Monica de Bolle

Monica De Bolle: A agenda da cidadania

Sem o cuidado das pessoas, não há economia que resista ao choque inédito que testemunhamos

A pandemia e a crise econômica nos oferecem dor, ansiedade, tristeza. Mas a pandemia e a crise econômica também nos oferecem liberdade, justiça e avanços em direitos. Como já argumentava Thomas Paine no século 18, não há liberdade plena sem direitos fundamentais e, para alcançar tais direitos fundamentais, um humanista não pode deixar de defender que o Estado cumpra seus papéis fundamentais. Paine é uma espécie de guru dos libertários norte-americanos, muitos deles defensores das ideias de alguns intelectuais da Universidade de Chicago nos anos 1960 e 70, como o Estado mínimo. O que esses libertários talvez tenham preferido esquecer é que Paine, junto com outros grandes pensadores, lançou as bases do Estado de Bem-Estar social, cujo pilar era a renda básica, sobretudo para os mais jovens e os idosos.

No Brasil, a renda básica, ou a renda básica da cidadania, foi a luta de quase uma vida inteira do ex-senador Eduardo Suplicy. Não à toa, o ex-senador cita Thomas Paine em suas obras. Afinal, vem dali a ideia de cidadania, de que a renda básica transcende o assistencialismo para alcançar outro patamar de justiça social. Esse patamar diz respeito ao humano e a como nos percebemos uns aos outros. Antes da pandemia, era comum considerar esses temas como sendo utópicos, fantasias de intelectuais e políticos que jamais teriam chance de realização. Mas eis que, em plena pandemia, começamos a observar a formação de uma coalizão para construir uma nova realidade, mais justa, mais igualitária, mais humanista, aparecendo a renda básica como o eixo de uma economia com olhar humanista: uma economia do cuidado. Sem o cuidado das pessoas não há economia que tenha qualquer capacidade de resistência ao choque inédito que testemunhamos.

Já tratei da renda básica nesse espaço diversas vezes ao longo dos últimos dois meses. Aos trancos e barrancos, o Brasil conseguiu formar um consenso em torno da renda básica emergencial, programa que ainda haverá de ganhar as páginas dos jornais internacionais, hoje chocadas com a boçalidade presidencial. Tornar esse benefício permanente significa dar alguma chance a dezenas de milhões de brasileiros que hoje estão visíveis, posto que diretamente atingidos pela calamidade. Tornar permanente esse benefício representa uma chance ao Brasil de se mostrar novamente pioneiro pragmático de ideias antigas.

Há, nesse momento, muitos estudiosos debruçados sobre o tema da renda básica permanente, tentando desenhar propostas viáveis. São muitos os obstáculos. Eles vão desde a falsa ideia de que pessoas mais pobres, se receberem um benefício como a renda básica, deixarão de trabalhar – tese amplamente derrubada pelos vários estudos empíricos existentes – até as preocupações com o financiamento desse programa. A renda básica permanente, em tese, é mais onerosa do que o Bolsa Família. Contudo, se unificarmos todos os programas sociais do Brasil para financiá-la, há especialistas mostrando que parte significativa do custo seria coberta. Além disso, é sempre bom lembrar que aqueles que menos recebem são aqueles que mais consomem. Afinal, não é dada aos mais pobres a condição de poupar. Sendo assim, a renda básica fomenta consumo e consumo fomenta arrecadação, o que significa que o programa é, por definição, parcialmente autofinanciável.

Mas há outra questão de justiça social que caminha lado a lado com a renda básica: a justiça tributária. O País não pode mais ter uma estrutura que depende de tributação sobre o consumo e produção por serem esses impostos regressivos e empecilhos ao dinamismo e à produtividade de nossas empresas. É hora, sim, de começar a pensar na inversão da pirâmide tributária brasileira, desonerando o consumo e a produção, e onerando a renda e o patrimônio. Há quem diga que onerar patrimônio é contraproducente, pois levará à saída de recursos do País. Trata-se de um equívoco. Patrimônio não é apenas dinheiro no banco, mas imóveis e outros recursos que não são facilmente removíveis. Ninguém vai pôr um edifício debaixo do braço e sair com ele pelo mundo. Ainda que pudesse fazê-lo, para onde o levaria? Para a Europa? Para os Estados Unidos? Nesses países existe tributação de patrimônio e de renda. E neles se discute, hoje, a elevação desses tributos. Para quê? Para que se possa ter uma agenda de cidadania para enfrentar a crise humanitária.

O Brasil não é diferente, não há qualquer particularidade que o impeça de pensar essa agenda. Ao contrário, no Brasil há uma avenida de oportunidade para reduzir as desigualdades profundas e diversas. O Brasil só será diferente se resolver desperdiçar o momento valioso para uma frutífera e esperançosa discussão. A discussão sobre a agenda da cidadania é a única que realmente importa.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: Por que precisamos de bancos?

O sistema bancário brasileiro já é muito concentrado. Na ausência de um Banco Central atuante em meio a uma crise de magnitude inédita, o risco de concentração aumenta brutalmente

Bancos. Todo mundo tem uma opinião formada sobre os bancos. Geralmente, essa opinião não é das melhores. “Os bancos têm lucros excessivos e não deveriam receber dinheiro do Banco Central.” “Os bancos esfolam as pessoas; por que estamos dando dinheiro para eles?” Muitos bancos têm, sim, lucros excessivos. Muitos bancos praticam, sim, spreads bancários elevados, ou seja, trabalham com uma diferença grande entre a taxa sobre o passivo (depósitos) e os ativos (empréstimos). Essas são distorções existentes no mercado bancário brasileiro, que sofre de elevado grau de concentração. Contudo, elas não justificam afirmar que o Banco Central não deve exercer seu papel de garantidor da estabilidade financeira, sobretudo em momento de crise sem precedentes, como o atual.

Dia desses resolvi dar, em meu canal do YouTube, uma explicação técnica sobre o papel dos bancos. O tema é árido e não há como torná-lo sedutor, aprazível, palatável, ainda que possa dar gosto entendê-lo. É verdade que, ao contrário do papel, o vídeo permite usar recursos visuais para tornar o tema mais atraente. Por exemplo, é possível recorrer a desenhos, em meu caso manuais, para explicar um conteúdo teórico denso. Mas tentarei descrever o cerne do argumento teórico aqui.

“Considerem uma situação em que não há bancos”

Há alguém — um empreendedor — com uma ideia boa na cabeça, mas sem dinheiro na mão. Esse empreendedor quer, por exemplo, fabricar respiradores mecânicos em escala e precisa de um empréstimo para isso. Evidentemente, o projeto trará ganhos para a sociedade. Sem um banco, esse empreendedor dificilmente conseguirá obter junto às pessoas o volume de recursos de que necessita. Por quê? Porque há o que chamamos de assimetria de informação: o empreendedor sabe mais sobre a chance de sucesso de seu projeto do que o punhado de pessoas que o venha financiar diretamente. Há outro problema: o projeto é de longa maturação. Isso significa que quem decidir financiar o empreendedor terá de deixar o projeto chegar ao final para receber o retorno esperado. Portanto, o financiamento direto exigiria das pessoas a capacidade de nada receber por um tempo maior do que elas talvez possuam. E se, por exemplo, ficarem desempregadas antes de o projeto se concretizar? Uma vez investido o dinheiro, não há como o empreendedor devolvê-lo — a isso damos o nome de “iliquidez”. O projeto, em suma, é ilíquido.

Entra o banco. O banco recolhe depósitos de todos, mas guarda em caixa uma fração do que coleta para aquelas pessoas que possam precisar de dinheiro antes da fábrica de respiradores operar a pleno vapor. O restante, o banco empresta ao empreendedor. Vejam o papel social duplo que o banco cumpriu: para a sociedade, agora haverá uma nova fábrica de respiradores. Para os depositantes que podem esperar, haverá uma renda em forma de retorno que talvez não houvesse. A existência do banco permitiu que o investimento fosse feito, gerando ganhos para a economia. Sim, esse exemplo é reducionista, mas capta a essência do papel do banco.

Agora vejam: por construção, o banco nunca tem em caixa todo o estoque de depósitos nele depositado, já que empresta uma parte. Essa parte não tem liquidez. Se ocorrer algo na economia que faça todos acreditarem que o banco não será capaz de ressarcir os depósitos antes de terminar o prazo de maturação do investimento, haverá uma corrida bancária. Por definição, algumas pessoas receberão seu dinheiro de volta; outras, não. É para evitar isso que o Banco Central faz o que chamamos de “injeções de liquidez”, termo que, em bom português, significa “dar dinheiro para os bancos”. Se o Banco Central nada fizer, perdem os bancos, sim. Mas sabem quem mais perde? O pequeno depositante que havia colocado lá seu dinheiro. Ou seja, perdem todos.

Há mais. O papel do Banco Central nessas horas é sistêmico, isto é, ele tem de preservar o ecossistema bancário, que inclui bancos grandes, pequenos e médios. Como escrevi no início do artigo, o sistema bancário brasileiro já é muito concentrado. Na ausência de um Banco Central atuante em meio a uma crise de magnitude inédita, o risco de concentração aumenta brutalmente. Afinal, as primeiras instituições a quebrar serão as pequenas e médias. Se a concentração bancária aumentar, adivinhem o que acontece? Os lucros bancários pós-crise serão ainda maiores, os spreads ainda mais elevados, as distorções ainda mais severas.

Portanto, é um argumento falacioso aquele que vê na superfície uma apelação tentadora, sedutora, até. Em se tratando de bancos, não há sedução possível. Fujam de tudo que lhes pareça óbvio demais.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica De Bolle: Monetizável confusão

O Brasil está muito próximo de viver algo inédito na sua história, com um futuro quadro de depressão econômica

Monetizável rima com aplicável, inegável, e formidável. Formidável não no sentido de fantástico ou admirável, mas de algo que assumiu proporções excessivas, desnecessariamente. Entende-se que haja confusão, pois economia monetária é um tema árido por excelência, e é inegável que ela acontece no momento. O que não falta nos jornais brasileiros são artigos sobre “monetização” em suas diversas conotações, o que, paradoxalmente, torna a confusão em torno do termo visivelmente monetizável. O leitor, afinal, compra o jornal e lê sobre a confusão. Nos atos de comprar e ler a torna moeda corrente, por assim dizer.

O termo “monetização” é aplicável a variadas circunstâncias. Por exemplo: quando o banco central norte-americano – o Fed – compra títulos de longo prazo do Tesouro nos mercados secundários, a operação conhecida como “quantitative easing” (ou afrouxamento quantitativo), ele “monetiza”. O processo se dá da seguinte forma: de um lado, o Fed entra no mercado como comprador; de outro, um banco entra como vendedor. O encerramento da transação se dá com a aquisição de títulos pelo Fed, que se tornam parte do seu ativo, enquanto o depósito do banco no próprio Fed é creditado no montante da compra. Esse depósito faz parte do passivo do Fed, ele constitui as reservas bancárias que, por sua vez, compõem a base monetária. O aumento das reservas bancárias decorrente dessa transação eleva a base monetária, o que significa que houve uma “monetização”. Essa monetização, entretanto, fica circunscrita ao balanço do Fed – não há mais dinheiro circulando na economia em decorrência dela. Portanto, não há risco de inflação proveniente dessa ação, como já está mais do que comprovado. Isso significa que esse tipo de monetização é plenamente compatível com um regime de metas inflacionárias.

Em breve, o Banco Central (BCB) brasileiro poderá fazer essa operação, pois a PEC 10 de 2020 o permite. O uso de “quantitative easing” é um dos instrumentos adicionais de que os bancos centrais dispõem para combater os efeitos agudos da crise que hoje atravessamos. Não há qualquer problema em fazer isso no contexto brasileiro, pois, como dito, a operação se limita a inflar o balanço do BC sem ameaças ao regime de metas inflacionárias.

Mas consideremos o regime de metas inflacionárias. O Brasil está muito próximo de viver algo inédito na sua história, como tenho escrito nesse espaço. Vamos enfrentar um quadro de depressão econômica, com possível queda de dois dígitos do PIB em 2020, acompanhado de um processo deflacionário. Deflações são situações de quedas generalizadas do nível de preços: não se trata da queda do preço de um ou outro bem ou serviço, mas de todos os bens e serviços. Essas situações, sobretudo quando se configuram em espirais deflacionárias, isto é, quedas contínuas de preços movidas pela expectativa de que os preços continuarão a cair, são extremamente danosas para a economia. Empresas perdem receita e capacidade de sobrevivência, consumidores perdem renda, governos perdem capacidade de arrecadar. A razão dívida/PIB explode. Trata-se de uma situação de falência econômica múltipla.

Não é exagero dizer que espirais deflacionárias são piores do que as hiperinflações do nosso passado. Com essas se convive, penosamente.

Na situação de espiral deflacionária, um banco central que nada faz não está cumprindo o regime de metas. Afinal, o regime estabelece um piso e um teto para a inflação. Se a inflação acima do teto é um problema, a inflação abaixo do piso, possivelmente em território negativo, é um problema de magnitude igual ou pior. Países que viveram situações deflacionárias mostram a dificuldade de quebrar esse ciclo. Para evitá-lo e cumprir, na medida do possível, o regime de metas inflacionárias, cabe ao Banco Central lançar mão de todos os instrumentos à sua disposição, o que inclui a monetização explícita. Trata-se da emissão monetária para cobrir os déficits do governo, como faz hoje o Banco da Inglaterra (BoE). O BoE o faz não por ser o Reino Unido um país rico e de moeda forte.

Ele o faz precisamente por causa do risco deflacionário que se apresenta. Faz porque tem um regime de metas a cumprir e um compromisso com a população.

É comum que nós, brasileiros, achemo-nos diferentes dos outros também em matéria de economia, e nosso passado inflacionário sustenta essa percepção. Mas sejamos honestos: perante o abismo da deflação, todos somos iguais. Não se olha para o abismo com complacência.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: Como uma onda no mar?

Quem prefere encarnar o surfista alienado cuja imagem ficou associada à música que intitula este artigo está, neste momento, agindo de forma imoral

“Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia.” Sem dúvida alguma. E, sim: “tudo passa, tudo sempre passará”. Mas a epidemia não vem em ondas mais ou menos simétricas, como o mar. A epidemia vem em onda forte seguida de outras ainda fortes, em onda moderada seguida de ondas fortes, em onda que tudo varre e ainda pode ser seguida do mais profundo descalabro.

A evolução depende de como os governos se comportam. Também depende de como os governos se comportam dentro da realidade de cada país. Não adianta imitar a Suécia, apostar na imunidade de rebanho e deixar a onda passar. Primeiramente porque não sabemos o que haverá de ser das escolhas da Suécia. Depois, porque o Brasil não é a Suécia. Por fim, porque os suecos estão respeitando o distanciamento social sem quarentena, por conta própria. Trata-se de questão de comportamento.

Muito me preocupam os cenários econômicos. Não por sua extrema gravidade. Eles me preocupam porque muitas vezes se baseiam em premissas equivocadas, como a de que haverá uma primeira onda — essa que estamos atravessando — seguida de onda mais mansa, ou de uma sequência de ondinhas. É este tipo de premissa que escora as projeções do FMI: a onda forte é agora, no segundo semestre haverá outra, mais fraca, e, depois, vida que segue.

Muitos economistas estão seguindo essa linha de raciocínio para justificar suas posições. Alguns resolveram inclusive ignorar já a primeira onda, voltando a apoiar uma agenda de reformas que, francamente, diz respeito a um mundo que não existe mais. Entre esses consta o ministro da Economia brasileiro, que resolveu mudar o tom no momento em que o país entra na fase mais crítica da crise humanitária. Com ele foram os economistas de mercado e todos aqueles que preferem ignorar a realidade. A realidade é que a capacidade hospitalar da cidade de São Paulo está se esgotando.

A realidade é que a taxa de mortalidade no Rio de Janeiro entre os mais pobres já é muito mais elevada do que entre os mais ricos. Quem prefere encarnar o surfista alienado cuja imagem ficou associada à música que intitula este artigo — nada contra a música, gosto muito — está, neste momento, agindo de forma imoral. Queiram os economistas ou não, há uma dimensão moral nesta crise que não será esquecida.

Se alguém parasse para olhar os dados brasileiros — que estão subnotificados —, observaria que o número de casos no país está subindo rapidamente a cada dia. O número de mortos já é maior do que o da China. Quando vocês estiverem lendo esta coluna, já teremos superado a China no número total de casos. Não estamos na crista da onda, prestes a nela deslizar com a destreza daqueles que o fazem de forma incansável nas praias do Rio. Estamos no pé de uma montanha cujo pico nos ilude. E do pé dessa montanha resolvemos, de uma hora para outra, ignorar nossos mortos, nossos doentes, os do presente e os do futuro, voltando à ladainha das reformas.

Porque soberano é o vírus, não o presidente da República ou o ministro da Economia.

Cadê a renda básica emergencial, que não chega nas mãos das pessoas? E as filas criminosas em frente à Caixa Econômica Federal para sacar o benefício? O que dizer da ausência de repasses fundamentais para os estados e municípios? O que falar do desembolso de apenas R$ 5 bilhões para o SUS até agora? Como se pode pensar em defender a redução de tributação sobre os bancos neste momento? E por que cargas d’água vamos querer avançar com medidas de austeridade contidas nas reformas se o que precisamos é de mais endividamento público para ao menos atenuar a depressão econômica?

O Brasil nunca viu uma deflação. O modo-padrão é logo morrer de medo de inflação, é dizer que não podemos nos endividar porque cairemos na espiral inflacionária de eras passadas. Mas não. Essa não é mais a realidade. A realidade é uma espiral de queda de preços extremamente danosa para a economia, para as pessoas. Nos vídeos que tenho feito para o YouTube tenho explicado o que é uma espiral deflacionária. Para os leitores interessados, recomendo assisti-los, pois, para nós, brasileiros, é algo inédito. Mas não é algo que, nós, economistas, desconheçamos, ainda que alguns não a tenham visto de perto.

Como uma onda no mar? Não. Como um tsunami a chegar no oceano de ignorância deste desgoverno.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica De Bolle: Flexibilizar o teto, já

A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página

Na semana passada, o governo apresentou o plano Pró-Brasil. Tratava-se do anúncio de uma agenda de investimentos públicos em infraestrutura para o País. O plano foi duramente criticado por razões acertadas e outras não tão acertadas assim. Entre as justificadas críticas estava o fato de o plano consistir em não mais do que meia dúzia de slides sem qualquer detalhamento sobre as áreas prioritárias para obras públicas. Foi citada a cifra de R$ 30 bilhões em investimentos públicos, que muitos sabemos ser insuficiente para cobrir as inúmeras carências e os variados gargalos do Brasil. Mesmo assim, houve quem tenha resolvido chamar o plano de Segundo PND de Bolsonaro, ou de PAC do seu governo, numa clara tentativa de demonizar o investimento público.

O anúncio deu margem a respostas histriônicas da equipe econômica, verdadeiros chiliques, por exemplo quando alguns de seus membros disseram à jornalista Miriam Leitão que o plano era uma ameaça ao teto de gastos e que, fosse o teto flexibilizado, muitos deixariam o governo. Talvez seja a hora mesmo de buscarem a porta de saída. Afinal, a responsabilidade desses indivíduos deveria ser com o País, e não com uma medida que sofre de diversas falhas desde seu desenho original.

Em 2016, quando se iniciou a discussão sobre o teto, fui favorável à ideia, mas não ao desenho. Nesse espaço e em outros veículos discuti por que a formulação do teto brasileiro estava em completo desalinho com a boa prática internacional e afirmei que mais cedo ou mais tarde pagaríamos por isso.

Minha visão à época, como agora, era a de que o teto era excessivamente rígido, não permitindo ao governo qualquer margem de manobra para a adoção de medidas contracíclicas, quando necessárias. Antes de a epidemia eclodir, alguns membros do Congresso já defendiam a flexibilização do teto em prol de uma retomada mais forte da economia, para que saíssemos da armadilha do crescimento de 1% ao ano. Há quem argumente que a sua adoção acabou retirando financiamento do SUS, na contramão do que se falava em 2016.

No momento atual, ante a declaração de calamidade, o teto tem um dispositivo que permite a abertura de créditos extraordinários, o que na prática o suspende por tempo limitado. Formalmente esse tempo acaba no ano que vem, quando ainda precisaremos sustentar a economia diante do cenário de quarentenas intermitentes sobre o qual tenho falado.

No início de março, após a epidemia ser declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e começar a derrubar mercados e economias, disse em entrevista à Globonews que o teto precisaria ser flexibilizado para acomodar o investimento público, fundamental não para o enfrentamento da crise de saúde pública, mas para o que dela sobreviria. Alguns reputaram estapafúrdia a ideia, embora naquele momento eu já enxergasse não apenas o drama que hoje atravessamos, como também a crise crônica que haverá de seguir à atual, mais aguda.

Mas, para além disso, a inclusão do investimento público no teto de gastos é anacrônica do ponto da vista da experiência internacional. Estudo publicado pelo FMI em 2015 mostra que há alguma variância entre os diferentes tipos de tetos de gastos, mas todos tendem a excluir o investimento público e/ou ter cláusulas de escape para a adoção de medidas econômicas, quando necessárias.

Queiram os técnicos do governo ou não, o teto é profundamente inadequado tanto para a fase aguda da crise de saúde e da crise econômica quanto para a fase crônica que lhe seguirá. Teremos de continuar a conviver com o vírus, e, por essa razão, tenho insistido que a recuperação será volátil e lenta. Assim seria mesmo que não tivéssemos acrescentado aos nossos problemas a atual crise política e institucional com a saída de Sergio Moro. Dada a conjunção de crises e a dinâmica da economia brasileira, inevitavelmente teremos de nos valer do investimento público durante a fase de reconstrução econômica, pois o investimento privado não retornará tão cedo em situação de volatilidade.

Para tanto é preciso pensar simultaneamente em três linhas de frente: as prioridades para o investimento; o detalhamento dos projetos, para que não tenhamos os fracassos vistos em governos anteriores; e a necessária flexibilização do teto. A economia e a população brasileiras precisam mais do que nunca que tabus sejam abandonados em prol do bem maior: a atenuação da crise humanitária provocada pela epidemia e pela crise econômica.

O momento é de pensar seriamente o papel do investimento público, como estão fazendo vários países mundo afora, e de lembrar que nossas deficiências de infraestrutura não serão sanadas sem o envolvimento do Estado. A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: Bens públicos

Eis o dilema: a oferta de conhecimento como bem público o degrada aos olhos de alguns

A saúde é um bem público, a proteção social também. Bens públicos, na definição dos economistas, são aqueles que são não excludentes e não rivais. O que isso significa? Primeiramente que indivíduos não podem ser excluídos de seu uso e deles podem se beneficiar sem pagar. Em segundo lugar, são bens em que o uso individual não reduz sua disponibilidade para que outras pessoas deles desfrutem. Por fim, bens públicos podem ser desfrutados por mais de uma pessoa simultaneamente. Muitos temas podem ser enquadrados como bens públicos: a conscientização coletiva sobre saúde, questões sociais e ambientais, a manutenção da biodiversidade, o saneamento básico. Além disso, bens públicos estão sempre sujeitos ao problema que economistas chamam de free rider — como bens públicos são gratuitos ou são oferecidos a um preço abaixo do preço “de mercado”, sua utilização pode se tornar excessiva, levando a uma redução prejudicial da oferta, ou mesmo à degradação do próprio bem ou serviço oferecido.

Como saúde e proteção social, o conhecimento é um bem público. Aqueles que se dispõem a dividir o conhecimento que têm sobre determinados assuntos estão sujeitos ao mau uso, ou até à degradação do que compartilham. Trata-se de uma experiência curiosa essa de dividir conhecimento sem pagamento. Como professora universitária, compartilho meu conhecimento com alunos que por ele pagam uma mensalidade à universidade. Como participante do debate público por meio de colunas como esta que tenho em ÉPOCA, também recebo honorário. Contudo, desde que a pandemia eclodiu, eu me senti compelida a partilhar meu conhecimento de forma gratuita, no canal que criei no YouTube. A pesquisa que desenvolvo desde o Ph.D. na London School of Economics trata de crises. Quando trabalhei no FMI, tive a oportunidade de conhecer crises na prática, pensando em soluções para aliviar países. Hoje, leciono sobre crises na Universidade Johns Hopkins. Tenho usado essa experiência para fazer o que jamais imaginaria que faria: transmissões diárias ao vivo sobre temas relativos à crise que atravessamos e sobre o funcionamento da economia de modo mais geral.

A experiência tem sido muito enriquecedora, mas também desafiadora. Enriquecedora pois percebo claramente a ânsia que muitos têm em entender esse momento e em procurar essa compreensão em linguagem que lhes seja acessível. O jargão econômico, afinal, guarda um grande segredo: apesar dos termos técnicos e de assuntos que parecem áridos em primeira mão, a economia trata da vida das pessoas. Todas a experimentam em seu cotidiano, e talvez por isso tantas tenham opinião formada, ainda que não tenham tido qualquer tipo de treinamento “formal”. Considero justa essa posição. Não é preciso ser economista para saber o que é inflação e como ela afeta a vida de cada um. Não é preciso ser economista para entender que, numa crise, como a que vivemos, empregos e salários estão em risco. Contudo, há muitos temas que, quando tratados por economistas, podem se tornar excessivamente herméticos e inacessíveis a muita gente. Remover esse véu tem sido muito gratificante.

No entanto, percebo ao mesmo tempo o desafio de oferecer um bem público. Há quem o menospreze achando que, se está sendo oferecido de graça, a pessoa que o oferece não deve ter formação suficiente. Ou, aqueles que veem no ato de oferecer uma espécie de busca por autopromoção. Ou, ainda, muitos que julgam o conhecimento que você divulga livremente como algo facilmente adquirido por qualquer um, algo do senso comum, algo pretensamente “razoável”.

Não há pagamento, não há financiamento, não há patrocinadores. Portanto, não deve valer muita coisa, não é mesmo?

A crise que atravessamos está desafiando esse tipo de visão e comportamento. Ao desvelar o valor intrínseco e não monetizável de bens públicos, a crise expõe sua importância para a sociedade. Há muito que lamentar, há muito sofrimento. Haverá ainda mais nas próximas semanas e nos próximos meses. Mas façamos uma pausa para vibrar com a valorização dos bens públicos. São eles que tornarão essa terrível travessia mais palatável. E, sobretudo, mais humana.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica de Bolle: Quarentenas intermitentes

A economia precisa se voltar para a saúde, entendendo suas necessidades e buscando atendê-las

Quarentenas intermitentes muito provavelmente serão o nosso “novo normal”. Queiramos ou não aceitar essa nova realidade, a verdade é que ela já está posta. É esse o cenário com o qual trabalham cientistas, infectologistas e pessoas que estão na linha de frente do combate à covid-19. As razões são múltiplas: da falta de conhecimento sobre a imunidade conferida pelo vírus à imprevisibilidade das manifestações clínicas da doença; das dificuldades de desenvolver uma vacina para um vírus novo à logística de distribuí-la por todo planeta, caso ela venha a existir.

Não sou infectologista. Contudo, como economista tenho a obrigação de manter-me bem informada sobre os determinantes da crise econômica e do quadro futuro que se apresenta. Esses determinantes não são de natureza econômica: são provenientes do comportamento de uma fitinha de RNA, o vírus Sars-CoV-2. Tenho conversado e interagido com profissionais das áreas de saúde pública, infectologia, virologia, microbiologia. Não tratar do que se passa de forma interdisciplinar é erro certo não apenas na formulação dos cenários que se apresentam, mas, sobretudo, nas medidas econômicas necessárias para atender às necessidades da população.

Já escrevi nesse espaço que o quadro de quarentenas intermitentes requererá, necessariamente, a adoção de uma renda básica permanente: de outro modo, não haverá como sustentar a população mais vulnerável do País nos momentos em que o recrudescimento da epidemia resultar em medidas de distanciamento ou isolamento sociais. Em artigos para este jornal, para a Revista Época e em vídeos no meu canal do YouTube tenho dito à exaustão que o momento pede que todos comecem a se preparar para uma nova realidade. Não retornaremos ao mundo que conhecíamos em janeiro de 2020 tão cedo – talvez esse mundo tenha já desaparecido para sempre.

Fazer chegar essa mensagem aos ouvidos das pessoas, tarefa para a qual eu e muitos outros temos nos dedicado, é muito difícil. Evidentemente, ninguém quer acreditar que o modo de vida com o qual estavam acostumados se foi. Mas é preciso preparar-se para isso e acreditar no que a ciência nos tem dito.

A economia das quarentenas intermitentes é algo que não conhecemos. É um sistema que não funciona da forma relativamente contínua com a qual estamos acostumados, mas um sistema que soluça e engasga. Para atenuar esses espasmos e a volatilidade deles decorrente, tenho insistido, junto com outras pessoas, que é preciso pensar na reconversão da indústria. A economia precisa se voltar para a saúde, entendendo suas necessidades e buscando atendê-las.

Esse esforço passa pela produção em escala de equipamentos hospitalares diversos, incluindo os de proteção individual, de que toda a população precisará quando as quarentenas forem temporariamente relaxadas. Abordei esse tema em entrevista concedida ao programa Roda Viva na última segunda-feira. Serviços também precisarão se readequar: restaurantes, por exemplo, terão de aprender a funcionar em rodízios, com poucos clientes e com uma capacidade de entrega que hoje não têm. Comerciantes terão de adaptar seus negócios para a convivência com o vírus, redesenhando normas e adotando plataformas online quando possível. Também precisarão, inevitavelmente, contar com serviços de entrega.

Novas tecnologias terão de ser desenvolvidas. Elevadores não poderão ter botões, já que são foco de contaminação. Deverão ter sensores térmicos? Tecnologias de reconhecimento de voz? É provável que a indústria tecnológica dê um salto de dez anos, que o processo de automação, já em curso, ganhe imenso ímpeto. Nesse caso, as relações de trabalho haverão de mudar ainda mais rapidamente, tornando a adoção da renda básica permanente mundo afora uma medida indiscutivelmente necessária.

Para aquelas empresas que podem trabalhar em rodízios, reduzindo o número de pessoas nos escritórios, o trabalho de casa será uma realidade que veio para ficar. Vamos precisar de mais capacidade para os serviços de internet, testemunharemos o crescimento em larguíssima escala da indústria de aplicativos para fins diversos. A segurança online será exponencialmente mais importante do que já é. A regulação da privacidade e da comercialização de dados precisará sair do papel.

Deixo essas ideias para que reflitam sobre o cotidiano, sobre tudo aquilo em que não paramos para pensar. Deixo-as para que comecem a se adaptar desde já.

* ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY


Monica de Bolle: A economia requer mais imaginação

Desconectados desse corpo de pesquisas científicas, muitos economistas ainda pensam que a retomada será linear e monotônica

Tem demorado para que a realidade seja absorvida: a pandemia alterou completamente os rumos da economia, e essa mudança não é temporária. Melhor dizendo, o tempo da pandemia e de seus efeitos na economia não é o tempo que muitos fantasiam que seja. Falo em fantasia porque, a cada novo estudo científico sobre a Covid-19 que é publicado, aparecem críticas apressadas e interpretações equivocadas deles, em lugar de revisões e reflexões. A vítima mais recente da pressa de criticar foi o artigo publicado na revista Science por cientistas da Universidade Harvard. O estudo, além de trazer modelos epidemiológicos, traça cenários a partir do que se sabe até o momento — e reconhece que há muito que ainda não se sabe. Apesar disso, ele rapidamente se tornou alvo de repúdio por ter exposto com clareza uma realidade: a de que o vírus ficará conosco por muito tempo — no melhor dos cenários, até 2022.

Até lá, entre o que se sabe e o que ainda não se sabe — o tempo da pesquisa científica não é o tempo nem da vontade nem dos afetos —, o mais provável é que se tenha de conviver com períodos de quarentena intermitente. É dizer, para não sobrecarregar os sistemas de saúde na ausência de vacinas e tratamentos eficazes, além de dúvidas sobre a imunidade adquirida, prevalecerá um quadro de vaivém para as medidas sanitárias. Tal quadro terá implicações diretas na retomada da economia, quando conseguirmos sair da fase mais aguda da crise.

Contudo, o que a quarentena intermitente implica é que a retomada só poderá ocorrer em zigue-zague: quando as medidas sanitárias puderem ser relaxadas, a economia respirará mais livremente; quando a epidemia recrudescer, a quarentena será adotada novamente para a administração de seu impacto nos sistemas de saúde. Nessas circunstâncias, a retomada econômica será volátil, fugindo da ideia de monotonicidade que se costuma presumir.

O comportamento da economia que se pode prever com base no conhecimento científico sobre a epidemia de sars-CoV-2, o vírus causador da Covid-19, deveria ter diversos desdobramentos de política econômica. Primeiramente, ele justifica adotar uma renda básica permanente, como tenho insistido há várias semanas, inclusive neste espaço. A renda básica será de suma importância para dar cobertura às pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, sobretudo em um cenário de quarentenas intermitentes. Como também tenho discutido, há vários outros motivos para defender a adoção da renda básica, os quais transcendem essas necessidades. A quarentena intermitente é apenas uma razão adicional.

Para além da renda básica permanente, há o tema da reconversão industrial. O estudo da Science que mencionei no início da coluna mostra que, se conseguirmos aumentar a capacidade de resposta dos sistemas de saúde, será possível espaçar as quarentenas intermitentes. Quanto mais espaçadas elas ficarem, menos volátil será a retomada da economia. Como se aumenta a capacidade dos sistemas de saúde? Uma resposta é com a reconversão de fábricas para a produção de equipamentos médicos como respiradores, aventais, máscaras e todo tipo de proteção para os profissionais de saúde. É bom lembrar que, além dos profissionais de saúde, enquanto o vírus estiver conosco, precisaremos de máscaras e luvas para a população em geral. Portanto, é difícil enfatizar suficientemente a importância da reconversão industrial não apenas neste momento de crise, como também na fase de retomada.

Por fim, para auxiliar o esforço de reconstrução econômica, precisaremos investir em infraestrutura. Um elemento fundamental para a luta contra doenças infecciosas e para o meio ambiente é o saneamento básico, cujo acesso é extremamente limitado no Brasil. Precisamos desenhar desde já a agenda de investimentos públicos para atender às necessidades do Brasil que surgirá desta crise.

O esforço é grande, mas não é impossível. Parece impossível apenas para aqueles que resistem a usar a imaginação e insistem em se escorar em corrimões, para se segurar a um passado que já deixou de existir.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica de Bolle: A PEC 10/2020 e o BC

Faltam-nos os corrimões em que economistas costumam se apoiar para traçar cenários e políticas públicas

*Em coautoria com o senador Randolfe Rodrigues

Na tarde dessa quarta-feira, 15 de abril, o Senado Federal votará a PEC 10, conhecida como “PEC do orçamento de guerra”, porém mais adequadamente denominada de “PEC da pandemia”. Embora o uso da metáfora da guerra possa render boas análises, não estamos numa guerra propriamente, e sim atravessando um momento inédito em que a vulnerabilidade dos sistemas de saúde e das redes de proteção social estão em ampla evidência mundo afora, e no Brasil em particular. A epidemia e a paralisia econômica têm dimensões humanitárias que precisam ser adequadamente tratadas pelos governos.

Entre os temas mais polêmicos da PEC está a autorização dada ao Banco Central “para comprar e vender títulos de emissão do Tesouro, nos mercados secundários local e internacional, e direitos creditórios e títulos privados de crédito em mercados secundários, no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos. Essa autorização tem vigência e efeito restrito ao período de calamidade pública nacional”.

A medida é indispensável, pois poderá prover a liquidez necessária aos títulos negociados nos mercados secundários, além de permitir a negociação de títulos do Tesouro, ampliando sua aceitação num momento decisivo, de crise aguda, e assim afastando os riscos de uma crise financeira. Embora esse tipo de atuação por parte do BC seja novidade no Brasil, muitos outros bancos centrais pelo mundo (como Fed, Banco Central Europeu, Banco da Inglaterra, Banco do Japão) já praticam essa modalidade de operação.

Contudo, o texto da PEC aprovado na Câmara deixou frouxos muitos dos critérios para que o BC possa realizar a compra de títulos do Tesouro, de direitos creditórios e títulos privados. Por essa razão, a proposta recebeu dezenas de emendas no Senado Federal.

A emenda apresentada pelo senador Randolfe Rodrigues, da Rede Sustentabilidade, previa parâmetros técnicos para os títulos a serem adquiridos, garantias ao BC, como o direito de aquisição de ações das instituições financeiras beneficiadas, e a proibição de estas empresas distribuírem bônus e dividendos até que os títulos tenham sido resgatados no BC, dentre outros critérios e contrapartidas.

O relator da PEC, senador Antonio Anastasia, optou por um texto enxuto. No seu substitutivo, estabeleceu critérios de qualidade para os títulos a serem negociados pelo BC atrelados às notas de classificação de risco atribuídas a diferentes classes de ativos financeiros pelas agências internacionais de rating. Além disso, o relatório do senador exigiu a publicação do preço de referência do ativo, a demarcação específica de quais títulos poderão ser adquiridos, e ampliou os critérios de transparência a serem obedecidos pelo BC.

Entretanto, foram suprimidas as propostas que estabeleciam obrigações para as instituições financeiras que tenham obtido ganhos com essas operações de crédito no mercado secundário. O relator alegou a impossibilidade de reconhecer quem os obteve, pois “a empresa não financeira emissora do título não é a beneficiária da aquisição no mercado secundário, que tem caráter fluido”.

Nada impede que tal critério seja adotado em relação a ativos que estejam nas carteiras das instituições financeiras, uma vez que não se trata de impedir a distribuição de bônus e dividendos das empresas emissoras originais do título: estas, de fato, já se perderam na fluidez dos mercados secundários. A ideia seria impedir que o atual detentor do título, que poderá vir a lucrar com a ação do BC, distribua esses ganhos antes de resgatar os ativos com o BC.

Tais contrapartidas já estão previstas na Resolução 4.797 emitida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) há poucos dias. Contudo, resoluções do CMN podem ser revogadas antes de o BC ter sido ressarcido e carecem do peso da garantia por uma emenda constitucional que estabeleça claramente as contrapartidas.

Enfrentamos uma crise sem precedentes e, diante desse quadro, faltam-nos os corrimões em que economistas costumam se apoiar para traçar cenários e políticas públicas. No entanto, há práticas internacionais exemplares por estabelecerem boas referências, sobretudo no que diz respeito aos instrumentos extraordinários dos bancos centrais. Países acostumados a adotar essas práticas exigem contrapartidas claras das instituições beneficiadas. Não há nenhum motivo para que no Brasil o tema seja tratado de forma distinta.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: Precisamos falar sobre a renda básica permanente

A crise humanitária exposta pela Covid-19 deixa em evidência a extrema vulnerabilidade em que vive uma parte muito expressiva da população brasileira

Há poucos dias, foi sancionada a lei que institui a renda básica emergencial (RBE) de R$ 600 por mês, a serem pagos durante 3 meses prorrogáveis. Como eu já havia escrito neste espaço, a RBE tem por objetivo atender pessoas que não poderiam permanecer em casa para se proteger da epidemia caso não houvesse um programa de governo que as sustentasse durante o período de necessário distanciamento social. Embora a RBE em forma atual seja um benefício temporário, há muitos motivos para torná-la permanente.

O Brasil é um país espantoso. Segundo dados do IBGE, cerca de 50% dos trabalhadores com carteira assinada recebem entre um e dois salários mínimos, enquanto 80% recebem menos de dois salários mínimos. Apenas 10% dos trabalhadores formais ganham mais de R$ 3 mil por mês. De acordo com cálculos feitos por Marcelo Medeiros, metade da população brasileira vive com menos de R$ 1.000 por mês. Estamos falando de cerca de 100 milhões de pessoas que recebem tão somente cerca de um salário mínimo mensal per capita.

Agora, considerem: de acordo com o IBGE, 70% dos redimentos das famíllias de baixíssima renda são destinados a alimentação, transporte e moradia. Ou seja, a maior parte do fluxo mensal dessas pessoas é usada para a subsistência mais básica. Não estão incluídos gastos com vestuário, medicamentos ou itens de necessidade básica para cuidados pessoais. Essas pessoas vivem sem qualquer colchão de segurança, o que significa que, se o chefe de família adoece ou se há algum gasto extraordinário no mês, não há espaço no orçamento mensal para absorver o ocorrido.

Reflitam por um momento sobre isso. Em nosso país há cerca de 100 milhões de indivíduos que vivem na mais precária condição econômica, algo que muitos de nós não têm a capacidade de contemplar. Imaginem a diferença que faria na vida dessas pessoas receber uma transferência de renda sem qualquer condicionante todo mês. A renda básica permanente, pensada desse modo, é mais do que uma ajuda econômica, um assistencialismo. Ela confere dignidade.

Há quem se oponha à renda básica permanente argumentando que ela seria um desestímulo ao trabalho. Entendo o argumento se estamos tratando de pessoas com renda mais elevada do que o montante módico que mencionei anteriormente. Contudo, nem mesmo esse argumento encontra respaldo na literatura acadêmica existente. De acordo com vários estudos, o efeito de programas de transferência de renda sobre os incentivos ao trabalho são, na melhor das hipóteses, ambíguos. No caso brasileiro, quem em sã consciência realmente acredita que alguém que já vive com tão pouco vai deixar de trabalhar porque passou a receber um complemento do governo? A ideia é quase estapafúrdia.

Portanto, vamos ao outro lado da questão: quanto custaria esse benefício incondicional para os cofres públicos? Se 100 milhões de pessoas recebessem uma renda básica de R$ 600 mensais, o montante total no ano alcançaria cerca de 10 pontos percentuais do PIB, valor bastante alto. Com R$ 500 mensais, ou metade do salário mínimo, o custo cai para 8 pontos percentuais do PIB. Com R$ 350 mensais, ou um terço do salário mínimo, o custo seria de pouco mais de 5,5 pontos percentuais do PIB. Evidentemente, parte do gasto com a renda básica é revertido para os cofres públicos na forma de receitas mais altas provenientes de um impulso ao consumo. Afinal, são as pessoas de renda mais baixa que consomem mais como proporção da renda — o que os economistas chamam de propensão marginal a consumir.

Essa população não apenas sofrerá os efeitos mais diretos da epidemia e da crise econômica, mas tais efeitos serão prolongados dadas as curvas epidemiológicas e o curso da doença cujos dados estamos a observar. Mas a defesa da renda básica permanente transcende a crise humanitária que atravessamos.

De uma ótica mais pragmática, a renda básica permanente contribui para a estabilidade da economia e a cidadania na democracia. Já da perspectiva dos valores que compartilhamos, é uma questão de justiça, inclusão e liberdade nesse país tão profundamente desigual que é o Brasil. Chegou o momento de tratar desse tema com a importância e o senso de urgência que ele sempre mereceu.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica De Bolle: Renda básica

A renda básica nos apresenta oportunidade de alcançarmos maior justiça social e liberdade

"O dinheiro que se tem é o instrumento da liberdade; o dinheiro que se tenta obter é o instrumento da escravidão."
Jean-Jacques Rousseau, Confissões

Por liberdade, na frase de Rousseau, entenda-se cidadania, inclusão e libertação econômica. Por “dinheiro que se tem” entenda-se a renda básica, ou mínima: ideia debatida há décadas cujo momento parece finalmente ter chegado. Há muito o que se dizer sobre a epidemia e sobre a crise econômica. Grande parte do que se diz é trágico, amedrontador e profundamente triste. A renda básica se descola desse rol de sentimentos negativos. A renda básica é a luz que pode nos guiar.

O que é a renda básica? Trata-se de uma transferência incondicional de renda do governo para a população ou para uma parcela da população. Transferências incondicionais são aquelas que não estão atreladas a nenhum requisito, ao contrário do programa Bolsa Família. Quando a renda básica é oferecida a uma parcela da população, em vez de para todas as pessoas, são estabelecidos critérios para delimitar a elegibilidade.

A ideia da renda básica existe desde o fim século 18. Ela ganhou proeminência em épocas distintas, notavelmente no fim dos anos 60, quando o ex-professor do ministro Paulo Guedes e vencedor do Prêmio Nobel em Economia, Milton Friedman, escreveu sobre a criação de um imposto de renda negativo. O imposto de renda negativo levaria governos a pagarem, na forma de transferências de renda, um fluxo mensal mínimo de recursos para os mais pobres. Embora o conceito não seja exatamente o da renda básica para todos, ele tem íntima relação com a noção de uma renda básica para a parcela mais vulnerável da população.

Os mais vulneráveis têm sido os mais atingidos pela epidemia e pela crise econômica, como diversos estudos e análises têm revelado. Por essa razão, a renda básica voltou ao centro do debate econômico. Alguns países, como a Espanha, pensam em adotá-la de forma permanente. Outros, como o Brasil, fizeram-no – por ora – em caráter emergencial.

Como já é de amplo conhecimento, a lei que institui a renda básica emergencial (RBE) foi sancionada há poucos dias garantindo o pagamento de R$ 600 mensais para 59,2 milhões de pessoas já registradas no Cadastro Único e outras mais que atendam aos critérios para receber o benefício – há, no momento, um esforço de cadastramento dessas pessoas. É importante ressaltar que as pessoas que não estão no Cadastro Único são, em grande medida, indivíduos que não apenas passaram a sentir as consequências mais graves da crise recentemente, como também aquelas que já eram muito pobres e não dispunham de acesso aos programas de governo por motivos diversos. Portanto, a RBE surgiu no Brasil não apenas como uma medida econômica de emergência, mas como uma ação humanitária. Há muito ainda por fazer, mas essa foi uma grande conquista para a sociedade em tempos sombrios.

Como prosseguir? A RBE é o começo de um caminho já definido pelas características da epidemia. Para dar assistência e dignidade às pessoas mais pobres e vulneráveis será preciso que a RBE se torne um benefício permanente para pelo menos as 77 milhões de pessoas hoje no Cadastro Único. Mantendo o valor atual do benefício, esse programa de renda básica permanente custaria aos cofres públicos pouco mais de 7 pontos porcentuais do PIB. Não é barato, mas não é um valor que quebre o País, sobretudo se considerarmos que, depois da fase aguda da crise, esse benefício ajudaria a sustentar o consumo e as receitas do governo.

Evidentemente, isso não é dizer que a renda básica permanente seja um programa que se autofinancie. Será preciso destinar recursos a ele. Em um primeiro momento, penso nos diversos fundos de que dispõe a União e que hoje não são utilizados para finalidade alguma – poder-se-ia unificar parte deles para pagar a renda básica. No futuro, a renda básica seria financiada por uma reforma tributária que revertesse a pirâmide de impostos brasileira, onerando progressivamente a renda e o patrimônio e desonerando consumo e produção.

Em tempos de escuridão, doença e tragédia, a renda básica nos apresenta oportunidade de alcançarmos maior justiça social e liberdade. É passada a hora de resgatarmos esses valores.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: A renda básica emergencial

Voucher, ou um “vale”, não é renda. A RBE é uma transferência incondicional de renda do governo para uma parcela da população

Na última segunda-feira foi aprovada por unanimidade no Congresso Nacional a Renda Básica Emergencial (RBE), um benefício de R$ 600 mensais a ser destinado a uma parte da população brasileira mais vulnerável, como os trabalhadores informais. Embora haja muito o que aprimorar, a RBE foi uma enorme conquista para o Brasil. Foi, também, um momento de protagonismo do Congresso, que tem tomado as rédeas da crise enquanto o governo, quando muito, dorme no ponto. Mas não vou tratar das andanças do presidente da República por Brasília, tampouco de suas conclamações ao vírus e à epidemia.

Apesar de a RBE ter sido uma conquista da sociedade junto ao Congresso, movendo o Estado a despeito da inércia do Executivo federal, não tardou para que o governo quisesse dela se apoderar. Ou melhor, quisesse se apoderar da medida para propaganda, porque o pagamento do benefício para quem já está passando fome o governo tratou mesmo foi de embromar. Nos lábios do ministro da Economia, Paulo Guedes, a RBE ganhou logo um nome inapropriado, insensível, de mau gosto, que beira o obsceno: “coronavoucher”. Parte da imprensa pôs-se a repeti-lo sem se dar conta de que um imenso equívoco havia sido cometido pelo ministro. Voucher, ou um “vale”, não é renda. O “vale” é um papel que dá ao detentor o direito de obter um desconto numa compra ou de trocá-lo por um bem ou serviço: vale-transporte, vale-alimentação. Renda é um fluxo de dinheiro para o recipiente, seja na forma de salários, de dividendos ou de transferências do governo. A RBE é uma transferência incondicional de renda do governo para uma parcela da população. A RBE é como o Bolsa Família, com a diferença de que o Bolsa Família exige contrapartidas dos beneficiários. Portanto, o ministro embrulhou conceitos econômicos, na melhor das hipóteses, para se fingir de pai da filha que não havia gerado.

Mas não ficou só nisso. Depois de ter tentado dar nome à filha que não era dele, o ministro disse ser muito difícil começar a pagar a RBE imediatamente. Inventou a necessidade de uma Emenda Constitucional para fazê-lo, o que, além de ser desnecessário, atrasaria o pagamento do benefício, colocando vidas em risco. Sim, vidas. Afinal, os beneficiários são pessoas que só comem aquilo que conseguem arrecadar de renda a cada dia. Pensem nos ambulantes, que, com a quarentena, não têm para quem vender. Pensem em todas as pessoas que têm de escolher entre comer ou arriscar ser contaminadas pela doença e, de quebra, transmiti-la a seus entes queridos. São essas pessoas que Guedes não quer abraçar.

Como fazer para pagar a RBE? O ministro deveria saber, pois não é difícil. Há duas maneiras. A primeira, mais fácil, seria o governo editar uma Medida Provisória (MP) para o pagamento do benefício, indicando como fonte de recursos o superávit financeiro da União — o superávit financeiro, proveniente de operações de câmbio e outras mais, é de dezenas de bilhões de reais, ou seja, muito mais do que o necessário para cobrir a RBE. Outra forma seria o governo emitir dívida.

Para isso, teria de abrir uma exceção ao cumprimento da regra de ouro, dispositivo constitucional que proíbe a emissão de dívida pública em determinadas circunstâncias. Abrir exceção para o cumprimento da regra de ouro não requer Emenda Constitucional alguma. Basta que o governo prepare uma MP indicando ao Congresso por que é necessário descumpri-la para determinada finalidade e que o Congresso aprove o projeto de lei autorizando o governo a fazê-lo. Dada a disposição do Congresso de ver a implementação da RBE, nada disso seria difícil e provavelmente poderia ser feito em menos de 24 horas. Contudo, ao invés de buscar soluções, Guedes busca empecilhos.

No calor desse momento de tamanha aflição, hashtags subiram imediatamente nas redes sociais pedindo o pagamento ou a saída do ministro. Até ministros do Supremo Tribunal Federal se pronunciaram sobre o descalabro.

A RBE será paga, de um jeito ou de outro. A RBE será aprimorada e ampliada, de um jeito ou de outro. A RBE haverá de tornar-se permanente, de um jeito ou de outro. Ela é a esperança para que, na saída dessa crise, tenhamos ao menos uma sociedade menos injusta. Da pandemia ainda nascerá um dos pilares da cidadania.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins