Afinal, a Semana de Arte Moderna de 1922 foi tão importante assim?

Vozes críticas cobram inclusão de mulheres, negros e outras minorias em evento-chave do modernismo brasileiro, realizado 100 anos atrás
Foto: Domínio Público
Foto: Domínio Público

Edison Veiga / DW Brasil

Vozes críticas cobram inclusão de mulheres, negros e outras minorias em evento-chave do modernismo brasileiro, realizado 100 anos atrás. Para outros, a própria polêmica já é prova da relevância atual da Semana de 22.

Aqueles dias 13, 15 e 17 de fevereiro, exatos 100 anos atrás, entraram para a história brasileira. No aristocrático Teatro Municipal de São Paulo, artistas e agitadores culturais, cujos nomes se tornariam dos mais relevantes da cultura nacional. promoveram um festival que pretendia apresentar um novo jeito de fazer arte, quebrando padrões e imprimindo um caráter próprio. Era a Semana de Arte Moderna.

Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954), Anita Malfatti (1889-1964) e o resto da  turma de modernistas paulistas saíram do evento com a sensação de que tudo fora um retumbante sucesso naquele festival de declamações poéticas, esquetes teatrais, exposição de quadros e apresentações musicais. Mas a imprensa da época não deu relevância ao evento.

“Na época, nenhum jornal do Rio e do resto do Brasil tomou conhecimento e, mesmo em São Paulo, o único que lhes deu importância foi o Correio Paulistano, que era o jornal do governo e onde eles escreviam”, aponta o jornalista e escritor Ruy Castro. Outros periódicos, como O Estado de S. Paulo, dedicaram poucas linhas ao festival, sem muita reverberação.

No entendimento de alguns dos que se debruçam hoje sobre a Semana de 22, a importância atribuída ao festival, da forma como as gerações atuais aprenderam na escola, é resultado de uma construção posterior. Que teria começado com as conferências dadas por Mário de Andrade em 1942, sido reforçada pelo fato de que muitos dos participantes do evento ocupavam então postos-chave na sociedade – o próprio Andrade tornou-se diretor-fundador do Departamento de Cultura de São Paulo – e, principalmente, arraigada quando acadêmicos da Universidade de São Paulo, como o sociólogo e crítico Antonio Candido (1918-2017), transformaram o modernismo brasileiro em teoria literária.

“A gente precisa ter muito claro quem é que nomeia o quê, quem diz o que é moderno, o que não é moderno, o que é passadista e o que não é. É sempre uma construção momentânea e por alguma narrativa de um grupo”, analisa o compositor Livio Tragtenberg, ex-professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e criador da Orquestra de Músicos das Ruas de São Paulo.

“O mamoeiro”, de Tarsila do Amaral, na exposição “Era uma vez o moderno”, que questiona o alcance da Semana de 22. Foto: Cecília Bastos/ USP Imagens

Em outras palavras: a Semana de Arte Moderna foi inventada por aquele grupo, há 100 anos. Mas seu papel como marco fundador da cultura brasileira pode ter sido uma invenção posterior – com a decantação histórica e acadêmica dos fatos.

“Grande parte da mitificação da Semana de 22 foi graças ao trabalho de hipervalorização realizado principalmente pelos acadêmicos da USP, pessoas extremamente qualificadas que tiveram muito êxito nessa estratégia de colocar a Semana como o marco zero das artes brasileiras”, atesta a jornalista e pesquisadora Marcia Camargos, autora de Semana de 22: Entre vaias e aplausos.

Representatividade questionada

Há ainda críticas que, embora anacrônicas, porque pensadas a partir da ótica contemporânea, sustentam a argumentação de que o que se fez ali não era uma arte representativa do todo da sociedade brasileira.

Nesse sentido, a baixa participação feminina – apenas quatro artistas eram mulheres, dos cerca de 30 que participaram ativamente dos saraus e das apresentações – a ausência de negros e outras minorias, bem como a não inclusão da arte popular que já vinha sendo praticada no país, seriam as principais razões para os que relativizam a importância da Semana de 22.

“E eles não só eram majoritariamente homens, mas alguns – como Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida [1890-1969], Rubens Borba de Moraes [1899-1986], Cândido Mota Filho [1897-1977], Paulo Prado [1869-1943] e outros – orgulhosos de serem descendentes dos bandeirantes”, acusa Castro. “O único negro da turma, Mário de Andrade, não se via como negro. E Anita Malfatti, praticamente a única mulher, não abriu a boca naquelas três noites.”

Citando o recém-lançado Diário confessional, de Oswald de Andrade, Castro tacha o autor de “antissemita, racista e homofóbico”. “Como se vê, a máscara da Semana de 22 está caindo”, afirma o jornalista.

“Foi um evento da elite para a elite”, aponta a historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Algo de gente que estava trazendo ideias estrangeiras que não tinham necessariamente uma inovação do ponto de vista artístico, tudo patrocinado e voltado para uma elite que não necessariamente gostou do que viu.”

Para Rosin, a “importância do evento tem de ser relativizada com urgência”, “porque normalmente, quando se lê a respeito, parece que todo mundo foi, que foi algo de proporções enormes e que causou grande frenesi”. “Mas não é verdade: a participação foi pequena, de uma parte da elite. E depois isso virou um verdadeiro fetiche em cima da Semana, como se tivesse sido um evento catártico para o país”, objeta a historiadora.

Camargos relativiza a questão: para ela, o fato de o festival ter sido organizado às pressas, “sem uma curadoria séria”, explicaria os “pequenos deslizes, como a falta do elemento popular e a questão de gênero”. “Isso, a gente debita na conta do improviso, porque foi uma coisa improvisada, pensada do dia para a noite.”

Autor Mário de Andrade (1º no alto, à esq.) foi uma das figuras centrais do modernismo brasileiro, em 1922 e mais além. Foto: Public Domain

Rio x São Paulo

Incomodado com a hegemonia, no imaginário nacional, conquistada pelos modernistas da Semana de 22, Ruy Castro acaba de lançar o livro As vozes da metrópole, em que recupera autores “esquecidos” do Rio de Janeiro de 100 anos atrás. Benjamim Costallat (1897-1961), João do Rio (1881-1921) e Agrippino Grieco (1888-1973) são alguns desses literatos resgatados. Castro vê neles uma postura muito mais inovadora do que a dos que se consolidaram como “modernistas”.

“Eles são a prova de que, em 1922, já se escrevia moderno no Brasil, ao contrário do que pregavam os modernistas. Os autores incluídos no meu livro tinham, inclusive, inúmeras preocupações sociais, como racismo, violência contra a mulher, internação psiquiátrica compulsória, condições de vida nas prisões, etc.. Ao contrário dos modernistas, que eram intelectuais de salão, alienados, e só pensavam em estética, tipo combater o soneto e a Academia.”

Castro afirma que os modernistas paulistas não buscavam “nenhuma brasilidade”, limitando-se a realizar aqui uma releitura do que se fazia na França. Enfim, eles não seriam os “inovadores”, como se tornaram conhecidos, pois a inovação modernista já ocorria em outros grupos, anteriormente.

Villa-Lobos x Pixinguinha

Na música, Tragtenberg também censura a ausênca da vibrante cena que já ocorria no Rio de Janeiro. O autor do livro O que se ouviu e o que não se ouviu na Semana de 22 aponta que na então capital do país havia “um desenvolvimento de uma riqueza de misturas e de interações muito anteriores à Semana de 22”.

“Já se misturava a música de salão europeia com a música dos negros e a que se fazia nos bares e cafés. Quando a Semana estava acontecendo, Pixinguinha [1897-1973] era presença em Paris, exportava a música feita aqui, antes do [Heitor] Villa-Lobos [(1887-1959), que participou do evento].”

O compositor salienta que “nem passou pela cabeça daqueles que organizaram a Semana considerar a música popular”. E, nesse sentido, ficaram de fora, além de Pixinguinha, nomes como Donga (1890-1974) e João da Baiana (1887-1974).

“Para eles [os modernistas], o importante era uma atualização da cena provinciana em relação à Europa. Então apenas a arte erudita, que se escrevia em partitura, estava no radar. Eles não imaginavam chamar aqueles músicos que já tinham expressão importante na cena carioca”, contextualiza. “Não era um ranço, mas eles eram de mundos diferentes.

Rosin apresenta ainda um outro argumento para rebater a noção difundida de que o festival realizado no Teatro Municipal “representou a cultura brasileira”: “Ninguém sabe como foi, o evento não foi nem fotografado”, lembra a historiadora da Unifesp.

A questão indígena

Integrante de um grupo que propõe uma revisita crítica ao modernismo, a antropóloga e escritora Deborah Goldemberg destaca a questão indígena central para avaliar a relevância do movimento. Os povos originários serviram “de matéria-prima para a literatura modernista”, frisa ela. “Eram objeto de muita curiosidade, de pesquisa. Seus mitos eram colhidos e publicados, muitas vezes transmutados. Sua estética sempre fascinou a todos.”

É o caso de Macunaíma – O herói sem nenhum caráter, obra de Mário de Andrade. Para Goldemberg, é um sério defeito os indígenas terem ficado “num lugar objetificado, como diriam os antropólogos”: “Não participaram ativamente dos processos criativos e, muitas vezes, nem mesmo eram informados que sua mitologia ou imagens estavam servindo de matéria-prima.”

Andrade soube do mito do povo taurepangue por meio dos relatos do etnologista e explorador alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924). A antropóloga, no entanto, esperaria dele pesquisa de campo – para uma obra que é declaradamente de ficção e se inspira em fontes múltiplas. “Ele nunca foi visitar os taurepangue ou dialogar com eles. Agora, quase um século depois, os taurepangue nem sabiam que existia o romance de Mário levando no título o nome de sua deidade”, cobra Goldemberg.

Exemplar de “Macunaíma” que pertenceu a Mário de AndradeFoto: Cecília Bastos/ USP Imagens

Em 2018, ela foi a curadora de um evento em São Paulo para marcar os 90 anos do lançamento do livro de Mário de Andrade e tentar retificar o que ela considera uma falha histórica. Na esteira dessa celebração, em Boa Vista o artista macuxi Jaider Esbell (1979-2021) entregou a um representante taurepangue – o neto do informante de Koch-Grünberg, na época – um exemplar de Macunaíma.

“Pela primeira vez, Avelino Taurepang, o neto de Akuli Taurepang, entrou em contato com o mundo da literatura e pôde narrar a sua versão da mitologia, ser ouvido pelo mundo literário paulistano, entender o que tinha acontecido. Ou seja, ali os taurepangues se tornam sujeitos dessa construção, não meros objetos dela”, argumenta a antropóloga. “Demorou, né?”

Esse movimento de releitura e reconstrução deu origem ao livro Makunaimã – O mito através do tempo, lançado em 2019, do qual Deborah Goldemberg e nativos taurepangues são coautores.

Desdobramentos contemporâneos

Questões do tipo também aparecem no video-documentário AmarElo, lançado em 2020 pelo rapper Emicida. Ali ele busca uma retratação do papel dos negros no modernismo. “É uma questão legítima”, avalia Goldemberg. “Inclusive por Mário [de Andrade] ser negro e não falar muito disso. A questão negra é central para o Brasil.”

Relativizando a vertente que desvaloriza o modernismo de cepa paulista – e a Semana de Arte Moderna em particular –, para a jornalista Marcia Camargos a prova de que o evento de fevereiro de 1922 foi, sim, extremamente importante está nos seus desdobramentos: “Os movimentos artísticos que vieram depois acabaram partindo do debate modernista”, ressalta ela. E, claro, o fato de as discussões ainda seguirem vivas é efeito dessa relevância.

Como se as cortinas do Teatro Municipal ainda não tivessem se fechado, seja para as vaias, seja para os aplausos, 100 anos depois.

Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/afinal-a-semana-de-arte-moderna-foi-t%C3%A3o-importante-assim/a-60703070

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