Monica de Bolle

Monica de Bolle: Freiheit!

Já neste fim de década, “liberdade” é palavra perigosa, tempos de intolerância, de conservadorismo extremado, de nacionalismo escancarado, de injustiça

No dia 25 de dezembro de 1989, há quase 30 anos, Berlim recebeu Schiller, Beethoven e Leonard Bernstein. O “Concerto pela Liberdade” marcou não apenas a queda do Muro de Berlim, mas a inauguração de uma nova era. Para a Alemanha, tinha início a união, com a demolição do muro que dividira o país após a Segunda Guerra Mundial. Para o mundo, a sinfonia sublime de Beethoven seria o hino da União Europeia. O novo tempo tinha início, assim, com Beethoven, o compositor que soube como ninguém revelar a beleza que a humanidade é capaz de produzir, e a contribuição do magnífico Bernstein ao introduzir no poema de Schiller uma singela e brilhante mudança: a substituição da palavra “alegria” pela palavra “liberdade”. Já neste fim de década, “liberdade” é palavra perigosa, tempos de intolerância, de conservadorismo extremado, de nacionalismo escancarado, de injustiça.

Em 1989 Bernstein ofereceu a liberdade ao mundo no poema de Schiller, unindo todos os povos com a celebração de sua inescapável humanidade. Quem não quer liberdade? Liberdade para criar, para se expressar, mas, sobretudo, para garantir a justiça. Não há liberdade onde uma parte da população é oprimida ou impedida de ter as mesmas oportunidades, os mesmos direitos e o mesmo respeito que têm os demais. Não há liberdade onde há injustiça.

Sociedades muito desiguais não são justas, portanto, não são livres. O Brasil é profundamente desigual e inequivocamente iliberal — e isso só é novidade para quem nunca pôs o país diante do espelho, olhou e fez as perguntas difíceis. Como defender um fiscalismo qualquer em nome do “liberalismo” sem tratar das consequências que essas medidas podem ter no aprofundamento da desigualdade? Como ter a ousadia de falar em “volta da confiança com as reformas para retomar o crescimento” quando há dezenas de milhões de desempregados e subempregados no país? Sem contar, é claro, que só fizemos uma reforma nestes quase 12 meses de governo.

Como dar tanta atenção ao mercado quando estamos perdendo mais uma geração para o analfabetismo funcional em matemática, ciências e, claro, leitura? Como deixar escorrer pelas costas de uma sociedade multiétnica as persistentes discriminações de gênero, de raça, de classe social? Se há algo que o Brasil deveria ter aprendido com seus fracassos é que dogmas não respondem a essas perguntas. O modelo formal e rigoroso — modelinho bacana — aprendido na faculdade de economia não responde a essas perguntas. Os arroubos em mídias sociais tampouco. As respostas prontas não respondem a essas perguntas.

O mundo está de pernas para o ar. Perdemos referências que pareciam bem estabelecidas e que foram celebradas no Portão de Brandemburgo naquele Natal de 1989. É certo que àquela altura o entusiasmo com o liberalismo também era cego, mas tal perda de referências não é licença para fazer o que bem se entende — isso a liberdade não permite, já que está entrelaçada com a justiça, a igualdade de todos na aspiração a uma vida livre e o dever de respeitar espaços e modos de vida alheios.

A perda de referências também não é razão para o desespero ou para o niilismo. Não é a primeira vez que a humanidade vê ruir suas referências. A perda de referências é, antes, uma oportunidade. Oportunidade para pensar e debater como entendemos a desigualdade, em que medida os governos são capazes de atenuá-la e se basta pensarmos apenas nessa dimensão daquilo que é um imenso problema nacional e global.

Desigualdade é a disparidade de acesso às oportunidades no ponto de partida. Reduzindo-a a alguns itens do Índice de Desenvolvimento Humano, a desigualdade passa pelo acesso à educação de qualidade, à saúde, ao saneamento, a um emprego que garanta um salário digno. Mas, ainda que resolvidos os problemas do ponto de partida, há muros. Há muros que impedem a mobilidade social por preconceitos, por exemplo. Entre os maiores problemas que o mundo e o Brasil enfrentam nesta virada de década não figura apenas a simples existência desses muros, mas a vontade política, a vontade popular, de torná-los mais sólidos e resistentes. Ou de erguê-los onde haviam deixado de existir — no Canal da Mancha, por exemplo.

Neste mundo em que sobem as barreiras, neste Brasil em que as cabeças se fecham e o campo visual se estreita, há muita necessidade de resgatar a liberdade concebida por Schiller, Beethoven e Bernstein naquele dezembro simplesmente formidável e inesquecível.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Mônica De Bolle: A sanha de querer concluir

Como explicar, por exemplo, o ressurgimento, em países tão distintos quanto a Índia e os EUA, do nacionalismo?

“Meu caro amigo,
Dê ao povo, especialmente aos trabalhadores, tudo o que for possível. Quando lhe parecer que já deu muito, dê a eles ainda mais. Você verá os resultados. Todos tentarão amedrontá-lo com o espectro de um colapso econômico. Mas tudo isso é mentira. Não há nada mais elástico do que a economia que todos temem tanto porque ninguém a entende.”

Carta de Juan Perón para Carlos Ibañez, Presidente do Chile em 1953.

É claro que há certo exagero na carta de Perón – a política, por exemplo, é consideravelmente mais elástica do que a economia. Mas esse não é o ponto. O trecho da carta de Perón para Ibañez é comumente citado para sublinhar os males do populismo econômico, para concluir que políticas econômicas que desrespeitam restrições financeiras de forma sistemática estão fadadas a fracassar. Ainda que isso seja verdade, sobretudo na experiência latino-americana, a nuance em destaque é ignorada, talvez por ser demasiado inconveniente: todos temem a economia porque ninguém a entende. Se substituirmos economia por política, a frase é ainda mais verdadeira.

Em 1970, Albert O. Hirschman, um dos maiores pensadores contemporâneos – para mim, o maior – escreveu The Search for Paradigms as a Hindrance to Understanding (A Busca de Paradigmas como um Obstáculo à Compreensão). Hirschman, falecido em 2012, era economista, além de um cientista social que transitava entre Ciência Política, Sociologia e mesmo Antropologia. Nesse ensaio para a World Politics ele parte da comparação de dois estudos elaborados por cientistas sociais norte-americanos para tecer uma crítica feroz à tendência de dar respostas rápidas e unificadas para fenômenos sociais complexos – no caso, a Revolução Mexicana e a violência na Colômbia. Mas sua crítica é mais geral. Para Hirschman havia, já em 1970, uma doença que contaminava as ciências sociais, da economia à sociologia, passando pela ciência política. A patologia se apresentava na forma da busca incessante por paradigmas unificados para provar teorias no lugar de compreender a realidade. A realidade, sempre emaranhada e opaca perante a elegância e a clareza das teorias.

Esse ensaio de Hirschman, assim como quase tudo que ele escreveu, é fundamental para os dias de hoje. Da turbulência social na América Latina ao caos das eleições britânicas, à ascensão de Donald Trump, ao ressurgimento do nacionalismo em suas expressões mais abjetas – como a perseguição de Narendra Modi aos muçulmanos na Índia, ou a expressão brutal da nulidade absoluta representada pelo bolsonarismo –, há uma ânsia por responder. Autores celebrados mundialmente escrevem livros e mais livros repletos de respostas. Querem explicar por que as democracias correm perigo? Querem saber se as democracias são estáveis? Querem uma resposta elegante e clara para a turbulência política e socioeconômica que abala o mundo? Pois vá na prateleira digital ou real – o que não faltam são as respostas. Quanto às perguntas, bem, elas não andam em voga. Não falo das perguntas retóricas, aquelas feitas apenas por estilo ou efeito. “Quem poderia imaginar que voltaríamos a exaltar o AI-5?”. “Quem diria que uma menina de 16 anos seria capaz de mobilizar o mundo?”

As perguntas que estão em falta são: como explicar o ressurgimento do nacionalismo em países tão distintos quanto a Índia e os EUA? Por que a América Latina passa por tamanha turbulência agora, sobretudo considerando que desigualdade e reviravoltas externas sempre marcaram a região? Por que pensar que há explicações aprumadas para problemas tão distintos e confusos, babélicos até?

A economia não é tão elástica como diz a carta de Perón e como alguns economistas do presente querem fazer crer. Se fosse, bastava a confiança para crescer, a reforma para investir, os juros historicamente baixos para consumir. As previsões otimistas para o crescimento do Brasil feitas no fim de 2018 deveriam ter se concretizado, fosse a economia um exemplo de elasticidade. Não vale dizer que, “ah, mas são as defasagens”. Na sanha de querer concluir – “la rage de vouloir conclure” – essa é a pior resposta. Que o diga Flaubert. Que o diga Perón. Compreendemos, de fato, muito pouco. Ao contrário de pessimista, esse paradoxo conclusivo é uma oportunidade e um convite para ir além dos memes e da superficialidade. Deixo-o como presente de fim de ano aos leitores.

* Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: Nem nacionalismo nem ultraliberalismo

Ressuscito a era Dilma e a época áurea da substituição de importações por uma razão: há muitos motivos que podem levar a mudanças políticas traumáticas

O Brasil e, de modo mais geral, a América Latina são profundos conhecedores das mudanças traumáticas de regimes políticos. Para que fique claro, não considero a mudança de Mauricio Macri para Alberto Fernández recém-ocorrida na Argentina “traumática”, ainda que o país vizinho esteja novamente engalfinhado numa crise econômica. As mudanças traumáticas a que me refiro são os golpes militares dos anos 1960 e 1970 e, na história recente brasileira, o impeachment de Dilma Rousseff.

Como tenho abordado neste espaço, estou estudando a volta do nacionalismo econômico e tenho me aprofundado em estudos de caso selecionados desde o início do século XX. Recentemente, andei relendo a literatura sobre a industrialização por meio da substituição de importações (ISI), com um olhar especial para os casos do Brasil e da Argentina nos anos 1940 e 1950. O estudo de medidas de cunho nacionalista no âmbito da ISI me levou às leituras sobre a extensão dos problemas econômicos causados por esse modelo de desenvolvimento — industrializar substituindo produtos importados — e às relações entre esses problemas e a primeira fase de mudanças traumáticas na região durante o pós-guerra. Há muitas formas de analisar a ISI. Mas o pensador que melhor definiu os problemas desse modelo de desenvolvimento, tão disseminado na região, foi o economista e cientista social Albert O. Hirschman. O alcance de sua análise se deve, primeiro, a sua nítida abertura de pensamento e aversão ao reducionismo. O modelo da ISI, ao contrário do que muitos afirmaram nos anos 1960 e 1970, não sofreu um “esgotamento”, conforme analisou Hirschman. Fosse assim, as políticas que Dilma ressuscitou — os campeões nacionais com dinheiro do BNDES e a preocupação extrema com a desindustrialização, suscitando ações que muito remetiam ao passado — não teriam tido o apoio temporário do empresariado industrial brasileiro.

Para viabilizar a ISI foi preciso manter, durante muito tempo, uma taxa de câmbio real sobrevalorizada. Isso garantia que os bens de capital importados necessários para a indústria que se queria desenvolver permanecessem relativamente baratos, ao mesmo tempo que transferia recursos das exportações de produtos primários para os novos setores industriais nos anos 1940 e 1950. Contudo, uma moeda sobrevalorizada acaba dificultando o financiamento do déficit externo, o que leva a um ciclo interminável de crescimento seguido de severas crises. Essa situação foi importante para impulsionar a ideia de que era necessário combater “governos populistas que flertavam com o socialismo”. A visão simplista e, portanto, atraente era motivada pelo enorme envolvimento do Estado na economia para sustentar as políticas de promoção industrial, levando ao desenlace traumático da remoção de governos “simpatizantes do Estado”. Em muitos casos, os regimes militares que lhes sucederam também se mostraram, no entanto, simpatizantes do Estado.

Algo semelhante se passou com Dilma. Devido a suas políticas econômicas desordenadas, a moeda brasileira havia sofrido sobrevalorização de quase 20% às vésperas do processo de impeachment. A inflação alcançara quase 12%, e, ainda que o Brasil tivesse a capacidade de evitar as graves crises externas dos anos 1970, 1980 e 1990, os desequilíbrios fiscais impediam que se amenizasse a brutal recessão. O resultado foi que os empresários que até então haviam dado apoio às políticas da equipe econômica o retiraram, ampliando a fragilização política da presidente, já evidente em suas dificuldades de negociar com o Congresso e no avanço da Operação Lava Jato. O resultado de tudo isso está aí, espalhado no Twitter e estampado nas mãos que imitam arminhas.

Às vezes problemas de ordem puramente externa se somam aos de ordem interna, provocando uma espécie de tempestade perfeita para uma reviravolta política. O modelo de desenvolvimento escolhido, com todas as suas ramificações, ajuda, contudo, a explicar tantos traumas e abalos na América Latina. O nacionalismo, seja nas políticas de industrialização tardia, seja nas tentativas de reindustrialização, não ajudou o Brasil ou a América Latina. Sua antítese, na forma do ultraliberalismo guediano paradoxal, aquele que libera geral, mas mantém a economia fechada, tampouco o fará.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica de Bolle: Cincuum

Paulo Guedes é um homem antiquado, preso às ideias de uma Escola de Chicago que não existe mais

Não entendo nada de futebol apesar de ser flamenguista. Portanto, este não é um artigo sobre o Flamengo, o Mengão campeão, viva o Flamengo! Mas há algo de novo no Flamengo que toca outros temas, em particular a falta do novo na condução econômica e no debate nacional sobre os rumos do país. O novo no Flamengo é, evidentemente, a abertura para ideias diferentes representada pela escolha do técnico, tão criticado no início da trajetória para os dois títulos conquistados no último fim de semana. Arejar as ideias é fundamental em qualquer área, do futebol à economia.

Na economia, estamos bem mal. Não é exagero, ainda que alguns possam querer insistir em relatar melhorias pontuais, a aprovação da reforma da Previdência e outros feitos. Não os desmereço, que fique claro. O problema é outro. Nesta semana esteve no Peterson Institute for International Economics (PIIE) o ministro Paulo Guedes.

Não, não foi aqui que ele deu a declaração sobre o AI-5, mas nem por isso sua fala foi menos espantosa. O PIIE é um dos mais prestigiados institutos de pesquisa do mundo, vencedor há 4 anos seguidos do prêmio Prospect de Melhor Think Tank de Economia. A plateia que participa dos eventos públicos e privados que organizamos é altamente qualificada: embora ela seja composta majoritariamente por economistas, sempre há cientistas políticos, advogados, além de diversos acadêmicos de outras áreas e gestores de políticas públicas. Esperava-se que o ministro fizesse uma apresentação técnica sobre os avanços conquistados e os riscos do ambiente de turbulência política ao redor do país e dentro dele próprio para a economia brasileira.

Em vez disso, Guedes se ateve ao modo associação livre de falar, que é sua característica. A associação livre, quando bem feita, pode dar boas letras de música, boa prosa ou poesia, um monólogo divertido, até. Contudo, não suscitou interesse na plateia habituada a pensamentos bem estruturados e expostos com clareza.

Guedes foi errático, pulou de um tema para outro, divagou e falou bobagens. Ao descrever a agenda futura de reformas, foi repetitivo. Forneceu uma lista de desejos ordenada item por item, em que a alardeada reforma tributária constou como o item de número “cincuum”. Sem explicitar o termo de comparação, repetiu várias vezes que a democracia brasileira é a mais vibrante e que a segurança está melhorando com a queda na taxa de homicídios, colhendo os frutos de ações estaduais e de administrações anteriores. Claro que não houve menção às mortes associadas às ações policiais nas comunidades pobres.

Quase disse que o Brasil é o país mais preocupado com o meio ambiente no mundo — não disse isso exatamente, mas o tom esfuziante ficou evidente. Falou, falou, falou. Quando viu que a hora passava e que ele deveria dar a palavra para a plateia, falou mais um pouco. Foram poucas as perguntas e ele não respondeu a nenhuma, empenhado que estava em seu fluxo de consciência desconexo. Não restou qualquer dúvida de que o ministro gosta muito de ouvir a própria voz.

De tudo isso, o que ficou claro para a plateia?

Em uma brevíssima menção à pobreza, disse que o ideal era dar alguma condição ao pobre e deixá-lo a serviço do mercado, remontando à velhíssima premissa de que pobre é pobre porque não sabe correr atrás do que precisa para ser bem-sucedido. A pobreza para ele não é estrutural nem resultado de um intricado sistema que impede a mobilidade social pois é gerador de desigualdades de oportunidades no ponto de partida. Guedes não entende que o crescimento econômico não é uma panaceia, que não é condição suficiente para nada e talvez não seja sequer condição necessária.

Tenho escrito, com base em uma releitura de Albert O. Hirschman, que o crescimento pode ser fonte de instabilidade política a depender da maneira como afeta a dinâmica social e a mobilidade de segmentos da população. O pensamento econômico moderno abandonou as teses de Guedes sobre pobreza e crescimento há tempos. Também abandonou a ideia de Estado mínimo por ele apregoada. Guedes é inequivocamente vítima de um problema que assola o Brasil em várias esferas: o enrijecimento intelectual e a incapacidade de interagir com o que é novo e diferente. Como tantas profissões, é adepto do clubismo na troca de ideias. Fala para si e para os que querem ouvi-lo, sem capturar aqueles que operam em frequências distintas. Trata-se de um retrato da poeira que assola o Brasil atual.

Cincuum. Vai Flamengo! Levanta a taça do Brasileirão com toda a mescla de criatividade e de cores das bandeiras do Brasil e de Portugal. Aproveita para assoprar um pouquinho da poeira. O Brasil precisa.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica de Bolle: Ressuscitando Prebisch?

Custo a acreditar que algum economista hoje aposte todas as fichas no quadro internacional para explicar a instabilidade econômica e política da América Latina

No último domingo, a Folha de S.Paulo publicou um longo ensaio de dois cientistas políticos sobre as relações entre a instabilidade política na América Latina e o que apontam como as causas fundamentais da instabilidade econômica — o título do artigo é “Frustração com economia alimenta revoltas na América do Sul”. Para sustentar a tese de que a instabilidade política da região provém da instabilidade econômica causada pelo tipo de inserção internacional das economias da região, os autores constroem um índice que se vale apenas das condições externas, a saber: a taxa de juros nos Estados Unidos e os preços das matérias-primas nos mercados internacionais.

A partir da construção do que denominam “Índice de Bons Tempos Econômicos” desde os anos 1960 até o presente, os cientistas políticos identificam momentos de instabilidade política justamente quando o indicador cai, isto é, quando o “bom tempo econômico” se torna um “mau tempo econômico”.

A ideia de que a instabilidade política e econômica da América Latina está intimamente relacionada com o quadro internacional — sobre o qual países da região não têm controle — não é nova. No fim dos anos 1940 e ao longo dos anos 1950 vários economistas latino-americanos de tradição cepalina desenvolveram a tese da dependência, ou teoria da dependência: a América Latina estaria fadada a conviver com ciclos de extrema volatilidade econômica por ser uma região tradicionalmente exportadora de matérias-primas, portanto, excessivamente dependente dos mercados internacionais. Economistas como Raúl Prebisch, um dos principais formuladores da teoria da dependência, abstiveram-se de relacionar diretamente volatilidade econômica com instabilidade política, embora elas estivessem muitas vezes intrinsecamente associadas em seus escritos.

Como bem sabem os economistas, correlação não é causalidade, e observar associações não equivale a dizer que a instabilidade política é causada por isso ou aquilo. Os autores do artigo da Folha do último domingo parecem tentados, pela elaboração de seu índice, a afirmar que a instabilidade política é causada pela inserção econômica internacional da América Latina, o que evidentemente ignoraria as características individuais de cada país como fator relevante. Mas o que mais me assombrou na tese foi o paralelo com o pensamento de Prebisch.

Muitos haverão de se lembrar de que a teoria da dependência desenvolvida nos anos 1940 e 1950 resultou nos desastrosos experimentos de vários países com as políticas de substituição de importações na América Latina nos anos 1960 e além. Industrializar por meio da substituição de importações seria o antídoto para neutralizar a volatilidade proveniente da dependência extrema dos humores do mercado internacional.

Como sabemos, não foi bem assim que a coisa se deu. Os setores protegidos tornaram-se cada vez menos competitivos ao longo do tempo, criando em vários países — sobretudo no Brasil — indústrias de baixo grau de competitividade e produtividade. As medidas usadas para implantar a substituição de importações — tarifas, cotas comerciais, regimes de câmbio múltiplo — transformaram-se em fontes adicionais de instabilidade econômica. Ou seja, a resposta ao diagnóstico de que toda a culpa pela alta instabilidade da região era do quadro externo levou a respostas de políticas públicas que exacerbaram essa instabilidade, em muitos casos desembocando em hiperinflações, crises cambiais e fiscais, moratórias e planos fracassados de estabilização macroeconômica.

Ao contrário, muitos atribuem a instabilidade às características políticas, sociais e econômicas de cada país, para além do quadro internacional. Ao mesmo tempo, muitos economistas passaram a incorporar a psicologia social e comportamental, além da pesquisa empírica, na área de ciências políticas, em suas análises. Há um reconhecimento claro da importância dos fatores apontados em 2010 pela Political Instability Task Force para explicar o risco de instabilidade política, a saber: se o país está inserido numa vizinhança politicamente instável, se as instituições democráticas são relativamente frágeis e se o grau de polarização política é alto. A América Latina atende aos três critérios.

Que os cientistas políticos e os economistas estejam cada vez mais preocupados com as interconexões de suas disciplinas para entender os fenômenos que estudam e observam é algo a ser comemorado. Que se aposte em explicações reducionistas sobre como a economia e a política interagem não é. Antes de ressuscitar Raúl Prebisch, deveríamos ressuscitar Albert O. Hirschman.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica De Bolle: Dentro do túnel

Profundamente desigual, o Brasil foi o único País da América Latina que viu a pobreza aumentar desde 2014

Em 1973, o grande economista Albert O. Hirschman publicou artigo intitulado “A mutabilidade da tolerância à desigualdade de renda durante o desenvolvimento econômico”. Nesse artigo, ele elaborou a tese do “efeito túnel” a partir de metáfora prosaica. Imagine que você esteja preso em um engarrafamento dentro de um túnel. De repente, a faixa ao seu lado começa a se mover lentamente enquanto a sua continua absolutamente imóvel. A constatação de que enfim o tráfego começou a se mexer lhe dá esperanças de que eventualmente a sua faixa também passe a andar. Portanto, você haverá de tolerar a injustiça inicial de sua imobilidade pois há a expectativa de que em algum momento a movimentação incipiente lhe beneficie.

Assim descreve Hirschman os primeiros estágios do desenvolvimento econômico. Quando as economias começam a se desenvolver e crescer, algumas faixas de renda serão beneficiadas primeiro, deixando outras para trás. Há, portanto, um aumento da desigualdade.

Contudo, a população tende a tolerar esse aumento da desigualdade porque, como os carros dentro do túnel, têm a esperança de que em breve os benefícios do crescimento econômico acabará lhes trazendo ganhos semelhantes. Nas palavras de Hirschman, enquanto o efeito túnel durar, todos sentem que a qualidade de vida melhorou, ainda que alguns tenham ficado ricos e outros não.

É concebível, portanto, que distribuições desiguais de renda sejam preferíveis a distribuições mais igualitárias, o que torna o aumento da desigualdade politicamente tolerável, ou até desejável. Essa tolerância, obviamente, é apenas eterna enquanto dura. Caso o ciclo de crescimento e desenvolvimento acabe por frustrar as expectativas daqueles que não desfrutam de seus benefícios, a tolerância inicial com a maior desigualdade de renda se transformará rapidamente em ressentimento e intolerância. O efeito túnel é portanto especialmente perigoso para os políticos, que não têm como saber quando a tolerância haverá de se transformar subitamente em intolerância. Embalados pelas expectativas positivas das primeiras etapas do ciclo de crescimento, é provável que se tornem complacentes, ignorando a necessidade de enfrentar as desigualdades criadas. Quando percebem a mudança, já é tarde demais: o povo estará nas ruas ou nas urnas denunciando o mesmo processo que os fez inicialmente acreditar na melhoria de vida, afirmando que os ricos se tornaram mais ricos enquanto o resto ficou para trás.

O efeito túnel de Hirschman é incrivelmente poderoso para explicar o que se passa hoje na América Latina – possivelmente em outras partes do mundo também. Assim como no Brasil em 2013, as manifestações no Chile pegaram o presidente e seu entorno de surpresa.

A indignação aparentemente repentina tomou conta das ruas por uma razão aparentemente singela: um pequeno ajuste nas passagens de metrô. Contudo, não foi o aumento do metrô que levou o povo para a rua, assim como em 2013 não foram os 20 centavos. A frustração derramada, às vezes com violência, é fruto do esgotamento da tolerância, da sensação de que ficar naquela faixa engarrafada que não vai a lugar algum dentro de túnel onde não há saídas é insuportável. A conclusão inevitável é que políticas para retomar o crescimento econômico são desejáveis e toleráveis apenas até um certo ponto. Caso não resultem em redução das desigualdades e melhorias concretas de vida para todos tornar-se-ão politicamente inviáveis.

Penso nisso quando vejo a precariedade dos empregos no Brasil, o aumento da informalidade e da pobreza. Penso nisso quando vejo anúncios de medidas econômicas que podem acabar esgarçando ainda mais a rota rede de proteção social brasileira. Penso nisso quando vejo o ministro da Economia com propostas para criar empregos para os mais jovens financiando-as com tributos sobre o seguro-desemprego. Essas medidas revelam uma surdez cega não apenas dirigidas aos ruídos estrepitosos de uma região que se levanta para reclamar de seus líderes, como também em relação à realidade de um País profundamente desigual – o único na América Latina que viu a pobreza aumentar desde 2014, pouco importa de que governo seja a culpa por isso.

Pode ser que não aconteça nada. Pode ser que o Brasil continue impávido frente aos problemas sociais existentes e ao que acontece ao seu redor. Mas, não custa nada reler Hirschman. Em 1973, o alcance de sua visão era bem maior do que o dos economistas da Universidade de Chicago na época.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: Uma aliança desorientada pelo Brasil

O partido de Bolsonaro já nasce desorientado não apenas por não ter qualquer articulação clara de ideias ou agendas, como também pelo logotipo que escolheu

Confesso que tive certa dificuldade para intitular este artigo, pois não sei quem está mais desorientado: a aliança que Bolsonaro pretende criar ou o país que ele tenta liderar. A ideia, de todo modo, nasceu do logotipo do novo partido, Aliança pelo Brasil. Embora ele tente retratar uma aliança em verde e amarelo — aliança no sentido de anel de dedo —, creio que, inadvertidamente, os responsáveis pela criação do logotipo tenham esbarrado em um objeto matemático curioso. O logotipo da Aliança pelo Brasil, para quem não viu, é um círculo retorcido que causa espécie de ilusão de ótica — como se passa do lado verde para o lado amarelo? Eis aí o primeiro problema: o símbolo escolhido pelos artistas gráficos é um objeto matemático que tem duas dimensões, mas apenas um lado.

Como pode? Peço aos leitores a paciência de fazer deste um artigo interativo. Peguem, por favor, uma folha de papel. Pode ser de qualquer cor, mas sugiro uma folha branca. Cortem uma tira de mais ou menos dois centímetros de largura. Com a tira em mãos, façam uma meia torção — reparem, só uma meia torção, isso é muito importante. Feita a meia torção, colem os dois extremos da tira um no outro. Se as instruções foram seguidas corretamente, vocês agora terão em mãos objeto conhecido como a fita de Möbius — Möbius é August Ferdinand Möbius, o matemático e astrônomo que a inventou em 1858. Reparem: embora o pedaço de papel que utilizaram para fazer a fita tivesse dois lados, o objeto fabricado tem apenas um. Não acreditam? Então tentem desenhar uma linha dos dois lados da fita sem retirar o lápis ou a caneta do papel. Impossível, certo?

Caso tenham tido alguma dificuldade com a tarefa proposta ou simplesmente lhes tenha faltado a paciência, há outra forma de constatar que a fita de Möbius tem apenas um lado sendo um objeto bidimensional. Deem uma olhada na gravura de M.C. Escher, aquela das formigas vermelhas caminhado sobre algo que parece uma grade no formato do infinito — a gravura sobre a qual me refiro chama-se Möbius Strip II . As formigas andam, andam, mas não saem do mesmo lado jamais. É irresistível pensar nos membros do novo partido de Bolsonaro como essas formigas: todos haverão de ter um lado só. Como é o Brasil hoje, país de um lado só, pois, se você pertence a um deles, o outro não existe, tamanho o desprezo que você sente por ele.

Há outra curiosidade sobre a fita de Möbius que inevitavelmente nos leva ao partido de Bolsonaro: ela é “não orientável”. Na matemática, ser “não orientável” significa que o objeto carece de direção vetorial — vejam as formigas: independentemente da “direção” que elas tomem sobre a fita, estarão sempre de um lado só e sempre cruzarão o ponto de partida. Na política, ser “não orientável” significa não ter capacidade para se orientar, ou seja, é ser desorientado. Portanto, ao que parece, o partido de Bolsonaro já nasce desorientado não apenas por não ter qualquer articulação clara de ideias ou agendas, tal qual o próprio presidente, como também pelo logotipo que escolheu. Pelo visto, inconscientemente.

Claramente, o multipartidarismo e a fragmentação têm frustrado as expectativas da sociedade brasileira, levando a uma perigosa descrença em relação à política. Que tal descrença hoje esteja generalizada mundo afora não é motivo para que não tratemos dela refletindo sobre os motivos que levam as pessoas a se ater mais à personalidade de determinados políticos do que aos partidos e às propostas que eles deveriam representar. Sem essas reflexões e alguma ideia para uma solução, permanecerão os brasileiros também como as formigas de Escher: caminhando unilateralmente sobre uma fita de Möbius sem chegar a lugar algum.

Creio que a disposição para tanto esteja próxima do esgotamento, a julgar pelo que está acontecendo no resto da América Latina. Afinal, se o Chile está em convulsão mesmo com uma economia que cresce em ritmo razoável, o que dizer do absurdo desempenho da economia brasileira, que todos teimam em chamar de recuperação? Recuperação com 11,8% de desempregados e um monte de subempregados? Recuperação com um governo que inventa medidas em nome da criação de empregos sugerindo tributar os benefícios daqueles que estão justamente desempregados?

Ao que parece, Paulo Guedes nem precisava conhecer o logotipo do partido de Bolsonaro. Já encontrara a fita de Möbius sem precisar recorrer a qualquer artista gráfico. Só há um lado em sua agenda, só há uma borda em suas propostas. Pouco importa o tamanho das dimensões, tampouco as dimensões do tamanho.

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Exame: Paulo Guedes está preso nos anos 70, diz Monica de Bolle

A economista afirma que as políticas do ministro da Economia, de defesa de um estado mínimo, não são condizentes com as necessidades do Brasil

Por Lucas Amorim, Revista Exame

A economista Monica de Bolle, diretora de estudos-latino americanos e mercados emergentes da universidade americana Johns Hopkins, não pode ser acusada de defender as políticas econômicas de Dilma Roussef. A economista lançou, em 2016, o livro Como Matar a Borboleta Azul, uma crítica acabada do modelo de estado máximo e descontrole econômico da ex-presidente. Por isso, suas observações ao programa econômico do atual ministro da Economia, Paulo Guedes, ganham especial relevância. Nos últimos meses, De Bolle tem sido elogiada e cobrada nas redes sociais por críticas cada vez mais incisivas ao ministro. Nesta terça-feira, mesmo dia em que Guedes anunciou um superpacote econômico para enxugar o estado e estimular a economia, a economista publicou, no Twitter, que “está na hora de o ministro sair dos anos 60 e 70”. De Bolle concedeu a seguinte entrevista a EXAME, por telefone.

Por que a senhora afirma que o ministro Paulo Guedes tem uma desconexão da realidade atual?
Seu foco, desde a campanha, é de transformar o Brasil numa espécie de estado mínimo tupiniquim. Mas não dá muito para imaginar como isso cabe em nossa Constituição de 88, que prega um estado de bem estar social. Até por isso ele vem articulando reformas por meio de PECs [proposta de emenda constitucional]. Mas a estratégia chega a ferir normas democráticas. Ele fala em novo pacto federativo, mas não ouve a população. No limite, esse tipo de discussão deveria ser feita em uma assembleia constituinte.

O que o Brasil tem a aprender com o Chile, país com a melhor economia da região e constantemente apontado como modelo por Guedes?
As manifestações recentes no Chile sublinham o tamanho do problema. No Brasil, com pobreza extrema, é ainda pior. Não se atenua a pobreza e a desigualdade sem um estado atuante. É preciso ter redes de proteção social fortes. O mercado não resolve sozinho, como já foi mostrado de todo jeito. O Paulo Guedes está preso nos anos 70 do Chile e dos “Chicago boys”. Além disso, ele nunca foi um formulador de políticas públicas, nem precisou de um entendimento mais profundo de políticas públicas sobre a dinâmica da pobreza na vida das pessoas. O Chile passa por uma convulsão pela ausência de bem estar social a despeito de todas as reformas. Estive recentemente com um embaixador chileno que reconheceu a falha do país em não ter gasto para ter uma rede de bem estar social. O governo Piñera, pelo menos, percebeu que também é responsável, e pela primeira vez um governo de direita está preocupado com questões sociais na região. Espero que dê certo, porque daria um recado muito importante.

Mas o estado brasileiro está nas cordas. Não fazer as reformas não é pior?
Concordo que o estado é pesado e ineficiente, e que há muita coisa a ser feita. E alguma das medidas, como as restrições para funcionários públicos, são importantes. Mas não dá para o estado brasileiro ser reduzido a ponto de só oferecer o básico do básico. O pensamento macroeconômico moderno, que tem sido construído mundo afora, é o estado precisa mirar as tensões sociais. Não é uma coisa ou outra, nem uma primeiro e outra depois. Até porque a insegurança política e social no Brasil não vai permitir esse tipo de mudança.

O governo Bolsonaro é liberal?
Ser liberal não pressupõe só estado mínimo, mas sim um estado de tamanho ótimo. Na visão liberal, o estado pode, sim, atacar problemas sociais e dar ao mercado as condições de fazer outras coisas. Não há nada de heterodoxo nisso. No Chile, por exemplo, o sistema tributário é baseado em IVA [imposto sobre valor agregado], que incide sobre o consumo e, portanto, é muito regressivo. É um dos focos de insatisfação. Mas, em vez de reduzir o IVA, o Chile poderia criar mecanismos de transferência, como os adotados na Europa, na Austrália, no Japão.

O ministro Paulo Guedes disse à Folha de S. Paulo que, após 30 anos de políticas econômicas de “centro-esquerda” é preciso esperar quatro anos de um liberal-democrata. A senhora concorda?
É uma falácia que precisamos sair de um extremo para o outro. Assim, vamos oscilar como um pêndulo a cada ciclo de governo e aí é que a economia não deslancha mesmo. O único jeito de ir para o centro é ir para o centro. Em 2019 há no Brasil uma impressão de que a economia é a única coisa que funciona, e que a equipe precisa de tempo para trabalhar. Mas o governo defende uma política de país com estado mínimo que não vai funcionar.


Monica de Bolle: ‘Sabe com quem está falando?’

Em tempos de hienas e fricotes nas redes sociais, a carteirada voltou a ser um meio de vida para o governo brasileiro

Quem já não esteve na situação de receber essa carteirada de algum interlocutor com ares de autoridade? Houve tempo em que essa relíquia do passado autoritário e, por que não dizer, paternalista do Brasil tornara-se mais rara, apesar de jamais ter desaparecido por completo. Eis que, em tempos de hienas e fricotes nas redes sociais, a carteirada voltou a ser um meio de vida para o governo brasileiro. Afogado em estultices e falta de competência, sobrou apenas o bom e velho método de intimidação tropical-lusófona. E aí, “sabe com quem está falando”?

Dia desses e outros também tenho visto muita gente reclamar das carteiradas constantes. Muitas são inevitavelmente dirigidas a jornalistas, cujo trabalho é apurar fatos, mas muita gente no Brasil de hoje — no mundo de hoje — não gosta de fatos. Fatos muitas vezes são inconvenientes. Por exemplo: imagine que você tenha ficado preocupada e tenha decidido pesquisar sobre a Amazônia. Se você fez seu trabalho de forma cuidadosa, leu vários artigos científicos, aprendeu sobre as minúcias dos pontos de não retorno — os tipping points a partir dos quais a floresta vira savana —, conversou com cientistas, ambientalistas e ministros e ministras do Meio Ambiente de governos anteriores. Se você é economista tem a vantagem de ter passado por um rigoroso treinamento matemático.

Quem sabe você aprendeu a gostar especialmente de modelos dinâmicos não lineares, aqueles que retratam a instabilidade do mundo como ele realmente é. Sendo esse o caso, há uma boa possibilidade de que você tenha decidido fazer umas contas para traçar cenários sobre a morte da floresta. Cenários não são certezas, mas ajudam a dar uma boa noção da urgência de certos problemas. E, bem, se dia sim e outro também você está acompanhando a cobertura jornalística dos desastres ambientais brasileiros, a Amazônia tem moradia certa em sua cabeça. Você faz a conta e traça o cenário. Eis que você descobre que o cenário catastrófico que tantos temem pode estar mais próximo do que muitos imaginam.

Inevitavelmente, você escreve e publica um artigo sobre a Amazônia. Evidentemente, alguns cientistas concordarão com seus achados e outros discordarão deles. Concordar e discordar fazem parte do método científico, da dialética da descoberta, por assim dizer. Sistemas dinâmicos não lineares, comumente chamados de sistemas dinâmicos complexos, são fascinantes pelo alto grau de instabilidade e imprevisibilidade. São, por essa razão, um prato cheio para o debate científico. Mas,

Vejam, o pensamento linear, quando bem embasado por vetores, matrizes e álgebra linear, pode ser bastante sofisticado. Mas o pensamento linear unidimensional baseado em crendices, teorias conspiratórias e pitadas de magia pueril nada tem de interessante. Tem, sim, o poder destruidor. E, é claro, não consegue resistir à carteirada. Como assim você produziu um cenário de que não gostamos? Como ousa dizer que nosso governo pode vir a ser o responsável pela maior catástrofe ambiental do planeta, acentuada pelas mudanças climáticas em curso — nas quais não acreditamos — e com capacidade de acelerar as próprias mudanças climáticas em curso — e já dissemos que nelas não acreditamos? Em bom inglês: how dare you?

O presidente aparece na TV. Aparece na TV na Arábia Saudita. Ao aparecer na TV na Arábia Saudita para falar a um grupo de investidores, ele afirma ter potencializado as queimadas e o desmatamento na Amazônia porque ele não se “identificou com políticas anteriores no tocante à Amazônia”. Arremata: “A Amazônia é nossa! A Amazônia é do Brasil!”. Dias antes, membros do governo dele haviam tentado dar a carteirada em você porque seus números, poxa, seus números. A carteirada vem com um palavrório sobre os compromissos do governo com a Amazônia. A Amazônia acima de tudo, a Amazônia acima de todos. Trata-se da melhor política ambiental do planeta. Ela é fantástica, ela é memorável, ela é estupenda. How dare you?

O problema. O problema é que logo em seguida você e toda a torcida do Flamengo — sim, do Flamengo, viva o Flamengo — viram o presidente na TV. Na Arábia Saudita. Coitada da carteirada. Ela já não tem mais o fôlego de outrora. “Sabe com quem está falando?” Sei muito bem. Portanto, sente-se aí porque ainda não acabei de dizer tudo que tenho a escrever sobre a Amazônia.

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica De Bolle: Pobreza real, pobreza mental

Quem sabe seja possível algum dia desenhar intervenções públicas para a pobreza mental

O Nobel de Economia de 2019 foi concedido a três economistas que conduziram ao longo dos anos pesquisas de alto rigor científico para medir o impacto de diferentes políticas públicas na erradicação da pobreza. Como definiu um dos laureados, a economista Esther Duflo, segunda mulher a vencer o prêmio desde que foi criado pelo Banco Central da Suécia em 1968 e sua mais jovem vencedora, a pesquisa dos três tem por objetivo estudar de perto a vida das pessoas, não as recomendações teóricas de livros-texto. A partir da observação próxima em comunidades na África e na Índia, os três testaram os efeitos de diversas intervenções para melhorar as taxas de imunização infantis, o combate à malária, os incentivos à educação, além de diversas outras medidas.

Em muitos casos, os estudos conduzidos seguindo metodologia bastante utilizada pelas ciências médicas, conhecido como ensaio controlado randomizado, as descobertas foram surpreendentes e simples: ao contrário do que se pensa, não é necessário gastar muito dinheiro para aumentar as imunizações, combater a malária, ou elevar a escolaridade. O ensaio controlado randomizado consiste em selecionar aleatoriamente grupos que receberão a intervenção – no caso, a política pública – e grupos que não o receberão. A partir dessa seleção, aplica-se a política e analisam-se seus efeitos.

O estudo sobre a malária, por exemplo, consistiu em dar ao grupo selecionado mosquiteiros. Havia a dúvida se deveriam ser fornecidos de graça ou se as pessoas deveriam comprá-los. Afinal, se fossem dados de graça havia a possibilidade de que as pessoas não dessem aos mosquiteiros o devido valor, usando-os menos do que o desejável. Elaborou-se um sistema de vouchers: alguns davam 100% de desconto na compra, outros davam 50%, outros 20%, e por aí vai. Comparando os resultados tanto dos vouchers recebidos, quanto do grupo de controle que nada recebeu, foi possível constatar um aumento considerável do uso de mosquiteiros entre os que os obtiveram de graça, isto é, os com 100% de desconto.

Ao contrário do que se acreditava, isso não prejudicou o mercado de mosquiteiros, mas o beneficiou enormemente. Aqueles que agora tinham mosquiteiros em uma cama, passaram a comprá-los para todas tendo percebido o seu valor. Houve sensível redução nas taxas de infecção de malária e nas taxas de contágio. Para quem não entendeu a razão da pesquisa, inúmeros estudos mostram a relação entre malária e pobreza.

Os vencedores do Nobel, portanto, puseram em prática medidas para melhorar a vida das pessoas e revolucionaram a maneira como hoje se pensa e se adotam políticas sociais voltadas para o desenvolvimento econômico. Como disse Esther Duflo em entrevista concedida após vencer o prêmio, não é que haja falta de livros-texto e teorias sobre a redução da pobreza e o desenvolvimento econômico. Livros e teses abundam. O problema é que na maioria das vezes eles não trazem a pesquisa de campo, a inserção nas comunidades e na vida das pessoas, para justificar suas recomendações. Portanto, podem levar a equívocos e desperdícios.

A pesquisa científica de campo para reduzir a pobreza e os seus vários sucessos deveria ser comemorada, sobretudo em países onde ainda há muita pobreza, como é o caso do Brasil. Infelizmente, a reação nas redes sociais de gente que se identifica com a direita extrema retrógrada do País foi de condenar a premiação de diversas formas. Seja pela negação de que o Nobel de economia exista – o prêmio existe, ainda que não tenha sido originalmente estabelecido por Alfred Nobel – seja ao afirmar que a pobreza é um “estado natural” e que as políticas públicas para combatê-las são inúteis. Por certo, esse pensamento repercute não entre gente que sofra da pobreza real, material, mas de quem sofre de profunda pobreza intelectual. Quem sabe seja possível algum dia desenhar intervenções públicas para a pobreza mental. Quem sabe seja possível resgatar algumas cabeças da ignomínia que ocupa os espaços públicos. Quem sabe nada disso seja possível e o Brasil permaneça preso na sua terraplanice atual.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: Por uma macroeconomia verde

Remover subsídios aos combustíveis e taxar carbono são medidas com potencial político explosivo

Em artigo recente, o economista e professor da London School of Economics Nicholas Stern advertiu que os economistas não estão dando a devida atenção ao maior desafio para o desenho das políticas públicas hoje: o meio ambiente e o impacto econômico das mudanças climáticas. Stern destacou que entre as principais revistas acadêmicas de economia há pouquíssimos artigos que abordam o tema, apesar de sua importância crescente no debate internacional e na mídia. Os desafios, entretanto, são reais e visíveis. Basta acompanhar o que está acontecendo no Equador após a decisão do governo de remover os subsídios aos combustíveis. Basta ver quão empenhada está a União Europeia (UE) em reduzir as emissões de carbono a zero até 2050. Basta ler o projeto de lei do Congresso americano a respeito da criação de um imposto sobre o carbono (House Resolution 763, de janeiro de 2019).

Remover subsídios aos combustíveis e taxar carbono são medidas com potencial político explosivo. Exemplos não faltam: a greve dos caminhoneiros no Brasil em 2018, os protestos dos coletes amarelos que sacudiram a França, a turbulência social que forçou o governo do Equador a se deslocar de Quito para Guayaquil.

Contudo, isso não quer dizer que essas medidas, cujos benefícios na forma de redução de emissões dos gases responsáveis pelo efeito estufa são evidentes, não devam ser adotadas. É certo que a remoção de um subsídio sobre combustíveis fósseis ou a introdução de um imposto sobre o carbono têm efeito imediato maior sobre as faixas de renda mais baixas da população. Essa regressividade está na raiz dos protestos e da turbulência política associados a essas medidas.

Contudo, há formas de evitar ou conter tais efeitos, desde que se tenha a compreensão adequada dos desafios políticos e econômicos. Entre os economistas falta essa discussão, como bem ilustra o caso do Equador. Os subsídios foram removidos para ajustar as contas públicas do país, hoje em dificuldades financeiras e com um programa recém-negociado com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Entretanto, dado o impacto redistributivo dessa medida, ela não pode ser usada simplesmente para melhorar as contas públicas. Para evitar o efeito negativo sobre a desigualdade, a remoção do subsídio teria de vir acompanhada de um mecanismo compensatório que elevaria o gasto público.

A discussão se assemelha às questões relativas à introdução de um imposto sobre as emissões de carbono. O projeto de lei do Congresso americano prevê a criação de um fundo constituído das receitas obtidas do tributo para compensar os mais afetados por ele, isto é, um mecanismo para devolver à população o ônus do imposto mediante dividendos de carbono. Na UE, onde vários países já adotaram o imposto, mecanismos semelhantes já estão em uso. Ou seja, a introdução de um imposto sobre o carbono não pode ter por objetivo aumentar as receitas do governo — tem de ser neutra do ponto de vista orçamentário, dada a necessidade de compensar os mais pobres pela regressividade do tributo.

Poucos são os macroeconomistas que discutem esses temas. Assim como poucos são os macroeconomistas que discutem o papel da política fiscal, isto é, do gasto e do investimento público, na redução das emissões de carbono. É igualmente raro encontrar artigos escritos por economistas sobre como desenhar políticas para o investimento em infraestrutura que sejam compatíveis com a redução das emissões de carbono.

Muito surpreende essa ausência dos macroeconomistas em debate demasiado importante. Afinal, as causas das mudanças climáticas estão diretamente associadas à atividade econômica, como apontam os estudos científicos há décadas. Redesenhar as políticas públicas para reduzir emissões traz não apenas o benefício de atenuar os danos ao meio ambiente, mas também a oportunidade de reestruturar economias. O Brasil goza de posição privilegiada para ser pioneiro nesse debate. Infelizmente, temos um governo profundamente desinteressado pelos temas levantados — para não falar do desprezo descarado.

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica de Bolle: Bancos centrais verdes

O BC brasileiro foi pioneiro na compreensão do impacto ambiental de suas ações junto ao mercado financeiro

Deveriam os bancos centrais incluir questões como o meio ambiente e mudanças climáticas no escopo de seus mandatos? Há 15 anos, ninguém em sã consciência pensaria em fazer essa pergunta. Afinal, antes da crise financeira de 2008 – que completa 11 anos essa semana – os objetivos e instrumentos dos bancos centrais estavam muito bem definidos. Salvo poucas exceções, o objetivo principal era a estabilidade de preços e o instrumento para alcançá-la a sintonia fina das taxas de juros de curto prazo. Com a crise, entretanto, surgiram outras preocupações além da estabilidade dos preços, como a estabilidade financeira. Surgiram, também, outros instrumentos. As operações conhecidas como afrouxamento quantitativo, ou a compra direta de títulos de longo prazo pelos bancos centrais após os juros terem caído para zero. Mais recentemente, o uso das taxas de juros negativas para prover estímulos adicionais, conforme as iniciativas do Banco do Japão e do Banco Central Europeu, entre outros.

As enormes mudanças na condução da política monetária provocadas pela crise financeira de 2008 e os questionamentos sobre o papel dos bancos centrais continuam a ter destaque no debate global. As mais novas áreas do debate incluem o impacto das ações de política monetária na distribuição de renda e se as autoridades monetárias podem, de alguma forma, serem usadas para combater as mudanças climáticas. Há quem veja nessa discussão investidas políticas contra a autonomia dos bancos centrais, o que sem dúvida alguma seria prejudicial para os principais objetivos da política monetária, como o controle inflacionário. Contudo, dada a urgência desses temas, não é irrazoável que eles sejam trazidos para o âmbito das políticas macroeconômicas. A desigualdade de renda, por exemplo, guarda relações estreitas com o nacionalismo econômico ressurgente no mundo, conforme pesquisas que eu e outros temos realizado. O nacionalismo econômico, atrelado ao discurso populista extremista, pode ser bastante prejudicial para a organização macroeconômica e para a estabilidade política – a conscientização generalizada de que uma não existe sem a outra tem sido um dos poucos legados positivos desses tempos de transição global.

Do mesmo modo, a agenda ambiental não pode continuar isolada da agenda econômica mais ampla. Uma possível grande contribuição que os bancos centrais podem fornecer passa por uma compreensão mais profunda a respeito da dinâmica dos impactos ambientais a partir de suas interações com o sistema financeiro. Entre 2016 e 2018, o Banco da Inglaterra e o BCE compraram títulos corporativos como parte do afrouxamento quantitativo – as compras foram proporcionais à composição do mercado e tinham por objetivo reduzir as taxas de juros de longo prazo para impulsionar a demanda, e trazer a inflação para a meta estabelecida. Para manter a neutralidade em relação à composição dos títulos no mercado, os bancos centrais acabaram comprando papéis de empresas mais intensivas no uso de carbono, como revelaram alguns estudos (Matikainen et al. (2017)). Há espaço, portanto, para repensar as compras de títulos: e se os bancos centrais passarem a comprar relativamente mais títulos de empresas com selo ambiental, ignorando a neutralidade da composição do mercado? Essa é certamente uma pergunta que merece a atenção cuidadosa dos departamentos de pesquisa dos BCs.

Curiosamente, o Banco Central brasileiro foi pioneiro na compreensão do impacto ambiental de suas ações junto ao mercado financeiro. Em 2008, o BC e o Conselho Monetário Nacional promulgaram a Resolução no. 3545, cujo objetivo era condicionar o crédito rural subsidiado ao cumprimento de normas ambientais. A medida teve grande sucesso em impedir o desmatamento em várias partes da Amazônia Legal, conforme mostrou o estudo da Climate Policy Initiative da PUC-Rio de autoria de Juliano Assunção e coautores em 2013 – esse estudo será brevemente publicado em uma revista científica de grande prestígio internacional.

O debate sobre a atuação dos bancos centrais para combater as mudanças climáticas está ganhando tração internacional entre acadêmicos e gestores de política econômica. O Brasil tem uma experiência pioneira nessa área, e espaço de sobra para exibi-la no momento em que a Amazônia está no centro das atenções. Será mesmo que vamos insistir em perder a oportunidade de tratar do tema com as evidências científicas que merece em vez de abordá-lo com barbaridades ideológicas?

* Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University