Monica de Bolle

Monica De Bolle: Reflexões sobre a sindemia

Há uma urgente necessidade de planejamento desde agora para enfrentar o que sobrevirá da crise atual da covid-19

Talvez alguns leitores já estejam familiarizados com o termo sindemia. Ele vem sendo utilizado crescentemente pela imprensa após a Organização Mundial de Saúde, além do renomado periódico científico The Lancet, terem se referido à covid-19 e suas consequências como uma sindemia. Para quem não sabe o que significa, sindemia foi o termo cunhado pelo médico-antropólogo Merrill Singer nos anos 90 com o propósito de formular novas abordagens para o tratamento de doenças e o enfrentamento de problemas de saúde pública.

Sindemias consistem em situações onde duas ou mais doenças interagem biologicamente de modo adverso, onde essas doenças coexistem em níveis que caracterizam epidemias nas populações afetadas, e em contextos nos quais fatores socioeconômicos diversos contribuem para o agravamento do problema constatado. Portanto, as sindemias não tratam as doenças isoladamente, tampouco fora do contexto socioeconômico em que despontam, ao contrário do entendimento usual sobre epidemias e pandemias.

Há várias razões para que especialistas em saúde e saúde pública, além de cientistas sociais, estejam abraçando o termo sindemia para caracterizar os efeitos da covid-19. A mais visível delas é como a nova doença afeta desproporcionalmente segmentos da população desavantajados seja por motivos raciais, seja por questões relativas à desigualdade e à pobreza. Muitas vezes, tanto raça quanto desigualdade e pobreza interagem, revelando os problemas estruturais subjacentes. Está amplamente documentado que aqui nos EUA negros e hispânicos são os que mais sofrem com a covid-19. No Brasil, são os mais pobres, de maioria negra, os mais afetados. Essa divergência observada no impacto do vírus sobre a sociedade tem características sindêmicas.

Se pensarmos dessa forma sobre a covid-19, há muito com o que se preocupar mesmo que exista uma vacina ou tratamentos para a doença seja quando for. Tomemos a obesidade. A obesidade é um fator de risco para o desenvolvimento de quadros graves ou severos de covid-19. A obesidade é também um fator de risco para doenças crônicas não transmissíveis, como a diabetes, a hipertensão, doenças coronarianas, e por aí vai.

De acordo com vários estudos recentes sobre a obesidade no Brasil, ela está não apenas em trajetória crescente, como cada vez mais aflige a população de baixa renda e, em particular, as mulheres mais pobres.

A inter-relação entre obesidade, diabetes, e covid-19 configura uma sindemia nos moldes descritos acima: as três doenças se exacerbam mutuamente em termos biológicos e estão inseridas no contexto específico de pessoas de renda mais baixa com reduzida segurança alimentar. Do mesmo modo, a inter-relação entre obesidade, hipertensão, e covid-19 também configura uma sindemia, lembrando que a hipertensão eleva outros riscos, como o de AVCs, de doenças renais crônicas, e de vários outros problemas.

O resumo disso tudo é que mesmo depois de passadas as ondas agudas da epidemia no Brasil, haverá um contingente grande de pessoas com doenças crônicas, muitas delas exacerbadas pela covid-19. Essas pessoas provavelmente pertencerão ao mesmo segmento socioeconômico que hoje se associa tanto à covid-19, quanto à existência de doenças como a obesidade. Todas essas pessoas, de variadas faixas etárias, permanecerão dependentes do SUS.

Quando o assunto é risco econômico no Brasil, fala-se muito em problemas de natureza fiscal, risco de calote de dívida, descontrole inflacionário, e outros problemas macroeconômicos que evidentemente devem ser pensados e considerados.

Contudo, o risco mais importante, na verdade já uma realidade mesmo quando não levamos em conta a covid-19, é o impacto das sindemias existentes sobre a saúde pública e a economia, agravando problemas estruturais subjacentes, sobrecarregando o SUS, e, claramente onerando também as contas públicas. Há uma urgente necessidade de planejamento desde agora para enfrentar o que sobrevirá da crise atual. Dizer que o governo atual não está preparado para dar cabo desses imensos desafios é eufemismo.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute For International Economics e Professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: O custo do negacionismo

O negacionismo pandêmico tem um custo para lá de elevado aos cofres públicos federais

Em artigo recente para o Jama, o prestigiado Journal of the American Medical Association, os igualmente prestigiados economistas David Cutler e Larry Summers apresentaram os custos do negacionismo pandêmico aqui nos Estados Unidos. Partindo de evidências apresentadas em vários artigos científicos recentes sobre a covid-19, além de cálculos do Congressional Budget Office para a queda estimada do PIB associada à pandemia na próxima década, e de estudos atuariais e demográficos, os autores concluíram que a conta pode chegar a US$ 16 trilhões até outubro de 2021. Vou repetir: o custo do negacionismo nos EUA poderá chegar a cerca de 90% do PIB supondo que a epidemia seja controlada em meados de 2021. A hipótese de que a crise de saúde pública estaria resolvida daqui a um ano é, como ressaltam os próprios autores, muito otimista. Caso isso não ocorra, o custo poderá ser maior.

Cutler e Summers levam em conta não só os dados econômicos, como os aumentos inéditos de pedidos de seguro-desemprego a cada mês, mas também o custo de tantas vidas perdidas, seja diretamente pela infecção com o SARS-CoV-2, seja indiretamente pelas mortes excedentes provenientes de outras doenças já que tantos recursos estão sendo inevitavelmente destinados a atender os atingidos pela epidemia. Nós não temos contas semelhantes feitas para o Brasil, mas precisamos urgentemente fazê-las, sobretudo para ter alguma noção do montante de recursos que teremos de destinar ao SUS, além das medidas que precisam ser adotadas para alterar a preocupante trajetória brasileira. Nossa população está envelhecendo, o que significa que a carga de doenças associadas à idade – diabetes, câncer, hipertensão, cardiopatias, entre outras – vai subir nos próximos anos. Além disso, a obesidade já é um problema urgente que não só afeta a carga de doenças associadas ao envelhecimento como fator de comorbidade, mas influencia o número de pacientes com casos graves ou severos de covid-19 e as possíveis sequelas. Não faltam estudos para mostrar que a obesidade é um fator de risco considerável.

No artigo citado, os autores utilizam evidências demonstradas em pesquisas científicas para calcular o número de pessoas que poderão apresentar graves sequelas até o fim do ano que vem como parte dos custos calculados. Contas semelhantes podem ser feitas para o Brasil. Supondo que o número de casos graves ou severos é cerca de 7 vezes maior do que o de óbitos e que cerca de 30% dos que sobrevivem aos quadros mais preocupantes de covid-19 apresentam alguma sequela séria, o Brasil poderia ter até cerca de 350 mil pessoas nessa situação até o final de 2021. São 350 mil pessoas a mais a depender muito provavelmente do SUS em um período de tempo muito curto. Esse cálculo pressupõe, como o dos autores, hipótese demasiado otimista em relação ao controle da epidemia – portanto, não é uma cifra exata, mas algo para dar uma ideia da ordem de magnitude dos problemas que iremos enfrentar apenas no próximo ano.

Caso queiramos aplicar as contas dos autores ao Brasil, é possível fazê-lo somente de forma muito parcial. Eles partem de uma vasta literatura acadêmica que calcula o “valor estatístico das vidas”, definido como o quanto que os indivíduos estariam dispostos a pagar para reduzir seu risco de vida em determinadas situações. O montante pode chegar a US$ 7 milhões de dólares para cada vida estatística, ou cerca de R$ 40 milhões a depender da taxa de câmbio que se utilize. Já contamos com mais de 150 mil óbitos, muitos dos quais prematuros. Caso o número de óbitos entre hoje e outubro do ano que vem chegue ao nível mais otimista que se pode conjecturar hoje, isto é, que nos próximos doze meses registremos a metade dos óbitos que temos até agora no Brasil, teremos 225 mil mortes, muitas delas prematuras. O custo econômico dessa catástrofe seria de R$ 9 bilhões. Caso o número de óbitos dobre até o fim do ano que vem, o custo econômico atrelado apenas às mortes prematuras seria de R$ 12 bilhões. Não estão contabilizados nessas cifras os diversos outros custos calculados pelos autores com maior precisão.

O negacionismo pandêmico tem um custo para lá de elevado. Se o governo e parte da população brasileira não conseguem se sensibilizar com a absurda perda de vidas, em boa parte evitável com a adoção dos protocolos de segurança e de mudanças no padrão de comportamento, quem sabe se sensibilizem com as perdas econômicas que haverão de perdurar por muitos anos. Não é improvável que ultrapassemos 90% do PIB do Brasil nesse quesito.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: Trump e o vírus

O embate travado entre Trump e o vírus poderá, portanto, ser a batalha decisiva dessas eleições

Há uma semana estava eu escrevendo a coluna antes do primeiro debate entre Trump e Biden. Embora não soubesse que seria o show de deselegância, truculência, e falta de educação que foi, disse que o debate em si pouco mudaria o cenário eleitoral nos EUA por duas razões: muitos eleitores já estavam decididos e a eleição de fato já havia começado – em alguns Estados, é possível votar antes do dia 3 de novembro, assim como se pode enviar o voto por correio. No dia seguinte, quando a coluna foi publicada no jornal, fiz um post-mortem do debate no meu canal do YouTube. Mal sabia que tudo estava prestes a virar de ponta cabeça já que àquela altura – do pouco que se sabe sobre a linha do tempo – Trump já estava infectado. De lá para cá, soubemos que a Casa Branca se tornou um “covidário”, que no evento de nomeação da indicada para a Suprema Corte várias pessoas do círculo íntimo de Trump se infectaram, que o homem inabalável – imagem que adora projetar de si – passou três dias no hospital com o que parece ser um quadro mais grave de covid-19 do que os médicos estão dispostos a revelar.

Seguindo o script do reality show que já tem quase quatro anos de duração, Trump deu alta a si próprio no início da semana e voltou para a Casa Branca ainda no período contagioso e, nas palavras dos próprios médicos, não fora de perigo. Para projetar a imagem de homem forte que venceu o vírus, ainda que o vírus nele ainda esteja sabe-se lá fazendo o quê com o corpo frágil de um idoso com comorbidades, Trump desceu do helicóptero, subiu escadas, tirou a máscara. As imagens do vídeo capturaram com nitidez o esforço que fazia para respirar no momento em que removia a máscara e expunha fotógrafos e outros funcionários da Casa Branca às partículas virais que expelia. Por certo, seus apoiadores viram apenas a imagem intencionada, a do homem e seu vírus, do homem sem seu vírus como que por milagre. Qual o impacto desse teatro para as eleições? A resposta depende, em parte, do vírus.

Como bem sabem os especialistas, Trump ainda está no período crítico, aquele em que a doença pode se agravar a qualquer momento. Até o médico responsável por cuidar do presidente, o mesmo das ofuscações e das meias palavras para a imprensa, foi claro ao dizer que só estará mais tranquilo depois da próxima segunda-feira. Caso o quadro de Trump se agrave antes disso, a bravata terá sido em vão e a campanha do republicano estará definitivamente encerrada. Se for esse o desfecho, o mais provável é que Trump perca para o adversário democrata Joe Biden, sobretudo após as recentes falas sobre a doença e o vírus. Para quem não está acompanhando tão de perto, Trump disse que a covid-19 não é nada a temer – embora tenha matado mais de 210 mil pessoas nos EUA – e voltou a afirmar como fazia em março que a doença não passa de uma gripezinha. Para completar, disse que a população tem que aprender a conviver com o vírus, que a economia não pode parar, e que não é o momento de discutir pacotes de estímulo fiscal como fazia o Congresso antes de sua internação. Se for para dar mais recursos para a economia, enfatizou Trump, isso só ocorrerá depois das eleições.

Ainda que essas palavras o prejudiquem, há outra possibilidade. Recebendo os melhores tratamentos que a medicina de ponta pode oferecer, não é irrazoável que Trump se recupere. Nesse caso, a bravata terá valido a pena. A imagem do homem forte que combateu o vírus e venceu se implantará no imaginário norte-americano que ainda acredita na suposta excepcionalidade do país. A presunção de uma nação imbatível personificada por Trump poderá ameaçar seriamente as chances de Biden, ainda que o comportamento do presidente tenha sido condenável e que a gestão da epidemia tenha sido um desastre. Vejam: o imaginário americano não se move por sentimentalismos ou simpatias à la “facada de Bolsonaro”. O imaginário americano se move pela ideia de heroísmo e invencibilidade. É desse mito que Trump se alimenta para mesmerizar os suscetíveis, e não são poucos os suscetíveis.

O embate travado entre Trump e o vírus poderá, portanto, ser a batalha decisiva dessas eleições. Trata-se agora da interação entre o sistema imune possivelmente turbinado por medicamentos ainda em fase de ensaio clínico e as artimanhas insidiosas do Sars-CoV-2. A política, assim como a economia, jamais dependeu tanto da medicina.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e Professora da Sais/Johns Hopkins University


Valor: Pandemia demanda um programa de renda básica permanente, diz Monica de Bolle

Para Monica de Bolle, a crise sanitária impõe desafios aos dogmas econômicos e demanda um programa de renda básica

Por Diego Viana, Valor Econômico

SÃO PAULO - Um gosto antigo pela medicina fez da economista Monica Baumgarten de Bolle uma das primeiras pessoas a alertar para o tamanho da crise que viria em 2020. A luz amarela foi acendida em janeiro, com a leitura do artigo em que o Sars-Cov-2 foi nomeado pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus. “Pude perceber que seria uma calamidade absoluta, porque o novo vírus era muito mais transmissível que o Sars original. E era imprevisível, levando 20% dos contaminados para o hospital e muitos desses para a UTI”, diz a pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins.

“No caso de um país como o Brasil, ficou claro que o golpe seria ainda mais brutal”, afirma Monica. Com mais de 60% da população em situação vulnerável, fora do mercado formal de trabalho ou com grande risco de ser expulsa dele, “essas pessoas seriam imediatamente atingidas quando começassem as medidas de isolamento”. Esse raciocínio levou à conclusão de que “o Brasil não sobreviveria sem um programa de renda básica”.

Nos meses seguintes, em artigos de imprensa, “lives” e postagens de redes sociais, a economista defendeu com afinco a necessidade do auxílio emergencial. A pressão de intelectuais e entidades da sociedade civil teve efeito: o Congresso aprovou o auxílio de R$ 600 em março. Mas o problema não parava aí: à medida em que chegavam novos artigos de virologistas e epidemiólogos, ficou claro para Monica que transformações muito mais profundas seriam necessárias.

No livro “Ruptura” (Intrínseca, 320 págs.), a economista retoma os debates que a pandemia suscitou no campo da política, das medidas de mitigação à expansão dos gastos públicos, incluindo a reconversão industrial (fábricas que passaram a produzir equipamentos médicos), o papel do BNDES e a emissão de moeda. Mas as rupturas vão além. A crise sanitária deixa em seu rastro um mundo mudado. Ideias parcamente discutidas há poucos anos ganham tração. Poucos duvidam que os governos terão de conviver com níveis mais elevados de endividamento, que será necessário investir pesadamente na recuperação das economias e que a transição energética será acelerada.

“São pelo menos três níveis de ruptura”, afirma. “Primeiro, o mundo real está sendo transformado. Segundo, a teoria econômica é obrigada a examinar como ela pensa em seu papel. Terceiro, a ruptura pessoal: decidi abandonar os modelos que não ajudam mais a entender o mundo e adotar uma perspectiva mais interdisciplinar.”

Monica detalha as diferenças entre tipos de vírus, sua taxa de transmissão e sua mortalidade. Seu interesse pelo tema é anterior à formação como economista: foi demovida de seguir a carreira médica graças a Dionísio Dias Carneiro (1945-2010), professor da PUC-RJ. “Ele disse que muito do que um economista faz é parecido com a medicina. De fato, trabalhamos com diagnósticos e podemos pensar que estamos tratando de um sistema parecido com um organismo, porque é evolutivo, sempre mudando”, diz.

Aprofundando as leituras sobre a pandemia, diz Monica, “era cada vez mais evidente que não vamos voltar rapidamente à vida normal. Por mais que, agora, exista a perspectiva de uma vacina, vamos passar pelo menos dois anos difíceis. Mesmo que não seja tão complicada como foi até agora, a vida não vai estar normal”.

Para a economista, o trauma da pandemia tem o potencial de consolidar projetos ambiciosos e, até recentemente, apenas especulativos. A renda básica, adotada em caráter emergencial em vários países, se torna um primeiro impulso para projetos de renda básica universal, debatidos como meramente utópicos até o ano passado. O primeiro país a aprovar uma renda permanente é a Espanha, duramente atingida pela covid-19. “Estamos caminhando para que a renda básica seja componente normal das economias”, afirma. Para ela, porém, está se tornando consenso que não é possível deixar parte substancial da população desamparada. “Não sabemos como vai ser o mundo quando passar o pior da pandemia. O que vai acontecer com as relações de trabalho? Quais empregos estarão obsoletos?”

As idas e vindas em torno do programa Renda Cidadã, proposta do governo para substituir o Bolsa Família, mostram que “é preciso ter um projeto bem desenhado, sabendo precisamente quem é a população a ser assistida. Esse desenho é mais relevante do que o valor do benefício”, observa. Como a função do Bolsa Família é reduzir a pobreza, o programa tem um público-alvo claro. Agora, porém, “há um novo contingente: pessoas que vivem em situação precária, mas, pelo menos até a pandemia, tinham acesso ao mercado de trabalho formal. É para elas que seria necessário desenhar uma alternativa”.

Segundo Monica, o formato de um programa para essa população seria parecido com o de um seguro. “Quando estão sem renda por algum motivo, seja a pandemia ou outro, recebem um benefício, determinado de acordo com as restrições orçamentárias do país. Quando estivessem de volta ao mercado, o valor poderia ser reduzido.” A economista ressalta que não se trata de substituição ao Bolsa Família, mas programa complementar. “O que transparece é que o governo não sabe quem quer atender, nem como.”

O Brasil, portanto, terá de repensar alguns princípios econômicos que nortearam os últimos anos, diz a economista. Terá de aceitar mais investimento do Estado, o fortalecimento do sistema de saúde, a flexibilização do teto de gastos e o aumento do endividamento. “Mesmo com a rigidez do ministro [da Economia, Paulo] Guedes, queira ou não, a pandemia já está mudando a mentalidade sobre a atuação do Estado. Não temos como responder a um desafio dessa envergadura sem o governo.”

O aumento da dívida, no entanto, enfrenta a barreira da memória, já que o país enfrentou uma devastadora crise de endividamento na década de 1980 e episódios de alta inflação. “Não tem de onde vir inflação hoje”, diz a economista. Ela aponta que a crise da dívida se seguiu a um período de empréstimos fartos em dólar, que se tornaram impagáveis depois que o Federal Reserve elevou os juros americanos, em 1979.

A situação atual é inversa. Nos próximos anos, os juros devem permanecer baixos ao redor do mundo. A dívida brasileira, por sua vez, está denominada sobretudo em reais, o que protege contra súbita escassez de dólares. “Minha preocupação não é inflação, nem dívida. O debate está completamente errado no Brasil”, afirma. “O que me preocupa é a possibilidade de pegarmos dinheiro emprestado para fazer besteira. O grande perigo é ficarmos presos para sempre em uma armadilha de crescimento baixo.”

A ruptura teórica, para ela, exigirá que a economia como disciplina passe a reconhecer seu campo de estudo não mais como sistema estático, mas evolutivo e complexo. A maior vítima é a macroeconomia, que “conversa muito pouco com o mundo real e onde quase não houve inovação nas últimas décadas”. Na microeconomia, alguns desenvolvimentos das últimas décadas apontam direção mais fecunda, como é o caso das pesquisas que se apoiam sobre a psicologia comportamental ou a área do desenho de incentivos. “As aplicações são inúmeras, já que esses modelos afetam também a provisão de bens públicos, como saneamento básico”, diz.

“Muitas dessas reflexões já estavam na minha cabeça desde a crise de 2008, sobretudo as questões sobre a economia como disciplina”, relembra. “Por que ela se fechou em si mesma? Por que perdeu sua interdisciplinaridade? A que papel ela se presta nas intervenções de política pública? Sobretudo, como ela vem se tornando obsoleta ao longo do tempo?”


Monica De Bolle: As eleições nos EUA

Uma eventual vitória dos democratas nos EUA trará imensos desafios para o trumpismo de Bolsonaro

Esse artigo será publicado no dia seguinte do primeiro debate presidencial entre Trump e Biden. Portanto, escrevo sem poder dizer quem foi melhor ou pior, sem poder discorrer sobre eventuais gafes e mentiras, sem nada poder falar sobre o comportamento de cada um. Contudo, algo me parece quase certo nesses tempos em que a polarização não mais se dá no plano político, mas no plano das realidades: o debate pouca diferença fará nos resultados de novembro.

A polarização da realidade, tema de estudo recente a ser publicado no prestigiado periódico American Economic Review (ver Alesina, Alberto, Miano, Armando, e Stefanie Stantcheva (2020) “The Polarization of Reality”), está entre nós. Não mais se trata de posicionamentos políticos e/ou ideológicos distintos e dos juízos de valor a eles associados. Esse tipo de polarização foi atropelado por outro bem mais nefasto, aquele em que cada pessoa tem o seu mundo, a sua realidade. Para alguns indivíduos, a realidade é que não existe covid-19 – trata-se de uma grande conspiração do “Estado profundo” (“deep state”) para, bem, não se sabe articular muito bem para o quê. Parte dos que não acreditam na existência do vírus condenam o uso de máscaras e identificam nos democratas o maior perigo para a estabilidade norte-americana: “vão invadir os subúrbios!”; “vão roubar nossas casas!”; “armemo-nos contra a investida dos comunistas!”. Para ser honesta, o outro lado não é muito melhor. Vivo nos EUA, em Washington DC, uma bolha democrata. Republicanos são vistos como seres inferiores, de intelecto comprometido, vis e desalmados. Exagero um pouco, mas não muito.

Quando a polarização se dá no plano das ideias, ainda é possível ter a esperança de que consensos se formem. Afinal, boa parte das ideias têm algum tipo de convergência ou algum elemento em comum. Nesses casos, tais elos servem para trazer à mesa pontos de vista aparentemente inconciliáveis. Contudo, quando a polarização se dá na realidade que cada um vê como a verdadeira, não há possibilidade de consenso, convergência, ou qualquer tipo de trégua no embate permanente. Realidades distintas necessariamente colocam “o outro” como um alienígena, ser estranho que merece ser tratado com suprema desconfiança. Assim está a sociedade norte-americana. O Brasil está chegando lá com velocidade assustadora.

A polarização da realidade não permite que eleitores cruzem fronteiras, ainda que não gostem muito do candidato que representa melhor sua visão do universo – universo mesmo, não mundo. Por essa razão, o debate entre Trump e Biden não haverá de mexer muito nos votos de certa maneira já pré-determinados. O mesmo vale para a vultosa série de reportagens administrativas sobre as manobras de Trump para não pagar seu imposto de renda nos últimos vários anos. Para os democratas, essa é mais uma prova do que já decidiram a respeito da personalidade do atual presidente dos EUA. Para os republicanos, trata-se de nada mais do que mais uma caça às bruxas dos “progressistas”, a somar-se às investigações sobre o envolvimento de Trump com os russos e ao impeachment decidido pela Câmara e rejeitado no Senado.

Resta, portanto, observar a inédita convulsão política em torno das eleições de novembro. Haverá crise constitucional? Será que Trump vencerá na noite da apuração dos votos apenas para perder dias mais tarde após serem contados os votos por correio? E os votos por correio, serão eles usados por Trump para declarar fraude eleitoral? Será a Suprema Corte – que acaba de perder a grande Ruth Bader Ginsburg, afetuosamente RBG – incumbida de dar a palavra final sobre o vencedor das eleições? E será que até lá Trump terá conseguido emplacar sua juíza indicada, provocando reviravolta ideológica na Corte?

É impossível exagerar o grau de incerteza, de turbulência política e social, associados a essas eleições. O que dá para afirmar é que, sem sombra de dúvida, a vitória dos democratas, seja para a presidência dos Estados Unidos, seja na conquista da maioria no Congresso, seja em ambas, trará imensos desafios para o trumpismo de Jair Bolsonaro.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: A hipóxia da América Latina

A economia da região já estava abalada antes da pandemia; Brasil e México estavam com as contas desarranjadas

Na lista de países com o maior número de mortes diárias por milhão de habitantes, vidas ceifadas pela covid-19, os dez primeiros lugares pertencem à América Latina. Na lista de países com o maior número de casos diários por milhão de habitantes, há sete países da região entre os mais afetados. O primeiro lugar não pertence aos Estados Unidos, mas à Argentina. O segundo lugar é da Costa Rica, o quarto lugar é do Peru, o quinto do Panamá, o sexto da Colômbia, o sétimo do Brasil. Os EUA aparecem na nona posição, já que a décima pertence ao Chile.

A pandemia chegou à região em fevereiro de 2020, tendo, assim, dado dois meses para que os governos se preparassem. Poderiam ter usado esse tempo para traçar planos de resgate econômico, estratégias de saúde pública, medidas para proteger as centenas de milhões de pessoas vulneráveis da região. Do desperdício emergiram os pulmões dilacerados da América Latina.

Foram muitos os erros. Lideranças frágeis, instituições em crise permanente, presidentes como Andrés Manuel López Obrador no México e Jair Bolsonaro no Brasil que negaram com veemência a gravidade de um vírus novo e letal sobre o qual pouco se sabia. O caso mexicano surpreende bem mais do que o brasileiro já que López Obrador, apesar de algumas limitações, fez campanha como “defensor dos pobres” e prometeu uma agenda de priorização da proteção social em seu país. Até agora, pouco fez. Bolsonaro…bem, com esse já aprendemos tudo o que não devemos esperar que faça.

O resultado do fracasso latino-americano está estampado nos números. Até o dia 11 de setembro contabilizavam-se quase 7 milhões de casos de covid-19 nas 5 maiores economias da região, a saber: Brasil, México, Colômbia, Argentina, e Peru. São centenas de milhares de mortos, sem contar que os números estão subestimados devido à má qualidade da coleta de informações, a falta de testagem, a ausência de protocolos para o rastreamento de contatos. As quedas registradas da atividade econômica jamais foram tão fortes, o desemprego está em alta, e a crise humanitária tem recaído, sobretudo, na população mais pobre. Tudo isso na região que é campeã da desigualdade no planeta e cujos níveis de pobreza são dramáticos.

Em conferência recente aqui em Washington – o evento anual da Confederação Andina de Fomento (CAF) – ouvi dos meus colegas de painel relatos semelhantes aos que escuto no Brasil. Descaso de governantes, políticas mal elaboradas, aberturas prematuras de locais de grande aglomeração, descontrole da pandemia. Em algumas partes da região fala-se em desordem social, igual ou pior do que aquela que testemunhamos na segunda metade de 2019 – parece uma eternidade, mas foi outro dia.

A economia da América Latina já estava abalada antes da pandemia. As duas maiores potências econômicas da região, Brasil e México, resfolegavam para crescer em meio a contas públicas desarranjadas e ausência de perspectivas para o resgate do desenvolvimento. Nesse contexto, quase todos os países da região cometeram exatamente o mesmo erro: o de tentar evitar medidas sanitárias mais drásticas – como quarentenas rigorosas – para “salvar” as economias. O resultado foi o pior possível: não houve controle da epidemia, tampouco da crise econômica.

Como já escrevi em outras ocasiões nesse espaço, não há retomada econômica na ausência de medidas para controlar as epidemias. Contudo, como muitos países voltaram à seminormalidade nos últimos meses, mantendo escolas fechadas, porém abrindo bares, restaurantes, shopping centers, medidas sanitárias restritivas não têm apoio social ou político.

Tal quadro significa que epidemias descontroladas serão a norma ao longo dos próximos meses, com consequências, evidentemente, desastrosas em termos de vidas perdidas e abalos socioeconômicos nestes países da América Latina.

Os pulmões dilacerados da América Latina continuarão a afligir a população vulnerável e a elevar os índices de desigualdade e pobreza já tão altos nessa trágica região do planeta. Roubando as palavras de Caetano e Gil, parece difícil que sejamos capazes de escapar de um destino. Desse destino: o Haiti é aqui.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: Vacina e economia

Fala do presidente sobre vacina para covid-19 é perda de tempo, sobretudo ante os desafios que o País terá para imunizar a população

Não pretendo perder tempo ou espaço nesse artigo argumentando a favor da obrigatoriedade das vacinas, quaisquer que sejam. A vacina é um direito do cidadão, estabelecido na Constituição.

Vacinas contra doenças infectocontagiosas são, também, obrigatórias, como em diversos países. A obrigatoriedade é uma questão óbvia de saúde pública e de higidez econômica: vacinas garantem a proteção não apenas daqueles que as “consomem”, como a de todos aqueles com quem possam entrar em contato.

Vacinas, portanto, geram o que os economistas chamam de “externalidades positivas”, isto é, efeitos que recaem não só sobre quem é vacinado, mas sobre toda a sociedade. Portanto, a recente fala presidencial a respeito da futura vacina para covid-19 como fonte de controvérsias é perda de tempo, sobretudo ante os imensos desafios que o País terá pela frente para imunizar a população quando a vacina para covid – ou as vacinas, já que há várias em estágios distintos de andamento – estiver à disposição.

É de extrema importância considerar tais desafios para que se possa pensar de forma realista sobre a recuperação da economia brasileira.

Não faltam economistas – incluindo o próprio ministro da Economia – a dizer que a retomada será rápida em 2021 já que teremos vacina. Muitos já aderiram à ideia de “recuperação em V” sem parar para analisar o que está em jogo. A impressão que se tem é que alguns economistas e analistas acreditam que uma vez que a vacina esteja disponível, a epidemia e suas consequências desaparecem quase da noite para o dia. Não é assim.

Consideremos, em primeiro lugar, as vacinas em estágio de ensaio clínico mais avançado. São essas as vacinas genéticas (Moderna, Pfizer), as vacinas que utilizam vetores virais (AstraZeneca/Oxford, CanSino Biologics), e as mais tradicionais de vírus desativado (Sinovac). As vacinas de origem genética injetam no paciente o RNA viral de um antígeno do Sars-CoV-2 – antígenos são moléculas virais como as proteínas.

Esse RNA viral, ao ser injetado nas células do paciente inoculado, sintetiza o antígeno (a proteína) induzindo uma resposta imunológica. Os ensaios clínicos de Fase III em que estão algumas dessas vacinas têm por objetivo estabelecer eficácia, algo que ainda desconhecemos apesar dos estudos demonstrando boas respostas, ou um grau razoável de imunogenicidade. Um problema é que essas vacinas requerem armazenamento ultrarrefrigerado – a 80 graus Celsius negativos. Como têm ressaltado muitos especialistas, não temos no Brasil a capacidade para esse tipo de armazenamento, sobretudo em larguíssima escala, como seria o requerido para imunizar parcela relevante da população. Como o RNA é material genético de alta instabilidade, tanto o armazenamento quanto a distribuição estão sujeitos a desafios logísticos enormes, assim como a capacidade de transportar doses dessas vacinas país afora.

As vacinas que utilizam vetores virais modificados para carregar material genético do Sars-CoV-2 e induzir respostas imunológicas no paciente enfrentam obstáculos semelhantes. Elas também precisam ser ultrarrefrigeradas – algumas a 20 graus Celsius negativos – e requerem um grau de vigilância sanitária para garantir a sua qualidade que muitas partes do Brasil não possuem. Pensem nos nossos postos de saúde desassistidos financeiramente, e na falta de estratégias de saúde pública do governo desde o início da pandemia.

O que isso significa é que mesmo a vacina da AstraZeneca/Oxford, cujo ensaio de Fase III recrutou milhares de brasileiros e brasileiras, poderá não estar disponível em quantidade suficiente para frear a epidemia de modo desejável. Ou seja, é possível – pela falta de capacidade logística – que as doses disponíveis dessa vacina no País não sejam suficientes para induzir a chamada imunidade coletiva, conceito aqui corretamente aplicado já que se refere exclusivamente à existência de uma vacina. Sem contar que, em todos esses casos, sejam as vacinas de origem genética ou as que utilizam vetores virais, passaremos ainda um bom tempo sem saber ao certo qual seu grau de eficácia.

De acordo com diversos artigos científicos e opiniões de especialistas, não é realista pensar em eficácia de 100%. E, caso a eficácia fique abaixo de determinado limiar, digamos 70% ou 75% a depender da transmissibilidade natural do vírus, é possível que não alcancemos a imunidade coletiva. Nesse caso, a epidemia permaneceria entre nós, ainda que de forma mais atenuada.

Quando se compreende o que está em jogo com a vacina, difícil é acreditar nas retomadas excessivamente otimistas projetadas por alguns. Sobra ilusão, falta realismo.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: PIB e pandemia

O descontrole da epidemia é responsável pela retração de 9,7%, assim como é o atraso do governo em enfrentar a crise

Se alguém ainda tinha dúvidas de que a economia brasileira sofreria um estado de depressão econômica em decorrência da pandemia e das respostas econômicas inadequadas do governo, se alguém ainda achava que saúde e economia eram temas separáveis, está aí a evidência em contrário. Não só a queda do PIB no primeiro trimestre – quando apenas duas semanas no fim de março foram responsáveis pelo resultado – foi maior do que havia sido divulgada, mas a retração de 9,7% no segundo trimestre foi a maior desde 1996, o início da série histórica. Tais resultados dramáticos levantam várias questões sobre o quadro à frente.

Praticamente todos os componentes do PIB, seja pelo lado da oferta ou da demanda, sofreram quedas históricas, jamais registradas. A indústria e os serviços colapsaram. O consumo das famílias sofreu queda de 12,5% comparada ao trimestre anterior, que já havia sido ruim. A retração do consumo das famílias foi especialmente alarmante pois durante o segundo trimestre estava em vigor o auxílio emergencial que, apesar de suas falhas de execução – e relatos de fraudes –, deu algum sustento à economia. Imaginem o que não teria ocorrido caso o Congresso não tivesse aprovado o auxílio em abril, quando o governo ainda se mostrava refratário à medida. Esses resultados deixam à mostra que economia e saúde estão intimamente interligadas e, não, não adianta dizer que o problema foram as medidas de saúde pública.

O Brasil jamais teve uma quarentena séria, jamais passou por um estado de lockdown como ocorreu em alguns Estados e localidades nos EUA e como fizeram vários países europeus e asiáticos. O descontrole da epidemia é responsável por esse resultado, assim como é o atraso do governo em enfrentar a crise, lembrando que no dia 16 de março o ministro Paulo Guedes ainda dizia que a economia brasileira iria crescer em 2020.

Como a epidemia continua descontrolada no Brasil, não há muito alento pela frente. É possível que o terceiro trimestre apresente alguma “melhora”, mas boa parte disso será puramente efeito estatístico dado o tamanho do tombo no início do ano. E, sempre há a possibilidade de recrudescimento da epidemia em localidades que hoje apresentam algum alívio. Segundas, terceiras, quartas ondas até são prováveis, já que o vírus é o que é: novo, imprevisível, uma fitinha de RNA com alto grau de mutabilidade. Arrisco dizer que, no momento, várias cidades e alguns Estados brasileiros estejam passando por alívio temporário. Sem medidas rígidas de controle, a epidemia voltará. É o que vemos mundo afora, afinal.

O que fazer diante disso? Apesar de toda a má gestão do governo Bolsonaro nessa crise, a prorrogação do auxílio emergencial é um alento. O benefício será agora pago até dezembro, como alguns de nós sempre defendemos, mantendo a coerência com a declaração de estado de calamidade, que vence no último dia do ano. O valor do benefício foi reduzido à metade, o que certamente removerá uma parte da sustentação econômica que diversos estudos já mostraram. Fica a dúvida sobre como as pessoas que mais necessitam do auxílio irão dar conta de suas necessidades com menos dinheiro. Contudo, é melhor ter algo do que não ter nada, possibilidade que há poucos meses era dada como a mais provável. Vi muitos argumentando que mantido o valor do auxílio emergencial, o Brasil poderia passar por tremendas dificuldades fiscais. Os mais extremados falaram em “quebra” do País.

O auxílio emergencial sempre foi uma medida cara para os cofres públicos – não à toa o caráter emergencial. No entanto, falar em crise fiscal a ele atrelada parece imenso exagero, sobretudo quando o ambiente internacional se revela cada dia menos hostil. O Fed, o banco central dos EUA, recentemente mudou o regime monetário de maneira que permitirá taxas de juros internacionais extremamente baixas por tempo ainda maior do que se supunha. Tal situação permite que o Brasil tenha mais tempo para atender às necessidades da pandemia sem deixar de lado a importância do ajuste fiscal futuro. A diferença é que há mais tempo para esse ajuste no ambiente de juros extraordinariamente baixos. PIB e pandemia são desafios que continuarão conosco por muito tempo.

A atuação mais importante do Estado continua a ser a preservação das vidas e da capacidade de sobrevivência econômica das pessoas mais vulneráveis. Críticas deveriam estar direcionadas não às propostas de renda básica e de auxílio emergencial, mas sim ao desperdício com os quais o governo flerta abertamente. Ponhamos o debate no lugar certo.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: Imunidade 'natural' e falácia

Tratemos de cuidar das vidas, pois só assim teremos chance de cuidar, também, da economia

Com Denise Garrett **

Há vários artigos científicos recentes usando modelos epidemiológicos para estudar os limiares a partir dos quais a suposta imunidade coletiva “natural”, isto é, a alcançada pela exposição ao vírus e não por uma vacina, seria observada. Todos esses estudos, sem exceção, qualificam suas premissas e advertem sobre o uso indevido de suas análises para orientar as políticas de reabertura em países distintos. O artigo de Tom Britton, Frank Ball, e Pieter Trapman, publicado na Science no fim de junho, adverte explicitamente: “Nossas estimativas devem ser interpretadas como uma ilustração a respeito de como a heterogeneidade populacional afeta a imunidade coletiva, e não como um valor exato ou mesmo a melhor estimativa” (ver “A mathematical model reveals the influence of population heterogeneity on herd immunity to SARS-CoV-2”). Outros estudos com modelagens distintas de heterogeneidade populacional fazem advertências muito semelhantes.

O estudo de Britton et al. faz dois cortes de heterogeneidade populacional: idade e interação social. Idade é importante pois sabemos que, ainda que muitos jovens possam ser acometidos por casos graves da doença, os mais velhos são os que apresentam maior suscetibilidade ao SARS-CoV-2. Interação social pois sabemos que os chamados “supertransmissores” da doença são pessoas que interagem com muitas outras, frequentemente desencadeando surtos em suas comunidades. No modelo usado os autores calculam a imunidade coletiva entre 43% e 60%. O artigo explicita o problema de suas premissas: não se sabe o verdadeiro fator de reprodução do vírus, menos ainda qual o grau de imunidade conferido ou sua duração após a recuperação do paciente. Todos os estudos científicos publicados, seja após revisão por pares ou em estágio de preprint (sem revisão de pares) apresentam as mesmas fragilidades, sempre amplamente reconhecidas.

Ainda assim, o economista Samuel Pessôa escreveu artigo para a Folha de S. Paulo no qual considera a possibilidade de imunidade coletiva “natural” ao redor de 20% de infectados na população, sem levar em conta as premissas não comprovadas cientificamente em que se ancoram todos os estudos desse tipo. Estudos também mostram que mesmo que se atinja a imunidade coletiva, casos continuam se acumulando. Trata-se de efeito que infectologistas chamam de overshooting, onde o número final de pessoas infectadas ultrapassa o ponto de corte para a imunidade coletiva. Análises como a de Samuel são perigosas, sobretudo nesse momento em que o debate sobre reabertura de escolas e da economia de forma mais geral se apresenta no Brasil em meio a uma epidemia descontrolada que brevemente alcançará os 100 mil óbitos – esse número não incorpora os muitos casos de síndrome respiratória aguda (SRAG) sob investigação país afora.

Mesmo que o ponto de corte para a desconhecida imunidade coletiva estivesse ao redor de 20%, considerando os dados até o momento, estamos longe de atingir esse patamar. Na Itália, país devastado pela doença no início do ano, a prevalência de covid de acordo com os inquéritos epidemiológicos foi relativamente baixa. Na região mais atingida, a Lombardia, a prevalência foi de apenas 7,5%. Na Espanha a prevalência foi de 5%, e de 11% em Madrid. Na cidade de São Paulo, a prevalência geral estava em 11% no mês de julho, sendo que os mais pobres que vivem na periferia são desproporcionalmente mais afetados pela doença. Em alguns bairros da cidade de Nova York, a prevalência pode ter alcançado 20%. Estas estimativas são importantes, mas devem ser interpretadas com cautela pois muitas vezes os testes usados nos inquéritos de soroprevalência têm sensibilidade e especificidade distintas, tornando difíceis as comparações – esse, alias, é o caso no Brasil. Além disso, não sabemos quanto tempo a imunidade natural dura e nem sua consistência – ela pode ser bastante variável uma vez que é determinada por fatores diversos como idade, comorbidades, marcadores genéticos, carga viral de exposição, entre outros. Ainda mais importante, é o número de pessoas que morreriam desnecessariamente até que essa imunidade coletiva indefinida fosse alcançada. Por fim, há o problema das sequelas. Ainda que pacientes recuperados tenham alguma imunidade variável, os relatos sobre sequelas respiratórias, cardíacas, vasculares, renais, hematológicas, neurológicas, são cada vez mais frequentes.

É inestimável o estrago social e econômico que pode ser causado por políticas de reabertura sustentadas por artigos e cálculos sobre uma imunidade natural ainda incerta. Estamos diante de um agente infeccioso não apenas novo e letal, mas que causa doença sistêmica em muitas pessoas, tornando-as dependentes do sistema de saúde por longos períodos, quiçá permanentemente. Tratemos de cuidar das vidas, pois só assim teremos chance de cuidar, também, da economia

*ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY 

**MÉDICA, EPIDEMIOLOGISTA, E VICE-PRESIDENTE DO INSTITUTO SABIN, EM WASHINGTON


O Globo: ‘Países com controle do vírus terão investimento', diz Monica de Bolle

Para professora da Universidade Johns Hopkins, países como EUA e Brasil, que não conseguiram conter pandemia, serão mais afetados na economia

Henrique Gomes Batista, O Globo

SÃO PAULO - Professora da Universidade Johns Hopkins, em Washington, Monica de Bolle, avalia que os resultado econômicos pelo mundo começam a mostrar que é falsa a dicotomia entre salvar vidas ou a economia.

Países que controlaram melhor a pandemia, como os europeus, estão se saindo melhor que EUA, Brasil ou o México. E a incerteza não afeta apenas comércio e serviços neste momento, tende a piorar o investimento e as contas públicas.

Já é possível dizer que os países que controlaram melhor a pandemia estão em melhor situação econômica?

Com os dados do segundo trimestre de 2020 vimos que, no período, tanto os países europeus como os Estados Unidos tiveram quedas muito expressivas. Os resultados foram praticamente iguais, por exemplo, olhando a queda do PIB da Alemanha ou dos Estados Unidos.

Mas o que diferencia a Alemanha dos EUA, olhando dois países maduros, é que na Alemanha a situação hoje está sob controle e a vida está voltando ao normal há algum tempo. Nos EUA, como a epidemia continua em expansão e fora de controle, a gente vai ver efeitos ainda muito pronunciados na economia.

O terceiro trimestre irá refletir esta diferença?

Sim. Temos que levar em conta que a Europa, nesta época, pode ser muito afetada pela redução da atividade do turismo, há uma questão sazonal importante. Mas há indicadores na Europa, de uma maneira geral, mostrando esta retomada. Nos EUA já está sendo discutido um novo pacote fiscal, o terceiro. Na Europa ninguém está fazendo isso.

Nos EUA os pedidos de seguro-desemprego voltaram a crescer. E há outro problema: seguro-desemprego é por pouco tempo, o governo tinha feito um ajuste para pagar um adicional de US$ 600 semanais até o fim de julho, isso acabou, e agora há 30 milhões de desempregados que vão parar de receber estes cheques.

Há uma disputa política pela prorrogação deste seguro-desemprego. Os pequenos negócios estão reabrindo, mas as vendas não estão bem. Se os EUA tivessem feito um lockdown mais consistente, com regras e comunicação claras, talvez estivesse reabrindo como na Europa.

E os outros países?

A China é um caso à parte, por ser o primeiro país afetado, tem uma capacidade de fazer medidas como testes em massa, rastreamento de casos, isolamento total, controlar a circulação da população que nenhum outro país tem. Não é replicável em outros países. Mas Nova Zelândia, Vietnã, Coreia do Sul, países menores cuja atuação foi muito determinada para controlar rápido a epidemia, logo em seguida começaram a retomar a economia.

E em países de renda baixa?

É a mesma situação. Se olharmos para a América Latina, há países que conseguiram fazer algum controle da epidemia. Além do Uruguai e da Costa Rica, que são países pequenos, há a Colômbia e o Chile, por exemplo, que fizeram algum controle da epidemia, muito maior que o Brasil ou o México. E a economia nesses países tende a reagir muito melhor que no Brasil, pois é possível reabrir de forma mais consistente, sem a incerteza enorme.

Isso afeta os investimentos?

No comércio e nos serviços isso é evidente. Mas, ao olharmos os dados mais macroeconômicos, a incerteza leva ao fim dos investimentos. Países como o Brasil não terão investimento, enquanto os países com controle do vírus terão algum investimento. O descontrole com o vírus afeta a capacidade de recuperação futura.

É falso o dilema entre salvar pessoas ou a economia?

Este sempre foi um falso dilema. A economia só funciona com pessoas. Se elas não puderem circular livremente, estiverem em risco ou com incertezas, a economia não funciona. O que para a economia é o vírus, não as medidas de controle. A definição mais perfeita disso foram os frigoríficos. Você viu a quantidade deles que fecharam as portas devido a surtos de Covid? Como serviços essenciais, tinham a autorização para funcionar, mas, por causa do vírus, tiveram de parar.

Quando conheceremos os vencedores e perdedores da pandemia?

Nos resultados do terceiro trimestre vamos começar a ver uma diferenciação e até o fim do ano vamos ter uma ideia muito clara. Até porque países como EUA, Brasil e México não têm mais capacidade de controle da pandemia, eles têm alguma capacidade de mitigação, mas controlar como algumas nações europeias fizeram, não têm como fazer.

Podemos ter um momento econômico ainda pior que o do segundo trimestre?

É difícil dizer, pois no segundo trimestre tivemos o fechamento da economia, todo o impacto inicial da pandemia. Agora acho que nem faz mais sentido fazer lockdown, a pandemia está descontrolada. Acredito que os números altos da epidemia vão continuar, variando por regiões, e isso vai afetar a economia americana, mas de forma diferente do lockdown, não será tão concentrado.

O descontrole da pandemia também gera impacto fiscal?

Sim, já é irreversível a pressão para se aumentar a carga tributária no Brasil. O que o governo gastou para lidar com a crise foi absolutamente ineficaz, com a exceção do auxílio emergencial. A gente já tem uma situação crítica de déficit público, tanto pelo gasto extraordinário do governo como pela queda da arrecadação. Sem ter como cortar gastos, há o aumento da carga.

Agora, que aumento de carga? Na minha opinião não é esta nova CPMF que o Paulo Guedes quer fazer. Para mim, isso passa por aumento da alíquota do Imposto de Renda e tributação de lucros e dividendos, coisas que podem ser feitas por lei complementar e que têm efeito relevante sobre carga e progressividade. O retorno da CPMF pode ser um complicador para a recuperação da economia, é um imposto que gera ônus, de grande ineficiência.


Monica De Bolle: O alcance do pensamento

Momento atual requer abertura para o questionamento de princípios que deixaram de valer

“A noite cai apenas para aqueles que por ela se deixam encobrir.”
Cornelius Castoriadis, The End of Philosophy?

Quis o tempo que eu escrevesse esse artigo para ser publicado na data em que se completam dez anos da morte de Dionisio Dias Carneiro, meu mentor, professor e uma cabeça privilegiada. Dionisio nunca aceitou dogmas de qualquer natureza: ao contrário, sempre questionou princípios da economia. Era um professor sensacional, um grande intelectual público e alguém que tinha a capacidade de incomodar no bom sentido, forçando seus pares a pensar. A noite na epígrafe acima não é, assim, uma metáfora para a morte – ao menos não nesse artigo –, mas uma metáfora para a preguiça de pensar. Deixa-se encobrir pela noite quem perde a curiosidade. Já a curiosidade nos desacomoda da poltrona em que podemos permanecer a contemplar o passado. O espírito dionisíaco, que desacomoda e convida ao prazer de pensar, continua vivo em muitos que conviveram com Dionisio. Não em todos.

Algumas pessoas acomodaram-se no passado. O momento atual requer que o passado passe e dê abertura para o questionamento de princípios que deixaram de valer. A economia não é como as ciências naturais, em que mecanismos metabólicos, ainda que complexos, são governados por estruturas e leis inabaláveis. A glicólise é a glicólise, as diversas vias de sinalização celular dependem da ação inibidora ou ativadora das enzimas. Se algo para de funcionar como deveria, o corpo adoece. A economia é uma construção social, como a política. Suas estruturas têm traços de longa duração, mas também se moldam ao momento.

Uma das consequências desse caráter ao mesmo tempo resistente e plástico é a necessidade de economistas buscarem um ajuste mais fino entre conhecimento e sensibilidade, pois é fácil ceder à falsa impressão de que há leis imutáveis na economia e não perceber as mudanças. Elas são raras, porém, acontecem, como na crise de 2008 e, mais ainda, nessa proveniente da pandemia. Nesses momentos o chão se move sob os nossos pés, abalando bases em que se assentavam antigas regras econômicas.

Considerem a segunda metade dos anos 1990. Naquela época, o Brasil tinha acabado de estabilizar a inflação – diga-se – às custas de juros muitos elevados, crítica que Dionisio sempre encabeçou. Países emergentes viviam de crise em crise, enquanto as economias maduras se escoravam em políticas monetárias de sintonia fina. Foi uma era de juros internacionais mais elevados, por certo muito mais elevados do que os vistos no mundo pós-2008. A crise de 2008 acabou com a sintonia fina das taxas de juros como modo de calibragem da política monetária nos países maduros. As políticas “não convencionais”, hoje mais do que convencionais, deslocaram aquele mecanismo sem que muitos macroeconomistas tivessem sido capazes de antever suas consequências. Uma teoria enrijecida e mecânica perdeu para a prática, que responde rapidamente aos desafios do mundo. E a história se repete hoje, com a nova crise que enfrentamos.

No novo ambiente que surgiu 20 anos após a crise asiática de 1997/98, a compreensão sobre os países emergentes também mudou. Ao contrário do passado, esses países já não viviam mais de crise em crise – à exceção da Argentina, é claro, por razões muito particulares ao país. No contexto internacional de juros muito baixos, a capacidade de endividamento dos emergentes se alterou, bem como se alteraram as suas estruturas, que antes desancoravam rapidamente os preços, levando aos processos inflacionários de outrora. Isso não é dizer que emergentes como o Brasil tenham a mesma capacidade de endividamento dos países maduros, uma incompreensão frequente de fiscalistas que insistem nessa comparação. Países como o Brasil ainda precisam ser bastante cautelosos, mas a natureza da cautela mudou.

Em ambiente de juros próximos de zero nos países emissores das principais moedas de reserva, o tempo para corrigir dívidas muito elevadas foi dilatado. As relações entre câmbio e inflação se alteraram. Já não se sabe ao certo quais são os principais determinantes da inflação. Vejam o Brasil: há tempos a dívida é alta, o gasto é elevado, e a volatilidade cambial perdura. Mas a inflação? Mesmo antes da pandemia, a inflação já não reagia a essas variáveis como há 30 anos. Por que? Não tenho a resposta, assim como não tenho resposta para a dilatação do tempo da dívida. As respostas que têm circulado só me lembram de reaprender com Dionisio a cultivar as perguntas, que costumam ser mais importantes. São elas que determinam o alcance do pensamento.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: A frente é ampla

Que venha a renda básica e que todos saibam quem participou e quem escolheu se abster

Ontem, foi lançada a Frente Ampla pela Renda Básica do Congresso Nacional, presidida pelo deputado João Campos. Seu presidente emérito é o ex-senador Eduardo Suplicy, que luta há décadas pela adoção da renda básica no Brasil e foi o autor da lei que estabeleceu a renda básica cidadã, promulgada em 2004. Constam da Frente todos os partidos com representação parlamentar, exceto um: o Partido Novo. Antes de prosseguir, esclareço: adesão ampla não é sinônimo de adesão total.

Aqueles que escolheram ficar de fora exercem sua prerrogativa. Seus eleitores que os questionem, ou não. O que não lhes é permitido? Interpelar aqueles que apontam a sua ausência em um esforço cujos frutos podem vir a ser o grande legado positivo de um período de resto marcado pela enorme tragédia em que se transformou o Brasil de Bolsonaro.

Não foram poucos os artigos que escrevi nesse espaço sobre a importância da renda básica desde que a pandemia chegou ao Brasil. Mesmo antes dela, já havia escrito sobre programas de renda mínima, como funcionam em tese e como foram implantados em algumas partes do planeta – inclusive em algumas partes do Brasil. Entendo a renda básica como algo fundamental para reduzir os alarmantes níveis de pobreza e de desigualdade, que foi agravada pela crise humanitária decorrente da pandemia.

Entendo-a, também, como uma política de Estado que visa a inclusão de todos os cidadãos, de modo transversal, em uma experiência de cidadania mais conforme às promessas da Constituição Federal. Em outras palavras, penso a renda básica como uma política pública que trará benefícios a todos, independentemente de gênero, raça, orientação sexual, entre outros status de discriminação. Em artigos anteriores publicados aqui apresentei os argumentos econômicos em favor da medida, como é possível desenhar um programa que atenda a determinados princípios sem sobrepesar no orçamento. Mostrei, em suma, como formular propostas que caibam no orçamento e que não onerem em demasia as contas públicas, nem apresentem riscos inflacionários, como alguns economistas temem.

Com a criação da Frente Ampla terei a possibilidade de discutir tais propostas com colegas membros do conselho consultivo que fui convidada a integrar. Nesse conselho há economistas, representantes da sociedade civil, ex-servidores públicos. Somos dez pessoas. Dez pessoas com a tarefa de auxiliar os integrantes da Frente Ampla a encontrar o melhor caminho para fortalecer a proteção social com segurança fiscal e responsabilidade com toda a sociedade brasileira. Sinto-me privilegiada por fazer parte desse grupo, que me dá a oportunidade de contribuir de outra forma com meus concidadãos.

A percepção desse privilégio torna intrigante para mim o comportamento de determinados atores políticos no Brasil em um momento em que muitos se mostram empenhados em construir uma rede de solidariedade para amortecer os efeitos da crise sobre aqueles que são mais afetados por ela. Os informais. Os mais pobres. Os três-quartos de crianças brasileiras que vivem nos 50% dos domicílios mais destituídos do País. Os autônomos, que vivem na gangorra da entrada e saída do mercado formal de trabalho. A massa de desalentados que a crise humanitária e o governo Bolsonaro criaram. Tiago Mitraud, deputado pelo único partido que não integra a Frente Ampla, afirmou que ele e correligionários seus só participarão dela se suas discordâncias forem levadas em consideração. Mais especificamente, afirmou em uma mídia social que a Frente precisa “abarcar outras ideologias”. Como disse, esse posicionamento é prerrogativa da agremiação política que optou por ficar de fora da frente. Mas cabe perguntar: quais as discordâncias? Quais as ideologias não-abarcadas?

Quando comentei que o Partido Novo era o único a não tomar parte na iniciativa – a constatação de um fato –, o deputado me interpelou publicamente afirmando: “você deve estar acostumada com políticos que não leem o que assinam e só querem sair na foto”. Esse é o retrato da forma como alguns atores agem politicamente no Brasil. Incomodam-se com a constatação de fatos e manifestam seu incômodo ofendendo diretamente não apenas a pessoa que os constata, como também seus pares no Parlamento que integram a Frente.

A Frente é ampla. Que venha a renda básica. Que todos saibam quem participou e quem escolheu jogar Resta Um.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University