nacionalismo

Cem anos de modernismo na música brasileira | Arte: FAP

“Quando ouvi pela primeira vez o violão clássico, me apaixonei”, afirma Álvaro Henrique

Luciara Ferreira*, com edição do coordenador de Audiovisual da FAP, João Rodrigues

O violão é o mais nacional dos instrumentos. Como um violonista, a música para Álvaro Henrique é acima de tudo a linguagem das emoções. “Tocar um instrumento, qualquer um, é poder falar este idioma”, conta para acrescentar que quando ouviu pela primeira vez se apaixonou pelo instrumento.

Na intenção de diminuir a timidez, Henrique, que está produzindo um novo trabalho musical nos Estados Unidos, tem o incentivo do pai para estudar o instrumento de seis cordas. No início, ele tinha resistência ao violão popular. “O violão é o mais nacional dos instrumentos, mas em 1922 não foi valorizado”, afirma.  

O músico está confirmado para participar do segundo concerto da série de eventos Em torno de 22: Cem anos de modernismo na música brasileira. O evento será neste sábado (9/7), a partir das 16 horas, na Biblioteca Salomão Malina, vinculada à Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. A entrada é gratuita.

Conheça a Biblioteca Salomão Malina

Apesar de não valorizado nacionalmente em 1922, o músico vê a correção em 2022. “É importante não apenas para a cultura brasileira em geral, mas também um retrato do avanço que violonistas de todo o Brasil tiveram nos últimos 100 anos”, ressalta.

O solista teve como influência os guitarristas Kazuhito Yamashita, Pavel Steidl e Franz Halasz para desenvolver sua musicalidade. “Saímos de um instrumento de vadios para ser um exemplo de excelência mundial”, assevera.

Organizado em cinco programas, a origem do modernismo do Brasil foi tratada no primeiro concerto com algumas das obras apresentadas pelo pianista Guiomar Novaes na Semana de 22. O evento, realizado 25 de junho, contou com um recital de piano solo.

https://www.youtube.com/watch?v=dOhC4wn8Zw0

“Recordar 1922 é sempre de suma importância. Esse ano marcou um momento de virada na História da Arte Brasileira, principalmente no que incutiu de ideias com respeito à formação de uma arte com ‘cara’ brasileira. Então, faz-se necessário rememorar o seu legado”, acrescenta o curador do evento Em torno de 22, Augusto Guerra.

Afinal, a Semana de Arte Moderna de 1922 foi tão importante assim?

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O violoncelista explica que a música sempre esteve presente, pois vem de uma família de músicos.” Com 15 anos, passei a ser bolsista da Orquestra Jovem de Brasília e aos 19 me tornei profissional, de modo que posso dizer que tudo que aconteceu até hoje em minha vida girou em torno dessa arte”, concretiza.

Como inspiração para sua desenvoltura na música, Guerra considera como ídolo o compositor e violoncelista Heitor Villa-Lobos, pela forma de como inseriu a música brasileira no cenário mundial e teve o estímulo de seu pai instrumentista, Antônio Guerra Vicente. Ele que foi o fundador do curso de violoncelo da Universidade de Brasília (UnB).

Em palavras de incentivo para aqueles que têm vontade de aprender a tocar um instrumento novo como o violão, Augusto destaca que é necessário ter muito estudo, muita disciplina e perseverança. Além disso, é necessária a orientação de um professor ou especialista com boas referências.

Programação

Veja, abaixo, detalhes da série de concertos Em torno de 22: Cem Anos de Modernismo na Música Brasileira, com a curadoria de Augusto Guerra Vicente, no Espaço Arildo Dória, dentro da Biblioteca Salomão Malina, no Conic, região central de Brasília (DF).

09/07, 16h

Concerto 2: O violão como instrumento nacional 

Violão Solo: Álvaro Henrique – Obras de Villa-Lobos, Guerra-Peixe, Dilermando Reis e Baden-Powell 

30/07,16h
Concerto 3:  Desdobramentos do modernismo: o nacionalismo brasileiro

Quarteto Capital – Obras de Villa-Lobos, Osvaldo Lacerda, Glauco Velásquez, Ernst Mahle, Aurélio Melo e Vicente da Fonseca

Violino I: Daniel Cunha

Violino II: Igor Macarini

Viola: Daniel Marques

Violoncelo: Augusto Guerra Vicente

13/08, 16h

Concerto 4:  Obras de música de Câmara de Villa-Lobos para violoncelo

Obras de Heitor Villa-Lobos com:

Violoncelo: Norma Parrot

Violino: Daniel Cunha

Flauta: Thales Silva

Piano: Larissa Paggioli

27/08, 16h Em torno de 22: Cem Anos de Modernismo na Música Brasileira

Concerto 5:  Desdobramentos do modernismo: Cláudio Santoro em Brasília

Obras de Cláudio Santoro com:

Viola: Mariana Costa Gomes

*Integrante do programa de estágio da FAP, sob supervisão do jornalista, coordenador de Audiovisual da FAP, João Rodrigues


Valor: Por que o nacionalismo é a marca das próximas décadas

Guerras tecnológicas, políticas nacionalistas e pouca coordenação global devem ser a marca das próximas décadas

Por Diego Viana, Valor Econômico

SÃO PAULO - Após 30 anos de um consenso liberal que surfou na onda da globalização, o mundo está entrando em nova fase: guerras tecnológicas, políticas nacionalistas e pouca coordenação global devem ser a marca das próximas décadas. O período de acelerada globalização, entre a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a crise financeira de 2008, foi uma exceção histórica, segundo a economista Monica Baumgarten de Bolle, pesquisadora-sênior do Instituto Peterson de Economia Internacional (Piie). O nacionalismo econômico de líderes como Donald Trump não são um acaso ou um momento passageiro, mas o primeiro passo na direção de uma outra fase da economia global.

“Está se formando uma ‘cortina de ferro tecnológica’”, afirma o cientista político Oliver Stuenkel, coordenador da pós-graduação em relações internacionais da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. Para Stuenkel, são duas as causas: ascensão da China como superpotência global e mudança na relação entre desenvolvimento técnico e integração regional. “O avanço das tecnologias, que costumava integrar mais os países, passa a produzir esferas de influência tecnológica”, afirma. “Para mim, essa é a maior ameaça ao livre-comércio.”

A tendência vai além da tecnologia, porém. Nesta semana, o Brasil sentiu na pele o pendor nacionalista de Trump, mas num setor tradicional: a siderurgia. O presidente americano acusou o país, e também a Argentina, de desvalorizar artificialmente suas moedas, e ameaçou reativar taxas de importação de aço e alumínio. Trata-se de taxas anunciadas para o mundo todo no ano passado, de 25% e 10% respectivamente, mas das quais os dois países sul-americanos tinham ficado isentos.

No mesmo dia, Trump ameaçou taxar produtos franceses em até 100%, em retaliação a um imposto sobre transações digitais. Desde 2017, o presidente americano também acusa a China de manipular sua moeda, o renminbi, reativando o tema das “guerras cambiais”, que era assunto em 2011, quando o então ministro da Fazenda brasileiro, Guido Mantega, dizia que a moeda artificialmente desvalorizada era o próprio dólar.

“A antítese do liberalismo não é o socialismo, como muita gente pensa, mas o nacionalismo”, afirma Monica. Em parceria com Jeromin Zettelmeyer, seu colega no Piie, a economista mediu o quanto as mensagens dos partidos políticos ao redor do mundo, à direita e à esquerda, estão se afastando do consenso liberal das últimas décadas. A dupla concluiu que é justamente essa antítese que está se expandindo.

“Ouvindo as propostas de Trump e depois de outros partidos populistas, aquilo nos pareceu familiar: lembra a tradição nacionalista e protecionista da América Latina”, afirma Monica.

O anúncio de Trump reforçou a demanda da indústria siderúrgica europeia para a Europa também aumentar barreiras à entrada do produto brasileiro. A Eurofer, associação dos produtores siderúrgicos da Europa, disse temer que o aço que o Brasil e a Argentina não puderem mais exportar para o mercado americano acabe desviado para a Europa, fragilizando ainda mais a já combalida indústria europeia.

A pesquisa do Piie, que analisou as plataformas de partidos políticos com mais de 10% dos votos nos países do G20 (grupo formado pelas 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia), antes e depois da crise de 2008, faz mais do que apontar a presença do populismo: mostra também que os partidos tradicionais do centro estão se tornando mais favoráveis a medidas de controle do comércio exterior ou de desenvolvimento macroeconômico nacional.

Em quase todos os critérios da pesquisa, as sociedades se tornaram mais protecionistas, nacionalistas e economicamente populistas. O resultado foi obtido ponderando os programas dos partidos com os votos que eles obtiveram em eleições, segundo tópicos como política industrial, recepção de imigrantes e recebimento de investimento estrangeiro. Siglas consideradas populistas, que costumavam ter uma posição econômica mais liberal, embora fossem anti-imigração, caminharam na direção de maior proteção comercial e adotaram propostas de política industrial. Ao mesmo tempo, partidos considerados não populistas passaram a adotar propostas mais hostis aos imigrantes, ao menos no mundo desenvolvido.

O fenômeno vale tanto para países ricos quanto para emergentes. As diferenças entre os dois grupos não são tão expressivas como se poderia esperar: em ambos, o gosto por tratados multilaterais de livre-comércio e instituições de governança global diminuiu acentuadamente. A principal diferença é que, no mundo desenvolvido, os partidos aumentaram a aposta em medidas de controle da imigração, enquanto nos países em desenvolvimento as promessas dos políticos evocam mais medidas de proteção à indústria local.

“As esferas de influência tecnológica vão ser o maior desafio para a política externa dos demais países, particularmente os emergentes”, afirma Stuenkel. “Uma coisa que me preocupa é que poucos países vão liderar o processo de avanço em áreas como inteligência artificial. Vão dominar essas indústrias. A corrida para controlar essas tecnologias vai criar muita desigualdade, porque os países em desenvolvimento tendem a não conseguir acompanhar o processo, o que vai aumentar a situação de dependência.”

No caso do Brasil, uma política de não alinhamento, como o país manteve durante boa parte da Guerra Fria, seria ideal, diz Stuenkel. Mas não seria fácil.

“A cortina de ferro tecnológica vai ser muito mais difícil de superar do que a cortina de ferro ideológica”, afirma. Mesmo no auge da Guerra Fria, os EUA colaboraram com países do bloco comunista, quando houve interesses em comum. “Mas se a disputa é pela dominância tecnológica e comercial, a situação é mais complicada: ou um país usa certa tecnologia ou não usa.”
Stuenkel sugere que, se não quer ficar para trás, o Brasil deve ter um “plano de investimento estratégico possante”, com adaptação da legislação que torne o ambiente econômico atraente para empresas de tecnologia e a formação de “uma nova elite, que seja competitiva no mundo da indústria 4.0”. Para as redes 5G, um bom passo seria conseguir que o país fornecedor se disponha a arcar com os custos de instalação da rede, algo que a China parece inclinada a fazer.

“Se a China tem uma empresa como a Huawei, que domina a tecnologia 5G, e os Estados Unidos não têm nada parecido, a ideia é que isto é por falta de uma política econômica nacional”, diz Stuenkel.

Mesmo nesse campo, encontra-se indício da passagem do consenso liberal à nova fase do nacionalismo econômico. “É um debate estratégico de longo prazo, que deveria acontecer nos ministérios e seria um ótimo tema para discutir em cúpulas anuais de dirigentes da América Latina, o que hoje, obviamente, não é viável, já que a mentalidade ainda está nas divisões da Guerra Fria, e não na guerra tecnológica”, diz.

Historicamente, a emergência do consenso liberal, a partir dos anos 80, foi um processo chefiado pelas potências ocidentais, na descrição do cientista político alemão Michael Zürn, autor de “Uma Teoria da Governança Global” e diretor do Centro de Pesquisa em Ciências Sociais de Berlim. Já nessa década, os acordos comerciais, ainda essencialmente tarifários, começaram a se tornar mais amplos, abrangendo mais áreas. A partir daí, os tratados começaram a intervir também nas políticas econômicas nacionais, “vistas como estratégias de proteção aos mercados domésticos”, afirma.

“O consenso liberal incentivou a evolução desses acordos, em processo que se intensificou com a evolução tecnológica, à medida que as fronteiras nacionais se tornaram menos relevantes e mais incômodas”, diz Zürn. “A globalização se intensificou a partir daí. Quando a União Soviética, pressionada e tentando responder com uma abertura controlada, entrou em colapso, os EUA e potências ocidentais viram a oportunidade de estabelecer um mundo realmente baseado no consenso liberal.”

Zürn aponta que, no geral, as instituições que organizam o mundo globalizado são as mesmas que surgiram ao fim da Segunda Guerra: Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial. A essas se somam instituições regionais, das quais a mais conhecida é a União Europeia (UE), que começou como mera união aduaneira. As atribuições dessas entidades se expandiram ao longo do tempo, tornando-se os alicerces da ordem global e promotoras do consenso liberal.

Monica e Zettelmeyer sublinham a importância da crise de 2008, conhecida como Grande Crise Financeira, como catalisadora da mudança nos programas dos partidos. “As mensagens de centro-direita e centro-esquerda ficaram pouco atraentes para os eleitores depois da crise”, diz Monica.

“Quando as mensagens mais extremadas começam a crescer no gosto da população, isso sempre inclui uma dose de nacionalismo econômico.”

Nos partidos já existentes, as siglas identificadas com a esquerda foram mais afetadas: sua reorientação para o nacionalismo econômico a partir de 2008 é mais radical do que a dos partidos considerados à direita.

Essa guinada reverte o processo que colocou os tradicionais partidos da esquerda, sobretudo na Europa, no coração do consenso liberal, ao longo da década de 90. Esse foi o momento da chamada Terceira Via, a era de Tony Blair (primeiro-ministro britânico de 1997 a 2007), Bill Clinton (presidente dos EUA entre 1993 e 2001) e o brasileiro Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Sob esse nome, a partir de um termo cunhado pelo sociólogo britânico Anthony Giddens, partidos de esquerda ao redor do mundo adotaram plataformas de defesa do livre-comércio e desregulação financeira, mas com maior preocupação social.

Essas são as agremiações que levaram o maior golpe após a crise financeira. A ala do partido Trabalhista britânico ligada a Tony Blair foi derrotada pelos seguidores mais radicais de Jeremy Corbyn. Na França, o presidente socialista François Hollande foi tão impopular que nem chegou a concorrer à reeleição. Na Alemanha, o tradicional Partido Social-Democrata (SPD) compõe o governo com seu antigo rival, os democrata-cristãos (CDU), mas vem tendo votações cada vez menores, ano após ano.

Algum movimento na direção de maior nacionalismo econômico e protecionismo é algo que se pode esperar após grave crise econômica. O exemplo clássico é a década de 30, em que a Grande Depressão levou os governos nacionais a enxergar o comércio e a finança internacionais não mais como uma arena de cooperação entre povos e países, mas como um espaço de disputa e rivalidade. Desvalorizações cambiais, barreiras tarifárias e outras medidas, que visavam à proteção da indústria doméstica e de empregos locais, deram o tom do período. Também foi o momento de ascensão de políticos populistas e nacionalistas, que resultou na Segunda Guerra.

Em 2015, os cientistas políticos alemães Manuel Funke, Moritz Schularick e Christoph Trebesch publicaram um artigo demonstrando que esse não foi um caso isolado. Examinando eleições ao longo de 140 anos (entre 1870 e 2014), os autores apontam que cada período de crise financeira é seguido de um aumento da incerteza política e da fragmentação partidária. Este é o solo em que se assenta o crescimento das políticas nacionalistas e das lideranças populistas. “Na média, partidos da extrema-direita populista, que põem a culpa da crise em minorias e estrangeiros, aumentam sua votação em 30% depois de crises financeiras”, escrevem.

Para Stuenkel, a crise e a lenta retomada que se seguiu não são o fator preponderante, mas a ascensão da China como polo econômico, geopolítico e tecnológico. “A grande aposta dos EUA, ao fim da Guerra Fria, foi na capacidade de inserir a China no sistema global, o que deveria trazer uma liberalização política e econômica no país. Não foi assim que aconteceu”, diz.

O caso da Huawei é emblemático. A empresa domina uma tecnologia de ponta em telecomunicações: a 5G, fundamental para o desenvolvimento da internet das coisas. É a primeira vez que o avanço industrial chinês envereda por campos que os países do Ocidente não atingiram. Também é, segundo Stuenkel, o primeiro momento em que um país emerge no cenário econômico mundial de um jeito que os Estados Unidos não conseguem encontrar uma resposta, como foi quando o Japão parecia ameaçar a hegemonia americana, nos anos 80.

Competidor
A reação dos tradicionais países desenvolvidos ao novo competidor transparece em detalhes contraintuitivos. Um deles é o item investimento direto estrangeiro, na pesquisa de Monica e Zettelmeyer. Nas economias mais ricas, as plataformas dos partidos apontam um aumento das restrições a esses investimentos. Mas quem restringiria o investimento produtivo?

“Em geral, essas restrições são a investimentos que de alguma maneira vêm da China”, afirma Monica. Na Europa, a principal preocupação é a perda da vantagem tecnológica, quando empresas de ponta são compradas por companhias chinesas. Nos EUA, soma-se a sensação de uma “perda da hegemonia americana no mundo”, diz a economista. “A questão é que o poder de influência dos chineses está cada vez maior, tomando o espaço do poder de influência dos americanos. Isso leva tanto os democratas quanto os republicanos a reagir.”

Um exemplo se encontra no projeto Estratégia Industrial Nacional 2030, que o ministro alemão da Economia, Peter Altmaier, anunciou em fevereiro. Um dos pontos do projeto é que o governo deverá intervir para evitar que empresas nacionais sejam compradas por companhias estrangeiras que sejam estatais ou “fortemente subsidiadas”.

De fato, o governo de Angela Merkel manifesta preocupação há anos com a possibilidade de perder para empresas chinesas a posição de ponta em maquinário industrial que a Alemanha possui. Em 2016, a fabricante de robôs Kuka foi comprada pela chinesa Midea. No ano passado, porém, o governo chinês, adiantando-se à promessa de intervenção de Berlim, impediu o grupo Yantai Taihai de comprar a fabricante de maquinário alemã Leifeld. A Leifeld produz equipamentos para indústrias nucleares.

“Essa estratégia alemã dificilmente vai ser bem-sucedida”, afirma Stuenkel. “Os alemães estão querendo vencer o jogo jogando como os chineses, mas estão muito em desvantagem.” Seria mais eficaz, para o cientista político, definir setores em que a Alemanha não vai cooperar com a China e, apenas para esses mercados, introduzir proteções.

Altmaier também tem defendido que a Europa desenvolva uma política conjunta para desenvolver a indústria, com um fundo para investir em novas tecnologias e a proteção do mercado continental. “Isso é muito surpreendente para um país que vive de exportação e depende de mercados abertos”, diz Stuenkel.

A versão final do documento foi apresentada no mês passado e ainda será analisada pelo governo da Alemanha, que poderá rejeitá-lo ou modificá-lo. Comentando as críticas que o projeto tem recebido, Altmaier chegou a dizer que a intenção era recolocar a indústria em seu lugar de direito: “Pela primeira vez em anos, o centro do debate político”. O ministro também disse que recebeu apoio de outros países da Europa.

Para conseguir jogar o jogo chinês com chance de vitória, seria necessário que a Europa estivesse em estágio de coordenação política que não existe. No caso das tecnologias 5G, Merkel deixou claro que não quer que o âmbito da decisão seja Bruxelas. Assim, são os parlamentos nacionais que vão escolher entre aceitar ou rejeitar a participação da Huawei.

A ascensão do nacionalismo econômico sugere que a globalização perdeu força e pode até mesmo estar refluindo. Desde 2008, a expansão do comércio internacional, que até então era duas vezes mais rápida do que a expansão da economia como um todo, arrefeceu, e não tem ultrapassado o ritmo do crescimento global. Desde o início de 2019, vem até mesmo recuando, em comparação com o ano passado.

O plebiscito do Brexit, em 2016, talvez tenha sido o primeiro grande sintoma de que o impulso globalizador se esgotava. Na ocasião, o diplomata chinês He Yafei, ex-vice-ministro de Relações Exteriores da China, se referiu à votação como “parte da primeira onda de desglobalização” e previu futuro “intenso e feroz, com forças pró e contra a globalização lutando batalhas acirradas em diversos campos”.

A ordem liberal, que emergiu na virada para a década de 90, já estava abalada desde 2001, afirma Zürn. Foi nesse ano que o ataque às Torres Gêmeas, nos EUA, demonstrou que haveria resistência ao avanço da ordem liberal; e também foi em 2001 que o economista britânico Jim O’Neill cunhou a expressão Brics para se referir a países emergentes com grandes territórios e tendência ao crescimento não só econômico, mas de influência global.

Ainda que se possa duvidar da coordenação efetiva entre Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, o que O’Neill indicava, com o horizonte para 2050, era a perda relativa de influência e poder das potências ocidentais, Europa em particular. Significaria que os países em ascensão passariam a exigir mudanças nas regras da governança global, avançando seus interesses. Mas essas mudanças provocariam reações nos países estabelecidos, perante o risco de perder espaço.

Este é, de fato, o momento que o mundo atravessa hoje. As potências emergentes, China à frente, se ressentem do modelo de tomada de decisões dos organismos de governança global. As potências ocidentais têm pouco interesse em reformá-los. Certas lideranças, a começar por Trump, preferem se afastar e agir por conta própria. Zürn acrescenta que as antigas potências foram incapazes de se adaptar à emergência de novas potências, o que se reflete na crise das instituições de Bretton Woods e na criação de instituições paralelas, como o Banco de Investimento em Infraestrutura da Ásia e o Banco dos Brics. Mas a crise do consenso liberal conduz à pergunta: poderíamos, de fato, esperar que a transição ocorresse de maneira mais harmoniosa?

Tendência
Stuenkel aponta tendência de que o comércio global esteja cada vez mais sujeito a tomadas de decisão geopolíticas. Esta é uma das maneiras como as esferas de influência tecnológica vão se manifestar. “Se, por exemplo, um país do tamanho do Brasil optar pela Huawei para a rede 5G, certamente os Estados Unidos vão reagir dificultando a entrada de produtos brasileiros em seu mercado”, diz. A interdependência entre comércio global e geopolítica vai necessariamente implicar a interferência política dos governos na circulação internacional de bens e serviços.

A comparação com a América Latina é esclarecedora por outros motivos. No ano passado, Trump implodiu o Nafta (Acordo de Livre-Comércio da América do Norte), e em seu lugar foi criado o USMCA (Acordo Estados Unidos-México-Canadá). “Não é um acordo de livre-comércio, mas um acordo de comércio administrado. Tem cotas de importação, restrições voluntárias de exportação, vários instrumentos de manejo do comércio que não estão em linha com o que se entende por livre-comércio", diz Monica. É um modelo mais próximo ao Mercosul.

Por outro lado, os países de governos mais liberais tampouco estão imunes à onda do nacionalismo econômico. A saída americana do TPP (Parceria Transpacífica), novamente por iniciativa de Trump, ensejou a criação de um substituto incluindo os demais membros do acordo abortado: trata-se do CPTPP (Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica). “Mas esse acordo, depois da saída dos EUA, embora tenha mantido muito do que estava no TPP, reintroduziu várias barreiras ao comércio”, afirma a economista.

A nova fase geopolítica é um “nivelamento”, segundo o economista irlandês Michael O’Sullivan, do banco Crédit Suisse. O’Sullivan lançou neste ano o livro “The Levelling: What’s Next After Globalization” (O nivelamento: o que vem depois da globalização), argumentando que o mundo caminha para uma estrutura multipolar. Isso significa que cada região do planeta se torna mais isolada das demais, com uma maior coesão interna a cada polo e com suas próprias instituições internas de governança.

O’Sullivan afirma que as estruturas de governança internacionais foram incapazes de acompanhar a velocidade com que a economia se globalizou, as empresas se tornaram transnacionais e as decisões políticas e econômicas saíram das mãos dos governos nacionais. O descompasso levou a uma rejeição da integração internacional, primeiro entre eleitores, que começam a se inclinar mais para mensagens populistas; depois no sistema político em geral, que adota programas cada vez mais nacionalistas. Por fim, nas atitudes concretas de quem detém o poder.

Para o economista, a ordem que se constituiu nos últimos 30 anos se desfaz, entre outras razões, porque “o contrato que as pessoas acreditavam ter com políticos, governos, instituições e possivelmente entre si está se desintegrando”. É um erro se referir ao desconforto dos eleitores como mera inclinação ao populismo, porque por trás existe uma genuína sensação de desconforto e confusão com o mundo, diz.

Essas disputas internacionais se refletem nas políticas domésticas indiretamente. Assim, alguns episódios pontuais revelam o processo pelo qual partidos estabelecidos, tradicionais e anteriormente adeptos do consenso liberal vão aos poucos sendo empurrados na direção de maior protecionismo e nacionalismo. Muitas vezes, esse movimento também passa pela xenofobia.

Em outubro, o presidente da França, Emmanuel Macron, sofreu críticas ao conceder entrevista para uma revista conservadora de pequena tiragem, “Valeurs Actuelles”. Na entrevista, os temas da laicidade e do islã tiveram posição central. Para os críticos, Macron estava sinalizando aproximação com a direita nacionalista que tem votado em candidatos como Marine Le Pen.

Na Alemanha, Angela Merkel adotou em 2015 uma política de recebimento livre de imigrantes, com a divisa “Wir schaffen es” (Nós vamos conseguir). A política foi usada por partidos de extrema-direita, como o Alternativa para a Alemanha (AfD), para agitar o sentimento nacionalista em eleições regionais, com sucesso. Desde então, a política imigratória de Merkel mudou. Neste ano, foi aprovada uma lei que, por um lado, facilita o acesso de imigrantes ao mercado de trabalho, mas, por outro, também reduz drasticamente as barreiras para deportações.

Nos Países Baixos, as eleições de 2017 marcaram aparente derrota do extremista Geert Wilders e de seu Partido da Liberdade (PVV). Wilders é conhecido por vociferar contra a “islamização” de seu país e da Europa. Segundo o sociólogo Dirk Witteveen, porém, o que ocorreu naquele ano não foi um refluxo da mensagem anti-imigração de Wilders, mas a progressiva adoção, ao longo da campanha eleitora, de algumas de suas propostas pelos partidos tradicionais - os Conservadores Liberais (VVD), os Democratas Cristãos (CDA) e os Democratas (D66).

Witteveen aponta que o VDD e o CDA, que compõem a coalizão de governo, passaram de favoráveis à integração europeia a contrários à expansão das prerrogativas da UE. Ambos os partidos adotaram projetos nacionalistas e protecionistas, sobretudo em relação à imigração. Ainda assim, o partido de Wilders cresceu, chegando a 20 deputados de um total de 150. Tornou-se o segundo maior partido do país, atrás apenas dos conservadores, com 33 deputados.

O sociólogo faz a ressalva de que a plataforma de Wilders também propõe um Estado mais ativo na economia, com a redução da idade de aposentadoria e a construção de moradias para idosos. Assim como no exemplo de Trump, cuja campanha eleitoral, em 2016, se apoiava tanto na retórica anti-imigração como na promessa de geração de empregos e recuperação da indústria, nem sempre é possível discernir o nacionalismo político do econômico.

O caso americano chama atenção porque ambos os grandes partidos, que dominam a política do país quase inteiramente, têm se afastado desde 2016 do consenso liberal. O Partido Republicano, mais conservador, se tornou sob a batuta de Donald Trump um bastião do nacionalismo, inclusive econômico. A partir de 2017, os EUA bloquearam a TPP, saíram do Acordo de Paris e começaram uma guerra de tarifas contra a China.

Os democratas, por sua vez, testemunham a ascensão de movimentos internos que questionam as regras que sustentaram a economia globalizada das últimas décadas. A pré-candidatura de Bernie Sanders à Presidência em 2016, que disputou a indicação democrata com Hillary Clinton, já apontava para um Estado mais presente na economia. O projeto do Green New Deal, encampado pela deputada Alexandria Ocasio-Cortez, é fortemente baseado na capacidade estatal de fazer os investimentos necessários à transição energética, ainda que isso inclua a emissão de moeda e o endividamento público.

“Há um novo consenso surgindo na sociedade americana”, diz Stuenkel. “Se a China tem uma empresa como a Huawei, que domina a tecnologia 5G, e os Estados Unidos não têm nada parecido, a ideia é que isto é por falta de uma política econômica nacional.”


Rubens Barbosa: Nacionalismo, patriotismo e interesse nacional

Vivemos momento de grande complexidade e incerteza no cenário internacional

As comemorações pelo centenário do fim da Guerra de 1914-18, em Paris, reforçaram minha convicção de que estamos vivendo tempos estranhos e um momento de grande complexidade e incerteza no cenário internacional, com consequências para todos os países.

Foi curioso ver pequenos detalhes protocolares desencadearem reações políticas, como no caso da Sérvia, que se sentiu insultada pela baixa posição que seu presidente ocupou em relação ao Kosovo, colocado mais próximo ao presidente francês pelo cerimonial. Afinal, foi em Sarajevo que tudo começou. Notei a ausência do Brasil, convidado pela primeira vez para um encontro dessa magnitude, que seria uma oportunidade para mostrar que nosso país existe, tem presidente e foi parte das duas guerras (quando estava como embaixador em Londres, participei com o presidente FHC das celebrações do Dia da Vitória da 2.ª Grande Guerra, a de 1939-45, com o Brasil sendo convidado pela primeira vez).

Todos puderam assistir à deliciosa coreografia do poder entre Putin e Trump, que chegaram em limusines cercadas de seguranças, enquanto os outros 82 chefes de Estado e de governo saíram juntos do Palácio Élysée em ônibus especiais. Os líderes norte-americano e russo esperaram, escondidos, que todos tomassem assento para assumirem seus lugares ao lado do presidente Macron. Putin, mais esperto, esperou para chegar por último...

O presidente Macron, em discurso na solenidade, em vez de saudar a presença dos líderes mundiais, de ressaltar a paz e a superação da guerra fria entre EUA e Rússia, resolveu chamar a atenção para as ameaças atuais que põem a estabilidade internacional de novo em perigo, põem em risco a democracia e dividem os países ocidentais. Observou que os pilares que sustentam os regimes democráticos são mais importantes que a unidade transatlântica e nesse contexto mencionou que o patriotismo é mais importante que o nacionalismo. Essa afirmação tinha endereço direto não só aos grupos de direita radical na França, como, de maneira pouco sutil, era uma crítica direta aos que dizem colocar os interesses de seus países em primeiro lugar e a consequência disso para os outros pouco importa. Ao qualificar o nacionalismo como traição ao patriotismo, exagerou, porque o termo na França é associado à extrema direita, enquanto em outros países a expressão se renova e tem conotação valorizada, como, por exemplo, na Irlanda e no Canadá.

A tensão estava criada. Não era a primeira vez que Macron, depois de ter sido um amigo muito próximo, divergia publicamente do presidente dos EUA. As boas relações pessoais se deterioraram diante das decisões de Washington de abandonar o Acordo de Paris sobre clima e pelo término do programa nuclear com o Irã. E também por estimular o protecionismo (ameaça de guerra comercial com a China), criticar o multilateralismo e tornar difícil a solução de dois Estados para o conflito Israel-palestinos.

Não foi surpresa a reação de Trump ao anfitrião, mas sim sua rapidez e virulência. Na tarde do dia 11, Macron organizou o Fórum da Paz, com o objetivo de defender o multilateralismo, um dos pilares da nova ordem internacional depois de 1945 com o surgimento da ONU e do Gatt/OMC, que os EUA ajudaram poderosamente a criar e agora procuram solapar. Todos os chefes de Estado compareceram, com exceção de Trump, que preferiu visitar sozinho cemitério militar americano na França. Além disso, desde a véspera havia iniciado uma troca de tuítes virulentos com Macron, trazendo a público a crescente rivalidade entre os dois líderes num momento de aumento das tensões transatlânticas. Apoio de Trump aos movimentos populistas-nacionalistas na Europa, despesas militares na Otan, criação de exército europeu, proposto por Macron-Merkel, e até ameaça velada à exportação de vinhos franceses para os EUA entraram na inusitada altercação presidencial. Ficou evidenciado o divórcio entre Trump e a Europa, em especial com as instituições supranacionais e multilaterais.

Cabem alguns comentários sobre o que se falou durante a cerimônia de Paris. A crítica de Macron ao nacionalismo está associada à direita populista de Marine le Pen, que, sob o pretexto de defender a nação, defende posições radicais contra o movimento de unidade europeia. Por outro lado, Trump não está preocupado com a unidade da Europa (agora ameaçada com a saída da Grã-Bretanha), mas sim com a China, e não quer continuar com os altos gastos militares na Otan. Por outro lado, talvez Macron não soubesse, mas a palavra patriotismo é pouco usada nos EUA, talvez por motivos históricos, além de ter ali um sentido algo pejorativo. Ao elogiar o patriotismo – com significado positivo nos países de língua latina –, Macron fez Trump se lembrar de frase atribuída a Samuel Johnson, “o patriotismo é o ultimo refúgio do canalha”. A oposição às instituições supranacionais e multilaterais representam um viés característico da superpotência norte-americana, agora exacerbado por Trump.

Qualquer semelhança disso tudo com alguns aspectos da discussão hoje no Brasil, em especial depois da eleição e da escolha do futuro ministro do exterior, não é mera coincidência.

A cerimônia parisiense mostra igualmente como é perigoso para qualquer país, nos tempos incertos que vivemos, declarar alinhamentos e afinidades definitivas com base em laços pessoais. Como aprendi nos meus primeiros anos no Itamaraty, os países (e os líderes) não têm amigos, têm interesses. O realismo e o pragmatismo na ação diplomática e comercial deverão prevalecer sobre vagos anseios conceituais, como o antiglobalismo e a defesa do Ocidente, de inspiração trumpista, bem assim sobre atitudes ideológicas em relação a China.

O interesse nacional, acima de países, grupos ou partidos, é a prioridade da política externa.

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)


El País: O fantasma da internacional nacionalista não nos abandonará em 2018

Recuperação econômica não enfraquece o nacional-populismo, que com vigor e sintonia com Trump e Putin constitui uma séria ameaça ao projeto integrador europeu

Um fantasma percorre a Europa e, obviamente, já não é o comunismo ou a internacional socialista: é a internacional nacionalista. O sintagma pode parecer um paradoxo, uma mera figura retórica, mas não é. Em quase todo continente, alimentadas por múltiplas insatisfações e ansiedades próprias do século XXI, prosperam formações de viés nacionalista que representam uma ameaça existencial para o projeto europeu, e que compartilham estratégia e tática. A maioria é de direita, mas algumas também são de esquerda ou de inspiração ideológica atípica.

Seu potencial para desestabilizar a União Europeia, além disso, foi redobrado pela sintonia natural desses movimentos e partidos com as instâncias nacionalistas representadas por Vladimir Putin e pelo próprio Trump. Falta saber até onde essa sintonia pode chegar, mas já há múltiplos casos de sinergia, do financiamento russo à Frente Nacional francesa à escolha da Polônia como destino da primeira grande viagem europeia do presidente norte-americano; do pacto de cooperação entre o partido de Putin e a Liga Norte italiana ao retuíte por parte de Trump de vídeos islamofóbicos de ativistas britânicos de extrema-direita.

O quadrilátero de Visegrado

Justamente a Polônia e os países do Grupo de Visegrado (Hungria, República Tcheca e Eslováquia) constituem um dos nós de maior importância para o futuro do projeto europeu. Juntos os quatro somam uma população parecida à da França ou a da Itália e o quinto PIB da UE (quarto após a saída do Reino Unido). Representam a espinha dorsal dessa Europa centro-oriental que tanto ansiou a adesão à UE após a queda do muro de Berlim, quando o papa João Paulo II clamava para que a Europa voltasse a “respirar com seus dois pulmões”. Sua mudança de atitude é, em certo sentido, assombrosa. Depois de ter recebido transferências vultuosas em forma de fundos estruturais e de ter protagonizado uma etapa de desenvolvimento sustentado, agora formam um combativo grupo de oposição a um leque de polícias europeias, especialmente as relacionadas com questões migratórias e com uma visão liberal da sociedade. O quarteto, encabeçado pelos Governos polonês e húngaro, mostra que a resistência ao projeto integrador não se deve somente aos problemas econômicos.

Frequentemente se relaciona o atual auge nacional-populista no Ocidente com a Grande Recessão de 2008-2009. O caso do Visegrado evidencia que há muito mais além disso. Todos os países da zona do euro entraram em recessão em 2009; das 39 economias consideradas como avançadas pelo FMI, só Austrália, Israel, Coreia do Sul e Macau se salvaram.

No meio desse vendaval, a Polônia nunca entrou em recessão e, no entanto, sua população optou por uma guinada radical com a eleição de um Governo ultraconservador em 2015. Os outros três países do grupo até entraram em recessão, mas conseguiram sair rapidamente dela. Nesses casos se vê que o apoio a líderes e a políticas nacional-populistas não é fruto apenas da rejeição aos aspectos econômicos da globalização, mas também, e em boa parte, ao apego a tradições, valores culturais e morais que são considerados em risco. A Europa precisa dar uma resposta a isso se quer prosseguir com seu projeto integrador.

Europa ocidental

No outro pulmão da Europa, como diria João Paulo II, a situação é diferente. Os representantes da internacional nacionalista não alcançaram o poder. No entanto, suas propostas políticas têm exercido enorme influência nos partidos tradicionais.

Observemos os acontecimentos no coração do projeto europeu, o eixo franco-alemão. Na Alemanha, os democratas-cristãos da Baviera (CSU), aliados de Merkel, acabam de eleger como líder um político defensor de duras políticas migratórias. A CSU, de fato, já mostrou no passado grande sintonia com o pensamento do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban. Por outra parte, na França, os republicanos, partido herdeiro da tradição gaullista, realiza neste fim de semana primárias nas quais se espera a vitória de um candidato que representa a ala radical. Depois da curva à direita liderada por Nicolas Sarkozy, o partido parece distante de posições centristas, ocupadas por Emmanuel Macron, e prossegue sua caminhada para a direita. O fenômeno se repete, com características distintas, em muitos países. O próprio Brexit parece ser resultado de uma tentativa dramática dos conservadores de fechar a porta para a expansão do antieuropeu UKIP.

A questão migratória é a prova por excelência dessa osmose política, e não apenas nas correntes de transmissão internas das ágoras nacionais entre radicais e moderados, mas também em escala continental. No início da crise, as propostas migratórias do húngaro Orban eram consideradas extremistas, em geral. Mas várias de suas teses estão atualmente no coração da política migratória europeia, que fez do fechamento das pontes levadiças sua estratégia principal, como demonstra o acordo coletivo com a Turquia ou a ação italiana na Líbia.

Resta saber se a Orbanização da política migratória europeia poderá se repetir, por exemplo, em questões de cunho social, moral e educativo. Mas o que está claro é que do gabinete de comando – nos países do Visegrado – ou nas retaguardas parlamentares – no pulmão ocidental –, a internacional nacionalista representa um desafio enorme para o desenvolvimento do projeto europeu em seu eixo histórico liberal. Emmanuel Macron parece ter entendido bem a situação e aposta tudo na busca por um equilíbrio que conjugue esses instintos liberais com a ordem de forjar uma “Europa que protege”, um de seus lemas favoritos. Uma Europa liberal que protege pode, também, parecer um paradoxo. Não mais que a internacional nacionalista, esperam muitos europeístas.

 


Demétrio Magnoli: Em 2018, encararemos nossos próprios nacionalismos

Theresa May, a primeira-ministra britânica, anunciou o restabelecimento dos antigos passaportes britânicos azul-marinho. A restauração, explicou, é uma expressão de "independência e soberania" que reflete a "cidadania de uma grande, orgulhosa nação". Ficamos sabendo, assim, que os passaportes no estilo europeu, de cor vinho, introduzidos em 1988, indicariam a renúncia britânica à sua "independência e soberania", bem como a perda do orgulho nacional de seus cidadãos.

"É uma expressão do quão embusteiros, tolos e paroquiais nos exibimos perante o mundo", replicou Ed Miliband, ex-líder do Partido Trabalhista, referindo-se ao alarido nacionalista provocado pela mudança. Padrões de passaporte não têm relação com soberania. O documento de cor vinho não é uma exigência da União Europeia (UE), mas uma mera sugestão de harmonização conveniente –tanto que a Croácia emite passaportes europeus azuis.

As características formais dos passaportes, no mundo inteiro, não derivam de decisões nacionais soberanas, mas de antigos tratados diplomáticos (a Conferência sobre Passaportes e Alfândegas, da Liga das Nações, de 1920), de acordos no âmbito da Icao (Organização Internacional de Aviação Civil) e de normas de leitura eletrônica de documentos oriundas dos EUA.

May e seu cortejo de fanáticos do Brexit desvelam um tom de azul: o azul do ridículo. Mas o nacionalismo exprime-se em diferentes tonalidades. Carles Puigdemont, o destituído chefe do governo catalão, pronuncia-se exclusivamente em língua catalã, escolhendo ignorar tanto a lei bilíngue da Catalunha quanto o fato de que cerca de um terço dos cidadãos da região só compreende o espanhol.

Já Núria de Gispert i Català, ex-presidente do Parlamento catalão, uma convicta separatista de sobrenome fidalgal, convidou Inés Arrimadas, líder regional do partido Cidadãos, a "voltar para Cádiz". Arrimadas fez campanha pela unidade espanhola –e seu partido foi o mais votado na Catalunha. Mas, pecado!, ela carece de sobrenome ou "sangue" catalão, pois nasceu na Andaluzia, como tantos habitantes de Barcelona.

"O nacionalismo é a guerra", fulminou Emmanuel Macron, o presidente francês, num debate com a populista de direita Marine Le Pen, recordando-lhe algo que nenhum europeu tem o direito de esquecer. O azul do nacionalismo catalão é azul e branco (na versão de direita da bandeira separatista) ou amarelo e vermelho (na versão de esquerda da mesma bandeira), mas sempre étnico, nativista e excludente. Há ridículo, aí, mas apenas enquanto a democracia espanhola for capaz de conter sua pulsão violenta, supremacista.

Escalas de azul: do ridículo ao abjeto, e dele ao repulsivo. Hungria e Polônia têm governos populistas de direita que zombam dos valores pluralistas da UE, consagrando-se à "guerra de civilizações". O húngaro Viktor Orban prega, desde 2015, a defesa da "cultura cristã europeia" contra a "invasão muçulmana".

O governo polonês engaja-se em operação destinada a subordinar o Judiciário e a imprensa a sua vontade, enquanto seu líder de facto, Jaroslaw Kaczynski, atribui-se a missão de "mostrar à Europa doente de hoje o caminho da saúde, dos valores fundamentais e de uma civilização mais forte baseada no cristianismo". Durante seu discurso, no Dia da Independência, 60 mil pessoas marcharam juntas com dois grupos ultranacionalistas aos gritos de "sangue puro" e "a Europa será branca ou será abandonada".

Às vezes não parece –mas, apesar de tudo, o Brasil, faz parte do mundo. Nesse 2018, encararemos nossos próprios tons de azul. O azul vermelho, de Lula (ou de uma imagem holográfica dele), é o nacionalismo paternalista, patrimonialista, nostálgico do varguismo. O azul marrom, de Bolsonaro, é o nacionalismo autoritário, intolerante, nostálgico da ditadura. Feliz 2018 para você também.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional. Escreveu, entre outros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'.

 

 

 


Tio Sam

Monica De Bolle: Assim começa

“Desse momento em diante, será América primeiro. Todas as decisões sobre o comércio, a tributação, a imigração, assuntos externos, serão tomadas para beneficiar os trabalhadores americanos e as famílias americanas. Temos de proteger nossas fronteiras da devastação que outros países causaram ao produzir nossos produtos, roubar nossas empresas, destruir nossos empregos. Proteção trará maior prosperidade e força (…). América começará a vencer novamente, a vencer como nunca antes (…) E, sim, juntos faremos América great again.”


“Primeiramente, vocês querem empregos, certo? Esse é o único e principal objetivo (…) – trazer empregos para todos. Esse país pertence a nós e temos de lutar para mantê-lo assim. Para que a América seja great again, precisamos que a classe média revolucionária triunfe (…) Temos de purgar o país de todos os elementos e ideias que hoje infestam nosso país. América para os americanos!”


Proponho um desafio aos leitores. Como muitos devem ter acompanhado, a primeira citação é do discurso de posse de Donald Trump. Mas, e a segunda? Seria de algum de seus inúmeros rallies de campanha? Ou talvez do tour da vitória depois das eleições de novembro?

Como era de se esperar, Trump iniciou seu mandato com um discurso populista, nacionalista, protecionista. Quem imaginava que a retórica de campanha era apenas um punhado de palavras vazias enganou-se tanto quanto os que previram derrota Trumpista. Nos últimos dias, muitos comentários vi no Brasil de gente questionando qual o problema de Trump falar, e repetir, que será a América em primeiro lugar – não seria isso, afinal, o que todo líder quer para sua nação, seus interesses primeiro? Sim. E não. Não porque os EUA não são nação qualquer, mas a maior economia do planeta, o país cujo posicionamento geopolítico tem a maior influência sobre a ordem mundial.

Não à toa, todos os presidentes americanos do pós-guerra – todos – salientaram em seus discursos de posse o compromisso com seus aliados mundo afora, com a manutenção da ordem global, com a sustentação da economia mundial como algo que a todos interessa. Trump nada disse sobre a prosperidade global como algo que interessa aos EUA. Trump repudiou o mundo ao acusar a devastação causada por países que destroem empregos e roubam indústrias. Trump disse que proteção trará prosperidade.

Há muito o que dissecar sobre a integração global e seus efeitos nas economias maduras. Há tanto quanto o que dissecar sobre o advento de novas tecnologias e seus efeitos sobre a indústria tradicional, o encolhimento da economia do rust belt americano, o achatamento da classe média nos EUA. Algo, entretanto, está comprovado há tempos: o protecionismo não é o caminho nem para o resgate desses empregos, nem para a prosperidade. Os resultados do isolacionismo brasileiro estão aí para mostrar a falácia desse pensamento simplório. O protecionismo é reducionista, não expansivo. O protecionismo americano propalado por Donald Trump na melhor das hipóteses haverá de piorar as condições de vida dos “homens e mulheres esquecidos”. Na pior das hipóteses – porque o Brasil apequenado não é a América – levará à percepção de que a maior potência do planeta já era. Os vácuos serão preenchidos, aumentando as incertezas sobre os rumos da economia mundial diante da ausência de líderes com visão clara.

Os mercados, até recentemente, acreditavam, não sem alguma ingenuidade, que Trump faria bem para a economia americana, promoveria o crescimento por meio de cortes de impostos e mirabolantes planos de infraestrutura. Ignoraram o protecionismo e o nacionalismo, relegando-os à categoria de meros instrumentos retóricos de campanha. Pois foi sobre o protecionismo e o nacionalismo que Trump discursou em seu primeiro pronunciamento. Nada disse sobre o resto.

Líderes como Trump são velhos conhecidos na América Latina e na literatura. A segunda citação é de Nathanael West, em A Cool Million, romance publicado em 1934. Quem discursa é o líder populista Shagpoke Whipple em um rally de campanha. Whipple, Trump. A vida de fato imita a ficção.


Ferreira Gullar: Trump - après moi, le déluge

O capitalismo trumpariano se aproxima do nacionalismo nazista

Se a vitória de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos, sob certos aspectos, foi uma surpresa, sob outros resulta coerente com determinadas mudanças verificadas nas últimas décadas na realidade contemporânea a partir do fim do sistema soviético

O término da Guerra Fria, que dividia o mundo em duas facções hostis, provocou uma série de mudanças políticas, econômicas e ideológicas.

Elas geraram desde o radicalismo islâmico no Oriente Médio até o populismo latino-americano, que vive seus últimos momentos. Mas não só: provocou também reações diversas tanto no capitalismo europeu quanto no capitalismo norte-americano, de que a eleição de Trump é, sem dúvida, uma das consequências mais graves.

É claro que o fim do sistema soviético fortaleceu o capitalismo tanto econômica como ideologicamente, mas também provocou divisões no próprio capitalismo, de um lado favorecendo a tendência mais moderna –que aprendera com o socialismo a lição da igualdade social– mas, de outro, estimulando ideologicamente o capitalismo atrasado, que se valeu do sectarismo comunista para justificar a exploração sem limites e o lucro máximo.

Não é novidade dizer que o sonho da sociedade justa que o comunismo inspirava estimulou o surgimento de partidos e movimentos políticos que, durante quase um século, puseram em questão o regime capitalista, cujo caráter explorador do trabalho humano é indiscutível.

Esses movimentos e partidos, por sua vez, provocaram da parte dos setores mais conservadores reações –nazismo e fascismo foram exemplos extremos, mas não os únicos. Em muitos momentos e países, estabeleceu-se uma divisão insuperável, que se define até hoje como esquerda e direita.

Se é verdade que os erros do regime comunista –mesmo antes de sua derrocada final– impediram uma pretendida hegemonia mundial, o fim dele como realidade política e econômica teria consequências diferentes nos diferentes países capitalistas, indo desde certa socialização do capitalismo em alguns países até, contraditoriamente, a exacerbação da exploração capitalista, já que –segundo estes– ficara demonstrado pela história como a tese de que o capitalismo seria um mal a ser extirpado era resultado de um preconceito e de um erro da esquerda.

E essa tese não foi aceita apenas pelos militantes anticomunistas, mas também pelos setores mais diversos de alguns países europeus que optaram recentemente por governos de direita, não radicais como o de Donald Trump, mas igualmente dispostos a apagar, de uma vez por todas, o pesadelo do anticapitalismo que os assustou por décadas e décadas.

Esse anticomunismo é, portanto, bem mais radical que o europeu, porque a ele se soma a necessidade de erradicar do capitalismo todo e qualquer preconceito socializante, o que o opõe não apenas ao falecido comunismo como também ao chamado capitalismo moderno, minado de intenções progressistas.

Esse caráter do capitalismo trumpariano caracteriza-o como uma opção abertamente reacionária que, não por acaso, o aproxima do nacionalismo nazista, do qual estão excluídos quaisquer sentimentos de solidariedade com o sofrimento humano. Tudo isso é encarado como hipocrisia.

O capitalismo, assim entendido, é o regime dos mais capazes e dos vitoriosos, como Donald Trump.

O que importa é o lucro, ou seja, o aumento do capital e da riqueza, não importando que consequências tenham. Azar daqueles que a natureza criou incapazes.

Por isso mesmo, Trump nega que o desenvolvimento industrial gere o aquecimento do planeta e ameace a sobrevivência da humanidade. Ou seja, "après moi, le déluge" (depois de mim, o dilúvio).

Gostaria de concluir esta crônica tranquilizando o leitor com a seguinte lembrança: todas as tentativas semelhantes a essas, que ignoraram a realidade do processo econômico, político e científico, fracassaram.

Puderam até por algum tempo ganhar o apoio dos menos lúcidos e ressentidos, mas não sobrevivem porque são fruto do sectarismo, de ilusões e de ressentimentos, sem base na realidade.


Fonte: http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2016/11/o-capitalismo-trumpariano-se-aproxima.html