais ninguém será discriminado por orientação sexual e identidade de gênero, nunca mais serão deportadas crianças imigrantes ou seus pais, nunca mais tirania do dinheiro e pandemia com mortes que não provam nada. (Como escreveu outro dia nosso Roberto DaMatta, “é doloroso ver a morte, que devia ser uma exceção, se tornar pavorosa rotina”.) Este é o fim da guerra incivil, “the UnCivil War” — a preciosa democracia, como sempre a sonhamos, prevaleceu.

“Política não precisa ser fogo que tudo destrói”, disse Biden no discurso de posse, “não precisa levar à desunião”. Ele jurou defender a verdade e derrotar a mentira (segundo analista de respeito, parece que Donald Trump, em 4 anos, difundiu cerca de 30 mil mentiras). “Nossa história tem sido uma luta incessante entre o ideal americano de que todos somos criados iguais e a feia realidade do racismo, do nativismo, do medo e da demonização que há muito tempo nos divide. (...) Vamos abrir nossas almas em vez de endurecer nossos corações.” E completa, quase épico: “Uma turba selvagem tentou usar a violência para silenciar a vontade do povo. Não aconteceu, nunca vai acontecer. Nem hoje, nem amanhã, nem nunca. Nunca!”.

Jornalista perguntou à poeta afro-americana Amanda Gorman, 22 anos, se alguém da equipe de Biden a havia orientado sobre o poema que escrevera e que leria durante a cerimônia de posse. Ela disse que a única indicação que recebera tinha sido não tratar os adversários políticos com ódio. Amanda leu durante a posse versos em que dizia: “Onde podemos achar luz nesta sombra que não acaba nunca?”. Sem conhecer sua pergunta, o presidente eleito a respondeu com um discurso cujos temas são a esperança, a união e o esforço pela democracia.

O que pensar de Joe Biden para o futuro do mundo e dessa esperança que a política americana atira agora sobre nós, depois de tantos anos de desilusões?


Fernando Gabeira: O Plano B somos nós

Vamos esperar que Bolsonaro se ilumine?

Para o Brasil escapar de tragédias maiores, precisa vacinar 150 milhões de pessoas no prazo mais rápido possível.

O governo é incapaz de realizar esse plano de vacinação. Faltam vontade, competência e habilidade diplomática. Qual é a saída?

Derrubar o governo não basta. É preciso também tentar, simultaneamente, salvar vidas, pois, cada vez mais, elas estão em jogo.

Se todos compreendessem a urgência dessa tarefa, veriam que, na realidade, podemos contar com o próprio esforço. Bolsonaro e Augusto Aras nos ameaçam com um golpe, é tudo que sabem fazer. São tão estúpidos que nem percebem o mundo que os envolve.

E é sobre o mundo que precisamos conversar. As relações internacionais não podem ser monopólio de um pequeno grupo de fanáticos. Precisamos, de todas maneiras, romper o isolamento do país e deixar dentro de suas linhas estreitas apenas o governo e seus seguidores.

Precisamos de vacina num momento em que não há abundância: grande parte já foi comprada pelos países ricos.

Percebo que os governadores se movem mas encontram dificuldades. Para um só estado, se colocar no mercado internacional é difícil. Mas talvez não seja tanto para um consórcio de estados. A Bahia e outros estados do Nordeste poderiam tentar fechar negócio com a Sputnik V. Não há autorização da Anvisa? Ela é muito parecida com a de Oxford, que já foi analisada. E já foi aprovada em muitos países.

A Argentina está capacitada a produzir a vacina Oxford-AstraZeneca. Vai exportar para a América do Sul, menos para o Brasil. Mas o Rio Grande do Sul não poderia estabelecer uma relação com o governo argentino e abrir uma exceção? Nesse movimento, poderia carregar também Santa Catarina.

O governo brasileiro proibiu empresas de comprar vacinas. Isso é inconstitucional. A obrigação do governo é fornecer vacinas gratuitas para todos e não se meter em iniciativas particulares.

Um pool de empresas poderia negociar com a Pfizer, a Moderna e a Janssen, que está por vir, e, além de vacinar seus funcionários, doar grandes partidas para a sociedade.

Naturalmente que um plano nacional de vacinação é mais eficaz. Mas o governo não consegue comprar tudo. A iniciativa passa para quem tiver as vacinas nas mãos; ninguém conseguirá evitar que os trabalhadores da saúde a apliquem, ainda que sejam vistos pelos burocratas como desobedientes.

É possível dizer que talvez seja tarde demais. A ineficácia do governo e seus preconceitos contra a China foram longe.

Mas, ainda assim, é possível estabelecer um diálogo com a China fora do âmbito do governo.

O problema é que ficamos dependentes de China e Índia. Juntas elas têm quase 3 bilhões de habitantes. Só na primeira fase, a Índia quer vacinar 300 milhões. A China pretende vacinar 50 milhões até o Ano Novo Lunar, que cai em 14 de fevereiro. É muita demanda interna.

Um movimento nacional pela vacina não seria mais apenas para pressionar Bolsonaro. Ele já é uma carta fora do baralho, na medida em que fracassou parcialmente na mais importante tarefa nacional.

A campanha publicitária pela vacinação já está sendo feita por artistas independentes. Se logramos, de alguma forma, negociar a vacina, talvez possamos romper com esse impasse doloroso.

É possível argumentar que talvez seja tarde. O ideal era ter compreendido isso antes, mas seria difícil nos convencer quando o fracasso do governo ainda não era nítido.

O vírus não vai embora. Pelo contrario, ele se adapta à realidade num ritmo mais rápido do que muitas cabeças humanas. Enquanto tivermos a pandemia, a vacina sera a única saída estratégica. Não há escolha.

Vamos esperar que Bolsonaro se ilumine? Ou que Ernesto Araújo torne-se simpático ao governo chinês ou mesmo ao americano?

Tanto na sua política internacional quanto nos conselhos cotidianos para romper o isolamento, ignorar máscaras, tomar hidroxicloroquina, eles nos levam à autodestruição.

Diante da grande tarefa, o governo é incapaz. Somos o plano B, se a sociedade não ocupar também esse espaço, travaremos uma estéril batalha verbal.


Elena Landau: Bolsonaro falou, Bolsonaro avisou

O que esperamos para impedir o avanço do mal que o presidente representa?

Bolsonaro é um mentiroso contumaz. Ele sabe que mente quando diz que o STF o impediu de agir na pandemia. Mente também quando compara a covid-19 a uma gripezinha. Mente quando fala que defende o meio ambiente. Mente quando alega que houve fraudes nas eleições de 2018. Mente quando nega usar órgãos do governo para proteger seu filho. Mente o tempo todo, sem enrubescer.

A mentira contagiou o ministro da Saúde. Os dois tiveram que engolir a vacina do Doria. Irritados, inventaram um apoio financeiro ao Butantan – que não existiu. O governo boicotou como pôde. Em ato falho, o presidente chegou a lamentar a aprovação da Anvisa ao falar: “Apesar da vacina”, em uma entrevista.

Dizem até que apagou de suas contas a defesa da propaganda da cloroquina. Eu não o sigo. Mas os prints não mentem, são eternos.

Há método na sua suposta loucura, burrice ou negacionismo. Tratar seus atos como coisa de maluco é tudo que ele quer. Como no Brasil não temos a emenda 25 para apear incapazes do comando, a vida segue.

Ele mentiu na campanha quando disse que não iria tentar a reeleição. Desde o primeiro dia de seu mandato, ela é sua obsessão. Já avisou que se perder em 2022 vai melar o jogo. O que aconteceu no Capitólio há duas semanas pode ser tentado aqui em maior escala. A militarização de seu governo, os privilégios concedidos aos policiais e militares, o desmonte dos mecanismos de controle de armas e munições são sinais de sua intenção.

Não consegue esconder sua irritação com o sucesso do Butantan e o fiasco da gestão de seu governo na compra e distribuição de vacina. E, previsivelmente, subiu o tom dizendo que as Forças Armadas é que decidem se temos democracia ou não. A sorte dos brasileiros é que, se depender da competência dos “pazuellos” em sua volta, o golpe fracassará por questões de logística.

Diante de tudo isso, é inexplicável a passividade dos nossos parlamentares. Maia comandou a pauta reformista, a começar pela mudança na Previdência, e sua gestão será marcada positivamente por isso. Mas também será lembrada pelo engavetamento de dezenas de pedidos de impedimento de Bolsonaro. Notas de repúdio não adiantaram nada. Às vésperas de entregar o cargo, é tarde demais para espernear.

Crime de responsabilidade é o que não falta. É só escolher. Quando o vírus começou a se espalhar no Brasil, muitas vozes se colocaram contra o impeachment porque poderia agravar a crise sanitária. Pois é, hoje são mais de 210 mil mortes, que continuam crescendo. Nem os melhores modelos estatísticos conseguem fazer prognósticos, porque a incompetência do ministro da Saúde e de seu chefe é fora de qualquer padrão.

No futuro, quando a história cobrar as responsabilidades, Pazuello, como Eichmann, vai alegar que estava só obedecendo ordens. Bolsonaro é um simples capitão reformado, quando deveria ter sido expulso do Exército, mas, como presidente da República, é o comandante em chefe das Forças Armadas.

Afastar o presidente é a mais importante ação de combate à pandemia e redução de mortes potenciais, sem contar os riscos à democracia.

Dizer que impeachment é ato político deixa nossos deputados em uma zona de conforto. Muitos usam Collor e Dilma para justificar sua inação. Só foram afastados quando perderam apoio. Mas quem retira esse apoio senão o próprio Congresso? Não temos certeza do número de parlamentares favoráveis à abertura do processo de afastamento. Indiferente a isso, as redes sociais iniciaram a contagem de votos e começam a pressionar seus deputados. Mesmo sem passeatas, podemos nos manifestar.

Bom lembrar também que não afastar um presidente por medo das ruas, pode torná-lo mais ousado. Lula foi reeleito após o Mensalão, e terminamos com o Petrolão, escândalo muito maior.

Não é admissível que um presidente não seja sequer cobrado por suas atitudes. Bolsonaro escapou impune de atos contra segurança nacional, ameaças de morte a presidentes, elogios à tortura e crimes de homofobia e misoginia. Se acha invulnerável. Sem limite, vai radicalizando. Com sua campanha contra vacina e uso de máscaras, e o estímulo à aglomeração, comete crime continuado de responsabilidade contra a saúde dos brasileiros.

Penso em meu pai neste momento. Sou filha de pai judeu e mãe católica. Meu pai, ateu, nem sequer fez seu bar mitzvah. O judaísmo para ele não tinha relação com religião. Quando dei a ele o livro da Hannah Arendt, sobre o julgamento de Eichmann, vi meu pai se transformar. Pela culpa de ter conseguido fugir da Romênia, cobrava internamente de seus parentes não terem ficado para lutar contra o nazismo, de terem visto o antissemitismo crescer sem reagir, pensando que “não vai acontecer comigo” ou “alguém vai parar esse monstro”.

Pois é como me sinto agora. O que estamos esperando para impedir o avanço do mal que Bolsonaro representa.

*ECONOMISTA E ADVOGADA 


Juan Arias: O desafio arrogante de Bolsonaro, que acredita ser blindado por Deus

Bolsonaro, em vez de concentrar todas as suas energias em tirar da crise um país que “está quebrado”, como ele diz com sadismo, tenta apenas se blindar no poder para se reeleger

A dor dos asfixiados em Manaus por falta de oxigênio, uma verdadeira tragédia nacional, despertou o “Fora, Bolsonaro!” e fez os panelaços de protesto soarem mais fortes do que nunca. Voltou a surgir assim a possibilidade de um impeachment para arrancar Bolsonaro do poder. Minhas colegas Giovanna Oliveira, Carla Jiménez e Flavia Marreiro nos contaram muito bem em seus textos neste jornal.

Sem dúvida é um primeiro passo para a saída do presidente, que demonstrou, como sempre, sua frieza e indiferença perante a morte. Um presidente que nem se dignou a ir ao lugar da tragédia para confortar as famílias que estão vendo seus entes queridos morrer por asfixia ―a pior das mortes, segundo os médicos.

E no entanto Bolsonaro, que se revelou incapaz de governar um país com a envergadura e a complexidade do Brasil, em vez de concentrar todas as suas energias em tirar da crise um país que “está quebrado”, como ele diz com sadismo, tenta apenas se blindar no poder para se reeleger.

Uma blindagem em várias esferas. A mais arrogante é quando ele afirma: “Só Deus me tira daqui.” E, se por acaso Deus se esquecer dele, buscará outras blindagens mais humanas. Primeiro a dos militares, cuja presença ele garantiu no Governo e em todas as instituições do Estado. É verdade que muitos deles já começam a manifestar um mal-estar em relação ao chefe. E é verdade que não permitiriam que ele tentasse um golpe. Mas esses militares são um escudo para Bolsonaro, pois é a primeira vez na democracia que um presidente lhes dá tanto protagonismo dentro do Governo.

Até mesmo seu vice, o general Mourão, o mais crítico dos militares do Planalto, acaba de excluir a possibilidade de um impeachment ao presidente. Mais do que isso: Mourão avisou que nas próximas eleições Bolsonaro não terá um oponente capaz de vencê-lo nas urnas.

Os militares poderiam ter saído antes do Governo, quando começaram a ver a forma como o presidente tratava até mesmo os generais, além de sua incapacidade de governar. Alguns deixaram o cargo, mas agora é tarde demais. Abandonar o Governo significaria uma confissão de derrota, algo que nunca farão.

Outra blindagem do presidente, talvez ainda mais forte que a do Exército, é a da corporação das polícias militares ―as quais ele está cobrindo de privilégios. Com a polícia, Bolsonaro garante também o apoio das milícias― com quem nutre uma relação umbilical e familiar. Quem assassinou Marielle?

Não só isso. Bolsonaro se sente blindado pelas elites empresariais, que continuam mantendo a miragem do falso apoio do mandatário a uma economia liberal. Isso apesar de que, em seus dois anos de exercício, ele deu provas contundentes do contrário. Essas elites empresariais, juntamente com as classes altas, continuam defendendo o presidente com medo de que a esquerda volte ao poder.

Existe ainda a blindagem, talvez a mais forte, da tomada de poder da Câmara e do Senado, onde, salvo surpresa, Bolsonaro conseguirá impor seus candidatos à presidência. O homem que havia chegado para acabar com a velha política tornou-se o paradoxo de ser seu maior defensor.

Para o Congresso, é uma festa o fato de que Bolsonaro, que havia prometido uma luta implacável contra a corrupção, tenha se transformado no maior inimigo dos que querem continuar apostando na luta contra o saque do dinheiro do Estado por políticos que buscam manter suas campanhas milionárias e enriquecer suas famílias. Bolsonaro tem interesses espúrios em defesa da sua, envolvida também em supostos crimes de corrupção. Com um procurador-geral da República ajoelhado aos seus pés e um STF que parece amedrontado, Bolsonaro se sente blindado.

Some-se a isso o fato de que o presidente, apesar de ter perdido pelo caminho muitos dos que nele votaram e hoje se sentem traídos, ainda conta com 30% de fidelíssimos seguidores, justamente os mais fanáticos e violentos, capazes de se organizar e até de lutar com armas para defender o mito, como ocorreu com Trump nos Estados Unidos. Ao contrário da oposição, que hoje parece incapaz de organizar um protesto nacional.

Por fim, Bolsonaro conta hoje com uma blindagem especial: a da grande massa de evangélicos e seus pastores. É um escudo seguro e forte porque é feito em nome de Deus. Bolsonaro se viu blindado ante um país com mais de 80% de fiéis quando criou seu lema “Deus acima de todos”.

Com todas essas proteções, poder-se-ia dizer que o presidente negacionista e insensível diante da morte pode continuar tranquilo, governando ou desgovernando, e que terá uma reeleição garantida. Mas na política, assim como na vida, nada é imutável e as surpresas são sempre possíveis. Acabamos de ver isso com Trump, o ídolo e amigo de toda a família Bolsonaro, que com sua derrota e sua possível inabilitação política deixou órfão e nu não apenas o mandatário brasileiro, mas também sua política exterior, comandada por um ministro que afirmou, logo após chegar ao Itamaraty, que “Trump e Bolsonaro foram escolhidos por Deus para salvar o Ocidente”.

Diz o ditado que “Deus escreve certo por linhas tortas”. Quem sabe esse Deus, apoderado no Brasil por todos os poderes fáticos, que o roubaram dos pobres e desfavorecidos, ainda dê uma surpresa.

Se Bolsonaro se escudar em Deus para tentar se manter no poder, é possível que acabe sendo abandonado por esse Deus, ao qual tenta monopolizar e instrumentalizar para seus objetivos espúrios. Se esse Deus reverenciado por Bolsonaro existisse, seria preciso buscá-lo hoje, mais que no centro do poder, no leito dos que estão morrendo asfixiados nos hospitais de Manaus por falta de oxigênio que o Governo lhes negou.

Dito em linguagem laica: talvez para o capitão belicista, que conhece e ama as armas como poucos, o tiro saia pela culatra. Ou, como afirmou a escritora e acadêmica Ana Maria Machado em sua coluna de O Globo: “Chega uma hora em que os pés de barro não sustentam mais ídolos, mitos e mentiras.”

*Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como MadalenaJesus esse Grande DesconhecidoJosé Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.


Jamil Chade: Vacina chega após arrogância e erros homéricos de uma diplomacia limitada

Brasil deixou de aderir inicialmente a uma coalizão global pelas vacinas em abril, que daria prioridade aos brasileiros com vacinas. Optou por uma política que minava a confiança na Coronavac e investiu num pacote negacionista que explica o colapso de Manaus e a dor de milhares de famílias

Aqui jaz os restos conceituais da política externa do governo de Jair Bolsonaro, responsável por isolar o país do grupo das grandes democracias do mundo e destruir a reputação de uma nação. Na lápide da diplomacia do Brasil, essa bem poderia ser a descrição para quem um dia for visitar o memorial dedicado às ideias, projetos e políticas que não sobreviveram à pandemia.

Entre 2020 e 2021, o Brasil foi vítima de um vírus que desconhecia ideologia, a noção de soberania e zombava de fronteiras. Mas só nas últimas semanas, o Governo descobriu que o país está de joelhos diante de uma pandemia que ganha força. Descobriu que está sem imunizante, sem oxigênio, sem plano e sem alternativas. Nada disso, porém, é culpa exclusiva do Sars-Cov-2. Depois de ter politizado a origem do vírus, a máscara e tratamentos, o governo tomou a decisão deliberada de repetir esse roteiro com o imunizante.

A demora e indefinição para começar a vacinação não foram acidentes de última hora. Trata-se de o resultado dramático de decisões políticas adotadas ao longo de meses. O primeiro passo nesse longo processo foi o de não aderir inicialmente ao projeto de uma coordenação global. Em abril de 2020, a OMS iniciou a construção de um sistema que permitiria uma distribuição equitativa da vacina pelo mundo. Uma espécie de fundo de vacinas que permitiria que, uma vez autorizados os produtos, a coalizão garantiria a distribuição do imunizante para todos os países, atendendo inicialmente a 20% das populações de cada nação.

A ideia era simples: se for deixado às forças do mercado ou ao sistema internacional, os países emergentes e pobres poderiam ficar para o fim da fila na vacinação. Exemplos já existiam disso. Quando o H1N1 se abateu sobre o mundo, países ricos foram os primeiros a imunizar suas populações. Quando a vacina chegou aos países pobres, o surto já tinha terminado.

Aids também trouxe uma história similar. Por anos, as economias mais pobres ficaram sem acesso aos tratamentos, enquanto o coquetel já era uma realidade nos EUA e Europa. Quando os remédios finalmente desembarcaram na África, os países mais pobres já somavam 9 milhões de mortes.

Na OMS, técnicos e diretores estavam convencidos de que, na atual pandemia, esses erros não poderiam se repetir. Mas a ordem no Itamaraty era a de não permitir que, durante a pandemia, os organismos internacionais ganhassem força ou fossem os locais de coordenação de uma resposta global. Mergulhado em seu combate contra o “globalismo” que destruiria as identidades nacionais, o Itamaraty ficou de fora de reuniões internacionais e, quando participou, fez questão de usar o palanque para rejeitar qualquer ideia que significasse um reconhecimento da necessidade de um plano global contra o vírus.

Naquele mês de abril de 2020, o Ministério da Saúde informaria que não faria parte da aliança, batizada de Covax. Sua explicação: temos outros acordos bilaterais sendo costurados. Nunca explicaram quais eram esses planos. Pressionado, porém, o Brasil acabou cedendo alguns meses depois e aderiu ao projeto, mas sem grande entusiasmo. Ao fazer seu pedido por vacinas no fundo global, solicitou o mínimo que poderia ser comprado: o equivalente a 10% de sua população. Pelas regras, países poderiam ter solicitado até 50% de sua população.

Hoje, sem apoio internacional suficiente, sem recursos e diante de governos pseudo-nacionalistas como o do Brasil, a aliança sofre para começar a distribuir vacinas. Em Genebra, não são poucos os negociadores que acreditam que um envolvimento mais direto do Brasil no projeto poderia ter convencido outros a aderir e teria transformado a aliança numa realidade imediata.

Se a via multilateral não interessava, a escolha por acordos bilaterais também se mostrou inapta e permeada por considerações ideológicas. Tentando frear a expansão da influência da China no mundo e mais preocupado em atacar o “comunavírus”, o Governo optou por promover uma campanha contra as vacinas chinesas. Diversas empresas, nos últimos meses, relataram como entregaram propostas ao Governo e se surpreenderam com respostas frias por parte do Planalto. No governo federal, a ideia era de apenas a vacina da AstraZeneca seria suficiente.

Enquanto isso, pelo mundo, países tomaram a decisão de evitar a todo custo colocar todas suas apostas em apenas uma ou dois fornecedores de vacinas. Em Bruxelas, por exemplo, a União Europeia fechou acordos com seis empresas diferentes. Nos EUA, mesmo o governo de Donald Trump decidiu estabelecer acordos com seis fornecedores.

Na Coreia do Sul, o país garantirá seu abastecimento com três empresas, além de desenvolver projetos de uma vacina nacional com outros 15 laboratórios nacionais. Na China, além de ter quatro vacinas já em negociações com a OMS para conseguir uma aprovação global, o governo fez questão de fechar um acordo com os alemães da BioNTech para um abastecimento extra de 100 milhões de doses. Outros também estão sendo negociados com empresas ocidentais.

Sim, existe uma profunda escassez de vacinas no mundo. Mas é justamente num momento de crise que a capacidade de um país navegar e recorrer a aliados se mostra vital. No caso do Brasil, a aposta se mostrou desastrosa. Quando precisou de ajuda, descobriu que seus parceiros nacionalistas eram, de fato, nacionalistas.

Num dos episódios mais reveladores do amadorismo do Itamaraty, o governo preparou um avião para ir buscar os insumos da Índia, necessários para a vacina da AstraZeneca. Com pires na mão, Bolsonaro escreveu ao primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. Mas, por enquanto, Nova Delhi rejeitou fazer a entrega ao Brasil, dando (obviamente) prioridade para o início de sua campanha nacional de vacinação.

Opções começam a ser buscadas em Israel e mesmo nos EUA. Mas, ao apagar das luzes do Governo Trump e o desembarque de Joe Biden, o Governo já começa a descobrir a tradução da palavra pária. As opções para pedir ajuda ainda são limitadas. Afinal, a chancelaria fez questão de dedicar parte de seu tempo, esforço e dinheiro dos contribuintes brasileiros nos últimos anos para ofender líderes estrangeiros e queimar pontes que tinham sido construídas por décadas com parceiros internacionais.

O mais irônico e trágico disso tudo é que a história poderia ter sido radicalmente diferente. O Brasil é um dos únicos países do mundo com uma capilaridade no sistema de saúde, experiência, conhecimento científico e capacidade de mobilização para vacinar milhões de pessoas por dia. A crise brasileira, não por acaso, chama a atenção internacional. Nos bastidores da OMS, diretores não escondem o espanto sobre a situação do Brasil. “Vocês são um país com ótimos cientistas, orgulhosos de seu passado de saúde pública. O que ocorreu?”, perguntou um dos líderes da agência no esforço contra a pandemia.

A resposta não se limita à dimensão da incompetência daqueles no poder. O fracasso é um resultado direto de uma política externa que tem como pilar a ideologia, e não os interesses dos cidadãos.

Quando for iniciada, nesta quarta-feira, a maior campanha de vacinação da história do país dependerá num primeiro momento de uma vacina chinesa, justamente aquele que havia sido desprezada, ironizada e evitada pelo governo federal. Independente da ironia de uma cena digna do realismo mágico, a demora do país em começar a vacinação e a falta de imunizantes suficientes não são acidentes. Mas consequência de uma diplomacia que mostrou todos os seus limites e fracassou ao ser confrontado por seu maior teste. Gestos como o de minar a confiança em uma vacina apenas por sua origem ou se negar a promover uma resposta global fazem parte de um pacote negacionista que explica o colapso de Manaus e a dor de milhares de famílias brasileiras. Nesse caso, o impeachment seria insuficiente.

*Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.


Cristovam Buarque: O presidente asfixiador

A falta do oxigênio é consequência do colapso político de um governo despreparado para cuidar do Brasil.

Política é a arte de um povo para definir seu caminho com coesão e rumo, por meio de dirigentes escolhidos. O colapso do sistema de saúde em Manaus é prova do fracasso da política. Irresponsabilidade, incompetência, insensibilidade dos governantes que nós elegemos, sobretudo o obscurantismo deles provocaram a tragédia da asfixia de doentes por falta de oxigênio. A imagem de brasileiros se afogando nos corredores de hospitais, por falta de um balão de oxigênio, é uma metáfora real de um governante com o pé no pescoço do país inteiro.

A falta do oxigênio é consequência do colapso político de um governo despreparado para cuidar do Brasil. O sofrimento e morte no Amazonas, previsto por todos os cientistas e pelos ministros de saúde que foram demitidos porque alertaram, é consequência do descuido do presidente com o sofrimento, seu apego à feitiçaria no lugar da ciência, sua mesquinharia ao politizar a saúde pública e seu despreparo gerencial e sua falta de patriotismo. A crise sanitária é apenas um dos males que ele está provocado.

Nestes seus dois anos, ele conseguiu nos transformar em uma nação ridicularizada e desprezada no cenário internacional, está asfixiando o país em função de seu constante incentivo à destruição das florestas, seu descuido e até repulsa à educação de base, ensino superior, ciência e tecnologia e aos artistas faz dele o asfixiador do conhecimento e do espírito nacional, até mesmo esta conseguindo desmoralizar o Exército brasileiro ao dar-lhe tarefas para as quais seus generais demonstram despreparo. Bolsonaro é o asfixiador do Brasil.

Mas lamentavelmente ele não é o único. A asfixia também é feita pelos que não conseguem barra-la. Há dois anos nosso divisionismo permitiu a eleição deste asfixiador. E agora a divisão não nos dá a força necessária para seu impeachment por crime contra os brasileiros e o Brasil. Daqui a dois anos ele pode ser reeleito, se não nos unirmos e oferecermos uma proposta e um nome confiável nas eleições de 2022.

Bolsonaro é o asfixiador, mas o Brasil não nos perdoará se não encontrarmos os meios para impedir sua maldade e sua incompetência. Um país caminha errado, quando seu governo é ruim, mas entra em colapso quando as oposições também são ruins ou quando não se unem.

*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro


Hélio Schwartsman: O general Pazuello e a minha vó

No Brasil, a autoridade sanitária repete as crenças (erradas) de minha avó

Custou-me acreditar no que li. Pessoas estão morrendo asfixiadas em Manaus por falta de oxigênio nos hospitais, e o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, atribuiu o colapso do sistema de saúde manauara ao aumento da umidade e ao fato de médicos locais não prescreverem "tratamento precoce".

O general dificilmente poderia estar mais errado. Ecoando as recomendações de minha avó, ele acha que o problema é as pessoas saírem na chuva e não tomarem cloroquina. No mundo real, é o clima seco, e não o úmido, que favorece as infecções respiratórias, e, apesar de a cloroquina já ter sido esquadrinhada por cientistas, nenhum estudo de qualidade demonstrou que ela tenha efeito importante contra a Covid-19.

A explicação científica mais geral para o caos em Manaus está na curva exponencial. Epidemias se caracterizam justamente por concentrar muitos casos num intervalo curto de tempo. Sem medidas de contenção, um vírus pode entrar em propagação exponencial e saturar rapidamente até os mais robustos sistemas de saúde.

O problema de Manaus, que não é diferente do de várias outras cidades, é que, apesar dos alertas dos especialistas, as pessoas relaxaram nas medidas de segurança. Cansaram das privações sociais, aposentaram máscaras, viajaram e celebraram a chegada do novo ano em populosas confraternizações. Em Manaus, ainda se aglomeraram para protestar contra as regras de distanciamento que o governo queria impor.

Redes de saúde pequenas como a do Amazonas e de Rondônia são as primeiras a colapsar, mas não há motivo para que grandes centros não enfrentem dificuldades parecidas, especialmente se estivermos lidando com mutações que geraram cepas virais mais infecciosas, como parece plausível.

Atentas a essa terrível possibilidade, autoridades sanitárias europeias estão endurecendo as restrições. No Brasil, a autoridade sanitária repete as crenças (erradas) de minha avó.


Bruno Boghossian: Asfixia da saúde em Manaus é fracasso grosseiro de governos na pandemia

Não é difícil colher provas para responsabilizar protagonistas do morticínio

A asfixia da rede de saúde de Manaus é o retrato mais grosseiro do fracasso do país no combate à pandemia. O governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), soube há uma semana que teria problemas no fornecimento de oxigênio. O estado enfrenta uma disparada de internações por Covid-19, mas ele disse ao site O Antagonista que foi surpreendido pelo esgotamento do material.

A tragédia nacional é fruto da incompetência extraordinária, da falta de senso de emergência, do desprezo pela vida e da covardia de muitos governantes. No fim de 2020, Lima viu hospitais cheios e determinou o fechamento do comércio para conter o alastramento do vírus. Acuado por protestos fomentados por políticos bolsonaristas, o governador desistiu e mandou reabrir as lojas.

Os dez meses de pandemia deixaram um rastro de vilania e delinquência. Não é difícil colher provas para responsabilizar os protagonistas do morticínio. Autoridades incapazes de providenciar itens essenciais e uma política eficiente para salvar vidas são partes de um capítulo importante desse processo.

Meses antes da falta de oxigênio em Manaus, Jair Bolsonaro dizia que seu governo havia repassado verba para os estados e que "ninguém faleceu" no país "por falta de UTI ou respirador". Era 2 de junho de 2020, e os hospitais estavam lotados em muitas cidades. Naquele dia, foram registrados 1.262 óbitos.

Bolsonaro e coautores nada fizeram para evitar essas mortes. Ao contrário, empurraram os brasileiros para uma roleta-russa: estimularam aglomerações, negaram ao país um plano célere de vacinação e ofereceram, no lugar de cuidados sérios, um coquetel de medicamentos ineficazes, sob o rótulo enganoso de "tratamento precoce".

De passagem por Manaus nesta semana, o ministro da Saúde reforçou a oferta de cloroquina, reconheceu a falta de oxigênio na cidade e disse que a única solução era esperar um novo carregamento. Eduardo Pazuello deu de ombros (literalmente) e declarou: "Não tem o que fazer".


Ricardo Noblat: O Dia D+1 - A opção preferencial do governo pela morte

Negacionismo suicida

A Amazônia é nossa. Mas o oxigênio que falta nos hospitais de Manaus por incúria dos governos estadual e federal pode ser venezuelano ou brasileiro, a ser transportado por aviões da Força Aérea dos Estados Unidos. Em breve, chegará por lá a vacina da Universidade de Oxford importada da Índia. A conferir, porém.

Um Boeing da companhia Azul decolou, ontem à noite, de São Paulo para o Recife. Está previsto que na madrugada de amanhã decole com destino a Nova Deli para buscar 2 milhões de doses da vacina inglesa. Ocorre que o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Índia pôs em dúvida a entrega da encomenda.

Anurag Srivastava afirmou que “é muito cedo” para dar respostas sobre exportações das vacinas produzidas no país, já que a campanha nacional de imunização ainda está só começando. A declaração foi dada em resposta a perguntas de jornalistas sobre o que o governo brasileiro dava como certo.

Sem tirar nem pôr, o que disse Serivastava à imprensa internacional: “O processo de vacinação está apenas no começo na Índia. É muito cedo para dar uma resposta específica sobre o fornecimento a outros países, porque ainda estamos avaliando os prazos de produção e de entrega. Isso pode levar tempo”.

Tem algum caroço nesse angu. Primeiro, o ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, anunciou a compra da vacina ao governo indiano. Depois, a decolagem, ontem, do Boeing da Azul para trazer os 2 milhões de doses. Finalmente, admitiu que problemas técnicos atrasaram o voo por mais um dia.

Quer dizer: marcado para a próxima terça-feira, o Dia D do início da vacinação contra a Covid-19 no Brasil, na melhor das hipóteses, será lembrado no futuro como o Dia D+1. Quanto à hora H, terá também de ser revista, o que pode empanar o sucesso da Operação Ponte-Aérea de distribuição da vacina.

Perceberam? O pior dia do Brasil sob o governo Jair Bolsonaro é sempre amanhã. Até quando os que têm poder para dizer “basta” ou “fora” assistirão inertes o que acontece? Vai ficar aí parado? Morre gente asfixiada por falta de oxigênio em uma das maiores capitais do país. E daí? Ninguém será preso por isso.

Quem não seria capaz de fazer qualquer coisa para não morrer? E por que um presidente eleito não faz tudo ao seu alcance para salvar a vida dos seus governados? Ele está certo e o mundo errado quando endurece medidas de isolamento, multa quem não usar máscara e injeta dinheiro na veia dos mais pobres?

Enquanto pessoas morrem por falta de oxigênio em Manaus, o governo do Amazonas, orientado pelo Ministério da Saúde, recomenda o tratamento precoce do vírus com cloroquina. Bolsonaro voltou a pôr em dúvida a eficácia das vacinas. Isso é crime contra a humanidade, previsto em leis.

Pazuello reconheceu o “colapso” na saúde de Manaus e revelou que a fila por um leito é de quase 500 pacientes. Ele voltou de lá faz uma semana. Não se deu conta de que haveria um colapso? Ninguém lhe contou? E por que o governo não se antecipou ao colapso? Por que não quis? Por incompetência? Crueldade?

Não se vacinar é “negacionismo suicida”, disse o Papa Francisco depois de ser imunizado junto com o ex-Papa Bento XVI. Logo, Bolsonaro é um “negacionista suicida” – alguma dúvida? Mas fale para ele sobre essas coisas… Na hora, sacará do coldre o ministro da Justiça que o ameaçará com um processo.

O que fez Bolsonaro no dia em em Manaus parou de respirar

Presidente do Banco do Brasil pode ser demitido por causa de Seu Jorge

No dia em que o Brasil registrou nas últimas 24 horas mais 1.151 mortes pela Covid-19, e a média móvel de mortes nos últimos 7 dias foi de mais 42% em comparação à média de 14 dias atrás, o que ocupou a maior parte do expediente de Jair Bolsonaro?

Pela ordem: a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado que está lhe custando muitos cargos no governo; a demissão do presidente do Banco do Brasil que poderá acontecer ou não a qualquer momento, e a live semanal no Facebook.

Na live, ele e o ministro da Saúde Eduardo Pazuello, general especialista em logística militar, culparam a falta de estrutura e de um tratamento precoce pelo colapso do sistema de saúde em Manaus, onde pessoas morrem por falta de oxigênio.

Pazuello culpou também o clima hostil da região amazônica e falou sobre a dificuldade de fazer as coisas chegarem a Manaus por via marítima ou aérea. Embora conheça bem a região, parece ter-se dado conta disso só recentemente.

André Beltrão, por ora, está presidente do Banco do Brasil. Uma das razões para Bolsonaro querer mandá-lo embora foi um show virtual de Seu Jorge patrocinado pelo banco. A ala radical do governo acusa Seu Jorge de ser de esquerda.