ministério da saúde

Ligia Bahia: Nós e os outros

A comoção perante os mesmos fenômenos de injustiças na saúde não dá início a ações semelhantes

Mudou o modo de pensar sobre o SUS. Antes da pandemia, Rodrigo Maia pretendia expandir os planos privados de saúde, “ampliar a base de brasileiros segurados de 40 milhões para 60 ou 70 milhões”, e agora passou a considerar que “tinha uma visão muito pró-mercado privado de saúde, mas a gente vê que o SUS é importante”. O uso do plural (a gente, nós) subentende os que leem e interpretam de modo similar as estatísticas e se preocupam com o atendimento aos doentes.

Nós somos pessoas orientadas pela Ciência, concordamos com as medidas de isolamento social, com o uso correto de máscaras e com a relevância do SUS. Vemos os mesmos fenômenos e os interpretamos de modo similar, mas nem sempre compartilhamos sentimentos iguais perante a indignidade e a insanidade. O consenso em torno do que seria do Brasil sem o SUS é insuficiente para igualar as expectativas sobre o futuro. Setores empresariais, instados pela declaração do presidente da Câmara sobre o SUS, querem saber: “Como você pensa que podemos melhorar o SUS, mas sem ser radical, né?”. Querem respostas sobre um SUS que não se torne um estorvo, que alavanque os negócios setoriais.

A concordância sobre a omissão e a indignidade subjacentes às mortes causadas pela Covid-19 não iguala expectativas sobre o futuro. No lugar da pergunta — como nós faremos para ter um SUS importante? —, volta-se ao “nós contra vocês”. Erudição embolada com interesse privado resulta na crença: planos privados desoneram o SUS. Um ponto de vista respeitável, mas sem nenhum fundamento científico.

O alegado alívio de demanda para a rede pública jamais ocorreu. No período 2013-2015 (quando houve o maior aumento do número de planos), a assistência suplementar realizou entre 18,5% e 19% do total dos partos. Cresceram os partos realizados pelo SUS e pela assistência suplementar. Incremento nos planos privados não é garantia de retração da procura pelo SUS. Segundo a Pnad-Covid-19, realizada pelo IBGE em maio e junho de 2020, 78,2% e 82,3% dos que buscaram serviços em função de mais de um sintoma de coronavírus a cada mês foram ao SUS (a resposta poderia indicar mais de um local, ou seja, a rede pública e a privada).

Essas informações não significam que o setor privado é inexpressivo, pode desaparecer, apenas questionam a existência de compartimentos separados num sistema de saúde complexo. Como todos sabem, mas nem sempre é conveniente admitir, uma parcela de quem tem plano usa o SUS, outra paga, além da mensalidade das operadoras, consultas médicas e dentistas particulares. Contratos com efetiva proteção financeira e qualidade assistencial são para poucos. Os transplantes, mesmo para os ricos, dependem do SUS. A comprovação de que planos privados não solucionam problemas do SUS não altera uma vírgula na história, mas talvez contribua para que a explicitação de interesses seja critério obrigatório de credenciamento ao debate.

Reagimos com as mesmas palavras para exprimir a repulsa às injustiças na saúde, dizemos que é preciso pôr fim a tanta abominação. Mas a comoção perante os mesmos fenômenos não desencadeia ações semelhantes. Parte dos indignados sente muito, mas não se interessa pelas causas das diferenças na probabilidade de morrer entre indígenas, negros, pobres e os segmentos sociais com maior renda. Tampouco divulgam a situação de saúde precária dos clientes de planos privados. A pesquisa Vigitel 2018 registrou uma proporção de excesso de peso um pouco mais elevada para clientes de planos de saúde em Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo do que na população em geral.

Todos nos indignamos, mas, quando chega a vez de definir como evitar essas atrocidades, as afinidades evanescem. O projeto de planos de saúde com coberturas ainda mais reduzidas e menor preço teve até agora duas versões: a oficial, debatida em comissão no Congresso Nacional, cujo relator foi o deputado Rogério Marinho, e o documento apócrifo noticiado pelo jornalista Elio Gaspari. Ambas foram engavetadas, tinham em comum um “nós” que pretensamente falaria por todos. Um “nós” minúsculo, reunido em torno de argumentos frágeis, indefensáveis. Caso a pergunta sobre o que fazer com a saúde fosse endereçada a um “nós” ampliado, aos familiares dos mais de cem mil mortos, qual seria a resposta?


Merval Pereira: Cada morto importa

Não é apenas um número chocante. Não é apenas uma barreira tristemente quebrada. São mais de cem mil pessoas mortas, exatas 100.240 até ontem, na maior tragédia da história brasileira. Para casos como esse, não é possível fazer-se o uso frio dos números, cada morto importa.
Dizer que o país está bem nas estatísticas, porque temos 471 mortes por milhão de habitantes, enquanto países como a Espanha têm 610, ou Reino Unido tem 623, é somente a demonstração de que com estatísticas é possível fazer qualquer coisa, torturando os números. Se fosse esse o caso de comparação, a Argentina tem 98 mortes por milhão de habitantes. A Rússia tem 102, e a China apenas 3 mortes por milhão de habitantes.

A triste realidade é que o Brasil é o segundo país que tem mais mortes no mundo por milhão de habitantes, 471, contra 497 nos Estados Unidos, o país que tem o maior número de mortes, 164.577.
Essa triste competição que estamos ganhando tem na raiz a mesma razão da crise dos Estados Unidos, governos negacionistas que se empenharam em vender a cloroquina como remédio milagroso contra a Covid-19, quando deveriam ter liderado um movimento a favor do distanciamento social, do uso de máscaras, da quarentena e, nos casos mais graves, do lockdown.

Donald Trump, com uma possível derrota nas eleições se aproximando, tenta se recuperar usando máscara, depois de meses preciosos sem usá-la, e já cunhou um bordão patético a essa altura: “Patriota usa máscara”. Bolsonaro, nem depois de pegar a Covid-19, se anima a fazer uma campanha nesse sentido.

O máximo de empatia que conseguiu exprimir foi uma frase abominável: “A gente lamenta todas as mortes, está chegando ao número 100 mil… mas vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. Para quem tem a culpa maior por essa tragédia brasileira, dizer isso ao lado de um ministro interino da Saúde há mais de dois meses, enquanto a mortandade só fez crescer, é sinal de sociopatia, que, aliás, vem demonstrando em vários momentos.
Sua empatia é seletiva, foi ao Rio para o velório de um paraquedista que morreu, mas fez um passeio de jetski quando o número de mortos chegou a 10 mil. A disputa que o presidente Bolsonaro estimulou com os governadores foi uma das principais causas do desacerto do combate à Covid-19.

Essa briga de poder aconteceu porque Bolsonaro queria impor suas idéias, como o uso de cloroquina e a abertura das cidades para não prejudicar a economia. O mais inacreditável foi a briga de Bolsonaro com os ministros da Saúde, Luiz Mandetta e Nelson Teich, querendo impor suas vontades contra a orientação cientifica internacional.
A crise pessoal de Bolsonaro só acabou quando resolveu colocar o General da ativa Eduardo Pazuello na interinidade permanente à frente da Saúde. Como cultor da hierarquia e jejuno em medicina, o General aceitou tornar a cloroquina um medicamente oficial do SUS para combater a Covid-19, o que nenhum dos antecessores, médicos que tinham uma reputação a zelar, aceitou.

O Brasil passou vários dias com uma média de mil mortes, já temos proporcionalmente mais mortos que os Estados Unidos, e não é improvável que em algum momento passemos a ser o país com mais mortes do mundo, em números absolutos. Se é que já não passamos. A estimativa de vários estudos é de que a subnotificação dos infectados por Covid-19, hoje perto de 3 milhões de pessoas, pode chegar a 14 vezes mais.

O número de mortes que hoje nos assombra pode ser 27% maior que os 100.240 oficiais, isso porque as mortes por síndrome respiratória aguda grave (Srag) não apenas aumentaram muito em relação à média, como muitos casos não tiveram o agente causador identificado, o que leva as autoridades médicas a crerem que teriam sido provocadas pela Covid-19.

Sem falar nas periferias e favelas das grandes cidades, e no Brasil profundo, que não têm atendimento médico devido. Um dos maiores problemas brasileiros no combate à Covid-19 foi a falta de testagem, sem o que não se pode ter uma idéia exata de como está a evolução da doença. Este é um problema que a maioria dos países europeus e os Estados Unidos não têm.


Demétrio Magnoli: O vírus governa o Brasil

Negacionismo impediu a coordenação das iniciativas de controle da pandemia

Há consenso, fora malucos incorrigíveis, de que o Brasil fracassou diante do desafio da Covid-19. Mas deve-se qualificar o fracasso: a régua para medi-lo não é o número de óbitos.

A taxa de óbitos no país (48 por 100 mil) é, no momento, menor que as registradas na Bélgica (86), Reino Unido (70), Peru (64), Espanha (61), Itália (58) ou Suécia (57). Na faixa brasileira estão o Chile (53), os EUA (49) e o México (40). Na Europa, teme-se uma retomada de contágios no outono e inverno. Não há prova de que ficaremos fora da curva das nações mais atingidas.

Fracasso de todas elas? Difícil afirmar, pois são fortes os indícios de que o resultado, em óbitos, é largamente determinado pelo ponto de partida.

Hoje sabemos que o vírus espalhou-se, silenciosamente, nos primeiros dois meses do ano. Por razões aleatórias, algumas áreas de elevada urbanização, na Espanha, na Itália, na França, na Bélgica, na Suécia e nos EUA, sofreram extensivos contágios na etapa oculta da pandemia. No Brasil, isso parece ter ocorrido com São Paulo, Rio, Fortaleza, Recife e Manaus. Depois desse impacto, com lockdown (Itália, Espanha, França) ou sem ele (Suécia), o gráfico de óbitos já estava traçado, ao menos em linhas gerais.

O Brasil, ao contrário da Itália ou do Equador, não fracassou no atendimento aos doentes. À exceção de alguns lugares (Manaus, por exemplo), os hospitais regulares e os de campanha deram conta da pressão. O SUS, com todas as suas conhecidas carências, salvou-nos da tragédia de contar mortes evitáveis. É uma lição prática sobre saúde pública que não temos o direito de esquecer.

Fracassamos por não fazer um lockdown geral? O diagnóstico, tão comum entre acadêmicos e na esquerda, ignora os limites impostos pela falta de um mínimo consenso político nacional e pelas profundas desigualdades sociais do país.

O Brasil elegeu um presidente negacionista —e isso tem consequências. Um lockdown no estilo italiano exigiria a ocupação das periferias e favelas por forças policiais sem compromissos com direitos (e vidas) dos cidadãos. O acadêmico que clama pelo lockdown evidencia desconhecer o país. O líder político de esquerda que faz o mesmo está investindo no impossível para colher o possível, na forma de votos.

O fracasso deve ser creditado, quase exclusivamente, ao governo federal. O negacionismo persistente, inabalável, impediu a coordenação das iniciativas de controle. A Constituição define a saúde como competência conjunta da União, dos estados e municípios.

Diante da criminosa negligência de Bolsonaro, o STF produziu interpretação criativa do texto constitucional, vetando a interferência federal nas decisões sanitárias estaduais. Daí, decorreram os planos incongruentes das quarentenas e flexibilizações em curso.

Os EUA de Trump, outro negacionista, vivem cenário similar. Contudo, a culpa não é do sistema federativo. Na Alemanha federal, um consenso político propiciou a cooperação entre o governo central e os estados que, mesmo pontilhada por atritos, conduziu a um planejamento eficaz. Pagamos o preço de uma opção eleitoral, com juros e multa.

No pacote do fracasso está o atraso na testagem em massa. Bombardeado pelas falanges bolsonaristas, o Ministério da Saúde ficou acéfalo no auge da crise, com a demissão de Mandetta, e converteu-se em acampamento de militares que, de costas para a epidemiologia, batem continência a um presidente inepto, irresponsável e amoral. Cinco meses depois do início das quarentenas, não temos um mapa dos caminhos de contágio. O governo federal escolheu, tacitamente, dirigir a nação para a longa tempestade da imunidade coletiva forçada.

Quando desceremos a curva? A resposta não depende de nós, mas dos anticorpos e células T. O vírus governa o Brasil.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


César Felício: 100 mil mortos

Bolsonaro abdicou de liderança e passou a fatura

No limiar dos 100 mil óbitos da covid-19 e dos 3 milhões de casos da pandemia, que deve ser transposto no sábado, o Brasil vive a sua pior guerra, no sentido literal ou figurado, desde sua independência. A hecatombe atual guarda semelhança com episódios já muito distantes no tempo, como a gripe espanhola e a onda de fome que assolou o Nordeste na seca de 1877.

Um observatório para se contemplar a desgraça é o portal da transparência do registro civil, uma iniciativa dos cartórios. Segundo o portal, houve em 2020, no período entre 16 de março e 6 de agosto, um total de 507.097 óbitos por causas naturais. No mesmo período, em 2019, foram 474.287.

A razão evidente é a covid-19 e a Síndrome Respiratória Aguda Grave, responsáveis por uma em cada cinco mortes registradas no período - cerca de 90% da soma de 98.985 casos correspondem à doença provocada pelo coronavírus (88.298).

Ainda que quase a metade desta cifra seja compensada pela queda do número de anotações de causas mortis que podem ser atribuídas ao vírus, como septicemia e pneumonia - elas somaram 165 mil no período em 2019 e agora somam 119 mil- há alguma defasagem nos dados, o que sugere que a situação presente é algo mais grave do que aparece. Pela lei, o falecimento de uma pessoa precisa ser comunicado às autoridades em 24 horas e a lavratura do atestado de óbito deve ser feita em cinco dias. O envio do dado para a central nacional deve ser feito em mais oito dias. Com a pandemia, alguns Estados dilataram este prazo em até dois meses. Ou seja, esta fotografia é piso, e não teto. É incontroverso que está morrendo mais gente este ano do que em 2019.

A catástrofe no Brasil, à qual o mundo se curva em números absolutos, não é a pior do continente em termos proporcionais. É uma observação que pode refletir alguma condição excepcional do brasileiro ou apenas a debilidade dos nossos registros estatísticos, uma vez que é impossível atribuir o fenômeno à gerência governamental que está sendo feita em relação à crise. De acordo com o jornal chileno “La Tercera”, entre 1º de maio e 29 de julho uma em cada três mortes no Chile estava relacionada à covid-19, sendo que na região metropolitana de Santiago esta cifra subia à metade. Em magnitude de mortes, no entanto, os dois países se equivalem. A população chilena é dez vezes menor que a brasileira. Multiplicado por este fator, o número de óbitos lá é semelhante ao daqui.

Desde o início da crise, do ponto de vista político, o presidente Bolsonaro abdicou do papel de liderança no enfrentamento do vírus e busca transferir a fatura. A crise caiu no colo dos governadores a quem se cobra a responsabilidade pelas consequências econômicas das quarentenas e a quem se transforma as políticas emergenciais de compras para a saúde em casos de polícia, de maneira justificada ou não. O caso do secretário de Doria é mais um, é banal. Nesse contexto, Bolsonaro é apenas uma pessoa que sai atrás de uma ema com uma caixinha de cloroquina.

A pandemia deixará cicatrizes no Brasil, mas está sendo driblada pelo bolsonarismo. O presidente não está em situação absolutamente segura, pode perder a reeleição de 2022, pode até se inviabilizar no Congresso, mas nada disso deverá ter relação com a macabra contabilidade cotidiana da peste que assola o mundo.

O futuro
“Com a pandemia, o futuro saiu do circuito. Ninguém está olhando para frente”, observou em conversa com esta coluna o ex-deputado federal Saulo Queiroz, fundador do PSDB e do PSD, antigo hierarca do DEM, o que se convencionava chamar antigamente de uma velha raposa felpuda.

Queiroz refere-se a um problema para o qual o mundo partidário deve acordar no próximo ano. As coligações proporcionais estarão proibidas em 2022. O universo político está polarizada. É um erro tomar pelo valor presente o estrondoso fracasso dos organizadores do Aliança Pelo Brasil em coletar assinaturas para a criação da nova sigla. A hora decisiva será em 2021, em que os acólitos do presidente serão impulsionados pelo projeto de poder claro que significa a continuidade bolsonarista.

Do outro lado, o PT tem uma longa história de sobrevivência no isolamento, ganhando ou perdendo eleições. No meio do caminho estarão siglas como DEM, PSDB, Cidadania, PDT, PSB que, ou se aglutinam em torno de candidaturas viáveis, ou perecerão. Na janela partidária do começo de 2022, deputados de partido sem projeto de poder irão medir quem passa na peneira do voto sem coligação. Quantos deputados poderá eleger o DEM, concorrendo sem parceria? E o PCdoB? O furacão que passará pela janela partidária não será trivial.

No meio do vendaval o futuro presidente da Câmara, a ser eleito em fevereiro, será um ativo estratégico. O biênio final de uma legislatura costuma ser mais tenso que o inicial por se misturar com a sucessão no Palácio do Planalto.

Não é por acaso que a sucessão de Rodrigo Maia está em muito antecipada ao normal. “Já é o assunto do dia nos corredores”, diz um dos pretendentes ao cargo, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), para quem há o risco importante da disputa travar a agenda da Casa.

“A Câmara hoje está dividida em três terços: Bolsonaro, Rodrigo Maia e oposição. Impeachment está fora de cogitação e quem se une a um bloco derrota o outro”, diz Ramos. Como somente Maia pode se combinar tanto a um bloco como a outro, ele tende naturalmente a fazer seu sucessor.

Ramos não crê que um tema polêmico como a reforma tributária seja concluido na Câmara ainda antes da eleição de novembro, sobretudo se estiver vinculado com a nova proposta do governo de renda básica. Ainda assim, não subestima a capacidade de Maia de ditar o processo.

Sem candidato natural à presidência, os partidos de centro poderão ter no comando da Câmara dos Deputados uma reserva de poder, que poderá ser muito útil, inclusive, para mudar as regras da eleição de 2022. Há quem pense que a formação de uma nova sigla poderia aprumar o caminho. Queiroz tem pronta a minuta de uma consulta ao Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da norma que impediu que um novo partido possa receber uma fatia do fundo partidário equivalente ao total de deputados que ele consiga atrair.


Pablo Ortellado: Politização da vacina pode comprometer imunização

Pesquisas têm mostrado correlação entre posicionamento político e disposição a tomar vacina contra Covid

Se tudo der certo, entre dezembro e janeiro, o Brasil poderá começar a imunizar a população, seja com a vacina de Oxford e da AstraZeneca, em parceria com a Fiocruz, seja com a vacina da Sinovac, em parceria com o Instituto Butantã.

Para que as vacinas nos tirem da crise, porém, não será necessário apenas que elas se mostrem eficazes na terceira fase dos testes clínicos, será necessário também que uma população politicamente polarizada se disponha a ser vacinada.

Depois de meses de uma extenuante política de distanciamento social, seria de se esperar uma população ansiosa para se vacinar e retomar a normalidade. Mas não é isso o que mostram estudos em diferentes países.

Uma pesquisa coordenada pela Universidade de Hamburgo mostrou que a disposição a se vacinar contra a Covid na Alemanha caiu de 70% em abril para 61% em junho (com um preocupante índice de 52% na região da Bavária). Nos Estados Unidos, pesquisa do YouGov realizada em julho mostrou que 25% dos americanos não tomariam a vacina e 28% não tinham certeza se tomariam.

Um elemento particularmente preocupante das pesquisas é como a disposição a se vacinar contra a Covid correlaciona com posições políticas. Na pesquisa do YouGov, eleitores democratas são mais propensos a se vacinar (61%) do que republicanos (45%). O índice baixa para 34% entre os que pretendem votar em Donald Trump.

A contaminação política funciona também no sentido oposto: pesquisa da Reuters/ Ipsos de maio mostrou que 36% dos americanos tenderiam a não se vacinar se a vacina fosse recomendada pelo presidente Trump.

Não temos ainda pesquisas no Brasil medindo a disposição a se vacinar contra a Covid e correlacionando essa disposição com posicionamento político e crença em boatos —mas está na hora de investigar o problema, já que há risco concreto de uma baixa adesão à vacina comprometer uma saída segura da quarentena.

Nas mídias sociais e no WhatsApp, há algumas semanas circula desinformação sobre as vacinas para a Covid com forte teor político. Boa parte desses boatos e rumores mentirosos se apoia na postura antichinesa que o bolsonarismo tem adotado.

Se a vacina desenvolvida pela Sinovac vingar, poderemos ver uma intensificação das campanhas de desinformação promovidas pelo bolsonarismo que antagoniza tanto com a China, como com o governador João Doria, responsável pelo Instituto Butantã.

Em termos muito concretos: pode ser que não cheguemos à imunidade de rebanho com uma campanha de vacinação que tenha vacina com eficácia de 75% e adesão de apenas 60% da população.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


El País: Saúde deixa de divulgar balanço de remédios em falta enquanto cloroquina abarrota estoques

Dados mais recentes do Conselho Nacional dos Secretários da Saúde são da semana de 12 a 18 de julho. Medicamentos escassos são usados em pacientes graves para a internação em UTIs

pandemia de coronavírus segue com toda força em diferentes zonas no Brasil, mas um eixo central da política sanitária de Jair Bolsonaro continua a ter um só nome: cloroquina. O Ministério da Saúde acumulava no início de julho mais de 4 milhões de comprimidos do medicamento, utilizado contra a malária, lúpus e outras doenças, mas sem eficácia comprovada contra a covid-19. Paralelamente, os serviços médicos e secretarias de Saúde de vários Estados relatam há cerca de dois meses que estão com dificuldades em adquirir remédios essenciais para tratamento do coronavírus nas UTIs dos hospitais. Eles são usados sobretudo para intubação e sedação de pacientes. Essas dificuldades acontecem no momento em que o país já confirmou ao menos 92.475 mortes por covid-19 e 2.682.465 contágios, segundo dados divulgados nesta sexta-feira, pelo Ministério da Saúde. Somente nas últimas 24 horas foram registrados 1.212 novos óbitos e 52.383 novos casos. O ministério também considera que 1.844.051 pessoas estão recuperadas.

Contudo, o presidente do Conass, Carlos Eduardo Oliveira Lula, demonstrou nesta sexta-feira que segue preocupado com o abastecimento de remédios usados para a intubação de pacientes e pediu ao Ministério da Saúde que adote medidas estratégicas para evitar o pior. “Por precaução, tentaria acelerar um processo de compras com a Opas [Organização Pan-Americana de Saúde]”, afirmou ele durante a 5ª Reunião Ordinária da Comissão Intergestores Tripartite. Todos os Estados participam atualmente de um pregão de compra do remédios anunciado pelo ministério no mês passado. Mesmo assim, Lula alertou para a necessidade de que Governo Bolsonaro esteja preparado para uma eventual demora no processo de aquisição. O ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, garantiu que alternativas estão sendo discutidas, entre elas a aquisição por meio das Opas.

Na última semana, Pazuello chegou a afirmar no Paraná que sua pasta ajudaria o Estado em caso de desabastecimento e que, se fosse preciso, se valeria da logística militar para fazer uma entrega emergencial. “Em poucas horas, em um dia, proporcionaremos um estoque de emergência para que os remédios não acabem”.

A escassez de medicamentos essenciais nas UTIs não é novidade para Pazuello. O Ministério da Saúde recebeu sucessivos alertas desde maio de que alguns remédios essenciais na sedação e analgesia de doentes graves nas UTIs estavam se esgotando, como informou o jornal O Estado de S. Paulo. Um documento do Comitê de Operações de Emergência do Ministério da Saúde também recomendou que se omitisse as informações sobre a escassez de suprimentos médicos e medicamentos, relatou o jornal O Globo. Em um documento interno, o ministério também passou a dizer que não é de sua responsabilidade proporcionar equipamentos de proteção individual (EPI), respiradores e leitos de hospital aos Estados e municípios, de acordo com o Estado de S. Paulo. Tudo isso acontecia ao mesmo tempo que Pazuello priorizava a distribuição de cloroquina para as secretarias da Saúde.

No início da pandemia acreditava-se que a cloroquina poderia ser eficaz contra a covid-19, mas diversos estudos e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) dizem que ou não tem comprovação ou ainda é muito cedo para afirmar que o medicamento é eficaz. A principal investigação conduzida no Brasil por hospitais privados, e publicada na semana passada no The New England Journal of Medicine, concluiu mais uma vez que o medicamento não deve ser prescrito nem mesmo em casos leves da covid-19. “Há evidências confiáveis de que não há eficácia e, portanto, não faria sentido a prescrição para pacientes hospitalizados”, afirmou o pesquisador Alexandre Biasi, diretor do instituto de pesquisa do Hospital do Coração de São Paulo. “Quando não funciona, não funciona, e paciência”.

Apesar do alerta da comunidade científica, o Ministério da Saúde continua indicando o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina na etapa inicial do tratamento da covid-19. Já Bolsonaro, que continua a fazer seu périplo pelo país após se declarar livre da covid-19, assegura que se curou utilizando a medicação. Nesta sexta, ao inaugurar condomínios populares em Bagé, no Rio Grande do Sul, voltou promover o medicamento. “Olha só. Cloroquina. Não é que eu apostei. Eu estudei a questão junto com médicos, via como estava sendo feito no mundo, em especial em países da África e quando você não tem alternativa, não proíba o médico que por ventura queira usar aquele tratamento”, argumentou. “Se não fosse essa tentativa e erro da questão do receituário off label, fora da bula, muitas doenças ainda estariam até hoje existindo no mundo”.

O presidente também admitiu que a eficácia da cloroquina não foi comprovada cientificamente. “Agora ainda não temos alternativa. O pessoal fala ‘ah, não tem comprovação científica’. Todos nós sabemos que não tem comprovação científica, agora não tem também ninguém cientificamente dizendo que não faz efeito. É o que tem. Então vamos usar, ora. Ouvindo o médico, obviamente”.

Num discurso confuso, Bolsonaro, que defende a reabertura irrestrita da economia em meio à pandemia, minimizou as circunstâncias sem precedentes da crise e cobrou que a população “enfrente” a covid-19 que já matou quase 100.000 oficialmente. Afirmou que a miséria provocada pela crise pode abrir as portas do país para “o socialismo”. “É isso que vocês querem no Brasil? Temos é que enfrentar as coisas, acontece. Eu estou no grupo de risco. Eu nunca negligenciei, eu sabia que um dia ia pegar, como infelizmente, eu acho que quase todos vocês vão pegar um dia. Tem medo do que? Enfrenta”, afirmou o mandatário. Em seguida emendou: “Lamento. Lamento as mortes, tá certo? Morre gente todo dia de uma série de causas e é a vida. Minha esposa agora tá, depois de quase um mês que peguei o vírus, ela pegou”.


Janio de Freitas: Críticas diluem ilusões militares sobre corresponsabilidade no governo Bolsonaro

Generais buscaram relevância logo nas duas áreas mais expostas à corrosão de imagem

Foi-se a cerimônia. Ou, mais autêntico, o temor. O temporal de críticas ao Exército dilui as ilusões militares sobre a sua corresponsabilidade, aos olhos públicos, na sanha destrutiva do governo Bolsonaro.

Aos generais construtores desse comprometimento não bastaram os erros de análise conjuntural e de presunção da sua capacidade. Buscaram relevância logo nas duas áreas mais expostas, no momento, à ofensiva das cobranças e da corrosão de imagem —a Saúde e a Amazônia.

Os militares do Exército não têm aptidão para lidar com essas circunstâncias adversas. Fazem dos fatos e das divergências a leitura facciosa e fantasiosa aprendida como arma na Guerra Fria.

O que está em questão, por exemplo, na reprovação exposta pelo ministro Gilmar Mendes, mas generalizada, à ocupação militar do Ministério da Saúde, não é susceptibilidade de tal ou qual instituição, como querem os comandantes e seu general-ministro. É, isto sim, nada menos do que vida. Vida humana, nas suas alternativas saúde, doença e morte.

Não foi por força de contingências que se viu o Ministério da Saúde entregue ao Exército. E daí a um general intendente, que logo substituiu 28 técnicos em áreas de saúde por militares. No crescer da pandemia aterrorizante, o Ministério da Saúde tornou-se um quartel inútil. Por que a militarização, senão por exibicionismo irresponsável e presunção corporativista?

A coordenação das ações estaduais, os testes considerados fundamentais (a mentira de Paulo Guedes: vamos comprar 40 milhões por mês), o apoio a pesquisas, o socorro preventivo às populações indígenas e concentrações da pobreza —nada, enfim, reconhecido em todo o mundo como indispensável e urgente, foi executado pelo ministério militarizado. São fatos.

A resposta à temeridade está em dezenas de milhares de mortes, não se saberá quantas, por ela acrescidas àquelas invencíveis. E também está na reação que não viu inverdade no que disse Gilmar Mendes: “É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio”. É fato.

Da mesma maneira, o que está em questão sobre a Amazônia é o que ali se passa, e não ambições externas e interesses de produtores americanos ou europeus. O que ali se passa são as consequências trágicas da opinião de Bolsonaro executada por Ricardo Salles, o condenado por improbidade a quem foi entregue a desventura do Meio Ambiente. O plano de liberação incentivadora do desmatamento não precisa de mais do que um indicador para desmoralizar as mentiras de Salles e de Bolsonaro, e as tergiversações do general e vice Hamilton Mourão.

O desmatamento no mês passado foi o 14º de aumentos mensais seguidos, ou desde o quarto mês do governo. Comparado com o último junho anterior a Bolsonaro, o de 2018, o desmatamento do mês passado é 112% maior. Mais do que o dobro. A essa política contrária ao patrimônio natural do país, Bolsonaro, falando a estrangeiros, chamou de “opiniões distorcidas” pela imprensa internacional. A clareza dos números advém, no entanto, da clareza de suas causas.

As sanções a desmatamentos flagrados diminuíram 60%. O sistema de fiscalização do Ibama foi destroçado por Salles, com demissões em massa e punição à persistência de fiscais em combater desmatadores.

O que resta do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente é assunto de uma denúncia formal ao Tribunal de Contas da União pela associação dos servidores: a eles é forçada a sua inoperância, com suspensão dos planejamentos, dos contatos sistemáticos com os municípios e da agenda de ações sociais nas comunidades da floresta.

Prova de que a devastação é política de governo, não só o Ministério do Meio Ambiente a executa. Na semana passada, A coordenadora-geral dos sistemas que monitoram o desmatamento, ambos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, foi afastada do cargo pelo ministro de Ciência e Tecnologia, coronel Marcos Pontes.

Assim como Bolsonaro, em 2019, exonerou Ricardo Galvão da direção do Inpe em seguida a dados sobre o crescente desmatamento, agora Lubia Vinhas foi transferida em seguida à divulgação do desmatamento em junho, o maior em cinco anos.

Pormenor ilustrativo: o afastamento da coordenadora-geral incluiu uma fraude. Publicado no Diário Oficial de 13 de julho, trazia a data de dia 6, como se a medida fosse quatro dias anterior à divulgação do desmatamento recordista por Lubia Vinhas.

Nem por isso “o governo será avaliado por sua ação na Amazônia”, como crê o vice Mourão. Sua ação contra o país não cabe nem na vastidão amazônica. As corresponsabilidades, idem.


Merval Pereira: A realidade que se impõe

Há dois meses como interino, o general Pazuello aumentou para 1.249 o número de militares na Saúde, subindo em 94,55%

A divulgação dos dados atualizados dos militares em atuação no governo Bolsonaro, obtidos por uma ação do ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU) preocupado com o possível “desvirtuamento do papel das Forças Armadas”, uma militarização do governo que está sendo criticada, mostra uma participação muito maior do que se imaginava.

O número com que todos os analistas lidavam, cerca de 3.515 militares em diversas áreas, se refere ao ano passado. Neste 2020 da pandemia, esse número teve um acréscimo de 2.942 militares em relação a 2019, num total de 6.157. A média de 3 mil militares foi mantida desde 2016, o que quer dizer que era um número historicamente aceitável, e não alto como se presumia.

No primeiro ano, a suposta militarização se revelava pelo número de ministros oriundos da área militar no primeiro escalão do governo, além, claro, da atuação do próprio presidente, que se dedicou mais a comparecer a festas e cerimônias militares do que aos hospitais para consolar os doentes da Covid-19, hoje na casa de 2 milhões de pessoas, com mais de 75 mil mortos já contabilizados.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso já havia advertido em entrevista que uma militarização do governo poderia tirar a credibilidade das Forças Armadas, que são uma instituição do Estado e não podem ser compreendidas como parte de um governo, seja ele de que tendência for.

Ao mais que dobrar esse número a partir deste ano, o governo Bolsonaro deu partida a uma política de recrutamento militar que se revelou mais aprofundada no ministério da Saúde, justamente no período da pandemia. Há dois meses como interino, o General Pazuello aumentou para 1.249 o número de militares no campo da saúde, subindo em 94,55% a participação deles em comparação com 2016.

Essa presença está provocando muitas discussões internas, tanto no próprio governo, como entre os militares. O Exército não está satisfeito, como instituição, em ver seu nome envolvido em decisões de saúde pública que não são da sua alçada, e ao mesmo tempo sendo culpado por medidas ineficientes. A palavra de outro ministro do STF, Gilmar Mendes, sobre essa militarização do ministério da Saúde, envolvendo o Exército em um “genocídio”, referindo-se ao aumento de mortes nesses últimos dois meses de interinidade, trouxe a questão novamente ao debate.

A primeira reação dos militares, através do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, foi branda, com uma nota relacionando todas as ações das Forças Armadas para ajudar o combate à Covid-19. A palavra “genocídio”, no entanto, foi tomada em sua significação histórica, e não como uma hipérbole que tinha o objetivo de alertar para a necessidade de não dar ao Exército uma missão que não é dele.

A reclamação à Procuradoria-Geral da República não deve ter maiores consequências, inclusive porque os próprios militares, como disse o vice-presidente Hamilton Mourão, querem dar esse assunto por encerrado, “uma página virada”.

Bolsonaro tratou de jogar água na fervura, conversou com Gilmar Mendes e pediu que o General Eduardo Pazuello ligasse para ele. Mas, como de hábito, não deu o braço a torcer, afirmando que permanecem no governo tanto Eduardo Pazuello quanto Ricardo Salles, outro ministro na marca do pênalti devido aos desarranjos da política ambiental.

O caso de Ricardo Salles deve ser resolvido mais rápida e naturalmente, não porque o presidente Bolsonaro tenha se convertido ao movimento verde, mas pelo dinheiro que os investidores nacionais e estrangeiros se recusam a colocar no Brasil se continuarmos sem preservar a Amazônia e os indígenas.

Ninguém vai negociar com Salles à frente do ministério do Meio Ambiente, e por isso o vice-presidente Hamilton Mourão está assumindo a coordenação do Conselho da Amazônia. Já com Pazuello, a questão é mais delicada, porque envolve o Exército. Bolsonaro tem a visão equivocada de que é preciso um especialista em logística no ministério da Saúde, e não um médico, e por isso o mantém

A opinião de Pazuello de que a testagem não é tão importante quanto dizem, contrariamente ao que pensam os especialistas, é uma mostra dos equívocos que estamos cometendo durante a pandemia. Mas a realidade vai acabar se impondo.


Ricardo Noblat: O dilema de Pazuello e dos militares da ativa que servem ao governo

Ou voltam aos quartéis ou passam para a reserva

Hoje faz dois meses que o país está sem ministro da Saúde. Escolhido para ministro interino depois da queda de dois médicos que o antecederam no cargo, o general de brigada Eduardo Pazuello, especialista em logística, enfrenta dificuldades até mesmo para distribuir 46 milhões de testes do Covid-19.

Mais de 20 militares, todos da ativa, ocupam funções chaves no ministério. Mas nem eles, nem o general produziram até agora algo capaz de fazer diferença, a não ser para pior. Por ordem superior, tentaram esconder os números reais da pandemia que matou até ontem mais de 74 mil pessoas e infectou 1,9 milhão.

À falta de meios para enviar aos Estados remédios a tempo e a hora, o secretário-geral do ministério, um coronel, orientou governadores e secretários de Saúde a comprar o que lhes falta mesmo a preços superfaturados. Para não se encrencarem com a Justiça, aconselhou-os a denunciar os que lucraram com isso.

Genocídio parece uma palavra forte usada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, para denunciar um governo relapso que assiste, inerte, o que se dá quando um vírus tem passe livre para matar parte da população. Mas quando a inércia é deliberada, é de genocídio ou morticínio que se trata.

O presidente Jair Bolsonaro não expediu ordem alguma por escrito para que deixassem o vírus agir em paz. Mas Hitler também não expediu ordem alguma por escrito para que dessem início à chamada “Solução Final” – o extermínio em massa de judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias na Alemanha nazista.

O que pretendeu Bolsonaro ao vetar trechos do projeto de lei aprovado pelo Congresso que garantia aos índios e quilombolas água potável, material de higiene, leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, além de alimentação e auxílio emergencial durante a pandemia?

Pretendeu ajudá-los, negando-se a lhes garantir as mínimas condições de sobrevivência? Ou economizar a custa de sua extinção? Nem todos os judeus da Alemanha que se desejava ariana morreram nas câmaras de gás. Milhares morreram de fome e de doenças em guetos e campos de concentração.

É o risco que correm, hoje, os povos tradicionais do Brasil, ou o que resta deles. Mais de 500 índios já morreram vítimas do coronavírus e dos seus cúmplices. Em ato falho, o general Hamilton Mourão, vice-presidente, já admitiu: “Se nosso governo falhar, errar demais, essa conta irá para as Forças Armadas”.

Por que irá se as Forças Armadas são uma instituição de Estado e não de governo? Porque elas cometeram o erro irreparável de se confundirem com o governo de um ex-capitão afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética. Um governo destinado a passar à História como perverso, belicoso e inoperante.

O general Pazuello está diante de um dilema que lhe foi proposto por seus companheiros de farda: passar à reserva e ser efetivado como ministro da Saúde, ou deixar o cargo e retornar à tropa. Com isso, os militares imaginam fortalecer a narrativa de que não são responsáveis pelos desacertos do governo Bolsonaro.

Ingênua pretensão. Entre os quase 3 mil militares empregados no governo, quantos ainda estão na ativa? Poderão permanecer na ativa? Por que os comandantes das Forças Armadas não os põem diante do mesmo dilema que atormenta Pazuello? Só assim terão condições de sustentar narrativa tão perecível e enganosa.

Uma narrativa, por favor, para tirar o governo das cordas

Sugestões para www.gov.br

Os militares são bons de narrativas, mas não somente eles, claro. Em meados dos anos 30 do século passado, um coronel de nome Olímpio Mourão Filho, integralista de carteirinha, escreveu uma peça de ficção sobre um complô comunista e judaico para tomar o poder no Brasil.

A peça tornou-se conhecida como O Plano Cohen. E serviu de pretexto para a instalação no país da ditadura militar do Estado Novo sob o comando do então presidente Getúlio Vargas que governava desde 1930. Governou até 1945, quando os militares o derrubaram.

O imaginativo Mourão Filho, já na condição de general, foi quem em 31 de março de 1964 comandou as tropas que desceram de Juiz de Fora sobre o Rio, deflagrando o golpe militar que deu ensejo a uma ditadura de 21 anos. Outra vez, para salvar a democracia ameaçada pelo comunismo.

À frente o general Hamilton Mourão(sem nenhum grau de parentesco com o Mourão que o antecedeu), os militares estão agora em busca de outra narrativa – essa, que possa salvá-los, e ao governo Bolsonaro, da culpa pelo crescimento acelerado da devastação da Amazônia, bem tão caro aos fardados.

Mourão, o vice, foi designado por Bolsonaro para descascar o abacaxi que poderá afugentar do país grandes investimentos internacionais. “O Brasil foi jogado nas cordas na questão ambiental”, admite Mourão. Só sairá das cordas, segundo ele, se apresentar resultados.

Por ora, Mourão ainda insiste em dizer que o Brasil “tem os melhores números” do planeta em matéria de preservação do meio ambiente (não cola, mas ele insiste). A culpa é governos passados pelo estágio atual da degradação da Amazônia (não cola também, mas ele insiste).

Quanto a Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, que perdeu a interlocução com os governos europeus, esse acabará sacrificado por falta de serventia. Salles não tem a mínima importância, nunca teve. Faz o que lhe mandam fazer. Deverá ser empregado em outro lugar.

Em breve, o governo terá de se preocupar com outra narrativa. O que dizer sobre seu fracasso no combate à pandemia? Atribuir o fracasso a governadores e prefeitos, não convence. À gripezinha, tampouco. Ao vírus chinês? A China é o maior parceiro comercial do Brasil. À esquerda? Ela está fora do poder.

Sugestões para o endereço acima.


Bernardo Mello Franco: Militares desmancharam o SUS, diz Mandetta

O Ministério da Saúde completa dois meses sob ocupação militar. A expressão é do ex-ministro Mandetta. “Desmanchar o SUS no meio de uma pandemia foi uma péssima ideia”, afirma

O Ministério da Saúde completa hoje dois meses sob ocupação militar. A expressão é do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, demitido no início da pandemia. Chutado por Jair Bolsonaro quando o país registrava menos de duas mil mortes pelo coronavírus, ele critica o loteamento da pasta entre oficiais do Exército. “É uma coisa absurda. Acabaram com a credibilidade do ministério”, afirma.

Na visão de Mandetta, o general Eduardo Pazuello não sabe o que fazer no cargo de ministro interino. “Ele não tem nenhuma formação na área. Zero. E quem pode acreditar num cara que estava querendo maquiar os números de mortos na pandemia?”, questiona.

A tentativa de manipular dados não foi o único erro do general, diz o ex-ministro. “O que mais assusta é a quantidade de militares que botaram lá. Foram retirando técnicos de carreira para nomear coronel, capitão e sargento. Tudo com a desculpa de que o ministério tinha muito comunista, muito disco voador”, ironiza.

Sem experiência no setor, os militares não conseguem orientar universidades, hospitais e secretarias de Saúde, diz Mandetta. “Não é a praia deles”, resume. “É como colocar médicos para comandar uma guerra. Ou como tirar os jogadores da seleção e escalar 11 coronéis numa Copa do Mundo. O Brasil não vai tomar outro 7 a 1, vai tomar tomar de 20”, brinca.

No sábado, Mandetta participou da videoconferência em que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, disse que o Exército está “se associando a esse genocídio”. Ele considera que a frase foi tirada de contexto e que as reações da caserna foram exageradas.

“Muitos militares também estão desconfortáveis com essa ocupação. Eles sabem que o fardo está pesado”, afirma. “Desmanchar o SUS no meio de uma pandemia foi uma péssima ideia. Agora estão pagando o preço. Todo dia caem quatro ou cinco Boeings em cima deles”, observa, referindo-se à média superior a mil mortes por dia.

“Numa crise, sempre aparece gente que diz o que o chefe quer ouvir. Mas esta é a maior crise de saúde que o Brasil já enfrentou”, frisa Mandetta. “O Gilmar colocou o dedo na ferida. É por isso que está doendo”, conclui.


Eliane Cantanhêde: Sócio no fracasso

Gilmar Mendes errou feio ao usar ‘genocídio’, mas acertou no diagnóstico e no alerta

Apesar de frágil, sempre por um fio, a trégua entre os três Poderes ia bem até ser ameaçada pela declaração impetuosa do ministro do Supremo Gilmar Mendes, de que “o Exército se associou ao genocídio” ao intervir no Ministério da Saúde e assumir a política negacionista do presidente Jair Bolsonaro na pandemia. Foi um deus nos acuda no governo, na Defesa e nos comandos de Exército, Marinha e Aeronáutica. Porém, o ministro do STF errou feio nos termos, mas acertou no diagnóstico.

O que realmente irritou as Forças Armadas foi o uso da expressão “genocídio” – na definição do Houaiss, “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso” –, que define o crime mais grave do direito internacional, remete ao Holocausto e à morte de 6 milhões de judeus. É despropósito unir Exército e genocídio e não há, tecnicamente, como usar o termo para a ação de Bolsonaro na pandemia, por mais condenável que ela seja.

Assim, a irritação dos militares é compartilhada por magistrados e civis até de oposição, que elogiam a resistência firme do Supremo às investidas de Bolsonaro e às ameaças golpistas de seus filhos e seguidores, mas criticam Gilmar Mendes por “ter ultrapassado o limite”. Lembram que a palavra de um ministro do Supremo tem a força de uma sentença e os excessos vulgarizam, tiram peso, relevância e solenidade da função, que deve servir de reflexão para a Nação.

Dito isso com todas as letras, não se pode negar que Gilmar Mendes não errou nos fatos, no conteúdo. Há um evidente desmonte do Ministério da Saúde, inadmissível em tempos normais e trágico durante uma pandemia avassaladora. Sem ministro há 60 dias, entregue a um general intendente da ativa e entupida de militares que nunca viram uma curva epidemiológica, a Saúde foi jogada na mesma vala do MEC e da Cultura.

A tática de Bolsonaro é clara: anular o ministério, usar um cumpridor de ordens e uma legião de batedores de continência para impor suas decisões mais estapafúrdias e fazê-los lutar contra a ciência, isolamento social, máscaras e bom senso, enquanto faz propaganda da cloroquina, que não é comprovadamente eficaz para a covid-19, mas tem efeitos colaterais que podem ser graves. O próprio paciente Bolsonaro se submete a eletrocardiogramas duas vezes ao dia. Se não é perigoso, por que essa “histeria”?

Para Gilmar Mendes, tudo isso é parte da estratégia de Bolsonaro: esperar o fundo do poço, com quase dois milhões de contaminados, mais de 70 mil mortos, economia esfacelada, empresas quebradas e alguns milhões de desempregados a mais, para jogar a culpa em governadores, prefeitos e no Supremo – que determinou que Estados e municípios não são obrigados a cumprir o que o governo federal manda.

Assim, o termo “genocídio” foi agressivo e apelativo, mas Gilmar Mendes alertou para a manobra de Bolsonaro de usar militares para jogar seus erros e a própria culpa nos outros. Tanto é verdadeiro que a Defesa aumentou a pressão para o general Eduardo Pazuello, interino da Saúde, para passar para a reserva. Ele prefere ficar na ativa e sair da Saúde. A ver.

O ex-ministro Henrique Meirelles, atual secretário de Economia de São Paulo, destrói a manobra de Bolsonaro com uma única frase impecável: “O que afeta a economia é a pandemia, não as medidas para combater pandemia”. Bolsonaro deixou a pandemia correr solta, sem coordenação nacional, sem dar exemplo. A história poderia ser outra, com menos mortes e saída mais rápida. A economia não sofreria tanto. Só falta agora Bolsonaro dizer que não tem nada a ver com isso. Tem tudo a ver e, quanto antes o Exército se descolar do fracasso, melhor.


O Estado de S. Paulo: Ministro da Defesa avalia reação a fala de Gilmar sobre 'genocídio'

Ministro da Defesa diz que estuda medidas contra o magistrado, que afirmou, sábado, que o Exército está associado a ‘genocídio’ na Saúde

Tânia Monteiro e Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, disse ao Estadão que avalia junto aos comandantes das Forças Armadas e à Advocacia-Geral da União (AGU) medidas que podem ser tomadas em reação ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. Anteontem, Gilmar disse que o Exército está se associando a um “genocídio”, em referência à crise sanitária instalada no País em meio à pandemia de covid-19, agravada pela falta de um titular no Ministério da Saúde.

Azevedo afirmou estar “indignado” com o que ele considera serem “acusações levianas” do ministro do Supremo.

Há 59 dias sem um titular na Saúde, o País já acumula mais de 71,5 mil óbitos e 1,8 milhão de contaminados. Depois das saídas dos médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, o general Eduardo Pazuello – militar da ativa especializado em questões logísticas – assumiu interinamente o ministério.

Foi na gestão de Pazuello que o Ministério da Saúde mudou a orientação sobre o uso da cloroquina, passando a recomendar o medicamento desde o início dos sintomas do novo coronavírus. A droga, no entanto, não tem a eficácia comprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Atualmente, ao menos 20 militares, sendo 14 da ativa, ocupam cargos estratégicos no Ministério da Saúde.

Azevedo afirmou que “está avaliando junto com os comandantes de força a situação, considerando todos os aspectos”. Os comandantes e Azevedo passaram o domingo conversando por telefone para traçar uma estratégia de reação à fala de Gilmar. Não está descartada a possibilidade de o governo acionar a própria Justiça para cobrar uma retratação de Gilmar.

O ministro da Defesa já trabalhou no STF como assessor especial do presidente da Corte, Dias Toffoli. A primeira reação a Gilmar veio no próprio sábado, com a divulgação de uma nota em que o Ministério da Defesa afirma que as Forças vêm “atuando sempre para o bem-estar de todos os brasileiros” e elenca uma série de medidas que têm mobilizado militares, como barreiras sanitárias e ações de descontaminação.

Gilmar não quis se manifestar ontem sobre a reação dos militares. Em sua conta pessoal no Twitter, o ministro disse que não se furta a “criticar a opção de ocupar o Ministério da Saúde predominantemente com militares”. “A política pública de saúde deve ser pensada e planejada por especialistas, dentro dos marcos constitucionais. Que isso seja revisto, para o bem das FAs (Forças Armadas) e da saúde do Brasil”, escreveu.

O ministro também aproveitou as redes sociais para elogiar a figura do Marechal Rondon (1865-1958), conhecido por ter defendido a criação do Parque Nacional do Xingu. “No aniversário do projeto que leva o nome de Rondon, grande brasileiro notabilizado pela defesa dos povos indígenas, registro meu absoluto respeito e admiração pelas Forças Armadas Brasileiras e a sua fidelidade aos princípios democráticos da Carta de 88”, escreveu.

Gilmar tem pontes com as Forças Armadas. Em junho, se encontrou com o general Edson Leal Pujol, comandante do Exército, em plena crise entre o Planalto e o Judiciário.