Cora Rónai: Não entendo quem busca aglomerações em plena pandemia

Não entendo a vontade de comemorar o quer que seja quando há tanta gente asfixiada nos hospitais, tanta gente morrendo.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Não entendo a vontade de comemorar o quer que seja quando há tanta gente asfixiada nos hospitais, tanta gente morrendo

Não sei mais sair de casa. Não é nem por medo — eu já tive Covid-19 e, em tese, ainda estou relativamente imunizada contra o coronavírus. É que perdi a habilidade.

Sair envolve uma série de pequenos gestos e atenções. Não reparamos neles porque sair é o nosso normal desde que o primeiro hominídeo se mudou para a primeira caverna e, uma vez lá dentro, descobriu que a vida era lá fora.

Tudo está lá fora: o comércio, a natureza, os amigos.

Mas eu olho pela janela, vejo a vista mais deslumbrante do Rio de Janeiro e… sinto zero vontade de ir até lá. Sair deixou de ser automático. Preciso me concentrar na roupa e no sapato, preciso conferir se tudo o que preciso está na bolsa.

Antes eu sabia a minha bolsa de cor.

Antes eu abria o armário, assoviava, e duas ou três blusas vinham comer na minha mão: sempre as mesmas, apesar da quantidade de colegas. Hoje eu abro o armário, fico pensando e desisto.

Antes os meus pés encontravam as sandálias sozinhos, no escuro.

Já estive na rua algumas vezes desde o começo da pandemia, mas não consegui normalizar o mundo de máscaras, de álcool gel e de distanciamento social. Tenho uma dificuldade enorme de ficar alerta. Da última vez que saí, o elevador veio com dois vizinhos do andar de cima e eu já ia entrando. Fui à dentista, precisei calçar coberturas protetoras sobre os sapatos e só me lembrei que estava com aqueles paninhos nos pés dois quarteirões antes de chegar em casa, a própria louca do EPI.

Tenho a sorte de poder trabalhar de casa. Tenho a sorte ainda maior de ter um apartamento bonito e confortável, com todos os gatos e livros de que preciso. Os serviços de delivery me trazem tudo o que é necessário. Não faço nenhuma falta lá fora e começo a desconfiar que lá fora não me faz falta nenhuma também.

Mas não é por isso que não entendo quem busca aglomerações em plena pandemia.

Não entendo porque não percebo qual é a dificuldade em compreender o mecanismo de transmissão do vírus; não entendo porque não alcanço a absoluta falta de empatia de quem liga o “dane-se” a esse ponto.

Não entendo a realidade paralela em que vivem as pessoas que acham normal ir a uma festa durante a pior emergência sanitária que já vivemos. Não entendo a vontade de comemorar o quer que seja quando há tanta gente asfixiada e sem ar nos hospitais, tanta gente morrendo.

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Num vídeo gravado assim que a Polícia Federal foi buscá-lo em casa, o deputado Daniel Silveira, do PSL, se vangloriou da sua trajetória: “Eu já fui preso mais de 90 vezes na Polícia Militar do Rio”.

Eu só queria saber como um homem consegue ser preso mais de 90 vezes e continuar impune.

Há algo profundamente errado com um sistema que percebe 90 vezes que um homem representa um perigo para a sociedade, mas não consegue impedi-lo de se eleger deputado.

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