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Compreender as novas direitas é imprescindível para combatê-las, afirma professor Marcus Vinícius Oliveira
Doutor em história diz que inação ou incompreensão diante de novas formas de organização política não reduz seu potencial destrutivo
Comunicação FAP
A ascensão de movimentos de direita e extrema direita em diversos cenários globais tem imposto um desafio analítico. Afinal, o que diferencia essas forças contemporâneas de seus antecessores históricos? O historiador e professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Marcus Vinícius Oliveira diz que, inegavelmente, há algo novo nas novas direitas. Essa novidade reside em suas concepções políticas e na forma como se organizam a partir de marcos históricos recentes que as moldaram de maneira particular.
A compreensão aprofundada desse fenômeno é vista por Oliveira não apenas como uma necessidade acadêmica. “É uma das ferramentas imprescindíveis para que nós consigamos combater efetivamente esses grupos", afirma ele, que é pesquisador e doutor em história pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Oliveira baseia sua análise em três leituras principais que, juntas, oferecem perspectivas sobre a novidade dessas direitas. A primeira é a do historiador italiano Steven Forti, com a obra "Extremas Direitas 2.0". Forti argumenta que essas direitas começaram a se estruturar a partir dos anos 1960 e 1970, período em que conceitos como fascismo e populismo se tornaram insuficientes para explicá-las. O próprio título do livro já sugere que não se trata de uma mera repetição do passado, embora elementos anteriores possam estar presentes.
Veja vídeo, abaixo:
"Revolução cultural"
A tese central de Forti, segundo a interpretação de Oliveira, é que essa nova direita, com origem na França nos anos 60, surgiu da percepção de que as esquerdas haviam se infiltrado e culturalmente dominado a sociedade. Diante disso, a direita concluiu que, para alcançar o poder político, também necessitaria de sua própria "revolução cultural". O nome mais associado a essa ideia é Alan de Benoist, que defendia a apropriação de ideias da esquerda para ganhar espaço no terreno cultural. Benoist, inclusive, afirmava abertamente que desejava um "gramscismo de direita".
Na visão desses grupos, Gramsci é compreendido como um "pensador da cultura" que entendeu que o consenso social é construído por meio de instituições culturais e intelectuais. Assim, a nova direita busca criar seus próprios intelectuais e instituições culturais para disputar politicamente a sociedade. Segundo o professor, um dos pontos definidores dessa nova direita, portanto, é a crença na existência de uma "guerra cultural ou há uma grande disputa cultural dentro da sociedade", na qual é fundamental combater as esquerdas e o progressismo.
A segunda leitura fundamental na análise de Oliveira é a do cientista político Cas Mudde, autor de "A extrema direita hoje". Para Mudde, o que distingue a extrema direita atual das três ondas anteriores é sua normalização. Esses grupos se tornaram "cada vez mais normais" ao longo do tempo, conforme explica o pesquisador, a ponto de não apenas disputar, mas também vencer eleições e formar governos em diversos lugares. Essa quarta onda de extrema direita, caracterizada pela normalização, emerge em um contexto de três grandes crises que Mudde enumera, partindo do século XX.
"Guerra ao terror"
O primeiro marco temporal, para Mudde, é 2001, com os ataques de 11 de setembro. Esses ataques, em sua visão, criaram um novo inimigo para o Ocidente: os povos árabes, islâmicos, muçulmanos, que frequentemente são associados ao comunismo por grupos de extrema direita. A "guerra ao terror" tornou-se, assim, fundamental para o surgimento e a normalização dessas novas extremas direitas.
O segundo marco é a crise econômica de 2008. Após essa crise, os pacotes de austeridade, especialmente na Europa, foram intensamente contestados por esses grupos. “Os grandes bancos, as grandes instituições internacionais, como a própria União Europeia, Organização das Nações Unidas, Fundo Monetário Internacional, enfim, todas essas grandes organizações estão sendo controladas por elites, por determinados oligopólios", critica Oliveira. Essas elites, acrescenta, estariam distantes dos interesses populares, sendo, portanto, "antipopulares". Nesse cenário, a direita se posiciona como representante do povo, ao lado dos trabalhadores, impulsionando seus interesses.
Por fim, as crises imigratórias vividas pela Europa a partir dos anos 2010 constituem o terceiro marco. Na avaliação de Oliveira, essas crises se conectam aos pontos anteriores ao questionarem se grandes instituições internacionais permitem a entrada de imigrantes com base em uma agenda progressista, o que levaria a Europa a "perder a sua identidade". A islamofobia, já fortalecida desde 2001, ganha ainda mais força com a questão da imigração.
A ideia de Mudde, sintetizada por Oliveira, é que essas direitas se organizam a partir desses marcos, oferecendo respostas "integradas". Mudde considera essas direitas populistas (conceito com o qual Oliveira discorda), pois partem da premissa de que há um conglomerado mundial que se opõe aos interesses populares e que a extrema direita combate esse establishment e essa elite global, em nome dos interesses populares e nacionais.
Galáxia de movimentos
A terceira e "preferida" leitura de Oliveira é a do cientista político argentino Pablo Stefanoni, autor de "A rebeldia se tornou de direita?". O grande mérito de Stefanoni, para o professor, é perceber que esses grupos, por mais diversos que sejam – formando o que ele chama de uma "galáxia" de movimentos – estão unificados por uma ideia rebelde.
Embora a rebeldia seja tradicionalmente associada à esquerda, Stefanoni argumenta que a direita contemporânea também se apropriou dessa ideia. A rebeldia dessas direitas reside na contestação de um "determinado status progressista" que, em sua visão, defende pautas como gênero, sexualidade e identidades. Ao se contraporem a essas pautas e a um "determinado establishment político", esses grupos se veem como rebeldes, dentro de uma visão "contestatória da realidade".
Essa contestação abrange arranjos políticos, econômicos, sociais e até jurídicos estabelecidos nas últimas décadas. No Brasil, por exemplo, as novas direitas e extremas direitas contestam o arranjo da Nova República, vendo a Constituição de 1988 como "um arranjo muito progressista, como um arranjo de esquerda". Essa ideia é defendida por intelectuais como Olavo de Carvalho, que via a Nova República como "uma antessala do socialismo, uma antessala do comunismo", e Sérgio Avelar Coutinho, para quem a transição democrática brasileira era uma transição para o socialismo porque as esquerdas e progressistas estariam dominando.
Retórica da rebeldia
Para Oliveira, essa retórica da rebeldia de quem se insurge contra uma determinada organização se manifesta tanto no discurso quanto nos comportamentos. “O apoio à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 é um exemplo, mas também a valorização de figuras de direita que teriam coragem de falar sobre determinados assuntos", analisa.
A própria ideia de liberdade de expressão, tal como concebida por esses grupos, está inserida nessa perspectiva de rebeldia, segundo o pesquisador, incluindo o direito de "poder ofender inclusive as pessoas ter o direito a ofensa o direito ao preconceito". Oliveira ilustra essa ideia com o exemplo de uma pichação que igualava "comunismo a nazismo ao quadrado", demonstrando a forte noção de "enfrentamento em relação ao determinado arranjo político" presente entre as direitas.
É crucial entender, na análise de Oliveira, que, embora esses grupos façam apelos ao passado e queiram retomar aspectos históricos, isso não os torna meramente saudosistas. O apelo ao passado serve a uma rebeldia que "pretende destruir determinados arranjos políticos e construir novos projetos de futuro alinhados ao que eles pensam". Portanto, são também "projetadores de um determinado futuro".
Observando por essas três lentes – a "revolução cultural" de Forti, a "normalização" e resposta às crises de Mudde, e a "rebeldia" de Stefanoni –, Oliveira conclui que essas direitas são efetivamente novas. Elas se distinguem das anteriores por sua concepção política e por responderem a momentos históricos distintos, com "políticas novas".
"Políticas do tempo"
Essas direitas são contemporâneas no sentido de que constroem o que Oliveira chama de "políticas do tempo". Elas definem o que deve existir no presente e o que deve pertencer ao passado. Para esses grupos, segundo o professor, "o progressismo ideias de justiça social de igualdade são ideias que não devem pertencer mais ao presente", assim como a Nova República e a democracia.
Apesar de alguns autores, como Mudde, utilizarem o conceito de populismo, e outros questionarem o uso de "fascismo", Oliveira reitera que conceitos anteriores "não servem tanto" para explicar esses novos grupos. No entanto, ele faz um alerta fundamental: "Não chamá-los de populistas e fascistas não significa diminuir o seu risco, não significa diminuir o seu perigo em relação à nossa sociedade".
Pelo contrário, para Oliveira, aprofundar a compreensão sobre quem são e como operam essas novas direitas é, em suas palavras, "uma das ferramentas imprescindíveis para que nós consigamos combater efetivamente esses grupos". Esta é a crítica central: a inação ou a incompreensão diante dessas novas formas de organização política não reduz seu potencial destrutivo, mas exige um esforço consciente e baseado na análise para enfrentá-las.
Marcus Oliveira: A política do moderno, de Marx a Gramsci
Em razão da alteração das experiências temporais, a modernidade possibilitou novas percepções em torno da política e da história. Como afirmou o historiador alemão Reinhart Koselleck, essa nova configuração temporal é estruturada em torno da expectativa de um afastamento radical entre o passado e o futuro. Fruto da modernidade, o pensamento de Marx elege a revolução como esse corte entre passado e futuro capaz de anunciar o horizonte de uma sociedade sem classes marcada pela emancipação do homem.
Iconografia – Marx e Engels na escritura do Manifesto Comunista de 1848
Apesar de ser um autor pouco sistemático e com uma obra bastante diversa, é possível observar que a revolução e a emancipação humana aparecem como preocupações constantes ao longo do trabalho de Marx. Em seus escritos, a discussão em torno da emancipação humana aponta para a incompletude dos processos revolucionários burgueses. A revolução francesa, ao encerrar o Antigo Regime, permitiu a construção dos direitos do homem, que, limitados pelo individualismo burguês, não perseguem a emancipação humana.
Para conduzir o processo revolucionário rumo a emancipação humana, Marx busca um sujeito universal capaz de superar os limites do individualismo burguês. O proletariado, na leitura de Marx, emerge como esse sujeito universal na medida em que, submetido a uma exploração total, é também o responsável pela recuperação total da humanidade.
Por meio das ações desse sujeito universal, a concepção de política elaborada por Marx aparece vinculada à possibilidade de recuperar a humanidade perdida ao longo da história. Nesses termos, a política aparece no horizonte de expectativa marxiano como um dos caminhos para o reencontro da humanidade consigo mesma. Todavia, essa perspectiva, aliada a essa dimensão histórica universal do proletariado, termina por enfraquecer essa concepção de política.
Embora fundamental para consecução de seu projeto emancipatório, a política é limitada pela leitura em torno da estrutura de classes do capitalismo. A garantia da ordem burguesa por meio da ação violenta do Estado impossibilita, em parte dos escritos marxianos, um desfecho político para a revolução. Nessa perspectiva, o avanço do proletariado acirra os conflitos de classe e se desdobra em um conflito violento, de modo que a política se encerra em uma guerra de classes.
Como apontou Carlos Nelson Coutinho, há alguns acenos de Marx em relação a uma perspectiva democrática e reformista para a obtenção de direitos e melhorias na vida dos operários. Todavia, tal perspectiva não foi inteiramente desenvolvida e, em boa medida, aparece submetida ao horizonte revolucionário.
Na transição para o século XX, as propostas reformistas, marcadas por uma visão teleológica e mecânica do marxismo, ganham espaço no movimento operário, nos partidos socialdemocratas e na II Internacional. No contexto da Revolução Bolchevique, Lenin, mais que criticar o que considerava os desvios reformistas do marxismo, reacende o horizonte revolucionário.
Contudo, a concepção política de Lenin incorre em problemas semelhantes aos de Marx. Ao retomar a concepção do Estado como aparato responsável para garantir violentamente a ordem burguesa, o voluntarismo de Lenin aposta na revolução como tomada do Estado e utilização desse mesmo aparato violento para a realização da ditadura do proletariado e da sociedade sem classes. Nesses termos, a necessidade da violência revolucionária anunciada por Marx é radicalizada por Lenin.
Após a revolução, em razão dos dilemas enfrentados na transição para o socialismo, Lenin produz algumas alterações em sua concepção política anterior, marcando a necessidade de um trabalho político no interior da ordem burguesa e também de uma crítica ao radicalismo esquerdista. Nessas reflexões, também não inteiramente desenvolvidas em virtude da sua morte, a possibilidade reformista aparece, ainda que subordinada a revolução.
No interior da tradição marxista, ao desenvolver leituras radicalmente inovadoras acerca da história e da política, Gramsci será capaz de solucionar essas tensões presentes em Marx e Lenin. Partindo do diagnóstico histórico de uma transformação morfológica no contexto histórico-político europeu, Gramsci afirma o cancelamento das revoluções. Esse cancelamento ocorre porque, na modernidade europeia, o fortalecimento da sociedade civil desloca a centralidade do poder estatal.
Canceladas as expectativas revolucionárias de assalto frontal ao poder do Estado, Gramsci busca a teoria da hegemonia como forma de compreensão e ação política na modernidade ocidental. Para tornar-se hegemônico qualquer grupo social precisa trabalhar politicamente para a construção de um consenso na sociedade civil, antes mesmo de alcançar o aparato estatal. Na leitura gramsciana, desenvolvida ao longo dos Cadernos do Cárcere, a construção dessa hegemonia ocorre a partir das disputas políticas entre os diversos grupos sociais. Realizar a hegemonia e exercer o poder na sociedade, mais que um exercício de força, implica uma ação política virtuosa no sentido atribuído por Maquiavel.
Com a elaboração da teoria da hegemonia, Gramsci resolve, concomitantemente, as tensões entre reforma e revolução presentes em Marx e Lenin, propondo uma concepção de política para além da revolução e da violência. Nesse sentido, a expectativa basilar do marxismo acerca da necessidade de emancipação humana é mantida em Gramsci. Todavia, liberada de um horizonte revolucionário, a realização dessa expectativa ocorre por meio da disputa política da hegemonia, dentro de uma moldura democrática. Para Gramsci, diferentemente de Marx e Lenin, é possível produzir grandes transformações históricas, mesmo que em durações mais ou menos longas, a partir de uma política democrática. Portanto, em razão dessa concepção forte de política, as contribuições de Gramsci para a contemporaneidade ultrapassam aquelas oferecidas por Marx e Lenin e permitem a formulação de projetos políticos para a contemporaneidade.
Fonte:
Blog Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/a-politica-do-moderno-de-marx-a-gramsci/
Marcus Oliveira: 1964, ainda precisamos falar disso
Em 1985, o General João Baptista Figueiredo, último dos ditadores brasileiros, recusou-se a passar a faixa presidencial para José Sarney, preferindo sair às escondidas, pelos fundos do Palácio do Planalto. Essa cena é sintomática e marca os dilemas enfrentados no processo de transição para a democracia. Embora a promulgação da Constituição de 1988 tenha sido um avanço imprescindível para a construção de um ordenamento político democrático, o autoritarismo civil e militar permaneceu nos subterrâneos da Nova República. Nos momentos de crise, impulsionados entre tantos outros fatores pelo fracasso do projeto petista, as sombras do autoritarismo adquiriram novas dimensões a partir do momento em que Jair Bolsonaro ascendeu ao poder. Em sua nostalgia da Ditadura Civil-Militar, Bolsonaro revela, além de uma postura antidemocrática, o desejo de rompimento com a estrutura jurídica e política da Nova República. Diante desse passado mal elaborado que persiste, ainda é preciso acionar o combate pela história, memória e democracia.
O Golpe Civil-Militar de março de 1964, além de instaurar um regime ditatorial que duraria mais de duas décadas, interrompeu a experiência democrática em curso no Brasil desde 1946. Apesar das várias crises e de inúmeras tentativas de golpe, a ordem republicana surgida após a queda do Estado Novo estimulou a democratização da sociedade e o protagonismo da sociedade civil. No início dos anos 1960, essa cultura política democrática, fundamental para a manutenção dessa República, foi incapaz de fazer frente ao golpismo de parte das elites e dos militares.
O projeto dos militares, a despeito de suas diferenças internas, ambicionava uma modernização pelo alto, capaz de desmobilizar e controlar os impulsos políticos oriundos da sociedade civil. Nesse sentido, a ordem política e jurídica instaurada a partir dos Atos Institucionais e da Constituição de 1967, apontava precisamente para a construção de um Estado de Exceção marcado pela constante violação das liberdades individuais e dos direitos humanos. No preâmbulo do AI-1, editado em abril de 1964, apesar da manutenção da Constituição de 1946, os militares signatários se arrogam o Poder Constituinte e afirmam sua identidade com a nação brasileira. Nesses termos, a edição do AI-5, em dezembro de 1968, não configurou um golpe dentro do golpe, mas o aprofundamento, pela linha-dura, da excepcionalidade anunciada nos primeiros tempos do regime.
Todavia, o regime procurou mascarar sua própria excepcionalidade por meio da manutenção de determinados aspectos da institucionalidade democrática. Em meio aos mandatos cassados e eleições indiretas para os cargos do Executivo, houve a criação de um sistema bipartidário dividido entre a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), representante das forças institucionais do regime, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), oposição que buscava se organizar politicamente dentro das instâncias institucionais possíveis.
Por outro lado, há uma fragmentação no campo das esquerdas. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), um dos atores políticos mais importantes do período, sofre inúmeras cisões internas motivadas por militantes que, inspirados pelos modelos revolucionários cubano e chinês, ingressaram na luta armada. Para os que aderiram às ilusões armadas, a derrubada do regime por meio da via insurrecional não significava a conquista da democracia, mas a possibilidade revolucionária de implementação da ditadura do proletariado. Os pecebistas jamais apoiaram a luta armada, permanecendo na defesa de uma estratégia que visava derrotar politicamente o regime, aprofundando as orientações democráticas que conduziam as ações do partido desde o final dos anos 1950. Em virtude disso, em função da ilegalidade, os comunistas se somaram à luta política do MDB e cumpriram papel significativo na luta pela recuperação da democracia.

A derrota da ditadura militar brasileira começa a ocorrer precisamente nas margens dessa institucionalidade política remanescente. Nos anos 1970, após o extermínio de grande parte dos grupos armados e dos primeiros sinais de crise do “milagre econômico”, a oposição emedebista se fortalece em torno da (anti)candidatura – simbolicamente desafiadora – de Ulysses Guimarães para a presidência da República. Nesse contexto, o MDB conquista importantes avanços no Legislativo e os militares anunciam seu projeto de abertura política.
Com Ernesto Geisel na presidência, a linha-dura representada por Costa e Silva e Médici perdem relevância diante da proposta de uma abertura lenta, gradual e segura. Contudo, isso não implicou o desaparecimento da linha-dura, tampouco a eliminação das arbitrariedades do regime. Concomitantemente a abertura, Vladmir Herzog e dirigentes do Comitê Central do PCB foi assassinada ou teve que ir para o exterior. Nesses termos, a proposta de abertura pensada no governo Geisel marcava a persistência da excepcionalidade do regime e o desejo de controlar o processo de abertura e transição. Para os militares, a desconstrução do aparato autoritário criado ao longo da ditadura deveria obedecer ao ritmo de uma transição delimitada e controlada pelos próprios militares, no qual a oposição deveria cumprir papel secundário. Na transição para os anos 1980, a Lei de Anistia, embora absolva os condenados e processados, pretendeu relegar os crimes e as arbitrariedades ao esquecimento. Por outro lado, o retorno do pluripartidarismo almejava o enfraquecimento do MDB por meio da divisão política dos setores oposicionistas.
Contudo, como atesta Luiz Werneck Vianna, é preciso distinguir projetos políticos e processos históricos. Reforçar essa distinção implica perceber que, apesar do caráter pactuado da transição, o projeto encabeçado pelos militares não foi integralmente vitorioso. As forças oposicionistas, mesmo divididas entre projetos de democracia política e social, foram capazes de disputar politicamente a transição. Em virtude disso, movimentos significativos como as “Diretas Já!” adquirem significados para além dos fracassos e derrotas políticas.

Portanto, o processo histórico de abertura e transição foi resultado dessa complexa trama política na qual diversos projetos se encontravam em disputa. Aqueles que defenderam a política e a democracia ao longo da ditadura militar foram os responsáveis pela elaboração dos caminhos políticos que permitiram a redemocratização do Brasil nos anos 1980. Todavia, a divisão dos atores políticos e a disputa dentro da própria institucionalidade do regime contribuíram para os dilemas vivenciados durante a transição e na Nova República.
Com Bolsonaro, tais dilemas se tornaram mais evidentes e se intensificaram. Vivemos dias atormentados nos quais alguns pensam no rompimento com o ordenamento republicano estabelecido pela Constituição de 1988 enquanto outros reencenam o passado de modo farsesco. Trata-se, ao contrário, de remover os obstáculos ao aprofundamento da democracia de 1988. Para isso, é preciso reconhecer a trajetória histórica que nos fez chegar até aqui, em toda sua complexidade, contradições e limites. É preciso demarcar uma leitura histórica que não oculte o quão trágico foi para a sociedade a ditadura civil-militar e, ao mesmo tempo, valorizar a estratégia política que a conduziu, com êxito, apesar dos percalços, para a democracia da Constituição de 1988.
Marcus Oliveira: As redes e a relativização do terror stalinista
As redes ampliaram decisivamente as dimensões da esfera pública. Com a individualização do acesso a distintas formas de publicação virtual, determinadas ideias, que contavam com pouca penetração nas mídias tradicionais, foram amplificadas pelo poder das redes. Nesse sentido, ainda que considerando as limitações dos algoritmos e a formação das bolhas virtuais, é possível afirmar um caráter democratizador das redes sociais. Todavia, esse processo de democratização é acompanhado pela emergência de discursos autoritários, relativismos e negacionismos de diversos matizes.

Conforme demonstrou o jornalista italiano Giuliano da Empoli, a engenharia do caos das redes sociais estimula a difusão desses discursos. Na medida em que as publicações adquirem relevância em virtude das reações do público, sejam elas de apoio ou rechaço, conteúdos radicais, tanto à esquerda quanto à direita, tendem a ocupar mais espaço dado ao amplo engajamento que recebem. Contraditoriamente, como nos demais processos de democratização, essa ampliação da esfera pública convive com vários espectros do autoritarismo.
Nesse cenário, a discussão em torno do stalinismo adquiriu certa relevância em virtude das publicações do historiador e comunicador Jones Manoel. Militante do PCB, Manoel, em entrevista concedida em setembro de 2020 à Folha de São Paulo, marca o anacronismo de uma parcela da esquerda que, incapaz de elaborar uma crítica consistente do passado, precisa tergiversar quanto as suas próprias tragédias. Embora não se assuma como stalinista, e até mesmo reconheça a existência do terror e dos gulags, Manoel opera uma defesa de Stalin que se desenvolve a partir de uma tentativa de separação ou compensação entre a violência e o que, em seus termos, seriam elementos emancipatórios contidos no regime.
Além de se desdobrar na relativização do terror stalinista, esse argumento compensatório ignora que não há regimes capazes se manterem exclusivamente por meio da força e que a constituição desses elementos emancipatórios são indissociáveis na produção dessa ordem política violenta e arbitrária. Na entrevista, ao ser indagado se os aspectos emancipatórios se sobrepunham ao terror, Manoel afirma que a análise histórica não deve estabelecer balanços entre pontos positivos e negativos, mas compreender a totalidade do fenômeno. Ao contrário disso, sua relativização do stalinismo parte precisamente da fragmentação do fenômeno, em uma tentativa de isolar seus termos como em uma equação matemática.

Embora pareça se desdobrar em uma crítica da violência política, essa argumentação termina por, contraditoriamente, reafirmar a necessidade da violência revolucionária. Ao se deparar com essa violência, Manoel tangencia novamente, afirmando a existência da violência burguesa, exercida sobretudo pelo imperialismo americano. Nessa comparação, torna-se evidente a legitimação que faz da violência revolucionária como contraponto necessário da violência capitalista.
Portanto, em última análise, a discussão não ocorre em torno da política, mas das possibilidades revolucionárias. Filiado ao PCB, que regularmente disputa as eleições com candidatos próprios ou por meio de alianças, Manoel invalida a democracia. Instrumento burguês por excelência, a democracia não poderia permitir a articulação dos interesses dos trabalhadores rumo ao socialismo. Nada além de ilusória, a democracia mascara a violência e a arbitrariedade do capitalismo. Nesse cenário, no qual a violência é inevitável, o terror stalinista, assim como as demais experiências autoritárias de esquerdas, se encontram justificados e legitimados de antemão.
Evidentemente, não se trata de defender a censura ou a retirada desses conteúdos das redes, mas de perceber como, por meio dessa ampliação da esfera pública impulsionada por essas mídias, posicionamentos autoritários e anacrônicos irrompem dos subterrâneos para, utilizando-se dos termos de Marx, disputar a política a partir daquilo que foi primeiro tragédia e agora é farsa.
É preciso, diante disso, cada vez mais ocupar as redes, difundindo os horizontes possíveis de uma outra esquerda que soube enfrentar seu passado e, por isso, busca encontrar seus caminhos em meio às desafiadoras e por vezes enigmáticas transformações que atravessamos mundialmente. Respirando ainda um ar rarefeito, falta fôlego para encarar esse percurso. Recuperá-lo, nessa perspectiva, significa abandonar o assalto aos céus e descer ao nível do mar, onde, no presente, é preciso criar os novos itinerários para essa modernidade.
Alberto Aggio e Marcus Oliveira: Política e utopia na América Latina
O filosofo italiano Remo Bodei (1938-2019) lembrava que, dentre os primeiros utopistas, como Tomás Morus ou Tommaso Campanella, a utopia era mobilizada como pedra de toque para julgar o presente, com a ressalva de que era algo inatingível. No final do século XVIII, ainda segundo Bodei, mais precisamente em 1770, Louis-Sébastien Mercier escreveu um romance intitulado “L’anno 2440”, no qual desloca o tema da perfeição para o futuro, imaginando que partindo de um presente imperfeito os homens poderiam chegar a um futuro perfeito.
Esse pensamento utopístico invadiu o discurso de todas as revoluções depois da Revolução Francesa de 1789. A ele se incorporaria a epopeia judaica na construção da utopia secular presente nos discursos dos revolucionários dos séculos XIX e XX: assim como Moisés vê a terra prometida de longe e morre antes de chegar ao deserto, os revolucionários sabiam que sua terra prometida dizia respeito às gerações futuras. Em suma, segundo Bodei, a utopia não é outra coisa senão uma aproximação progressiva a uma ideia de perfeição que pode nunca ser alcançada, mas que, de toda forma, deve continuar a ser perseguida quase como um “dever moral”.
Já o historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-2006), buscou a experiência temporal característica da modernidade para construir a sua visão sobre a utopia. Para Koselleck, a modernidade é experimentada a partir de uma separação entre a experiência e a expectativa. Essa separação implica numa fratura entre o passado, considerado como elemento a ser superado, e o futuro, aquilo que se busca atingir como culminância do progresso ou da racionalidade. A revolução, nesses termos, figura como o momento ruptural responsável por produzir essa superação radical do passado, anunciando a construção do futuro imaginado e desejado.
Desde a conquista e a colonização, as ideias utópicas se entranharam na autoconsciência da América, particularmente na América Latina. A invenção da América, como demonstrou Edmundo O’Gorman (1905-1996), é acompanhada de uma libertação dos potenciais imaginativos europeus. Impulsionadas pela certeza da novidade inesperada, as nações europeias se lançaram ao Novo Mundo munidas de um imaginário fecundado pelas possibilidades do maravilhoso.
Todavia, essa dimensão imaginativa convive com os aspectos trágicos da história do Novo Mundo. Além dos inúmeros genocídios, a construção dos Estados latino-americanos carregou consigo, três séculos depois, as terríveis heranças coloniais. Nesse sentido, a criação da modernidade na América Latina apresenta feições diversas dos modelos clássicos europeus. As grandes transformações históricas ocorreram, em geral, em hipoteca com o passado.
Essa configuração moderna implica experiências temporais diversas. O presente, ao carregar os fardos do passado é, concomitantemente, a desilusão melancólica daquilo que poderia ter sido e a esperança que orienta a construção daquilo que deveria ser. Portanto, essa complexa trama de temporalidades, ao contrário de cancelar, impulsionou o desenvolvimento das utopias na América Latina. Compreendida como o espaço por excelência do vir a ser, buscou-se, por diversos caminhos, a construção do maravilhoso.
Durante o século XX, a Revolução Cubana de 1959 configurou-se no momento mais expressivo e simbólico desse pensamento utópico. Embrenhados nas matas da Sierra Maestra, os guerrilheiros cubanos acentuaram a persecução do caminho utópico da Nossa América, conferindo tons revolucionários ao pensamento de José Martí. Em seguida, disputando a orientação das esquerdas latino-americanas com a URSS, o modelo cubano produziu inúmeras cisões e estimulou o surgimento de grupos guerrilheiros pelo continente. Com isso, a gesta revolucionária cubana fincou raízes no pensamento e na historiografia do continente.
HAVANA, 1959
Ao se reforçar a utopia da revolução, os obstáculos para a elaboração de um reformismo democrático por parte das esquerdas se intensificaram. No Chile de Allende (1970-1973), o anúncio da possibilidade de construção do socialismo por uma via pacífica, democrática e institucional, conviveu com ambiguidades revolucionárias que contribuíram para minar as bases de legitimidade política de Allende. Evidentemente, não se trata de imputar culpa à Unidade Popular pelo autoritarismo de Pinochet, mas de marcar a incapacidade de constituição de uma determinada hegemonia no Chile.
Em virtude dos traumas e exílios gerados pelos autoritarismos, a democracia passou a assumir a centralidade da reflexão política sobre o continente, em detrimento da revolução. Contudo, essa aproximação em relação à democracia não cancelou os horizontes utópicos para a América Latina, de modo que as derrotas e os pesos do passado continuam impulsionando imagens utópicas presentes, por exemplo, no bolivarianismo de Hugo Cháves e Nicolás Maduro, bem como em inúmeras correntes político-ideológicas da esquerda latino-americana.
Num cenário mundial no qual se superou, de há muito, a lógica política dos “assaltantes do céu” e, objetivamente, a revolução deixou de ser o fiat do desenvolvimento histórico, como afirmou Luiz Werneck Vianna no já longínquo ano de 1996, como ainda colocar a utopia como referência maior do pensamento crítico latino-americano? Como pensar o futuro na América Latina para além das utopias? Em seus desdobramentos, essas expectativas utópicas, ao invés de auxiliar, criam obstáculos para a vivencia ativa e produtiva do tempo da política e da democracia. O desejo revolucionário de um futuro redentor, paradoxalmente, comprime ou mesmo oprime a própria modernidade que lhe deu ensejo. Em razão disso, o regime político característico da modernidade, fundado na indeterminação dos espaços de poder, estaria de antemão preenchido, impedindo a expressão democrática dos sujeitos em busca de necessários consensos progressivos. Na América Latina, de forma geral, utopia e revolução foram acionados comumente como antagônicos à modernidade e à democracia.
O questionamento às utopias não significa adesão ao presentismo ou mesmo a uma determinada visão liberal que advoga o fim da história. Ao contrário, trata-se de pensar o futuro a partir da chave no qual a política democrática seja o caminho para a definição daquilo que se quer transformar ou conservar na sociedade.
*Publicado em parceria com o Estado da Arte: https://estadodaarte.estadao.com.br/utopias-al-horizontes-eda/