ministério da saúde

Ruy Castro: Procura-se Pazuello, o zero bala

O ministro da Saúde teve Covid. Mas não sabemos a quantas anda e nem sequer se já sarou

Devo estar mal informado, mas, então, o Google também estará. Ao ver ontem o general Eduardo Pazuello sendo chamado a se explicar sobre os 6,8 milhões de testes de Covid mofando num galpão federal em Guarulhos (SP), ocorreu-me que ele é o ministro de Saúde. Ocorreu-me também que, desde que contraiu o vírus —sim, Pazuello pegou a doença, lembra-se?—, mal ouvimos falar dele. E que, sendo o responsável pela saúde de 212 milhões de brasileiros, sua própria saúde é ou deveria ser do interesse nacional.

Pazuello foi diagnosticado com Covid no dia 21 de outubro. Internou-se num hospital de Brasília, onde seu chefe Jair Bolsonaro o visitou expressamente para desmoralizá-lo, desautorizando a sua compra da vacina Coronovac. Pazuello engoliu a ofensa, disse-se "zero bala" e se mudou para um hospital militar. Teve alta no dia 3 seguinte e foi para casa, mas só retomou as "atividades presenciais" no dia 11. Em entrevista, admitiu "ainda não estar completamente recuperado" e atreveu-se a chamar a Covid de "doença complicada". E, a partir dali, sumiu do noticiário —até ontem. Digitei "Pazuello e Covid" no Google para saber se ele estava mesmo "zero bala". Nada sobre esse assunto.

Gostaria de saber de Pazuello como foram seus sintomas, doença, tratamento, recuperação e sequelas. Terá sido entubado? É tudo mesmo um horror? Teve medo de morrer? Foi salvo pela cloroquina ou, como diz a ciência, tomá-la ou passá-la nas costas dá na mesma? Como foi, afinal, que pegou o vírus? Era sempre testado? Não acredita em testes?

Claro que, não sendo médico, Pazuello não tem ideia do que lhe aconteceu. E muito menos do que a Covid já fez, faz e ainda fará com o Brasil.

Pazuello nos deve um minucioso relatório pessoal. Afinal, somos nós que pagamos —em solidão, desemprego, falência e vidas humanas— a conta que ele e Bolsonaro estão apresentando ao país.


Merval Pereira: Falta de gestão

O caso dos 6,86 milhões de testes para o diagnóstico da COVID-19 comprados pelo Ministério da Saúde que perderão a validade entre dezembro deste ano e janeiro de 2021, estocados num armazém do governo federal em Guarulhos e não distribuídos para a rede pública, é exemplar da falta de planejamento e desorganização da política de saúde pública, situação que agrava ainda mais a pandemia no país.

Comprados por gestões anteriores do atual ministro Eduardo Pazzuelo, os testes armazenados representam mais do que os já aplicados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nos seis meses anteriores. Uma explicação para essa desídia pode ser a opinião do próprio ministro, um General da ativa que foi indicado para o ministério da Saúde por ser um especialista em logística, que considera que a testagem massiva não é a melhor maneira de atuar contra a pandemia.

Outra, a disputa entre presidente Bolsonaro e os governadores estaduais. O próprio presidente disse ontem que a culpa é dos governos, que sua responsabilidade é comprar os testes, caberia aos governos estaduais os requisitar. Uma postura passiva que não leva em conta a necessidade da testagem, mas apenas a burocracia estatal. Os governos estaduais dizem que os testes, quando solicitados, chegam incompletos e o ministerio da Saúde não tem condições de solucionar.

Esse é um exemplo atual de uma crise de gestão permanente do governo Bolsonaro, um dos aspectos que estão sendo analisados por diversos especialistas no livro “Bolsonarismo: teoria e prática”. (Rio de Janeiro: Gramma, 2020, 346 páginas), a ser lançado em dezembro. Os especialistas identificaram “a total falta de critério de planejamento, racionalidade, eficiência na gestão pública”.

O estudo é fruto de uma ação conjunta entre o Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas sobre a Democracia (Cebrad) , da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), fundado pelo cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, e o Laboratório de Alternativas Institucionais (LAI) da Universidade Federal Fluminense (UFF), dirigido pelo cientista Político Carlos Sávio Teixeira. O livro, composto por 24 pesquisadores, é dedicado à análise do bolsonarismo como ideologia e movimento político, uma ampla radiografia deste neopopulismo de direita e seu impacto nas práticas políticas e nas políticas públicas, como define Tadeu Monteiro.

Bolsonaro encontra na pauta conservadora dos líderes das igrejas seu nicho eleitoral, mas o livro analisa outras vertentes do movimento bolsonarista, entre elas a guerra cultural, patrocinada pelos movimentos direitistas de ativistas digitais, lançando mão de vários tipos de fake news. Esse “lado obscuro do bolsonarismo”, como define o livro, esteve recentemente em evidência com os ataques cibernéticos contra o sistema de apuração eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Seu presidente, ministro Luis Roberto Barroso, voltou ontem a insistir em que eles representaram “um esforço de desacreditar o processo eleitoral”.

Este movimento, define Tadeu Monteiro, é, na verdade, uma nebulosa, que se compõe de “ativistas digitais, olavistas, terraplanistas, lideranças religiosas, parcelas do alto empresariado, políticos de direita, lavajatistas e militares (forças armadas, policias militares e civis, bombeiros)”. O que os mantém unidos é a pessoa de Jair Bolsonaro. Os bolsonaristas seguem a liderança de Bolsonaro, esteja ele radicalizando ou sendo moderado em suas posições. “Trata-se de um clássico tipo de movimento político atrelado a uma liderança carismática, esta mesma liderança que convoca militantes para manifestações de rua, que faz "lives" frequentemente para mantê-los municiados de argumentos e mobilizados”.

Foram analisados ainda sua prática política no relacionamento com os demais poderes, suas políticas públicas e, em especial a política de saúde em relação à Covid. “O bolsonarismo, fundando-se num processo permanente de mobilização social e política, caminha para um plebiscitarismo permanente”, analisa Geraldo Tadeu Monteiro.


Marta Suplicy: Pulsão de morte

Como seria bom ter um líder que lutasse pela vida

Tenho pensado sobre o que ocorre no Brasil desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência. O país vive em constante turbulência, incentivada por falas e atitudes do presidente. Não se tem paz nem harmonia.

Existe uma necessidade, intrínseca à sua personalidade, de caminhar sempre para o afrontamento, a violência, o desrespeito, a destruição e, finalmente, a morte. Seja de parceiros, mulheres, quilombolas, indígenas, ministros, Poderes institucionais. São exceções sua família e um ou outro apaniguado, enquanto não desgostar ou ameaçar a popularidade presidencial. Estes são desautorizados, fritados e demitidos. Não aparece sofrimento. Ao contrário, a vitória sobre a morte acalma. Assim como sua obsessão com sexo e suas insinuações com ministros namoram a vida, enquanto lutam com o precipício da morte. Não é intencional, é uma força psíquica e inconsciente. Por isso, difícil de entender.

A maioria das ações de Bolsonaro não aponta em direção à vida ou à agregação. Coitados de nós, governados por uma pessoa tão comprometida emocionalmente. São atitudes na direção da destruição do meio ambiente, da extinção de animais já em risco, de indígenas que não conseguem sobreviver à queimada e à poluição de seus rios. Enfrentando e ameaçando os outros dois Poderes, o presidente cria insegurança no Judiciário e no Legislativo e posterga votações fundamentais ao desenvolvimento do país.

Fazendo apologia e aumentando a liberação da posse de armas, o que já resultou no aumento de assassinatos e feminicídios, contribui fortemente para o perfil de um país cada vez mais violento. Não está nem aí. Sente-se até mais seguro. Dentre todas essas ações desvairadas, as mais sérias —pois são as de maiores ​consequências— são contra o isolamento social e o deboche do uso de máscaras. Não creio que registre a responsabilidade do que significa a autoridade máxima apoiar e ter posturas contrárias à proteção das pessoas.

Sua pulsão de morte aplaude. Há semanas faz campanha contra a vacinação, o que já teve impacto no número de crianças que deixaram de serem vacinadas. Agora faz disputa política contra a vacina de origem chinesa, fabricada no Butantan.

A atitude de questionar a qualidade ou a necessidade de vacinação contra este terrível vírus coroa a política genocida do presidente. Será diretamente responsabilizado, assim como o foi na postura contra o uso da máscara, pela morte de milhares de desavisados ou seguidores que serão levados pela sua fala a evitarem a vacinação.

Como seria bom ter alguém agregador, que buscasse e lutasse pela vida: sua e dos outros.

A Frente Ampla, movimento suprapartidário que acredita na democracia e que podemos ser agregadores, tem a consciência de que o Brasil precisa reagir e mudar de rumos.

Impõem-se a união para a construção de consensos, superação de divergências e foco no que mais interessa: a defesa intransigente da democracia, a articulação de uma nova perspectiva e de um projeto para uma sociedade com menos desigualdade social.

É possível. Votemos pela vida.


Carlos Andreazza: Vacina - O Queiroz do futuro

É um debate falso, fora de lugar e tempo

Não existe vacina. Nunca foi tão necessário afirmar obviedades. Não há, infelizmente. Mas já se discute — até com o entusiasmo do presidente de nossa corte constitucional — sobre se a vacinação será obrigatória. Um debate falso, fora de lugar e tempo, que só mesmo a mentalidade autoritária poderia forjar.

Advirta-se — nova notícia do óbvio — que ninguém entrará na sua casa para lhe meter agulha ao braço. Tampouco seus filhos e netos serão levados pela orelha, sob a vara de um agente policial, ao posto de saúde — lá onde os esperaria a seringa compulsória. Não estamos no começo do século XX, embora esse discurso de que “ninguém me obrigará” seja estímulo a uma revolta da vacina a ter lugar não nas ruas, mas no zap-profundo. Funciona. Para um líder sectário que cultiva nicho: funciona.

Diga-se que essa pregação reacionária bolsonarista — contra ameaça inexistente — só tem campo para se exibir porque houve bravateiro, da cepa dos que confundem liderança e coação, que falasse em vacinação obrigatória como produto da autoridade coerciva do Estado. Para quê, João Doria?

A combinação das leis brasileiras — uma das quais sancionada por Jair Bolsonaro —impõe a vacinação. Ponto final. Não precisa de força. Basta que as obrigações do Estado, conforme previsto na legislação, sejam cumpridas para que a sociedade corra à vacina sem qualquer necessidade de coerção. As pessoas querem se vacinar.

O conjunto de obrigações do Estado: adquirir doses de produto certificado em quantidade capaz de cobrir o território brasileiro, distribuí-las universalmente e comunicar a disponibilidade da vacina e a importância de se imunizar. Pronto. As pessoas irão se vacinar. Temos uma cultura vacinal sólida. Seria só chamá-la.

Mas não. O concurso de autoritarismos fundou um debate que judicializará a questão; como já, com muito gosto, antecipou Luiz Fux, outro virtuoso, quase que implorando por ações a respeito. Ele quer decidir. Ele cuida de nós, como Doria. E o presidente agradecerá, mais uma vez ganhando de presente um palanque sobre o qual exercitar seu liberalismo reacionário de resignação.

Já posso mesmo enxergar-lhe a mensagem alguns meses adiante, lavando as mãos, depois de seu governo haver comprado milhões de doses da CoronaVac. Dirá: “Ninguém deveria ser obrigado a se vacinar, mas, novamente, fiquei de mãos atadas”. Vimos variação desse texto de vitimização — que distorce decisão do Supremo — ser bem-sucedida, para a popularidade de Bolsonaro, quando a Corte garantiu a autonomia de estados e municípios para baixar decretos sobre como enfrentar a pandemia.

Voltemos ao presente, porém. Não existe vacina. Mesmo assim, já há vacina — comunista! —vetada. Este é o presente, interditado por intensa trama de teorias da conspiração — desde onde se projeta um futuro que, mesmo ainda apenas incerto, veste-se para a guerra. O inimigo será obra de fantasia. Bolsonaro saberá vencer. Ou melhor: saberá comunicar a vitória. Que não houvesse oponente é sempre detalhe.

Quem falou em ministrar vacina à população sem comprovação científica e à revelia do aval da Anvisa? Ninguém. A exigência de que se cumpram todas as etapas de certificação é raro consenso. Mas Bolsonaro novamente planta o falso problema, o algoz imaginário. Prospera assim.

A falsa responsabilidade, amparada em mentira: afirma que não gastará dinheiros em vacina ainda não segura, como se o entendimento com o Butantan, mera carta de intenções, previsse dispêndios anteriores à aprovação pela autoridade brasileira; e como se não tivesse sido o governo dele — sob ordem direta dele —a jogar, aí sim, milhões fora para adquirir um medicamento, a hidroxicloroquina, inútil para o tratamento do vírus.

Não existe vacina. Mas há esperança. Há também o medo. Quando tivermos uma testada em todas as etapas, e avalizada pela Anvisa, e se essa primeira disponível for a chinesa, o fato se apresentará a Bolsonaro. E então veremos como agirá. Ele sabe ser objetivo. É intuitivo. Fareja quando a própria carne se acerca do espeto, circunstância em que o futuro de luta pela liberdade e contra o sistema se materializa em presente à mesa com Toffoli etc. O tal do medo.

Não comprar a vacina significaria botar em risco a saúde da população. Será crime. Tipificado. Significa também arriscar a própria popularidade. E falamos de alguém que é mestre em equilibrar vários pratos concomitantemente, tanto quanto em derrubar discurso em nome do pragmatismo de ocasião.

Não me surpreenderei se, enquanto mantém no alto a pipa anti-China, Bolsonaro já tiver autorizado uma costura por baixo que resulte, mais adiante, em o governo registrar mesmo o compromisso de compra da vacina ora amaldiçoada —que logo será brasileira. A realidade se impõe. A vacina chinesa pode ser um novo Queiroz diante de si, a hora de baixar a pressão da valentia e compor com o Centrão.

Não me surpreenderei se Bolsonaro vacinar Doria. Ninguém será obrigado. O presidente sabe que a vacina aplicada por Alexandre de Moraes machuca.


Elio Gaspari: Um surto de mediocridade

Bolsonaro sabia que o Ministério da Saúde havia oficializado a sua intenção de comprar 46 milhões de doses da CoronaVac

Sabe-se que Jair Bolsonaro dorme mal. No ano passado, ele revelou que penava 89 episódios de apneia por hora: “Detenho o recorde brasileiro.” Sabe-se também que instalou uma escrivaninha no espaçoso guarda-roupas do Alvorada e passa o tempo ligado nas redes sociais de sua estima.

Às 5h45m da madrugada de quarta-feira, o presidente continuava diante de seu computador quando respondeu a uma mensagem com um grito de guerra: “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. (…) Diante do exposto, minha decisão é a de não adquirir a vacina.”

Estava aberta uma ridícula Guerra da Vacina.

Bolsonaro sabia que o Ministério da Saúde havia oficializado a sua intenção de comprar 46 milhões de doses da CoronaVac, que, nas suas palavras, transformou-se na “vacina chinesa do João Doria”. Desde que o vírus chegou ao Brasil, matando mais de 150 mil pessoas, Bolsonaro militou no exercício ilegal da Medicina com sua cloroquina.

Fritou dois ministros da Saúde e, com seu surto matutino, começou a refogar o terceiro. Nos seus gritos de guerra, anunciou que a “vacina não será comprada” porque “não abro mão de minha autoridade”. Parolagem. Horas depois, a Agência de Vigilância Sanitária (detentora da autoridade) informou que, como acontece com qualquer medicamento, autorizará a compra do fármaco que cumpra os requisitos científicos.

No rescaldo do surto, 11 palavras do general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz explicam a barulheira: “Falta de capacidade e organização interna” e “um nível de mediocridade extrema”.

Santos Cruz foi um dos 13 azes militares levados para o governo pelo capitão Bolsonaro. Os outros dois foram Hamilton Mourão e Augusto Heleno. Ele era o único a não ter se envolvido em episódios de indisciplina. Durou seis meses, dois dos quais em processo de fritura. Desde que saiu do governo, Santos Cruz tem sido um crítico raro, porém, pontual. Se quisesse, teria sido candidato à Prefeitura do Rio, mas afastou-se do cálice.

Quem entende o mundo dos generais garante que Santos Cruz é ouvido.

Uma grande História dos EUA

Está nas livrarias “Estas verdades — História da formação dos Estados Unidos”, da professora Jill Lepore, de Harvard. Com 866 páginas e quase dois quilos, vai de Cristóvão Colombo a Donald Trump. Lepore gosta da vida, de História e dos Estados Unidos. Isso faz com que sua produção tenha um discreto bom humor, levando-a a tratar de tudo, inclusive cinema e esporte.

Os personagens de “Estas Verdades” têm carne e osso. Ela olha para os magnatas, os poderosos, os negros, os índios e as mulheres. Em 1760, o fazendeiro George Washington consertou sua boca usando dentes de escravizados. (Pelo menos 43 deles fugiram e um combateu ao lado dos ingleses. Da fazenda de Thomas Jefferson, fugiram 13). O futuro presidente acasalava-se com a escrava Sally Hemings, meia-irmã de sua falecida mulher. Na conta do erudito amante e senhor, ela só tinha um oitavo de sangue negro.

No século XVIII, as colônias americanas tiveram duas revoluções, uma contra o domínio inglês, outra contra a escravatura. Esta levou quase um século para prevalecer. O que levou os colonos a rebelar não foram apenas os impostos e a repressão, mas sobretudo a oferta da liberdade para os escravos.

Em 1776, um grupo de “subversivos”, segundo o filósofo inglês Jeremy Bentham, criou um estado “absurdo e visionário”. Em 1801, a Suprema Corte se reunia na pensão em que viviam seus juízes.

Lepore diz coisas assim: “A Inglaterra manteve-se no Caribe e desistiu da América.” Ou ainda, tratando da Guerra Civil: “O Sul perdeu a guerra, mas ganhou a paz.”

A grande nação americana foi construída também pelos movimentos dos trabalhadores, dos imigrantes e dos negros. “Estas verdades” vai mostrando essa história aos poucos, com um elegante domínio dos fatos: em 1776, quando foi proclamada a independência dos Estados Unidos, a temperatura na cidade de Philadelphia era de 11 graus; às vésperas da chegada de Donald Trump, era de 15.

Para Bill Gates, “Estas Verdades” é o “relato mais honesto e mais bem escrito que já li sobre a História dos Estados Unidos". Jill Lepore conta uma grande aventura e termina com certa ansiedade: “Uma nação não pode escolher seu passado, só pode escolher seu futuro”.

Recordar é viver

Deu no “The New York Times”: pelo menos 545 crianças cujas famílias tentavam entrar ilegalmente nos Estados Unidos estão em abrigos, sem que seus pais tenham sido localizados. No debate de quinta-feira, Donald Trump fugiu da pergunta durante vários minutos.

Essas coisas acabam passando despercebidas enquanto a vida segue, naquilo que parece ser uma rotina maior que pequenos dramas.

No dia 12 de dezembro de 1938, chegou a Londres um navio que transportava 200 crianças judias alemãs, entregues pelos pais para que fossem criadas por famílias inglesas. Até o fim da guerra foram mais de 10 mil. O filho de uma delas, Michael Moritz, tornou-se um milionário e doou 15 milhões de dólares para programas de ajuda aos pobres da Universidade de Oxford.

Nas semanas em que as crianças judias desceram em Londres, Josef Stalin assinou 30 listas com os nomes de cinco mil pessoas que deviam ser executadas e foi ao cinema do Kremlin ver uma comédia.

No Rio, Vargas posou para o escultor Leão Veloso e foi ao cinema ver “Corpo e alma de uma raça”.

Passou o tempo e a história de Nicholas Winton, o inglês que organizou o resgate está na rede, em vários vídeos. Quem quiser, poderá cultivar suas emoções por alguns minutos. O título de um deles é “Nicholas Winton, o herói anônimo da Segunda Guerra”.

Amy e Kassio

O ministro Gilmar Mendes não gosta que se façam paralelos entre a Corte Suprema dos Estados Unidos e o Supremo Tribunal Federal.

O que aconteceria com a escolha da juíza Amy Coney Barrett, indicada para o tribunal, se dissesse aos senadores americanos que seu marido trabalha lá, mas não sabe exatamente o que ele faz? E se o senador em cujo gabinete o cidadão está lotado, também não souber?

O desembargador Kássio Nunes Marques não soube dizer aos senadores o que sua mulher faz no gabinete do senador Elmano Férrer. Nem ele.

Nunes Marques explicou aos doutores que o custo de vida em Brasília é muito caro. Treze milhões de desempregados encaram o custo de vida sem salário algum, mas faça-se justiça: ela é economista e não advoga nas Cortes de Brasília.

Jesse Barrett, o marido de Amy, é advogado criminalista e trabalha numa banca em Indiana.


Bernardo Mello Franco: Sabujismo orgulhoso

No governo Bolsonaro, não basta ser servil. É preciso ostentar a subserviência como prova de lealdade. Ontem dois ministros se humilharam em público para agradar ao chefe. Encolheram as próprias biografias e avacalharam as pastas que deveriam comandar.

Eduardo Pazuello, dublê de paraquedista e ministro da Saúde, recebeu Bolsonaro após ser desautorizado sobre a compra de vacinas. Sem corar, ele reconheceu a falta de autonomia no cargo. “Senhores, é simples assim: um manda e o outro obedece”, explicou.

Seguiu-se um diálogo constrangedor entre o general da ativa e o capitão reformado. “A gente tem um carinho”, disse Pazuello. “Opa, tá pintando um clima”, animou-se Bolsonaro. O ministro está com Covid, mas rompeu o isolamento para gravar com o presidente. Sem máscaras, os dois voltaram a fazer propaganda da cloroquina.

Mais cedo, Bolsonaro foi ao Itamaraty. Em discurso para formandos do Instituto Rio Branco, Ernesto Araújo deu uma aula de antidiplomacia. A turma foi batizada de João Cabral de Melo Neto. “Modestamente, me considero também as duas coisas, diplomata e poeta”, arriscou o chanceler, sem modéstia alguma.

Ao microfone, o ministro se atreveu a atacar o homenageado. Disse que ele “dirigiu-se para o lado errado: para o lado do marxismo e da esquerda”. Perseguido por outros Ernestos, o autor de “Morte e vida severina” chegou a ser afastado do Itamaraty, em 1953.

“A diplomacia pode ser lírica, pode ser dramática, mas também pode ser épica”, prosseguiu o ministro, repetindo palavras do discurso nazista de Roberto Alvim. Na sequência, ele passou a elogiar Bolsonaro. “Nosso presidente conhece e ama esse povo e nos ensina a conhecer e a amar esse povo”, derramou-se.

Sem disfarçar o ressentimento, o chanceler reclamou da atenção dada a cientistas e intelectuais “prudentes e sofisticados”. Ele disse liderar uma “política externa do povo brasileiro”, inspirada nas ideias do capitão e inimiga de um imaginário “complexo marxista-isentista”.

Num breve surto de lucidez, Ernesto admitiu que o Brasil de Bolsonaro se tornou um pária na comunidade internacional. Mas não deu o braço a torcer. “Talvez seja melhor ser esse pária, deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas”, disse, orgulhoso do próprio sabujismo.


Bruno Boghossian: O circo político da vacina

Governo paga por imunizante que foi criticado pelo presidente em ataque a Doria

Nem os auxiliares de Jair Bolsonaro conseguem sustentar por muito tempo o circo político armado diariamente pelo chefe. Em menos de 24 horas, o Ministério da Saúde foi obrigado a cortar mais um fio da campanha do presidente contra a vacina chinesa para a Covid-19, produzida em São Paulo.

A pasta anunciou nesta terça (20) que vai pagar R$ 2,6 bilhões para incluir 46 milhões de doses da Coronavac em seu Programa Nacional de Imunizações. Bolsonaro deveria explicar por que vai gastar uma fortuna com um produto que, na véspera, ele mesmo tentou desmoralizar.

Na segunda (19), o presidente abriu um evento disposto a atacar a vacina chinesa para acertar o governador João Doria (PSDB). Em poucos minutos, ele criticou o preço do imunizante, insinuou que sua eficácia não está comprovada e citou um levantamento que indica que 46% dos brasileiros recusam sua aplicação.

Alguém poderia imaginar que o presidente se converteu às escrituras científicas, que passou a acreditar nas pesquisas de opinião ou que finalmente decidiu dar bola para a saúde. Mas as autoridades do próprio governo trataram de desmascarar o que já estava evidente.

A negociação com os paulistas para a distribuição da Coronavac mostra a dimensão do absurdo fabricado por Bolsonaro. Ao mirar Doria, o presidente disse que o tucano produz “terror” ao anunciar que o imunizante deve ser compulsório no estado. O ministro da Saúde descartou a obrigação, mas também não ouviu a bobagem do chefe sobre a vacina.

Bolsonaro não ficou satisfeito em atrapalhar os esforços para frear a contaminação pelo coronavírus e em desdenhar de seus mortos. Ele ainda procura novas oportunidades para extrair benefícios políticos de cada etapa da pandemia.

O presidente só conseguiu atenção agora porque, do lado oposto, a busca pelos holofotes empurrou Doria nessa direção. Ao antecipar o debate sobre a obrigatoriedade da vacina, de maneira superficial, o governador caiu na armadilha do rival.


Vinicius Torres Freire: Pense em Maria, 109, que o vírus levou

Epidemia vai se arrastar e já pode ter matado quase 1 em 100 idosos de São Paulo

Duas mulheres de 109 anos morreram de Covid na cidade de São Paulo. A doença levou 46 paulistanos de cem anos ou mais.

A gente sabe que esta é uma peste ainda mais cruel com os idosos. As pessoas de mais de 65 anos são cerca de 75% dos mortos pela doença tanto aqui na cidade como no estado de São Paulo. Mas a gente vai bulir nas estatísticas por outros motivos e vê lá então que duas paulistanas de 109 anos morreram de Covid. É outra história.

Dá o que pensar: nessas mulheres, no paulistano de 104 anos que o vírus levou, nessa morte muitas vezes dolorosa e sempre solitária, de nenhuma despedida. Penso na minha avó Maria, que morreu aos 101, antes desta praga, que esteve muito bem até pouco antes de partir, quando então ainda cozinhava e teria ido à feira sozinha, se deixassem.

Penso nas outras Marias centenárias ou nem perto disso, todas muito ameaçadas pela indiferença geral e crescente, que não deve diminuir agora que São Paulo entrou na “fase verde” da epidemia.
Penso nos amigos e nos parentes do homem de Man Bac.
Ele viveu faz mais de 4 mil anos no que é hoje o Vietnã. Arqueólogos descobriram que esse homem sofria de um mal que o deixou paralisado da cintura para baixo desde antes da adolescência. Quase não podia mexer os braços, se tanto, ou se alimentar sozinho, mas sobreviveu pelo menos uma década depois do ataque da doença.

Sua gente cuidou dele, pessoas que não tinham quase nada, que viviam apenas de caça, pesca e talvez criassem uns porcos meio selvagens.

Há outras histórias assim, de neandertais de 45 mil anos atrás ou de indígenas da Flórida de 7.000 anos.

“E daí?”, diria um ogro tal como um desses que nos governam e que não são capazes de uma palavra compassiva, que dirá do sacrifício amoroso desses nossos parentes da pré-história.

Daí que a epidemia está longe de terminar. Ainda podemos nos redimir um pouco do nosso barbarismo. O vírus continua a matar diariamente cerca de 700 pessoas no Brasil. Na cidade de São Paulo, são mais de 20 por dia. Nenhuma doença mata tanto assim. As mais letais, infarto e pneumonias, levavam 20 paulistanos por dia antes da calamidade do vírus.

Pelo menos cerca 0,6% dos moradores de São Paulo com mais de 65 anos perderam a vida para a Covid. Ainda não está chocado? É pelo menos 1 de cada 169 paulistanos com mais de 65. Pode ser mais, se considerados também os casos suspeitos: 1 de cada 114.

Sim, o pico da doença nesta cidade aconteceu no início de junho, quando morriam em média 120 pessoas por dia por causa do coronavírus. Sim, como muita gente deve ter ouvido tantas vezes, o risco é muito baixo para quem tem menos de 50 anos. É baixo o risco de morrer, mas não o de espalhar morte, o que deveria ser muito sabido também.

Se o argumento mortal não basta, pense que, quanto mais a epidemia se arrastar, por mais tempo ficará travada a vida nas cidades e, assim, o ganha-pão de tanta gente, a mais pobre em particular.

A peste e esses tipos que nos governam fazem pensar também em Tucídides, o historiador, um grande escritor e também um militar. Lutou em guerra de verdade. Não passou a vida vadiando como escoteiro marmanjo até ser expulso da tropa por baixezas várias.

O quase sempre comedido Tucídides escreveu com horror e desamparo sobre os montes de mortos largados sem cerimônia, vítimas de uma praga sem remédio na Atenas de 430 a.C.

Pense nos gregos, pense no homem de Man Bac. Pense em “Maria”, 109, que o vírus levou e que um dia foi bela e jovem como você.


Celso Rocha de Barros: A história de Mandetta

Em "Um Paciente Chamado Brasil", ex-ministro da Saúde conta história que se encerra com sua saída do governo

O ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta acaba de publicar um relato de sua passagem pelo ministério durante a pandemia de 2020.

Em “Um Paciente Chamado Brasil”, conta a história que começa na reunião de Davos de janeiro deste ano, em que a pandemia começou a entrar na agenda internacional, e termina com sua demissão, voltando para casa ouvindo Jimmy Hendrix no carro.

Mandetta é cotado para ser candidato a presidente ou vice-presidente (talvez em chapa com Sergio Moro) em 2022. Por isso, algum cuidado com a versão que conta sempre é aconselhável.

Mas também é verdade que sua versão bate muito melhor com o que dizem fontes independentes, a ciência e os números da pandemia do que, por exemplo, a versão de Jair Bolsonaro, que também será candidato em 2022 e já fez coisa muito pior para garantir sua reeleição do que escrever um livro.

A trama central de “Um Paciente Chamado Brasil” já é conhecida, mas é muito importante que tenha sido registrada e assinada por um participante-chave da história: Jair Bolsonaro ignorou completamente a pandemia, não demonstrou qualquer interesse em salvar vidas e só se preocupou com o efeito da quarentena sobre suas chances de ser reeleito.

Alimentava ilusões paranoicas como a de que o embaixador chinês trabalhava para derrubar governos de direita na América Latina.

No que se refere à cloroquina, Mandetta é taxativo: Bolsonaro nunca se interessou pela sua capacidade de curar ninguém. Queria que, com a caixinha de cloroquina no bolso, os brasileiros voltassem a trabalhar, morresse quem morresse.

Via na quarentena uma conspiração dos governadores, em especial de João Doria, para derrubá-lo. E sabotou o Ministério da Saúde em diversos momentos.

Entre os outros personagens, o livro permite a construção de uma espécie de escala que, sempre na opinião de Mandetta, vai dos razoáveis como Campos Neto, os generais Braga Neto e Fernando Azevedo, aos criminalmente irresponsáveis como Osmar Terra e Eduardo Bolsonaro.

Paulo Guedes teria chegado atrasado no entendimento sobre a gravidade da pandemia, o que teria forçado, inclusive, o Congresso a assumir protagonismo na criação do auxílio emergencial.

Além da distribuição de responsabilidades, o livro tem outro interesse: é um relato do choque de um direitista tradicional (Mandetta) diante do extremismo de Bolsonaro, e de como fracassaram as manobras para moderar o presidente.

Mandetta lamenta, por exemplo, que o DEM não tenha encampado Bolsonaro na campanha de 2018.
Imagino que Mandetta o lamente por achar que isso poderia tê-lo moderado.
Já escrevi aqui que a aproximação com o DEM no começo do governo teria sido um sinal forte de moderação por Bolsonaro.

Ele nunca a quis, e, à luz do que Mandetta conta no livro, parece que o DEM teve razão em não bancar Bolsonaro em 2018: ele não parece aceitar moderação nenhuma.

Permanece, entretanto, o fato de que nem a direita tradicional nem os militares nem Guedes nem Moro se mobilizaram com o ânimo necessário para forçar Bolsonaro a agir como um adulto responsável durante a maior crise sanitária do Brasil em cem anos, ou para puni-lo por não tê-lo feito.

Mas mesmo que o tivessem feito, essa era a hora do líder. E Bolsonaro falhou como nenhum outro líder brasileiro já havia falhado.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Vera Magalhães: O início, o fim e o meio

Retomada desordenada tornou decisão sobre volta às aulas mais complexa

Passados seis meses de pandemia do novo coronavírus no Brasil, duas são as principais questões a mobilizar a sociedade, os governantes e os especialistas. A primeira é quando e de onde virá a vacina, e com que eficácia. A segunda, anterior, é: quando voltarão as aulas presenciais?

O Brasil é um dos países do mundo a ter ficado mais tempo com as escolas fechadas, mais uma consequência da quarentena meia boca, da falta de coordenação política para o enfrentamento da covid-19 e da retomada atendendo a pressões políticas, e não prioridades sociais ou recomendações da ciência.

As escolas fecharam já em março e houve uma imensa heterogeneidade na adoção do ensino à distância. Escolas particulares, sobretudo nos grandes centros, rapidamente passaram a utilizar ferramentas da tecnologia para chegar aos alunos confinados.

A velocidade, sabemos, não foi a mesma, nem os recursos tão abundantes, nas redes públicas e nos rincões. Os resultados serão sentidos nos anos vindouros, na forma de mais desigualdade na qualidade do ensino.

Meio ano depois, a constatação de que a perda em termos educacionais e o prejuízo emocional e social para crianças, adolescentes e universitários é imensurável e a necessidade econômica e familiar de que a rotina seja retomada afligem gestores públicos, pais, professores e profissionais da área médica e sanitária.

Isso porque a ordem dos fatores, no caso da retomada de uma pandemia, altera, e muito, o produto. Como na letra de Gita, de Raul Seixas, começamos pelo começo (a quarentena necessária), mas aí invertemos o meio (a imprescindível redução da curva de contágio) e o fim (a retomada das atividades).

E mais: além de atropelar o meio, ainda passamos à frente na fila as atividades em que os lobbies econômicos gritaram mais alto, e a volta às aulas foi ficando para trás.

E agora se formou um nó górdio: ausência de coordenação para estabelecer protocolos seguros, falta de estrutura das redes públicas para fornecer condições de higienização e distanciamento para o escalonamento de retorno dos alunos, resistência em grande ponto justificada de professores, insegurança dos pais e o medo dos prefeitos de a conta de uma eventual explosão do número de casos estourar no seu colo bem no período eleitoral.

Como se sai de um nó desse, uma vez que a vacina ainda é uma promessa distante e os prejuízos para todos vão cobrando uma conta mais pesada? De novo, é necessária coordenação nacional. Não basta Jair Bolsonaro agir como sempre como um irresponsável de arquibancada, como se não fosse ele o presidente, e ficar cornetando que as escolas não deveriam ter fechado, e que as quer abertas juntamente com os estádios.

O MEC, que nada fez de útil na pandemia toda, e o Ministério da Saúde, cujo titular acaba de passar no estágio probatório de seis meses, precisam chamar gestores municipais e definir requisitos para abrir as escolas: qual a curva de transmissão aceitável para isso? Com que porcentual de alunos elas serão reabertas? O que as escolas têm de providenciar em termos de insumo e instalações para o retorno? Como serão conciliadas as aulas presenciais e remotas? Qual a rotina de testagens para professores? Qual a estratégia de rastreamento rápido de casos por região para fechar as escolas caso comece a haver sinais de escalada de contágio?

Sem responder a essas perguntas básicas, para as quais a própria pandemia já forneceu expertise e dados acumulados, e que já deveriam estar no horizonte muito antes de qualquer retomada, ficar estabelecendo datas aleatórias de retorno segundo a conveniência do calendário eleitoral é cinismo travestido de gestão. Os estudantes são as grandes vítimas pelo fato de os adultos terem pulado a lição de casa.


Bernardo Mello Franco: A festa do general

Depois de quatro meses, Jair Bolsonaro se lembrou de nomear um ministro da Saúde. O escolhido foi o general Eduardo Pazuello, que já ocupava a cadeira como interino. Quando ele assumiu, em maio, o país contava 13 mil mortos pela Covid. Ontem o número ultrapassava os 133 mil. Isso significa que nove entre dez vítimas morreram na gestão do militar.

Pazuello é o terceiro titular da Saúde desde o início da pandemia. Os dois anteriores caíram por resistir à pressão de Bolsonaro para distribuir remédio sem eficácia comprovada. O general chegou com uma vantagem: como não é médico, não precisa rasgar o diploma para fazer as vontades do chefe.

Na primeira semana no cargo, ele mostrou que sabe obedecer e receitou o uso da cloroquina. Em seguida, dedicou-se à tarefa de transformar o ministério num quartel. Demitiu técnicos em saúde para abrir espaço a coronéis, majores e capitães.

O general foi apresentado como um especialista em logística. Mesmo assim, não conseguiu evitar a falta de suprimentos nos hospitais. Sua gestão só mostrou eficiência para esconder informações. Os veículos de comunicação precisaram montar um consórcio para manter o público informado sobre a evolução da doença.

A posse de Pazuello foi coerente com sua obra até aqui. Em tom festivo, o general afirmou que o Brasil tem “um dos maiores quantitativos de pessoas recuperadas no mundo”. Faltou dizer que o país aparece em segundo lugar no ranking de mortes.

O governo ignorou as recomendações sanitárias e voltou a aglomerar convidados no Planalto. Bolsonaro aproveitou para atacar a imprensa e fazer propaganda da cloroquina. Na contramão dos epidemiologistas, ele afirmou que o país não deveria ter fechado as escolas na pandemia. Depois disse que 30% das mortes teriam sido evitadas com o falso remédio milagroso.

Segundo o Capitão Corona, os governadores que decretaram medidas de distanciamento foram “tomados pelo pânico” e “impulsionados pela mídia catastrófica”. Ele, ao contrário, teria sido ousado e corajoso. “Não me acovardei, não me omiti”, elogiou-se.


Ricardo Noblat: Ministério da Saúde inunda o país com hidroxicloroquina

Bolsonaro, o garoto propaganda da droga, agradece

Jamais se viu e dificilmente se verá algo que supere o absurdo protagonizado pelo presidente Jair Bolsonaro e os que o ajudam a governar ou a desgovernar o país. Verdade que ele seguiu os passos de Donald Trump a quem imita por falta de referência que mais o agrade. Verdade também que Trump recuou ao ver a enrascada em que se metera. Bolsonaro segue em frente como um celerado.

Em questão, o uso da hidroxicloroquina no combate a Covid-19. O mal começou a preocupar o mundo quando fez suas primeiras vítimas na China ainda em novembro do ano passado. Oito meses depois, não surgiu um único estudo científico que tenha comprovado a eficácia da droga contra a doença que ganhou status de pandemia. Nem por isso Bolsonaro desistiu dela.

A Organização Mundial de Saúde, em junho último, interrompeu os testes com o remédio para tratamento do coronavírus após revisão de estudos não atestar efeitos positivos. Um mês depois, a Sociedade Brasileira de Infectologia divulgou um comunicado em que propõe que as medicações com a hidroxicloquina sejam abandonadas “no tratamento de qualquer fase” da doença. E daí?

Daí que o governo não ligou a mínima. Durante a pandemia, o Ministério da Saúde quintuplicou a distribuição da droga a estados e municípios. E agora tenta desovar na rede pública doses em estoque doadas pelo governo dos Estados Unidos depois que Trump mudou de lado. Foi o que apurou o jornal Folha de S. Paulo por meio da Lei de Acesso à Informação.

De março a julho deste ano, já foram enviados 6,3 milhões de comprimidos de cloroquina, na dosagem de 150mg, para abastecer as unidades do Sistema Único de Saúde. Segundo o jornal, é 455% a mais do que o repassado no mesmo período do ano passado (1,14 milhão), quando a aplicação se dava apenas em terapias contra a malária e outras doenças.

Até julho, cerca de 5 milhões de comprimidos foram remetidos pelo ministério só para uso em pacientes com o novo coronavírus. As remessas cresceram em maio e junho graças ao papel desempenhado por Bolsonaro de garoto propaganda do remédio. No período, foram afastados dois ministros de Saúde contrários ao aumento do uso do medicamento – Mandetta e Nelson Teich.

Disciplinado, o atual ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, não se opôs à vontade de Bolsonaro. Missão dada, missão cumprida. No final de junho, o Ministério da Defesa informou que havia 1,8 milhão de comprimidos de cloroquina em estoque no Laboratório do Exército. O valor representa cerca de quase 20 vezes a produção anual da droga nos anos anteriores.