Luciano Huck

O Estado de S. Paulo: Huck fala em desejo de ‘liderar uma geração’ na política; ‘Estou aqui’, diz sobre 2022

Apresentador foi questionado se ‘tem coragem’ de ser candidato a presidente durante reunião em São Paulo

Matheus Lara | O Estado de S.Paulo

O apresentador de TV Luciano Huck (sem partido), cotado para disputar a Presidência em 2022, chamou para si nesta segunda-feira, 21, o protagonismo em debater e propor medidas para transformações sociais, econômicas e ambientais no País. Em reunião do Conselho Político e Social (Cops) da Associação Comercial de São Paulo da qual o Estadão participou, ele disse querer “mobilizar, liderar e fomentar uma geração”.

Huck foi questionado por um integrante do Cops se “tem coragem” de ser candidato a presidente. “Estou aqui”, respondeu, antes de ponderar que, por enquanto, se vê como “cidadão ativo” e dizer que atua sem intenções de poder.

“Eu quero mobilizar, liderar, fomentar uma geração para que a gente participe ativamente das transformações que o Brasil precisa. Ninguém vai entregar isso de graça para a gente”, disse Huck em relação a desigualdades sociais no País. “Sobre a questão da coragem (de se candidatar a presidente), estou aqui, não é? Estou aqui conversando sobre temas que não são óbvios para mim, como energia, reformas. Tenho estômago para ouvir opiniões diversas, para estar em cena num momento tão delicado do País. Neste momento, estou sentado aqui como cidadão ativo, que está no debate público.”

O apresentador evitou falar diretamente da próxima eleição presidencial e pediu foco aos temas das cidades em função do pleito deste ano. “(Não quero) personificar ou ‘fulanizar’, em mim ou outra pessoa, um debate eleitoral majoritário que não está em voga neste momento. Isso mais atrapalha que ajuda, e Brasil afora tem gente mais preocupado com a eleição (de 2022) do que em atender as necessidades das pessoas. Temos neste ano um ciclo eleitoral nas cidades e a política começa nas cidades.”

Entusiasta de movimentos de renovação e formação política como o RenovaBR e o Agora!, Huck disse que o caminho para melhorar a situação do País está na política. “Só o Estado, que é gerido pela política, tem o poder exponencial de transformação. E a política é gerida pelos políticos. Acho importante esta convocação geracional, atrair o que tem de melhor na sociedade civil para chegar perto da política.”

Huck afirmou que vê o Brasil sem lideranças que promovam o debate. “A demonização da política e a não harmonia entre Poderes estão ligadas à questão da liderança. (É preciso) uma liderança que concilie e dialogue, e não que assopre brasa com discursos sectários. Precisamos retomar o diálogo.”

A participação de Huck na reunião do Cops estava marcada para acontecer em março deste ano, mas foi adiada por causa da pandemia de coronavírus e por isso aconteceu nesta segunda.

‘O lugar do Brasil é como a maior potência verde do planeta’

Huck também falou sobre sustentabilidade e defendeu que o Brasil se torne uma nação agroindustrial sustentável, aliando o potencial da agronegócio à preservação ambiental. Para ele, esta é uma forma de atrair investimentos e transformar o País em uma “potência verde”.

“O mundo quer investir em economias limpas”, disse. “É uma oportunidade de ouro com o nosso potencial. Precisamos de lideranças que enxerguem com clareza essa oportunidade. O que tem prevalecido nos últimos anos é a visão que endossa o extrativismo predador. A aceleração do desmatamento, a não importância (dada) às queimadas como não as estivéssemos vendo. Essa é a década da bioeconomia, com floresta em pé.”

Huck diz ver convergências entre bandeiras do agronegócio e do ativismo ambiental. “Converso com os dois lados e encontro pontos em comum”, afirmou, sem dar exemplos. “Dá para romper com o litígio. Precisamos romper radicalmente com o debate raso, o litígio entre agricultura e meio ambiente, produção e sustentabilidade.”


Luciano Huck & Thomas Piketty: Estado precisa resolver "opacidades"para rastrear e reduzir desiguldades

Economista francês defende choque de transparência para diminuir “distância entre pessoas e governos” e também impostos sobre fortunas e heranças no pós-pandemia

Texto: Luciano Huck, especial para o Estado / Fotos: Rafael Haddad

Conversa virtual de Luciano Huck com o economista Thomas Piketty. RAFAEL HADDAD

Andrade tem 33 anos e é filho de Dona Marina e Seu Antonio. Ela sempre cuidou da casa e dos 7 filhos; ele trazia do mar o sustento da família. A vila de pescadores no litoral do Ceará foi batizada como Preá. Por lá as crianças sempre correram soltas pelas ruas de areia, nas idas e vindas entre a única escola pública, a casa simples e a praia.

Aos 18 anos, Andrade enxergava a pesca como única opção de futuro, nada além disso. Decidiu tentar a sorte na cidade grande. Partiu para São Paulo e lá ficou por quase 10 anos. Começou como cumim em um restaurante chique até se tornar sommelier.

Mas os vinhos e a boa mesa ficaram no passado. Ele resolveu voltar para o Ceará, assim como uma centena de jovens locais, que, como Andrade, no passado haviam sido confrontados com o dilema “pescar ou migrar” e tinham optado pela segunda opção.

O bom filho à casa retorna virou uma realidade no Preá por um simples motivo: oportunidades. Conhecida pelas fortes correntes de vento em boa parte do ano, a região se transformou na última década em meca mundial para a prática do kitesurf - esporte aquático em que uma prancha se desloca ao sabor dos ventos puxada por uma pipa gigante, que atrai cada vez mais adeptos.

Hoje, 80% da economia da região gira em função do kitesurf. E o desenvolvimento do turismo local tem sido robusto e sustentável, uma boa referência para o Brasil.

Na infância, Andrade (1.º à esq.) com os pais e irmãos. ACERVO DE FAMÍLIA

Compartilho esta história porque ela se conecta à nossa conversa desta edição. Andrade nasceu em uma das regiões mais pobres e desiguais do País: o nordeste brasileiro. Ao mesmo tempo, uma das regiões com o maior potencial de desenvolvimento do planeta: sim, o nordeste brasileiro. O Preá e a vida deste jovem de 33 anos são a materialização do que pode e deve ser o nosso futuro: uma nação que gera oportunidades e direito de escolha aos seus cidadãos, independentemente do CEP de nascimento.

Para conversar sobre desigualdades e geração de oportunidades, convidei para dialogar um dos mais respeitados pensadores e autores da atualidade. Seu livro O Capital no Século XXI vendeu no mês de lançamento, em 2013, mais do que qualquer outro livro da Harvard University Press em 101 anos. Nenhuma obra de economia teve impacto tão explosivo. Foi seguramente o livro de economia mais debatido dos últimos anos.

A revista The Economist declarou que a obra poderia “revolucionar o modo como as pessoas enxergam a história econômica dos últimos dois séculos”. A também britânica Prospect acrescentou o autor à sua lista de pensadores mais influentes do mundo ocidental.

Economista francês, ele é reconhecido mundialmente pelas pesquisas sobre desigualdade e redistribuição da renda. Partindo de uma fórmula simples, constatou que, sem mudanças políticas, não há nem haverá como escapar do aumento da desigualdade, visto que a renda sobre o capital avança em ritmo mais acelerado do que o crescimento econômico.

Thomas Piketty se junta hoje à galeria de notáveis que se dispuseram a compartilhar, aqui no Estadão, suas visões de vanguarda sobre o mundo contemporâneo e sobre o pós-pandemia. As ideias e teses do francês não são uma unanimidade. Mas, sem dúvida, são provocativas. Bem embasadas, servem de combustível para necessárias reflexões.


VEJA A SÉRIE COMPLETA 'UMA CONVERSA COM LUCIANO HUCK' :


Luciano Huck: O que me traz a você é minha curiosidade. Tenho buscado aprender e discutir como fazer um Brasil menos desigual, gerador de oportunidades para todos. A enorme maioria da população brasileira vive uma perversa pobreza hereditária, sem mobilidade social. Na sua opinião, o que fez do Brasil um dos países mais desiguais do planeta?

Thomas Piketty: Uma das conclusões-chave que trago no livro Capital e Ideologia é que, no longo prazo, o que traz prosperidade a um país é a diminuição da desigualdade, um sistema educacional mais inclusivo e uma redução da concentração de renda. O Brasil não passou pelas grandes transformações no século 20 que em alguns lugares diminuíram a desigualdade e, com isso, aumentaram a prosperidade da economia. O Brasil não sofreu tanto com os horrores das duas Guerras Mundiais, que, nos EUA e no Leste Europeu, por exemplo, contribuíram bastante para a alteração do cenário político, para a competição pelo poder entre grupos sociais. A depressão econômica antes e depois das Guerras ajudou a desacreditar a antiga elite e a reduzir a legitimidade do sistema de mercado, desse sistema capitalista do laissez-faire, o que forçou um rebalanceamento das forças. No Brasil, isso não aconteceu. O legado da escravidão, esse legado específico da origem do Brasil, não permitiu o desenvolvimento de novas forças. A história dos partidos políticos do País, a importância dos militares, é uma situação inicial de muitas desigualdades.

Está completamente errada, porém, a visão de que uma cultura de igualdade ou de desigualdade é uma característica permanente de um país. Observando diferentes casos, você vê que países que hoje parecem muito igualitários, como a Suécia, e países ainda mais desiguais do que o Brasil se transformaram completamente depois de determinadas mudanças políticas, mudanças até mesmo pacíficas. Na história política do Brasil, você sabe melhor do que eu, o voto universal é relativamente recente. Só começou realmente no final dos anos 1980. Todas as Constituições antes disso excluíam parcelas da população.

Luciano Huck: Faço televisão há mais de 20 anos. Falo com 30 milhões de brasileiros toda semana. Sou um bom ouvinte e gosto de contar histórias. A desigualdade brasileira ninguém me relatou: Eu vi. E esse desconforto me fez sair da zona de conforto e começar a procurar soluções para nossos problemas. Como você explicaria para uma pessoa comum, alguém do povo, que a vida dos filhos dela e dos netos dela pode melhorar?

O que eu quero dizer para os brasileiros é que, pelas evidências internacionais e históricas, o Brasil é hoje desigual demais para conseguir se desenvolver”Thomas Piketty

Thomas Piketty: É difícil estimar prazos e expectativas consistentes quanto ao que pode ser realizado em 5 ou 10 anos. Há um discurso conservador, especialmente no Brasil, em que as elites dizem que a redistribuição de renda só poderá ser feita no futuro, quando o País for mais rico, e que, se feita agora, será um desastre até mesmo para os pobres. O que eu quero dizer para os brasileiros é que, pelas evidências internacionais e pelas evidências históricas, o Brasil é hoje desigual demais para conseguir se desenvolver. Não estou sugerindo zerar a desigualdade e taxar as pessoas ricas em 100%. Mas, no Brasil, hoje você paga altos impostos indiretos — de 20%, 30%, na sua conta de eletricidade, por exemplo. E, se você herda uma herança imensa, você paga somente 1% ou 2% de impostos. Em muitos países, inclusive alguns dos mais ricos do mundo, as pessoas pagam menos impostos na conta de eletricidade e mais impostos sobre altas quantias de dinheiro.

Luciano Huck: Sempre que discutimos políticas de proteção social, de diminuição das desigualdades e geração de oportunidades, temos que ficar atentos para que não se torne uma equação de soma zero. Qual o melhor caminho para o Brasil considerando a estrutura do Estado brasileiro: cara, pesada, ineficiente, corrupta e com pouquíssima capacidade de investimento?

Thomas Piketty: Vocês precisam de mais transparência sobre quem está pagando o que e sobre quem está recebendo o quê. No Brasil, é muito difícil de saber, em nível de bens econômicos, quem está pagando tais e tais impostos e quem está acessando tais e tais serviços. Para gerar confiança no Estado brasileiro e para aumentar a capacidade do governo de investir, essa transparência é fundamental. Supostamente, nós vivemos a era da bigdata, mas, na prática, a nossa bigdata é falsa, não passa de um grande monopólio privado das grandes empresas de tecnologia. Estamos, na verdade, na era da grande opacidade no que se refere à administração pública. Da capacidade do governo de rastrear a desigualdade, de rastrear dados de saúde pública, etc., tudo é muito mais restrito do que deveria ser. Acho importante municiar as pessoas, dar as informações, dar a possibilidade de as pessoas acompanharem e avaliarem o que o governo está fazendo, acompanhando os progressos e fracassos. Se você tem uma certa distribuição da carga tributária no Brasil em 2020 e 2021, é importante fixar uma meta para 2022, 2023, 2024, 2025, e divulgar isso publicamente para mostrar o que foi feito e o que não foi. Por enquanto, existe um grande discurso sobre justiça social, mas não os meios para rastrear e monitorar se estão realmente indo nessa direção.

Luciano Huck: Tem uma frase que você repete com frequência: “Vamos aos fatos”. E isso me conecta a você. Mas os seus fatos vêm dos dados e análises históricas. Já os meus fatos vêm da rua. Entre tantas deficiências e ineficiências que a pandemia veio iluminar no Brasil, chama a atenção a maneira como lidamos mal com dados e tecnologia no governo. Temos uma população conectada, com mais de 200 milhões de chips de celular ativos, mas um governo ainda muito distante do que poderia ser um governo digital. Como você avalia a ideia de transformar os governos em plataformas digitais e como isso poderia impactar na redução de desigualdades?

Thomas Piketty: É muito importante disponibilizar informações aos cidadãos. Isso é relativamente fácil agora, ou pelo menos deveria ser relativamente fácil, considerando as novas tecnologias disponíveis. Mas ainda há uma grande distância entre as pessoas e os governos. Acho que temos que criar uma linguagem que traduza princípios e aspirações gerais em ações concretas e notáveis. Quando você diz “nós vamos trazer 90% das crianças para o ensino fundamental e ter um professor para cada 25 ou 30 alunos”, você divulga um objetivo simples, quantitativo, que pode ser monitorado, que pode ser acessado. As grandes transformações históricas precisam conseguir se expressar em termos quantitativos.

O nosso sistema capitalista atual está danificando o planeta, criando muita desigualdade”Thomas Piketty

Luciano Huck: No livro, você mostra como a França diminuiu desigualdades muito mais depois da guerra do que depois da Revolução Francesa. O Brasil também nunca reduziu tanto sua desigualdade como nesta pandemia, com o necessário auxílio emergencial. Mas é um voo de galinha, porque não está ancorado em nenhum planejamento e porque falta excelência de execução. Muito se tem discutido sobre a origem de recursos para programas de proteção social e investimentos de infraestrutura. Qual sua opinião sobre a necessidade de rigor fiscal e sobre a emissão de dívidas de curto prazo e moeda por países como o Brasil?

Thomas Piketty: Numa crise como esta, é muito tentador dizer “ok, nós vamos fazer o Estado bancar tudo, aumentar a dívida pública, etc.”. Vejo, na Europa e nos EUA, pessoas de lados diferentes do espectro político defendendo que o governo se endivide e pague tudo, que os bancos centrais são fortes e que não é preciso se preocupar com os impostos neste momento. Eu entendo essa lógica, mas ela é perigosa. Não é algo que você pode fazer em qualquer lugar do mundo. Os mercados financeiros mundiais podem perseguir e machucar mais intensamente os países que não operam em dólar ou em euro. Mas, mesmo na zona do dólar ou do euro, em algum momento você terá que quitar as dívidas, pagar pelos gastos públicos. É necessário indicar agora em qual direção nós iremos.

Precisamos de um sistema tributário mais igualitário, com mais justiça fiscal, aumentando os impostos dos bilionários, dos milionários. O imposto de renda é importante, mas os impostos sobre as fortunas são mais importantes ainda. Porque o que acontece no topo da pirâmide social é que algumas pessoas concentram sua riqueza em empresas, sem caracterizá-la como renda — e sem serem devidamente taxadas, portanto. Nós vivemos numa época em que, em qualquer país, os bilionários aumentaram as suas fortunas, os seus lucros e os seus bens muito mais rapidamente do que a média das pessoas. Então é natural que em algum momento você peça mais a essas pessoas que cresceram mais o seu patrimônio. Tudo bem existirem pessoas ricas e pessoas pobres, contanto que a diferença não seja muito grande e que todos consigam crescer na mesma velocidade. Se você olha para dez anos atrás, as maiores fortunas eram de 30, 40 bilhões de dólares; hoje, elas são de 100, 150 ou quase 200 bilhões de dólares, como é o caso do Jeff Bezos (Amazon). E a economia norte-americana não cresceu nessa mesma velocidade. É importante deixar claro desde já que uma fatia maior vai ser cobrada desses grupos — em parte, para pagar pela nova infraestrutura e pelos novos investimentos e, em parte, para pagar as dívidas que aumentaram agora por causa da pandemia.

Luciano Huck: Estes 1% mais ricos sempre foram acusados de passividade em relação às questões da desigualdade. E neste momento da história ou nos comprometemos de fato em sermos parte da solução ou vamos colapsar. Como você entende que deveria ser esse comprometimento? Qual o papel do Estado nessa relação?

A enorme maioria da população brasileira vive uma perversa pobreza hereditária, sem mobilidade social”Luciano Huck

Thomas Piketty: O que você vê na história é que isso não acontece voluntariamente. Você precisa da força do Estado. Eu acho a filantropia ótima. Mas ela deve ser algo além dos impostos, e não substituí-los. No final das contas, eu defendo que haja um imposto compulsório sobre as fortunas. Foi interessante observar as discussões que aconteceram durante as primárias do Partido Democrático dos EUA. Tanto a Elizabeth Warren quanto o Bernie Sanders, que não venceram as primárias, conseguiram um apoio imenso dos eleitores com menos de 50 anos ao fazer duas propostas: um imposto anual sobre o patrimônio total dos bilionários e uma taxa de saída para aqueles que quiserem mudar de cidadania para fugir da tributação. Se você quiser ficar nos EUA, você vai continuar pagando os impostos de lá, mas, se você quiser sair dos EUA, desistir da nacionalidade norte-americana para conseguir outra, uma nacionalidade suíça, por exemplo, você tem antes que deixar de 40% a 60% da sua fortuna nos EUA. Acho que necessitamos de algo assim. Nossa ideia de fluxo de capital livre precisa mudar. Nós praticamente sacralizamos os direitos de alguém construir fortunas e poder apertar um botão e tirar seus bens do país. Isso não é sustentável, porque, no final, vai ser a classe média, a classe média-baixa que vai pagar todos os impostos do país. E isso, em algum momento, vai fragilizar o nosso contrato social.

Luciano Huck: Nessas conversas em que tento iluminar o debate pós-pandemia, eu ouvi do geneticista Peter Diamandis a seguinte frase: “Se você quer ser um bilionário, cause um impacto positivo na vida de um bilhão de pessoas”. O que você acha dela?

Thomas Piketty: Bom, há muitos bilionários e oligarcas no mundo que eu não vejo fazendo nada. É importante observar que todos os bens, todas as coisas boas que acontecem no mundo são naturalmente coletivas. O Bill Gates não inventou o computador sozinho — existem milhares, milhões de engenheiros, de cientistas da computação, de técnicos, de pesquisadores, e nós não colocamos o valor deles no final de cada produto. Sem esse estoque de conhecimento comum, que foi acumulado pela humanidade por centenas de anos, nada seria possível. Então nós temos que ser mais conscientes de que a riqueza não é um passe de mágica de um único indivíduo. As coisas não funcionam assim. Nos EUA, houve uma grande mudança nos anos 1980. O governo decidiu ir atrás de mais inovação, e o presidente Ronald Reagan, em mensagem clara, disse que talvez aumentasse a desigualdade, mas que seriam tantas as inovações, tantas as descobertas úteis realizadas por bilionários que a renda média iria aumentar. Mas o que nós vimos 30 anos depois foi que o crescimento do PIB per capita nos EUA caiu à metade: ele foi de 1,1% por ano no período de 1990 a 2020, e, no período de 1950 a 1990, ou no período de 1910 a 1950, ele era de 2,2%.

Andrade Ferreira de Vasconcelos (de branco) deixou vila de pescadores no  Ceará para tentar a sorte em São Paulo, mas desenvolvimento do turismo local fez com que voltasse
ACERVO DE FAMÍLIA

Luciano Huck: No seus livros você discute a riqueza e os sistemas sociais ao longo da história. Também faz uma extensa discussão sobre a evolução da escravidão e da servidão. O Brasil tem uma terrível herança escravocrata, que, mesmo mais de 130 anos depois da abolição, ainda não foi devidamente endereçada. Nossas políticas reparadoras foram muito tímidas e ineficientes. Hoje, somos uma sociedade que não gera oportunidades de maneira equilibrada entre brancos e negros. Nossa violência urbana mata de maneira desproporcional muito mais negros do que brancos. Durante a pandemia, o debate sobre racismo e antirracismo ganhou enorme relevância pelo mundo. No Brasil, não foi diferente. Pessoalmente entendo que temos que reconhecer nossos privilégios como homens brancos e ricos, sair da inação e mergulhar na defesa de narrativas antirracistas. Como você enxerga essa questão?

Thomas Piketty: Essas questões foram negligenciadas por tempo demais, não só no Brasil, mas nos EUA, e também em países como a França e a Inglaterra, onde a história colonial, a experiência com a escravidão e a experiência após a escravidão tiveram um papel imenso no processo de industrialização. Na França, o Estado obrigou as antigas colônias de escravos, como o Haiti, a pagar, de 1825 até 1950, uma compensação pela perda de propriedades dos antigos donos de escravos. Esse pagamento, aliás, gerou grande dívida e acabou afetando o PIB desses países. Então não houve uma reparação da escravidão; houve, sim, reparação para o outro lado, para os donos dos escravos. Recentemente, um dos maiores defensores brancos da abolição da escravidão, Victor Schœlcher, teve suas estátuas derrubadas na Martinica e em Guadalupe, e os franceses ficaram chocados, perguntando “por que estão com raiva do Schœlcher?”. Na verdade, o Schœlcher, a exemplo de muitos intelectuais liberais da época, como o Alexis de Tocqueville, defendiam a indenização dos donos de escravos. Para eles, não deveria haver nenhuma compensação para os escravos, e sim para os donos.

Mas nós não podemos falar só em reparação. Precisamos também de uma política antidiscriminatória combinada a uma política de renda universal. Em Capital e Ideologia, eu falo de um sistema de herança para todos, onde todos receberiam um valor mínimo ao completar 25 anos. Ela não substituiria as outras partes do nosso sistema social, como as escolas públicas, a rede pública de saúde ou a renda básica. Seria algo a mais. E universal, não importa quais os seus antepassados, nós não vamos fazer um estudo de genealogia.

Em alguns casos específicos, porém, isso se uniria a um programa de reparação e a uma política antidiscriminatória devido a injustiças passadas. A França deveria hoje devolver os impostos que foram pagos pelo Haiti, por exemplo. Nos EUA, em 1998 o Congresso aprovou uma indenização aos nipo-americanos que foram prisioneiros durante a Segunda Guerra Mundial. No caso dos nipo-americanos, não era muito, eram 400 dólares, para pessoas que ainda estavam vivas em 1998 e passaram um, dois ou três anos como prisioneiros durante a Segunda Guerra. Não houve nada assim para as pessoas que sofreram com a escravidão. E, de certa maneira, é tarde demais. Mas, para os afrodescendentes que sofreram com a segregação racial até os anos 1960, ainda há tempo.

No Brasil, as questões agrárias poderiam servir como uma ferramenta de reparação por injustiças do passado. No caso da Guiana Francesa, da Martinica, de Guadalupe, foram feitas propostas concretas nesse sentido. Eu não sei tanto sobre o Brasil, mas existem áreas nas Guianas, na Martinica, e em Guadalupe que ainda pertencem aos descendentes dos antigos donos de escravos, enquanto que os descendentes dos próprios escravos não têm terra nenhuma. É possível formar uma comissão para redistribuir parte dessas terras. Hoje existe o mesmo problema na África do Sul. Depois do fim do apartheid, não houve reforma agrária. Está na hora de pensar sobre isso.

Luciano Huck: A reforma agrária no Brasil lidou mais com o lado social e pouco com a viabilidade econômica das terras distribuídas. Por isso, acho que não funcionou tão bem. Ouço com atenção a ideia, mas eu não consigo enxergar de onde virá o dinheiro para esta herança mínima. Como pagar uma quantia para todas as pessoas de 25 anos?

Thomas Piketty: Hoje, a herança média em um país como a França é de 200 mil euros. Mais da metade da população, porém, não recebe nada. As pessoas do topo recebem milhões. Algumas recebem bilhões. O sistema que estou propondo não é muito radical. Eu defendo que todas as pessoas com 25 anos recebam 120 mil euros — e que os herdeiros de milionários recebam 600 mil euros, bem mais do que os 120 mil euros dos demais. Então, ainda estamos muito longe da igualdade de oportunidades. As pessoas gostam de falar sobre a igualdade de oportunidades, mas, quando se trata de aplicar o princípio, principalmente quando se trata do imposto sobre a herança, elas rechaçam o conceito. Existem muitas pessoas que, em termos de patrimônio, estão na metade de baixo da população e, mesmo assim, têm ideias boas de negócios: 120 mil euros, em vez de zero, farão muita diferença para elas.

Luciano Huck: Eu e você somos parte da geração 1971. Segundo o filósofo austríaco Rudolf Steiner, a vida humana se desenvolve ao longo de setênios. Estamos fechando o nosso sétimo setênio, que, segundo a teoria de Steiner, é o setênio do altruísmo, de uma fase expansiva, do questionamento diante do medo do envelhecimento, um período sedento por novidades. Qual deveria ser o legado da nossa geração?

Por enquanto, existe um grande discurso sobre justiça social, mas não os meios para rastrear e monitorar se estão realmente indo nessa direção”Thomas Piketty

Thomas Piketty: Eu fiz 18 anos no fim do comunismo na Europa. O início do meu trabalho, das minhas pesquisas, foi observando esse fracasso imenso do comunismo soviético e do Leste Europeu. E, na época, se alguém me dissesse que, 30 anos depois, eu seria a favor do socialismo participativo, eu ia achar isso uma piada. Na época, eu era bastante anticomunista — eu ainda sou, na verdade — e muito mais a favor do livre mercado. A tarefa da nossa geração, pelo menos para mim, na Europa, é perceber que nós fomos muito longe na direção do hipercapitalismo e tentar construir alternativas econômicas, alguma esperança em outro sistema econômico. O nosso sistema capitalista atual está danificando o planeta, criando muita desigualdade. Depois do desastre comunista do século 20, nós precisamos pensar em uma nova forma de socialismo, muito mais descentralizada, mais participativa, democrática, federal. Precisamos continuar pensando. As pessoas da geração da Guerra Fria ou eram tentadas a ser comunistas ou eram muito anticomunistas — e elas ainda estão vivendo na Guerra Fria e não querem saber de alternativas econômicas. Penso que nós temos que reabrir a discussão. E penso que o crescimento das políticas identitárias é uma consequência de termos encerrado as discussões econômicas. Então, se você continuar dizendo para as pessoas que há apenas uma forma de política econômica e que os governos não podem fazer nada além de controlar suas fronteiras e suas identidades, não é de se surpreender que, 20 anos depois, as pessoas só falem do controle de fronteiras e de proteção de identidade. Nós precisamos retomar a discussão econômica. Precisamos refletir sobre os desastres do século 20 e partir para um novo século.

Luciano Huck: Muito obrigado pela conversa.


Roberto Freire: projeto Luciano Huck continua a todo vapor e pode dar protagonismo ao Cidadania em 2022

Para o presidente do partido, viabilidade eleitoral do apresentador incomoda lulistas e bolsonaristas e candidatura pode vingar com apoio de MDB, DEM e PSDB

Em reunião da Executiva Nacional do Cidadania, nesta quinta-feira (30), o presidente Roberto Freire afirmou que o projeto Luciano Huck continua a todo vapor, apesar de a discussão sobre a candidatura ter arrefecido em razão da pandemia, com o apresentador se dedicando mais a articulações em solidariedade aos mais afetados e vulneráveis à doença. Isso, embora, segundo ele, o próprio presidente Jair Bolsonaro já tenha colocado a sucessão na agenda política nacional e nas redes sociais.

“Houve um ataque nas redes sociais em volume muito grande contra Huck, porque ele aparece nas pesquisas como perspectiva e isso gera receio de ambos os lados da polarização. Estamos vendo sua capacidade de articulação. Temos que ter afirmação nacional de que a nossa candidatura não é uma candidatura que admita o lulismo no seu retorno ou a ideia de bolsonarismo na sua continuidade. Isso tem de ser afirmado inclusive nesta campanha”, avaliou.

Freire viu nos duros ataques contra Huck, partindo de bolsonaristas e lulistas no Twitter, uma afirmação de força do apresentador, dando perspectivas cada vez melhores a uma eventual candidatura. Ele considerou um movimento importante, nesse contexto, a saída de MDB e DEM do centrão e apontou uma “oportunidade histórica” de que o Cidadania protagonize o processo eleitoral de 2022, buscando apoio, ainda, de outros setores e partidos da centro-esquerda e da esquerda democrática.

“Junto com o PSDB, forma-se um bloco importante para discutir uma candidatura do polo democrático. Nós podemos ser protagonistas nesse cenário. É importante ter nessa campanha essa persectiva. [Luciano Huck] Pode vir a ser nossa alternativa, o que é um processo em construção, no campo correto, como candidato de centro-esquerda. Não vamos ganhar com candidatos da direita. Moro, Mandetta e Bolsonaro, se candidatos, ocuparão o campo da direita”, argumentou.

Autonomia nas alianças regionais
Na reunião, chamada para apresentar um balanço das perspectivas eleitorais para novembro, Freire ponderou que, apesar de cada estado trabalhar questões políticas com foco na realidade local, o partido tem uma posição nacional e deve reafirmá-la.

“Não somos um partido regional ou de um local. Estamos com boa capilaridade nacional e cada um dos estados tem suas especificidades, particularmente nas questões políticas. Suas tradições, alianças, questões que mais atraem a preocupação da população, com diversidade em cada um dos municípios, e isso dá, nessas eleições, a realidade local como fundamental para o debate político. Mas é importante saber que o partido existe por uma posição nacional”, destacou.

Ainda segundo Freire, mesmo que aspectos da conjuntura política nacional sejam tratados de forma diferente nos estados, o partido mantém a continuidade do seu projeto.

“Não há um hiato de dizer que o partido tem uma posição nacional e que para neste momento para depois ser retomada. Hoje, o prioritário são as eleições municipais e cada um tem que saber como conduzir suas campanhas, especialmente do ponto de vista político. São autônomos em fazer suas alianças, o partido não tem veto. Mas o partido não vai parar de ter suas posições e sua intervenção no processo político nacional”, sustentou.


Luciano Huck & Michael Sandel: 'Precisamos repensar nossa sociedade para reconstruir um senso de solidariedade'

Filósofo americano defende que a pandemia oferece a chance para se planejar um acesso social igualitário

Texto: Luciano Huck / Foto: Rafael Haddad

Conheci Hellena Mary há 3 anos. Moradora da área rural de Orobo, cidade próxima a Bom Jardim, Pernambuco, mãe de 3 filhos, ela trabalhava como cozinheira em uma casa de família quando eu recebi pelo celular um videoselfie em que ela discutia e questionava o “jeitinho brasileiro”: “O problema está em todos nós como povo, porque a gente pertence a um país onde a esperteza é a moeda que é sempre valorizada. Um país onde a gente se sente o máximo porque consegue puxar a TV a cabo do vizinho. A gente frauda a declaração do Imposto de Renda para pagar menos. Onde há pouco interesse pela ecologia, onde as pessoas atiram lixo na rua e depois reclamam da prefeitura que não limpa os bueiros. Camarada bebe e vai dirigir. Pega um atestado que está doente só para faltar ao trabalho. Viaja a serviço da empresa e o que faz? Se o almoço foi R$ 10, ele pega a nota de R$ 20. Entra no ônibus e senta e, se tem um idoso vindo, finge que está dormindo. E quer que o político seja honesto? O brasileiro está reclamando do quê? Como matéria-prima deste país, temos muito coisa boa. Mas falta muito para a gente ser o homem e a mulher de que nosso país precisam. Antes de culpar alguém, a gente tem que fazer uma auto-reflexão”. Dessa maneira muito franca e intuitiva, Hellen Mary discutia ética e fazia uma provocação tão incômoda quanto necessária.

A milhares de quilômetros dali, em Massachusetts (EUA), um norte-americano ministrava naquele ano um dos cursos mais notórios e concorridos da Universidade de Harvard. Batizado de “Justice”, o curso tinha como tema central reflexões sobre ética. O professor, Michael Sandel, é um dos filósofos mais respeitados da atualidade. A forma como pensa e como leciona fez dele uma celebridade planetária. Já falou para estádios com mais de 10 mil pessoas no Japão e foi eleito pela China Newsweek a “personalidade estrangeira mais influente” de 2011. Seu livro Justice virou best-seller traduzido em dezenas de línguas.

Ao longo da vida, sempre gostei de conectar, construir conexões improváveis. E foi assim que, naquele 2016, eu procurei o professor Sandel. Para minha surpresa, ele topou vir ao Brasil para discutir ética e o “jeitinho brasileiro”. Foi antológico o encontro dele com a cozinheira pernambucana no programa que eu apresento, o Caldeirão.

Em meio à pandemia, em isolamento voluntário, li que Sandel está lançando um novo livro, The Tyranny of Merit: What’s Become of the Common Good? (na tradução literal: “A Tirania do Mérito: O Que Aconteceu com o Bem Comum?”.) Na obra, o professor argumenta que, para superar as crises que estão agitando o mundo, precisamos repensar as atitudes em relação ao sucesso e ao fracasso que acompanharam a globalização e a crescente desigualdade. Sandel mostra a arrogância que uma meritocracia gera entre os vencedores, detalha o julgamento severo que impõe sobre os que foram deixados para trás e traça as terríveis conseqüências disso sobre boa parte da sociedade. O filósofo oferece uma maneira alternativa de pensar sobre o sucesso. Mais atento ao papel da sorte nos assuntos humanos, mais propício a uma ética de humildade e solidariedade e mais afirmativo a dignidade do trabalho, ele aponta para uma visão mais esperançosa de uma nova política do bem comum.

Na última terça-feira, isolado em sua casa próxima a Boston, Sandel topou uma nova conversa, sobre os conceitos do livro e sobre o impacto da crise do covid-19 sobre uma sociedade já demasiadamente desigual.

Em tempo: depois daquele encontro de 2016, Hellena Mary perdeu o emprego de cozinheira. Como milhões de brasileiros, ela não esmoreceu e resolveu empreender. Abriu um ateliê de costura na mesma cidade. Como milhões de brasileiros também, ela acaba de sofrer um baque com a pandemia. O coronavírus forçou-a a fechar o negócio e a ficar em casa com as crianças. Espera conseguir sobreviver com o auxílio emergencial do governo de R$ 1.200 até a vida voltar ao “normal”.

Luciano Huck: Seu livro Justiça e seu curso em Harvard discutem dilemas éticos que enfrentamos e deveremos enfrentar na sociedade moderna, com provocações bastante interessantes. Em um dos exemplos hipotéticos, você fala da programação de carros autônomos e da necessidade de definir a reação do veículo a uma situação de trânsito onde restam apenas duas opções de condução: uma atropelaria um grupo de crianças e a outra provavelmente mataria o condutor. Essa pandemia está criando novos e enormes conflitos éticos. Como no sistema de saúde de países que perderam o controle da pandemia, em que médicos estão tendo que tomar decisões sobre quem vive e quem morre. A Itália e a Espanha estão enfrentando esse dilema médico e abertamente optaram por usar a idade cronológica como critério, priorizando também aqueles que têm melhores chances de recuperação. Além disso, a mulher casada e com filhos pequenos deve ter prioridade sobre a viúva com filhos adultos? Suas analogias teóricas se tornaram realidade em nossas vidas diárias. Como você vê isso?

Michael Sandel: A atual crise tornou real e urgente alguns dos dilemas éticos que discuti no livro. Um deles tem a ver com o acesso aos ventiladores pulmonares nos hospitais. Assim como você mencionou, na Itália e em outros lugares, médicos e hospitais tiveram que fazer escolhas morais contundentes quando havia mais pacientes precisando desesperadamente dos ventiladores pulmonares do que ventiladores disponíveis. Portanto a pergunta é: você deve dar prioridade à primeira pessoa que chegar ou deve dar prioridade à pessoa com maior probabilidade de sobreviver? E a questão da idade? Alguém mais jovem e com mais anos pela frente deve ter prioridade? E, para uma pessoa idosa, é justo decidir com base na idade? E depois há a questão da contribuição para a sociedade. Suponha que médicos e enfermeiras que estão trabalhando tão duro para tentar salvar as pessoas e cuidar delas tenham prioridade caso adoeçam. Alguns argumentam que eles devem poder ir para a frente da fila porque, se puderem ser salvos, poderão ajudar a salvar os outros. Esses foram os dilemas que debatemos na sala de aula e que eu já havia discutido no meu livro Justiça, como exemplos hipotéticos. Mas a pandemia tornou esses dilemas éticos realidade.

Vou dar outro exemplo no qual nos deparamos com um tipo semelhante de dilema: quando, e em que circunstâncias, devemos enviar as pessoas de volta ao trabalho para que a economia possa começar a se mover novamente. Há grandes debates sobre isso agora em muitos países. Devemos estar dispostos a sacrificar um certo número de vidas para que possamos retomar a economia? Se sim, isso significa que estamos colocando um valor monetário na vida? Eu acho que temos que agir com muito cuidado na reabertura da economia para garantir que tenhamos testes suficientes para o vírus, para que não fiquemos em uma posição em que, em prol da reabertura da economia, estaremos sacrificando vidas. E é claro que as vidas que serão sacrificadas primeiro provavelmente serão as vidas das pessoas pobres que são forçadas a voltar ao trabalho, que não têm o luxo daqueles que podem ficar em casa e trabalhar remotamente.  Acho que devemos ter em mente como a questão da desigualdade incide nessa escolha, porque, de certa forma, os trabalhadores dos quais dependemos mais imediatamente hoje, os que são mais essenciais, geralmente são pessoas que não recebem muito dinheiro e que, em circunstâncias normais, não recebem nem sequer muito reconhecimento.

Luciano Huck: Estivemos juntos no Brasil três anos atrás. Você visitou favelas e também frequentou os circuitos mais abastados. Você viu de perto nossa realidade. O Brasil é um dos países com a maior taxa de desigualdade sócio-econômica do planeta e aqui, mas não só aqui, estamos passando pela pandemia com flertes abertos com o autoritarismo. Você vê a democracia em risco?

Michael Sandel: Sim, acho que são tempos muito perigosos para a democracia. Vimos isso antes mesmo da pandemia, quando muitas pessoas, frustradas com a política comum e a corrupção, estavam se voltando para figuras populistas. Havia uma espécie de reação contra décadas nas quais quase todos os ganhos econômicos ficaram com o topo (da pirâmide) e a pessoa de classe média não se beneficiou muito. Isso certamente foi verdade nos EUA nos últimos 40 anos. Assim, houve o fortalecimento de figuras populistas hiper nacionalistas que prometeram dar voz às frustrações, à raiva e ao ressentimento. E essa raiva e ressentimento eram compreensíveis. Mas os candidatos que foram eleitos a partir disso estão agora governando no meio de uma crise para a qual estão mal preparados. E, portanto, acho que, devido ao aprofundamento da desigualdade, agora agravada por essa enorme crise de saúde pública, as tensões no sistema e os danos da desigualdade estão sendo escancarados e seu efeito é aumentado. Vemos o que já estava lá, mas de uma maneira ainda mais perigosa. E, portanto, acho que devemos ter muito cuidado com a tendência a políticas e soluções autoritárias para as frustrações que as pessoas sentem. Penso que os principais partidos partilham a culpa por criar as circunstâncias que levaram os eleitores a abraçarem figuras autoritárias perigosas que agora, infelizmente, têm a responsabilidade de lidar com esta crise.

Luciano Huck: Estamos experimentando algo muito único que só acontece em guerras. Decisões que normalmente teriam levados meses, anos ou décadas para se tornar realidade estão levando dias ou semanas. E acho que, antes da pandemia, como você disse, já estávamos vivendo tempos estranhos, com a ascensão de líderes autoritários com forte tendências antidemocráticas, negacionistas, populistas e etc. e ondas de manifestações de massa expressando descontentamento com a política e com as lideranças sociais e econômicas, principalmente na América Latina e na Europa nos últimos anos. Então, para ir um pouco mais fundo nisso, qual o efeito da pandemia nessa relação descontente entre sociedade e política?

Michael Sandel: Estávamos experimentando, mesmo antes da pandemia, a perda da solidariedade. E, agora que a pandemia chegou, vemos que somos todos mutuamente dependentes. Nós somos contagiosos um para o outro. Em meio a crise, ouvimos muitos políticos com o mesmo slogan: "Estamos todos juntos nisso". De certa forma, é um slogan inspirador, porque a crise revela nossas vulnerabilidades compartilhadas ou dependência mútua. Mas, por outro lado, o slogan "Estamos todos juntos nisso" soa vazio porque ele se insere no contexto de profundas desigualdades. Não é verdade que todos estamos nos sacrificando na mesma medida. Alguns de nós podem trabalhar em casa. Outros estão em contato físico uns com os outros, precisam disso para sobreviver economicamente e são expostos de forma mais direta e imediata ao risco. Precisamos tentar usar esta ocasião para repensar nossas sociedades e nossas economias para reconstruir um senso de genuína solidariedade, para que as vozes autoritárias não sejam as únicas que expressam o sentimento de raiva, ressentimento e frustração. As vozes mais responsáveis precisam encontrar uma maneira de lidar com essas profundas desigualdades para que possamos realmente dizer, e acreditar, que “Estamos todos juntos nisso".

Luciano Huck: Nos últimos anos, tenho ampliado minhas áreas de interesse em políticas públicas e venho garimpando boas idéias em todo o país para questões que considero necessárias. E pude constatar que, em alguns temas de grande importância, como educação, segurança pública ou as reformas do Estado, a sociedade civil e o poder público já produziram muitas propostas e projetos de qualidade. Mas que em outros, como a situação das favelas, não é trivial encontrar caminhos prontos e consistentes para apontar soluções. E eu acredito que estamos correndo o risco de esta pandemia ampliar ainda mais o fosso da desigualdade no Brasil. No caso da educação, por exemplo, para mim a ferramenta mais poderosa para gerar oportunidades e mobilidade social, a pandemia  tende a acentuar a diferença entre escolas públicas e privadas. Embora quase todos os estudantes no Brasil tenham um telefone celular, o nosso sistema de ensino público continua analógico. Além disso, provavelmente teremos um enorme problema de evasão escolar. Isso já é historicamente um problema no Brasil após as férias escolares, então imagine ao voltar depois de uma crise de saúde que gerou um isolamento de meses. E, mais do que isso, haverá uma enorme pressão familiar para que os jovens contribuam de alguma forma para a renda familiar, fortemente afetada pelo desemprego. O que você acha disso, sobre educação, acesso e desigualdades?

Michael Sandel: Acho que você está certo de como essa pandemia poderá exacerbar as desigualdades, incluindo as desigualdades educacionais. Mas ela também oferece uma oportunidade para repensarmos o acesso à educação, à saúde e ao apoio à renda. Às vezes, grandes crises nacionais e globais podem ser ocasiões para uma espécie de renovação moral e cívica. E acho que é disso que precisamos. Penso que o nosso desafio não é apenas um desafio de saúde pública. Acho que é um desafio ético e moral. Lembro que você mencionou as favelas, onde é muito difícil manter o distanciamento social, dada a proximidade em que as pessoas vivem. Quando visitei seu programa de TV, Luciano, e conversamos sobre o "jeitinho brasileiro", uma das coisas mais marcantes da discussão é que tínhamos pessoas de todas as origens sociais e econômicas. Havia advogados e professores, cozinheiros e faxineiros, todos discutindo juntos. E, quando visitamos uma favela e conversamos com alguns jovens, uma discussão informal, sobre justiça e violência, e sobre o que cidadania realmente significa, o que me impressionou é que as pessoas não precisam apenas de ajuda educacional, econômica e de saúde, mas também precisam e querem ter uma voz e poder sentir que suas vozes são ouvidas. Um dos maiores desafios e oportunidades que temos é encontrar maneiras de criar um diálogo civil, discussões e debates sobre como alcançar algumas dessas reformas em educação e saúde e apoio à renda e lidar com problemas de violência, que incluem as vozes de todos. Seu programa, com a presença de pessoas de todas essas origens, é um exemplo do tipo de discussão que precisamos regularmente, porque isso contribui para um tipo saudável de democracia. Isso é realmente o que significa democracia. Não apenas votar a cada eleição, mas também deliberando entre si através de linhas de classe, raça, etnia e formação econômica. Sobre o bem comum. E é nisso que não somos muito bons hoje em dia. Bem, você faz um trabalho maravilhoso nisso, mas precisamos espalhar mais disso por toda a nossa sociedade.

Luciano Huck: Quando você diz dar “voz ao povo”, a primeira imagem que me veio à mente é sobre as oportunidades de educação e mobilidade social. No seu novo livro A Tirania do Mérito, que será lançado em setembro, você argumenta que, para superar as crises que estão prejudicando nosso mundo, devemos repensar as nossas atitudes em relação ao sucesso e ao fracasso. Você pode detalhar essa sua opinião?

Michael Sandel: Penso que, se olharmos ao longo das últimas décadas da globalização, tem sido uma globalização muito orientada para o mercado. Isso criou vastas desigualdades. Mas esse não é o único problema. Não é apenas o fato de que a maioria dos benefícios foi para aqueles que estão no topo. As atitudes que temos em relação ao sucesso são tais que aqueles que chegam ao topo acreditam que o fizeram por conta própria e que não estão em dívida com mais ninguém. Eles, portanto, sentem que merecem. E quanto àqueles que não tiveram as mesmas oportunidades, como uma educação universitária, e que não atingiram o sucesso, nós dizemos que eles não se empenharam o suficiente e não fizeram por merecer algo melhor. Então acho que precisamos questionar essa forma de pensar. O que tentei fazer no meu novo livro é questionar a arrogância dos bem-sucedidos que acreditam: “Eu sou bem-sucedido porque consegui meu sucesso pelo meu esforço e, portanto, eu não tenho senso de obrigação para com os menos afortunados que eu”. Visto que, se eu tiver uma percepção mais apurada, posso ressignificar o sucesso: “Trabalhei duro e também tive muita sorte: uma família que me apoiou, os professores que me ensinaram, as oportunidades educacionais que tive, a sociedade em que eu cresci. Portanto, devo aos meus concidadãos certas obrigações. Não é só meu trabalho”. Este é o tipo de orientação que estou tentando argumentar, um maior senso de solidariedade no bem comum, decorrente de uma consciência maior daqueles que tiveram a sorte de não o terem feito sozinhos. Há a frase: "lá, exceto pela graça de Deus ou pelo acidente da Fortuna, eu vou". Se tivermos um senso mais agudo da sorte, um senso mais aguçado de graça, mesmo para alcançar o que alcançamos, acho que estaremos mais conscientes em relação às nossas obrigações para com aqueles que não chegaram ao topo, mas que merecem as mesmas oportunidades, respeito e reconhecimento social. Portanto, é uma mudança moral e também uma questão de reorganizar a economia. É uma questão de como encaramos nosso sucesso e nossos relacionamentos um com o outro.

Luciano Huck: As empresas mais admiradas ou as mais bem-sucedidas da últimas décadas foram aquelas que tiveram a capacidade de se mostrarem mais eficientes, com culturas internas ancoradas na meritocracia. Você está colocando a questão da meritocracia na vanguarda de outra discussão. No Brasil, é muito difícil discutir esse tópico, porque os pontos de partida aqui não são iguais. Aqui vivemos uma espécie de loteria do código postal, em que o lugar em que você nasceu praticamente determina onde você vai viver e morrer. A mobilidade social no Brasil é praticamente inexistente. Estudos mostram que, se você nasce em uma família pobre, para atingir a média da classe média são necessárias nove gerações. Uma tragédia. A pandemia aumenta ainda mais essa desigualdade de oportunidades e torna a discussão sobre meritocracia um sonho ainda mais distante. Como isso soa para você?

Michael Sandel: Você levantou um ponto muito importante. Um dos problemas com a meritocracia é que não cumprimos os princípios meritocráticos que proclamamos. A "loteria do código postal", como você diz, tem um efeito enorme sobre quem recebe uma boa educação, quem vai para a faculdade, quem consegue bons empregos. Esse é um dos problemas com a meritocracia. Mas há também um segundo problema: ela incentiva atitudes em relação ao sucesso para que os vencedores menosprezem os perdedores e não os identifiquem como concidadãos. Portanto, a meritocracia, mesmo no local onde se trabalha, é prejudicial à solidariedade. Pense na imagem de uma escada, onde os degraus indicam onde você pousa na ordem social e econômica. Um problema com a meritocracia é que, se você nasceu em uma família que fica nos degraus mais baixos, é muito difícil subir para os degraus mais altos, porque você não tem a chance de ir para a faculdade e obter uma boa educação para competir pelos melhores empregos. Esse é um problema. Mas, mesmo quando tentamos melhorar a capacidade das pessoas de subir os degraus da escada, também precisamos nos preocupar com algo além da mobilidade social: qual a distância entre os degraus da escada? Como parte do que vem acontecendo nas últimas décadas, não só é difícil subir de um degrau para outro, como também os degraus ficaram cada vez mais distantes uns dos outros. A escada se esticou. A distância entre os degraus superiores e inferiores é cada vez maior. E nós temos que lidar com os dois problemas, creio, ao mesmo tempo. Mobilidade social, sim, mas também desigualdade como tal, o que significa tornar a vida melhor e mais digna, mesmo para aqueles que, por qualquer motivo, não escalam os degraus. Eles também devem viver vidas dignas.

Luciano Huck: Desde que a pandemia começou, venho dizendo toda semana que a solidariedade deve ser mais contagiosa que o vírus. E, no Brasil, a sociedade civil (população não governamental) se mobilizou sem precedentes para tentar mitigar a fome e a extrema pobreza que invadiram repentinamente a vida de tantas famílias. Ao te ouvir, fico refletindo se isso não faz parte do caráter geral que todos compartilhamos por termos aceitado passivamente o status quo dessa disparidade socioeconômica assustadoramente alta, que não resolvemos até hoje e virou parte da “paisagem” brasileira.

Michael Sandel: Penso que a sociedade civil tem um papel extremamente importante a desempenhar. Nós falamos sobre política e governo e tentamos encontrar alternativas para as perigosas tendências autoritárias que estamos vendo agora. E tudo isso é muito importante. Mas vimos como os principais partidos políticos falharam e como esse fracasso levou à eleição de figuras autoritárias hiper nacionalistas no Brasil e em outras partes do mundo, inclusive nos EUA, meu país. Acho que precisamos procurar a sociedade civil para ajudar a criar fontes de solidariedade, porque não são apenas as políticas do governo que nos mantêm unidos, mas também as organizações, incluindo organizações locais, que podem trabalhar para promover o acesso à educação, podem tentar levar cuidados de saúde para pessoas que não podem pagar por isso, que podem tentar lidar com o problema da violência nas favelas e outras comunidades... As instituições locais da sociedade civil são muito importantes. Especialmente nas áreas de saúde e educação, as organizações comunitárias têm um papel muito importante a desempenhar na construção do tipo de solidariedade que, com muita freqüência, nossos políticos deixam de apoiar e promover. A mídia também tem um papel muito importante na tentativa de promover um diálogo civil mais substantivo, respeitoso. A democracia precisa desse diálogo. Ele precisa chamar a atenção de pessoas de todas as origens sociais e econômicas. E, se a mídia presta atenção apenas aos tipos de provocações mais sensacionalistas e ultrajantes, o discurso público se transforma em uma espécie de jogo de gritos onde ninguém está ouvindo um ao outro. As pessoas estão simplesmente reforçando e gritando sua própria opinião. A mídia tem um papel importante a desempenhar na criação de um tipo melhor de discurso público.

Luciano Huck: Alguns setores no Brasil, como bens e serviços, ganharam um enorme significado durante essa pandemia. Nosso setor agrícola, em particular, está fazendo um trabalho espetacular. Não tivemos nenhum problema de produção ou fornecimento durante esta pandemia. Estamos exportando alimentos para o mundo inteiro como nunca antes. A cadeia de produção está muito bem organizada e criou protocolos de saúde que estão funcionando muito bem. Nossos profissionais de saúde estão mais dedicados do que nunca ao sistema público, e até mesmo os entregadores que estão nas ruas diariamente, e que até meses atrás eram invisíveis e rechaçados por muitos, se tornaram parte fundamental de nossas vidas cotidianas, o que gerou um enorme respeito da sociedade por todos esses profissionais do campo, das ruas, dos hospitais e das rodovias. Como você vê essa mudança?

Michael Sandel: Existe um potencial para essa crise levar a uma reavaliação fundamental de quem realmente contribui mais para nossas vidas sociais e econômicas. De quem realmente dependemos diante de uma crise como essa? Como você diz, as pessoas de quem dependemos não são banqueiros de Wall Street. Não são pessoas que, nos últimos 40 anos, ganharam milhões, bilhões de dólares enquanto trabalhadores comuns enfrentaram salários estagnados. As pessoas de quem dependemos agora são prestadores de cuidados de saúde, médicos e enfermeiros, mas também entregadores, caminhoneiros, policiais e bombeiros, pessoas que mantêm os supermercados abertos, que fornecem nossa comida e a levam para o supermercado ou mesmo para nossas casas. No entanto, nos últimos 40 anos, pessoas que realizam trabalhos como esses não apenas perderam terreno economicamente, como também não foram respeitadas. Isso remonta ao que chamei de "tirania do mérito" no meu novo livro. Um dos lados sombrios da meritocracia é que tendemos a acumular todas as recompensas e todo o reconhecimento social naqueles que ganham muito dinheiro. Eles se tornam os emblemas do sucesso. Mas o que esta crise está mostrando é que aqueles que realmente fazem contribuições valiosas para o bem comum, aqueles que estão nos mantendo vivos, aqueles que mantêm a sociedade funcionando não são os ricos, não são os mais ricos. São, na maioria das vezes, pessoas que lutam para sobreviver. E, no entanto, são eles de quem o resto de nós depende. Portanto, espero que, com isso, possamos reconstruir nossas sociedades e nossas economias para reconhecer, não apenas para aplaudir essas pessoas e agradecê-las, mas também para garantir que suas recompensas econômicas correspondam à importância da contribuição que fazem. Essa é a minha esperança. Mas vai depender do tipo de economia que criarmos quando começarmos a emergir desta crise.

Luciano Huck: Temos discutido quando vamos reiniciar a economia, mas acredito que também deveríamos discutir de que forma vamos reiniciar a economia. Te ouvindo, acredito que temos uma grande oportunidade de mudar a narrativa que tem estado presente nos debates nos últimos anos. Quando reiniciarmos as economias mundiais, teremos a chance de entender que estamos mais interconectados do que nunca. Que podemos e devemos mudar a narrativa pós-pandêmica, adotando políticas menos divisivas e mais fraternas, mais inclusivas. Se você puder compartilhar, qual conselho você desejaria passar para o Brasil, pensando não no que estamos experimentando agora, mas no que virá a seguir?

Michael Sandel: Eu acho que o que vem a seguir, para o Brasil e para todos nós que estamos enfrentando essa crise, depende de como pensamos e agimos durante a crise. Claro, todo mundo quer prever quando o vírus desaparecerá, quando haverá uma vacina e quando podemos voltar ao trabalho. Voltar ao trabalho criará um novo aumento no vírus? São questões de previsão e, para a previsão, contamos com especialistas em saúde pública, médicos e cientistas e precisamos confiar em seu julgamento e sabedoria. Mas, além de prever o que essa crise trará e quando ela terminará, devemos encarar isso como um desafio para criar um tipo diferente de sociedade. Essa pandemia chegou em um momento em que estávamos profundamente divididos. Tínhamos vivido um período de crescente desigualdade e de profundas divisões partidárias, raiva, frustração e ressentimento. E, se voltar ao trabalho, se reabrir a economia significa simplesmente voltar à raiva, ressentimento, partidarismo e corrupção que tínhamos antes, não teremos aprendido nada. Portanto, nosso maior desafio é realmente aprender com essa crise e a usar como uma oportunidade para refletir sobre o que deu errado em nossa vida social, econômica e política. De modo a emergirmos com uma economia na qual podemos dizer com mais verdade do que agora que “Estamos todos juntos nisso" - ou pelo menos  que estamos caminhando na direção de uma maior solidariedade. Minha esperança é que estejamos nos movendo em direção a uma sociedade em que, em nossos debates políticos, perguntaremos primeiro: “O que devemos uns aos outros como cidadãos e como podemos promover a política do comum? O que nos une de maneira que nos tornará mais fortes?”

Luciano Huck: Professor Michael Sandel, muito obrigado. É uma honra poder conversar com você e compartilhar algumas de suas ideias, certo de que você está ajudando a iluminar o caminho. Fique bem, protegido e saudável.


Luciano Huck: ‘Precisamos entender que essa e uma crise política e não apenas de saúde', diz Yuval Harari

Uma conversa: Luciano Huck & Yuval Harari

Para Yuval Harari, pandemia criou “experimentos sociais incríveis”, mas “lógica da guerra” é risco para democracias

 Texto: Luciano Huck / Foto: Rafael Haddad

Em novembro, quando a covid-19 ainda não dava sinais de existir, eu e Yuval Noah Harari caminhávamos pelas ruas estreitas da comunidade de Tavares Bastos, no Morro da Nova Cintra, no Rio de Janeiro. Ao saber que Harari vinha ao Brasil para dar palestras bem pagas a empresários da Faria Lima e falar no Congresso, fiz uma provocação: queria que ele conhecesse o Brasil “de verdade”, aquele que vive a desigualdade sobre a qual ele discorre em seus fantásticos best-sellers.

Além da vista deslumbrante da Baía de Guanabara, Tavares Bastos é uma das poucas favelas do Rio fora do domínio do tráfico e das milícias. O motivo é sua localização: ao lado da comunidade foi instalada, em 2000, a sede do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar).

Queria que Harari visse o lugar onde moram alguns dos protagonistas silenciosos de seus livros. O motorista de ônibus que deve perder o emprego com a automatização dos coletivos. A operadora de telemarketing que se tornará dispensável em razão da inteligência artificial. A professora da escola pública que forma as novas gerações, a enfermeira do SUS que prolonga vidas e tantos outros.

Harari – um dos filósofos mais influentes da atualidade, autor de Sapiens, Homo Deus e 21 Lições sobre o Século 21 – topou subir o morro. E foi uma experiência incrível para todos. Nossa relação pessoal nasceu por acaso. Anos antes, havíamos dividido uma mesa de café da manhã, em um evento na Itália. Eu com Angélica; ele com Itzik, seu marido e fiel escudeiro. Cinco meses depois do nosso passeio em Tavares Bastos, o mundo é outro. Uma pandemia está mudando a humanidade e temas que Harari tanto estuda – como evoluímos, nossa relação com tecnologia e ciência, o papel da empatia – nunca estiveram tão presentes.

Para entender melhor essas questões, conversei com Harari na última terça-feira. Eu, isolado em minha casa no Joá, no Rio, e ele, em seu apartamento, em Tel-Aviv.

Luciano Huck: Vi que, nos últimos dias, você participou de debates e deu entrevistas para meios de comunicação do mundo todo. Isso sem sair de casa e usando a tecnologia – assunto que você trata há bastante tempo. Como você vê essa contradição aparente: estar em casa e, talvez, mais do que nunca falar com o mundo todo?

Yuval Harari: Todos os processos de que falamos nos últimos anos sobre tecnologia e vigilância, o impacto do online e o poder das mídias sociais, agora estão passando por transformações enormes e ainda mais rápidas. Por exemplo, na minha universidade em Jerusalém, falamos há mais de 10 anos sobre fazer alguns cursos online. Houve tantas discussões que acabamos não abrindo nenhum curso digital. Mas, com a pandemia, em uma semana a universidade inteira foi transferida para o universo online.

Luciano Huck: Você publicou best-sellers refletindo sobre o passado e o futuro, mas seu último livro aborda os desafios atuais da humanidade. No século 21, já estávamos vendo transformações drásticas em um período muito curto de tempo – meses ou semanas. A atual crise alterou de alguma forma tua visão?

Yuval Harari: As pessoas precisam estar atentas ao fato de que temos muitas opções nessa crise. Em outras palavras: o futuro não está predeterminado. Não há um roteiro único de como lidar com a epidemia e a crise econômica. Nós – cidadãos e governos – teremos de tomar algumas decisões muito importantes nos próximos meses, que vão mudar o mundo completamente. Governos estão fazendo experimentos sociais incríveis, envolvendo trabalho online ou fornecendo renda básica universal. E isso vai mudar o mundo. Precisamos entender que essa é uma crise política e não apenas de saúde. As grandes decisões são, na verdade, políticas. Entender isso depois que a pandemia passar será como chegar após o fim da festa – a única coisa que restará será lavar a louça suja. Agora, governos estão distribuindo dezenas, centenas de bilhões de dólares e decidindo como remodelar o mercado de trabalho, o sistema educacional.

Luciano Huck: E há uma grande armadilha nessa questão política, pois governos tomarão decisões transcendentais, enquanto, em muitos países, estamos em meio a um blecaute de liderança. Temos, como sociedade civil, um desafio enorme para evitar que esses líderes – que, digamos, não têm mentes brilhantes – tomem decisões trágicas para todos nós.

Yuval Harari: Exatamente. A mídia e os cidadãos devem, é claro, seguir o que está acontecendo com a epidemia, e não devemos ficar só nas estatísticas de doença e morte. É preciso também estar atento ao que o governo está fazendo. Há bilhões de dólares em jogo: quem está recebendo o dinheiro e quem é deixado de lado? Outra questão são os novos regimes de vigilância de cidadãos adotados por alguns países. Coisas que em um país democrático, alguns meses atrás, pareceriam impossíveis, agora estão sendo feitas. Em alguns lugares, como a Hungria, certos líderes tentam usar a situação para se transformarem em ditadores. Sob o pretexto de combater a epidemia, eles tomam poderes de emergência e basicamente desmantelam o sistema democrático de freios e contrapesos.

Luciano Huck: Estamos vivendo em uma ordem política de guerra, mas com o vírus – em vez de exércitos – como inimigo? Como você enxerga isso?

Yuval Harari: Devemos ter cuidado ao comparar nossa situação com uma guerra. Líderes ao redor do mundo estão fazendo isso, mas é perigoso, pois dá às pessoas a ideia de que há um inimigo – não apenas o vírus, mas um inimigo humano – a ser combatido. E isso faz com que se espere respostas em termos de segurança pública – como o que está acontecendo em Israel, onde o exército e a inteligência estão assumindo o controle da crise. Não é uma guerra. É um tipo muito diferente de crise, e você precisa pensar de uma maneira diferente. O principal não é matar inimigos. O principal é cuidar das pessoas. Em uma guerra, os heróis são os soldados que avançam com suas submetralhadoras. Na crise atual, os protagonistas são os profissionais de saúde que enfrentam duras jornadas nos hospitais. Isso exige uma maneira diferente de pensar sobre o que está acontecendo.

Luciano Huck: Olhando a partir do contexto brasileiro, essa tua mensagem tem um aspecto bem interessante. A meu ver corretamente, o Congresso nacional está propondo uma emenda constitucional destinando recursos à luta contra o coronavírus, isolando estes gastos do orçamento anual do governo, mas ela foi batizada de “Orçamento de Guerra”.

Yuval Harari: É um orçamento de saúde para cuidar das pessoas. Essa é a principal questão.

Luciano Huck: Estivemos juntos na favela de Tavares Bastos, no Rio de Janeiro. Você vivenciou a enorme desigualdade social – que, aliás, existe em todos os estados brasileiros, sem exceção. Precisamos de soluções definitivas para nossas favelas. Não podemos atravessar mais uma geração sem que esta questão comece a ser encaminhada definitivamente. Como você vê os efeitos dessa pandemia sobre a pobreza e a desigualdade, sobre lugares como Tavares Bastos?

Yuval Harari: Muitas das diretrizes de distanciamento social e isolamento são impraticáveis em um lugar como uma favela, onde uma pessoa divide um espaço muito pequeno com muitas outras, compartilhando um banheiro, por exemplo. E, claro, você precisa sair para comprar comida e coisas assim. E provavelmente serão essas pessoas as mais atingidas pela crise econômica. E, mesmo em uma escala maior, quando você olha para o mundo inteiro, a desigualdade entre diferentes países agora está se tornando muito mais forte. Por enquanto, o foco da crise foi o mundo desenvolvido, primeiro no leste da Ásia, depois na Europa e, agora, na América do Norte. O medo é que o pior venha quando a epidemia se espalhar pela América do Sul, África e Oriente Médio. Lá, os sistemas de saúde estão em uma situação ainda pior. Os EUA podem gastar US$ 2 trilhões em um pacote de resgate para a economia. O Brasil não tem US$ 2 trilhões. Portanto, a grande questão é o que acontecerá no Brasil, no Egito, em Bangladesh. A menos que tenhamos um plano de ação global, isso poderá causar o colapso de alguns países, o que desestabilizará o mundo inteiro.

Luciano Huck: O Brasil está diante de uma situação muito complicada: boa parte da população, incluindo os mais de 13,6 milhões que vivem em favelas, corre o risco de voltar à pobreza ou aprofundar nela em semanas. Há relatos do tipo: “Eu estava trabalhando em uma loja no shopping, minha mulher é manicure e as crianças estavam na escola. Em duas semanas, a loja faliu, não há mais clientes para minha mulher e as crianças estão em casa sem aulas. Tenho ainda de pagar pelo almoço delas, despesa que não havia antes, e voltarei à pobreza extrema em duas semanas.” A ciência nos prova a importância de ficar em casa neste momento. Mas as pessoas estão passando fome em muitos locais, o que torna muito mais difícil lidar com a pandemia e o isolamento social. O governo brasileiro enfrenta problemas de dados, logística, sensibilidade social e coordenação para fazer o dinheiro chegar rapidamente a quem mais precisa. Portanto, por um lado, temos um problema de saúde realmente sério e, por outro, uma crescente pressão social. A sociedade civil está se movimentando para que comida chegue na mesa dos mais afetados e a filantropia deu um salto – já doamos, em poucas semanas, mais do que no ano inteiro de 2019. Mas a situação é muito trágica, inclusive porque muitas dessas vítimas ainda não conseguem entender a gravidade dela. Então, eu te pergunto: o que pode melhorar a vida das pessoas de classe baixa, classe média ou em áreas rurais?

Yuval Harari: Não posso prever o futuro porque ele ainda não foi escrito, mas isso dependerá das decisões que tomamos hoje no Brasil, em Israel e em todo o mundo. A grande questão é se enfrentamos esta crise como uma sociedade global, por meio da solidariedade e cooperação entre países, ou se lidamos com ela por meio do isolacionismo nacionalista e da concorrência. Por exemplo, como devemos enfrentar a escassez de recursos médicos – kit de testes, respiradores, máscaras, luvas? Todos os países dependem de outros para obter esses recursos, precisamos de uma cooperação global, para tornar a produção mais eficiente e para distribuir de maneira justa qualquer equipamento médico existente. Evitando o monopólio desses recursos pelos países mais ricos. Essa é uma decisão que precisamos tomar – o futuro não é predeterminado. Se lidarmos com isso de maneira cooperativa, a crise será menos grave e, depois da crise, teremos um legado de solidariedade humana. Se, por outro lado, for cada país por si e cada um lutando entre si, culpando um ao outro, então não apenas a crise será muito mais grave, mas teremos uma atmosfera envenenada depois por muitos anos. Espero que as escolhas sejam feitas com sabedoria. O Brasil e outros países da América do Sul e Oriente Médio não serão capazes de lidar com essa dupla crise na saúde e na economia, a menos que recebam ajuda dos países mais ricos. Nos últimos anos, as relações entre países se deterioraram. E agora estamos pagando o preço por isso. Espero que não seja tarde demais para reverter o curso. Da mesma forma, se você pensar simplesmente na situação econômica, agora é a hora de organizações internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, aliados aos países mais ricos, criarem uma rede de segurança global, para garantir que nenhum país caia em completo caos econômico.

Luciano Huck: Não estávamos preparados para o isolamento. Sei que você usa meditação para encontrar equilíbrio e conduzir seu processo criativo (anualmente Yuval fica 3 meses em meditação e isolado). Como você está lidando pessoalmente com a quarentena? Muitas pessoas estão ansiosas ou com muito medo - inclusive porque seu espaço e direitos de ir e vir estão tão mais restritos.

Yuval Harari: Precisamos enfatizar a saúde mental. Não é apenas a saúde física, não é apenas a economia. É também uma crise de saúde mental e temos de dar apoio às pessoas nesse sentido. Você sabe, eu sou um dos sortudos. Tenho uma casa relativamente grande. Não estou sob nenhuma ameaça financeira. Na verdade, estou trabalhando mais do que nunca. Sim, eu me preocupo com a situação política. Tenho parentes que podem ficar doentes. Minha avó tem 98 anos e, se ela pegar o vírus, provavelmente morrerá, pois ela também tem doenças crônicas. Mas, pessoalmente, estou em uma boa situação. Sei que milhões de outras pessoas, em Israel e no Brasil, estão trancadas num pequeno apartamento com uma grande família. Talvez com o negócio deles em colapso, ou talvez tenham perdido o emprego. É uma situação extremamente difícil. E, pensando novamente sobre como isso não é uma guerra, mas uma crise de saúde, é preciso oferecer também atendimento de saúde mental. Este é o momento em que precisamos de meditação, precisamos de psicologia, precisamos de serviços sociais, de uma rede de segurança mental que ajude a lidar com a crise. E também esperança para quando a crise acabar.

Luciano Huck:
 A pandemia nos atingiu enquanto alguns líderes mundiais flertam com o autoritarismo, negacionismo, terraplanismo, xenofobia, repressão e tornam o debate político um “nós contra eles”.  Essa pandemia também nos mostrou como o mundo está interconectado - uma onda em um lugar pode causar um tsunami em outro. Então você acha que essa crise pode nos ajudar de alguma forma a melhorar nossos relacionamentos humanos e de alguma forma a melhorar o espaço da política?

Yuval Harari: Alguns políticos estão usando a crise para pregar o ódio contra estrangeiros, o ódio às minorias, dizendo que devemos nos preocupar apenas com nós mesmos, fechando fronteiras e abandonando a democracia. Mas não precisa ser assim. Não é verdade que as ditaduras lidam com essas crises melhor do que as democracias. Geralmente é o oposto. O problema das ditaduras é que, quando uma pessoa toma todas as decisões, o processo é mais rápido. Mas se a pessoa tomar a decisão errada, quase nunca admitirá um erro. Ele apenas continuará com o mesmo erro, culpará os outros – traidores e inimigos – e exigirá ainda mais poder. A democracia é mais eficiente porque há uma pluralidade de vozes e ideias. Se algo não funciona, tentamos outra coisa. Para fazer as pessoas seguirem as orientações, um povo motivado e educado é muito mais forte do que um povo ignorante e policiado. Se, por exemplo, você quer fazer as pessoas lavarem as mãos, uma maneira de fazer isso é colocar um policial ou uma câmera em cada banheiro e forçar as pessoas a lavarem as mãos. Outro método é apenas educar as pessoas sobre vírus e bactérias, como eles causam doenças, e como você pode se proteger apenas lavando as mãos. E, se as pessoas sabem disso, você não precisa de um policial. Pode-se apenas confiar nas pessoas – um método muito mais eficiente. Além disso, no nível internacional, o isolacionismo não é a solução para lidar com a epidemia. A coisa mais importante para lutar contra a epidemia é a informação, que geralmente vem do diálogo e das experiências de outros países. A grande vantagem dos seres humanos sobre o vírus é que podemos cooperar de formas que o vírus não consegue. Um vírus na China não pode dar conselhos a outro no Brasil sobre como infectar pessoas, mas médicos chineses podem ajudar muito colegas brasileiros. O governo brasileiro está enfrentando agora um dilema que a Coréia ou Taiwan enfrentaram dois meses antes. Se não usarmos esse poder de cooperação, será muito difícil derrotar o vírus. Portanto, não sou contra impor a quarentena e fechar fronteiras e assim por diante, mas até isso precisa ser feito com base na cooperação, e não na culpa e no ódio aos outros.

Luciano Huck: Filmes futuristas – como Blade Runner, Robocop, Total Recall ou Matrix – marcaram a tua e a minha juventude, e imaginávamos um futuro em que o governo sabia tudo sobre nós apenas olhando para os nossos rostos. Agora, em certo sentido, isso é uma realidade, basta ver a realidade na China nos últimos tempos. Como você vê essa dinâmica entre vigilância e pandemia, incluindo países emergentes como o Brasil?

Yuval Harari: Certamente precisamos confiar nas novas tecnologias para combater a epidemia. É a nossa vantagem sobre os vírus, nossa capacidade de criar novas tecnologias, sejam medicamentos ou vigilância, que nos dizem quem está doente e quem está infectado. Mas temos de fazer isso de maneira muito cuidadosa. Caso contrário, podemos criar países totalitários. Vemos agora que mesmo os países democráticos estão instituindo esses sistemas de vigilância que provavelmente continuarão a existir depois que a crise acabar. Eles são muito fáceis de criar e difíceis de eliminar, porque sempre há outra emergência ou outra justificativa. E temos de lembrar algumas diretrizes sobre vigilância. Antes de tudo, a autoridade para vigiar não deve ser dada às forças de segurança, como a polícia ou militares, porque elas podem abusar dela. Em vez disso, ela precisa estar nas mãos de algum tipo de autoridade sanitária, talvez uma nova autoridade – uma autoridade epidemiológica –, completamente separada da segurança pública e focada apenas na saúde das pessoas. As pessoas que ouvem a palavra vigilância geralmente pensam no governo ou na empresa olhando para você e para mim. Mas também pode ser diferente: podemos usar a vigilância para que você, eu e todos os espectadores possam monitorar o governo. Por exemplo, mencionamos anteriormente que os governos agora gastam bilhões e bilhões de dólares para salvar empresas. Isso deve ser transparente. Eu quero monitorar isso. Quero garantir que o governo esteja aproveitando esta oportunidade para salvar pequenas empresas, e não apenas para salvar as grandes corporações próximas ao governo. Então, sim, precisamos vigiar as pessoas, mas, ao mesmo tempo, as pessoas precisam vigiar o governo e ver o que ele está fazendo. Se mantivermos essas duas diretrizes – a vigilância das pessoas por uma organização de saúde, não pelas corporações, pela polícia ou exército, e, ao mesmo tempo, um meio em que eu possa vigiar o governo – a democracia poderá ser preservada. Isso será também muito útil no combate a essa epidemia e as que vierem depois. Uma das coisas boas dessa crise é que você vê que a grande maioria das pessoas ainda confia na ciência mais do que em qualquer outra coisa. Nos últimos anos, todos esses políticos populistas disseram às pessoas que os cientistas são uma pequena elite desconectada. E existiam todas essas teorias da conspiração em torno da mudança climática ser uma farsa, por exemplo. Agora, felizmente, vemos que em uma crise real quase todo mundo se volta para a ciência. Em Israel, fecharam as sinagogas. No Irã, as mesquitas. Igrejas em todo o mundo também. Por quê? Porque os cientistas recomendaram. Assim, mesmo a Igreja, judeus e muçulmanos religiosos, em uma crise, sabem que aqueles em quem você realmente deve confiar são os especialistas científicos. Espero que essa lição permaneça.

Luciano Huck: Faço, então, uma pergunta que talvez soe ingênua. Estamos vendo países como Israel, onde você mora, usar tecnologias de combate ao terrorismo para rastrear cidadãos. De fato, todos sabemos que o governo gasta muito mais dinheiro com segurança e defesa do que em ciência e saúde. Alguns meses antes da pandemia, o Brasil havia acabado de aprovar um orçamento de bilhões de reais, resultando em cortes nos investimentos em ciência e pesquisa médica. Claro, historicamente a tecnologia militar tem impulsionado a civil, numa espécie de simbiose entre essas áreas. Mas como você imagina que seria o mundo se gastássemos mais em ciência e saúde pública do que em guerra?

Yuval Harari: Não estamos na Idade Média. Agora temos a ciência e a tecnologia para derrotar essas epidemias, seja o coronavírus ou qualquer outra. Na Idade Média, quando a peste negra matou milhões, ninguém entendeu o que acontecia, o que estava matando humanos, e o que poderia ser feito. Eles pensaram: talvez Deus esteja nos punindo, talvez todos temos de ir à igreja e orar e isso acabará. E é claro que não ajudou – apenas espalhou a infecção ainda mais rápido. Agora, levou apenas duas semanas para os cientistas identificarem o novo vírus, sequenciar todo o seu genoma e criar testes confiáveis ​​para saber quem está doente. Essa é a base para conter a propagação da epidemia. E estamos trabalhando em medicamentos e vacinas. Todo mundo está perguntando “quando” a vacina estará pronta, e não “se” ela existirá. Portanto, não estamos desamparados como na Idade Média e a base é a ciência. Até para lavar as mãos: a base é o conhecimento científico. É preciso dar às pessoas uma boa educação científica na escola para que elas saibam o que é um vírus e no caso de uma epidemia, elas saibam o que fazer. Se você não dá às pessoas uma boa educação científica na escola, elas não entendem as epidemias e acreditam em todos os tipos de teorias ridículas da conspiração. Se aprendermos a lição corretamente, depois que isso acabar, investiremos muito mais não apenas em pesquisa científica, mas também em educação científica para toda a população. Quando a próxima epidemia chegar, estaremos em uma posição muito melhor para lidar com isso. E, novamente, você mencionou despesas militares. É por isso que enfatizo que isso não é uma guerra. É uma crise de saúde. Isso não é da conta dos militares. Uma enfermeira de um hospital entende muito mais dessa crise do que um general.

Luciano Huck: Em um artigo recente no Financial Times e no início da nossa conversa, você questionou o que acontece quando todo mundo trabalha em casa e se comunica à distância, quando uma escola inteira e uma universidade vão para o online. No Brasil, 90% das escolas públicas não estão conectadas – nosso sistema de ensino público é muito analógico. Mas temos mais celulares do que cidadãos no Brasil. Somos uma sociedade digital, mas com uma lógica de governo ainda analógica. Você acha que essa pandemia pode aprofundar as desigualdade no aspecto digital ou acelerar as mudanças necessárias?

Yuval Harari: São as nossas escolhas que vão definir isso. Certamente é verdade que agora vemos as consequências da desigualdade no mundo real e digital. Em algumas escolas, você pode continuar ensinando, quase como de costume, para que os alunos não sejam muito prejudicados. Em outras, isso é impossível, pois elas não têm infraestrutura e os alunos não têm acesso a internet ou a computadores em casa. Eles são deixados para trás. E com isso a desigualdade só aumenta. O desfecho aqui pode ser governos investindo mais para fechar essa brecha digital, não apenas na educação, mas no mercado de trabalho e em outras instâncias. Quero dizer, também existem oportunidades nessa crise. É a ideia que repeti ao longo de nossa conversa: não é algo predeterminado. É uma escolha de onde investimos nossos recursos. E por isso é tão importante não só acompanhar as notícias sobre a epidemia, mas também observar o que está acontecendo no nível político. Quais são as decisões que o governo está tomando? Quais empresas estão economizando e quais empresas entraram em colapso? Para onde vai o poder? Nada disso é predeterminado. Depende do quanto estamos atentos e do que todos nós decidimos fazer.

Luciano Huck: Talvez, para um país como o Brasil, o aprendizado dessa pandemia seja que educação e tecnologia, somadas, podem superar muitos dos problemas da atualidade e das últimas décadas. Minha pergunta final é sobre isso. Qual é a grande oportunidade, em termos de aprendizado, dessa crise?

Yuval Harari: Uma coisa muito importante é que, nessa crise, nosso maior inimigo não é o vírus, mas nossos próprios demônios interiores. É o nosso ódio. É a nossa ganância. É a nossa ignorância. São pessoas que incitam nosso ódio, culpando a epidemia em algum grupo humano e nos dizendo para odiá-los. É a nossa ganância. São grandes empresas que dizem: “Ei! Temos tido dificuldades ultimamente, talvez possamos aproveitar essa oportunidade para fazer com que o governo nos dê bilhões de dólares”. São pessoas que não ouvem a ciência. Em vez disso, ouvem todos os tipos de teorias da conspiração. Se conseguirmos derrotar nossos demônios interiores – ódio, ganância, ignorância –, não apenas venceremos o vírus com muito mais facilidade, como seremos capazes de construir um mundo muito melhor depois que a crise acabar. Espero que seja exatamente isso que faremos.

Luciano Huck: Gostaria de te agradecer, Yuval. Foi um prazer e uma honra conversar sobre suas ideias no meio dessa crise global.


Luciano Huck: Mais formaturas, menos funerais

Brasil precisa de ampla coalizão para enfrentar a desigualdade

“Rezo para que minha família um dia frequente menos funerais e mais formaturas.” As palavras ditas por Douglas, um morador de São Gonçalo (RJ), me chegaram aos ouvidos com o barulho e o impacto de um tiro. O pai de Douglas morreu baleado antes que Douglas tivesse nascido; a mãe dele foi assassinada quando ele tinha 11 anos. O primo, criado como irmão, teve o mesmo destino. Como tantas crianças, ele foi forçado a sair da escola para ajudar a avó que o criou para pagar as contas da casa.

Estávamos no alto da Favela do Quarenta, parte de um complexo de favelas batizado de Coruja, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Depois de passar algumas horas com Douglas, me pareceu óbvio que ele é uma das vítimas da “loteria do CEP”. Mora em uma das cidades de maior desigualdade social, em um dos países de maior desigualdade social do mundo. Estatisticamente, serão necessárias mais nove gerações antes que alguém da vizinhança de Douglas ascenda à média da classe média.

Douglas não está sozinho. Como apresentador de TV, passei as ultimas duas décadas vendo, ouvindo e compartilhando as histórias de pessoas que vivem em favelas, em regiões remotas e em outras áreas degradadas. Como cidadão ativo e empreendedor social, estive e continuo procurando maneiras de contribuir para dar oportunidades e destravar o potencial de dezenas de milhões de brasileiros em situações de pobreza.

Desde que me entendo por gente, ouço piadas de que o Brasil é o país eternamente à espera de o futuro chegar. O maior obstáculo para esse avanço é a desigualdade, herança direta do colonialismo, da escravidão e de instituições e políticas excludentes —e legado do desdém cínico de uma elite pelos mais pobres. Embora sucessivos governos desde o restabelecimento da democracia, em 1985, tenham conseguido controlar a inflação, implantar políticas sociais e até mesmo reduzir a pobreza, a desigualdade teimosamente permanece alta. Pior: dados recentes mostram que, mesmo com a melhora da economia, a desigualdade voltou a aumentar, colocando em risco os tímidos avanços das últimas três décadas.

O principal culpado é o regime regressivo de impostos e a concessão pouco criteriosa de subsídios que beneficiam, desproporcionalmente, justamente aqueles que mais têm. No Brasil, os milionários pagamos menos imposto sobre a renda e o patrimônio do que nos países democráticos mais desenvolvidos. Enquanto isso, o modelo impõe uma carga duríssima de impostos indiretos sobre os mais pobres.

Se o Brasil quer ter chances de baixar a desigualdade, precisa também de avanços drásticos na cobertura e na qualidade do sistema público de ensino básico. Os mais ricos têm o privilégio de pagar por escolas de ponta, enquanto crianças mais pobres, como o Douglas, têm acesso a um aprendizado de menor qualidade, e frequentemente têm de abortar sua vida escolar, reféns da violência e de pressões financeiras. É o que ajuda a explicar por que ainda temos 11 milhões de brasileiros com mais de 15 anos que mal sabem ler ou escrever.

O Brasil precisa desesperadamente melhorar as condições de ensino de suas 200 mil escolas públicas e torná-las mais eficientes. Em vez de construir e inaugurar prédios novos, o foco deveria ser investir com mais critério, priorizando o treinamento e a promoção dos professores, ensino da primeira infância, continuidade com qualidade nos ciclos seguintes, valorização do ensino técnico e currículos antenados com o século 21. Avanços recentes no ensino, como no Ceará, Piauí e Espírito Santo, comprovam que um progresso rápido é possível.

O enfrentamento da desigualdade requer, ainda, uma rede de proteção mais ampla. Temos aproximadamente 43 milhões de brasileiros em condições de pobreza, e 13 milhões deles em situação de extrema pobreza. É o índice mais alto em sete anos. Inteligência artificial e tecnologias da informação, além de empenho administrativo, podem aperfeiçoar os serviços sociais mais velozmente e eficazmente.

Mas, para tudo isso, o país necessita de novas lideranças. Hoje, a maioria dos brasileiros se vê frustrada. Em 2013, bem antes de manifestações massivas tomarem as ruas no Chile e no Equador, o Brasil assistiu a uma de suas maiores ondas populares de protesto. A eleição presidencial de 2018, que levou ao poder Jair Bolsonaro e seu governo, revelou a extensão e a gravidade da insatisfação dos brasileiros. Com um ambiente tão polarizado, é natural que as opiniões se dividam sobre se Bolsonaro vai conseguir cumprir suas promessas de tornar o Brasil um país melhor.

Para muitos da minha geração, a política ainda é vista como um negócio sujo, a ser evitado. Mas, olhando para trás, eu agora reconheço que erramos. Todos que não se envolveram também são responsáveis por esse ambiente divisionista e desesperançoso. A política não foi um ambiente atrativo para toda uma geração, participamos menos do que deveríamos.

Mas a minha geração e as novas não podem continuar alheias e aceitar as coisas como são. Este é o momento de o Brasil fazer um novo contrato social. O Brasil precisa de uma ampla coalizão política para enfrentar a desigualdade de oportunidades, replicando as boas experiências e as boas práticas, sejam elas da direita ou da esquerda. Principismo ideológico, irredutibilidade e aversão aos fatos não vão gerar políticas públicas eficazes para resolver os problemas mais graves e urgentes do país.

Precisamos de políticos e servidores públicos comprometidos, tecnicamente e eticamente capacitados para o trabalho. Mas a sociedade civil não pode lhes faltar. Em 2017, esses desafios me fizeram ingressar no Agora, um movimento cívico dedicado a mobilizar uma nova geração de líderes que prometeram dedicar pelo menos dois anos de sua vida ao serviço público. Logo depois ajudei a lançar o RenovaBR, uma escola apartidária para treinar potenciais líderes políticos.

Em nossa primeira convocação, atraímos 4.600 interessados que nunca tinham se envolvido com a política. Eles foram cativados pela nossa proposta de “ser o candidato em que gostariam de votar”, independentemente de matizes ideológicas. Dos mais de 120 aprovados para se candidatar, 17 foram eleitos para cargos federais e estaduais em 2018. Na abertura da segunda e mais recente turma, desta vez para as eleições municipais, recebemos mais de 31 mil inscrições.

Novas lideranças apoiadas por grupos como Agora, RenovaBR e tantos outros relevantes movimentos cívicos proporcionam uma visão positiva e inspiradora de um Brasil mais aberto e plural. Estão focados naquilo que de fato importa: gerar oportunidades, diminuir o abismo entre ricos e pobres, fazer da politica um ambiente ético e do Estado uma engrenagem mais eficiente.

Sigo torcendo e empolgado com o país. Se mirarmos a desigualdade com os instrumentos que já estão à nossa disposição, Douglas e milhões de crianças como um dia ele foi poderão frequentar mais graduações e menos funerais.

*Luciano Huck, apresentador de TV e empresário


Vera Magalhães: Huck é lançado candidato em Davos, e não refuta

Questionado no Fórum Econômico Mundial de Davos a respeito de uma futura candidatura à Presidência da República, Luciano Huck enrolou, falou de Amazônia, que não tinha nada a ver com a pergunta, mas acabou concluindo, para risos da plateia que acompanha a palestra: “Sua pergunta é muito difícil. Não tenho a resposta nem para mim mesmo”.

Mas o fato é que ele não só não refutou a ideia como, na resposta, deu justificativas de por que pode acabar trilhando este caminho. O “lançamento” de sua candidatura foi feito por Raiam Pinto dos Santos, que estava na audiência do almoço-painel, se apresentou como empreendedor e quis saber que garantias Huck daria de que seu projeto é para valer.

Para o apresentador, há “muitas maneiras” de se engajar nas mudanças que o País precisa. “Entrar para a política é uma delas”, afirmou. Mas também listou outras iniciativas que poderiam ser tomadas, como fomentar, inclusive por meio de financiamento, a qualificação de novos talentos da política –algo que já faz, por meio da parceria com os movimentos de renovação, que, por sua vez, são vistos como a plataforma inicial, anterior inclusive aos partidos, para seu lançamento na política.

“Todas as decisões que tomamos na vida são políticas”, afirmou o apresentador, que está circulando em Davos com uma inédita barba branca. Seria uma forma de testar uma aparência mais “presidenciável”?


O Estado de S Paulo: ‘Brasil precisa renovar suas lideranças políticas do topo para a base’, diz Huck

Em artigo no site do Fórum Mundial de Davos, apresentador cita ‘desafios’ do País

O apresentador de TV e potencial candidato à Presidência em 2022 Luciano Huck afirmou que o Brasil precisa “restaurar” e “renovar” suas lideranças políticas do “topo para a base” em artigo publicado no site do Fórum Econômico Mundial nesta quarta-feira, 15. “Lideranças e políticas públicas responsáveis e representativas são fundamentais para revitalizar o contrato social. Isso não vai acontecer espontaneamente. Requer um esforço consciente para investir em talentos e atraí-los”, afirmou Huck.

O apresentador é visto como possível candidato de uma frente de centro na próxima eleição em 2022 e é ligado a movimentos de renovação política, como o RenovaBR e o Agora!. Ele estará presente no encontro do fórum em Davos, na Suíça, que ocorrerá entre os dias 21 e 24 de janeiro. No artigo, Huck lista três “desafios” do Brasil e do mundo para o futuro: as queimadas e o desmatamento na Amazônia, a redução da desigualdade e a renovação das lideranças políticas.

“Em 2017, entrei no Agora!, um dos vários movimentos cívicos dinâmicos que investem em uma nova geração de líderes comprometidos com um Brasil mais inclusivo e sustentável. E em 2018, co-fundei a RenovaBR, atraindo mais de 4.600 inscrições de pessoas que nunca haviam se envolvido em política para treinamento em governança e ética. Dos 120 candidatos aprovados, 17 foram eleitos para o cargo federal naquele ano”, disse, se colocando como parte da renovação.

Huck afirma no texto que o Brasil terá um “papel de liderança” no desenrolar da próxima década, em razão de seus “imensos recursos naturais” e também por seu “estoque impressionante de recursos humanos”. “Mas (o País) também é convulsionado pela alta desigualdade e pela pobreza crescente. Para complicar, estamos enfrentando uma crise de liderança política e esquivando de nossas responsabilidades internacionais”, analisou o apresentador.

Apresentador critica política ambiental do governo Bolsonaro
No artigo, Huck teceu críticas à política ambiental do governo brasileiro. “Apesar dos esforços das autoridades brasileiras para ocultar o problema, os dados de satélite do próprio Ministério da Ciência mostraram que as taxas de desmatamento atingiram os níveis mais altos em duas décadas”, escreveu Huck.

Para ele, é necessário um “novo e radical paradigma” para garantir a administração sustentável da biodiversidade do País. “Deve haver tolerância zero ao desmatamento e um foco conjunto na melhoria da produtividade das áreas onde as florestas já foram cortadas. Aproximadamente 90% do desmatamento na Amazônia é ilegal e pelo menos dois terços dos 80 milhões de hectares de terras desmatadas são subutilizados, degradados e abandonados”, afirmou, ressaltando que “tão importante quanto o agronegócio sustentável, são a expansão do ecoturismo, o investimento em pesquisas em biotecnologia e o desenvolvimento de produtos da floresta tropical comercializados de maneira justa.”

País tem de colocar redução de desigualdade na agenda, diz Huck
Huck também afirmou que Brasil precisa colocar a redução da desigualdade no “topo” de sua agenda nacional em 2020. “O aprofundamento da desigualdade social e econômica nos países está reconfigurando fundamentalmente as políticas doméstica e internacional”, disse. Ele considera que o governo brasileiro adota “dinâmica” de outros governos que estão se retirando da cooperação multilateral e voltando ao “nacionalismo e protecionismo reacionários”. O apresentador ainda aponta que nos últimos anos a renda per capita caiu e a diferença entre ricos e pobres começou a aumentar, “acabando com muitos ganhos sociais das três décadas anteriores”.

Embora nunca tenha se colocado publicamente como possível candidato à Presidência em 2022, o nome do apresentador tem aparecido com frequência nas articulações em torno de uma candidatura de centro, promovidas por figuras como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga e o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung. Tido como um candidato capaz de “herdar”o eleitorado do ex-presidente Lula no Nordeste, recentemente Huck também se encontrou com o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB).


Celso Rocha de Barros: Luciano Huck também quer eleitores da centro-esquerda

PT precisa entender que, se não falar à centro-esquerda, vai ter quem fale

Tanto Luciano Huck quanto Joaquim Barbosa teriam vencido a eleição presidencial de 2018 se tivesse concorrido sem o outro na disputa.

Se tem algo que foi provado pela eleição de Bolsonaro é que o eleitorado queria um outsider, e, se valeu Bolsonaro, teria valido qualquer um. Barbosa e Huck eram incomparavelmente superiores a Bolsonaro.

Todo mundo é.

Aqui é bom contar uma parte da história de 2018 que é pelo menos tão importante quanto o antipetismo.

A rejeição ao PT foi importante no segundo turno, mas lembrem-se: Bolsonaro quase venceu no primeiro, quando havia uma ampla gama de candidatos disponíveis. Os analistas próximos ao PSDB precisam explicar por que Bolsonaro, e não Alckmin, Meirelles, Amoêdo ou Dias, se beneficiou do antipetismo.

O governo Temer foi uma tentativa de recomposição do sistema político diante dos ataques da Lava Jato. Toda a direita moderada apoiou isso. Para barrar os outsiders, os grandes partidos mudaram a regra de financiamento eleitoral, dificultando as pequenas candidaturas.

A centro-direita apostou tudo na hipótese de que 2018 seria uma eleição normal, em que estrutura partidária, dinheiro de campanha e tempo de TV seriam decisivos. Quando essa aposta se consolidou, a candidatura de Huck perdeu espaço.

Havia vozes dissidentes. O governador tucano do Espírito Santo, Paulo Hartung, dizia que Alckmin seria um ótimo presidente, mas não era o que o eleitorado de 2018 queria. Hartung foi um dos principais defensores da candidatura Huck. Tanto FHC quanto Arminio Fraga tiveram, em algum momento, entusiasmo pela ideia.

Hartung e os defensores de Huck perderam a disputa interna. É tentador comparar esse erro tucano com o erro petista de não acompanhar Haddad em direção ao centro no segundo turno.

Huck será candidato em 2022. Não sabemos se terá sucesso. Talvez o eleitorado queira algo muito diferente do que quis em 2018, quando o apresentador teria sido eleito. Talvez não.

Temos uma discussão em curso sobre a viabilidade de uma candidatura de centro. Há muito ruído nessa conversa, porque Bolsonaro voltou a desmoralizar o termo "direita", que havia sido reabilitado nos anos finais dos governos petistas.

João Doria, por exemplo, quer conquistar eleitores ao centro, mas busca sobretudo retomar o controle da direita pelos (comparativamente) moderados.

O perfil da candidatura de Huck deve ter várias semelhanças com o da candidatura Doria. Mas já é possível notar uma diferença: ao contrário do governador de São Paulo, que se elegeu em uma onda de antipetismo, Huck também quer eleitores da centro-esquerda.

Seus discursos sobre o combate à desigualdade e a importância de políticas sociais podem conquistar eleitores moderados do PT. Afinal, tem gente no partido que parece disposta a abdicar dos votos da centro-esquerda.

Seria bom se o eleitorado ex-tucano voltasse a se organizar sob a liderança de um moderado, mas confesso que meu interesse na candidatura Huck é outro: o PT precisa entender que, se ele não quiser falar à centro-esquerda, vai ter gente falando.

Pode ser Huck por um lado, ou o PSB pelo outro, pode ser Ciro, pode ser alguma outra coisa. Mas o espaço que venceu quatro eleições presidenciais seguidas não vai ficar vazio.

*Celso Rocha de Barros, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Folha de S. Paulo: Huck defende doações privadas em campanha eleitoral e parlamentarismo

Cotado para disputar Presidência, apresentador falou a políticos e empresários em evento em São Paulo

Joelmir Tavares, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Cotado para concorrer à Presidência da República em 2022, o apresentador Luciano Huck despistou sobre seus planos, mas falou muito de eleições e política em um evento nesta sexta-feira (25) em São Paulo. Ele defendeu mudanças no financiamento de campanhas, disse apoiar o voto distrital e demonstrou simpatia pelo parlamentarismo.

“Acho que a gente tem que rever doações. Com critérios, mas não pode ser única e exclusivamente um fundo público que vá sustentar os partidos e as eleições”, afirmou em seminário da Comunitas, organização independente que atua em parceria com governos e iniciativa privada.

“Você limitar o financiamento político-partidário e eleitoral só a um fundo público, no montante que ele está hoje, gerido e administrado por quem está dentro dele, eu não acho que seja o sistema mais eficiente e democrático”, disse.

Para ele, o que existia “no passado, de você poder doar para todo mundo, a qualquer tempo, independentemente da sua ideologia e da sua crença, não funcionou. Tem que trazer isso para o debate de novo”. As doações privadas foram proibidas em 2015.

O apresentador da TV Globo, que não está filiado a nenhum partido, afirmou ter ressalvas sobre a possibilidade de autorização para candidaturas independentes no Brasil. O STF (Supremo Tribunal Federal) fará audiência pública sobre o tema em dezembro e julgará uma ação sobre a possibilidade de permitir a candidatura de pessoas sem filiação.

“Não sei se candidaturas independentes, neste momento, com mais de 30 partidos, iriam contribuir”, considerou Huck. Ele apontou a necessidade de uma reforma política ampla, para instituir o sistema de voto distrital puro ou misto e fortalecer os partidos.

“Para que [as legendas] sejam em menor número, para que não sejam plataformas fisiológicas de venda de tempo na televisão, ou de pura e simplesmente negociações políticas”, argumentou. O parlamentarismo, analisou, também poderia ser um modelo viável no Brasil, para aperfeiçoar "a relação do Poder Executivo com o Legislativo e com sociedade como um todo".

Huck evitou comentar o governo Jair Bolsonaro (PSL), depois que o presidente rebateu críticas anteriores dele e o acusou de ser “parte do caos” por ter comprado um jatinho com financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

Sem citar o nome do presidente, o apresentador afirmou que os eleitores em 2018 “depositaram muita esperança” em um salvador da pátria, “no que a gente está vivendo neste momento”, e falou que promessas exageradas foram feitas “no último ciclo eleitoral”.

Huck ainda opinou sobre o risco de eclodirem manifestações de rua no Brasil como as que têm atingido países na América Latina e em outras regiões, com espírito semelhante ao das jornadas de junho de 2013.

Para ele, o risco imediato é baixo, mas há possibilidade de protestos a longo prazo se “a vida não melhorar para valer” e a população sentir um distanciamento entre o que governos e políticos prometem e o que entregam concretamente.

Nesse ponto, ele insistiu na necessidade de enfrentar a crescente desigualdade no país e disse que o ex-presidente Lula (PT) é respeitado, sobretudo no Nordeste, onde muitas das melhorias de vida para a população pobre ocorreram nos anos do petista.

Contando o exemplo de uma viagem que fez ao Piauí para gravar seu programa de TV, disse que “o Lula é muito respeitado lá, mas muito respeitado”. Mas pontuou que os avanços na região foram frutos de duas gestões: a do PT e a de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

“Muito da política que veio da dona Ruth [Cardoso]. Tem uma herança de dois governos que trabalharam de maneira contínua nos projetos de proteção social.”

Apoiador dos grupos RenovaBR e Agora!, ele repisou o discurso de que tem buscado atuar politicamente por meio dos movimentos cívicos e se disse contra antecipar o debate sobre sucessão presidencial.

“Estou me colocando como um cidadão ativo. Entrar nesse ringue agora do debate personificado eu acho, de verdade, que não contribui”, declarou, cobrando um foco maior sobre a solução dos problemas mais imediatos do país no lugar da especulação eleitoral.

Instado a falar sobre redes sociais, o apresentador disse ser vítima de ataques em massa e compartilhou a impressão de que o ambiente virtual está mais agressivo que a vida real.

“Eu estou sendo atacado ferozmente nas redes nesses últimos três meses”, relatou. “A temperatura nas redes sociais no Brasil hoje não é a das ruas, mesmo. E esse é um problema que a gente vai ter que enfrentar.”

Para Huck, a polarização política, embora negativa, pode indicar novas rotas. “Talvez não esteja trazendo uma consequência imediata positiva para a democracia, mas está todo mundo falando disso. Então vamos aproveitar e apontar um caminho possível.”

Ele buscou se posicionar no caminho do meio: concorda com teses liberais, mas acredita ser necessário dar atenção a políticas sociais e reduzir a desigualdade. É o que resume como Estado eficiente, ou Estado afetivo.

"O mundo hoje está todo muito assimétrico. O que a ONU imaginou que seria o equilíbrio não aconteceu, o que o marxismo pensou não deu certo, o que o liberalismo pensou não deu certo. Acho injusto deixar a classe política sozinha tentando resolver o problema da sociedade como um todo", filosofou.

Em sua participação no 12º Encontro de Líderes da Comunitas, o apresentador conversou no palco com o empresário Carlos Jereissati Filho (grupo Iguatemi), que é seu colega no movimento Agora! e também sobrinho do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), um dos políticos experimentados que têm dialogado com Huck sobre candidatura.

Ao longo de sua fala, o comunicador reiterou que na plateia estava uma parte dos líderes atuais que mais admira —alguns, inclusive, se tornaram seus interlocutores frequentes.

Pelas mesas se espalhavam políticos como o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung (sem partido) e os governadores do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), do Pará, Helder Barbalho (MDB), e de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM).

Também ouviram Huck: os empresários Guilherme Leal (Natura), Elie Horn (Cyrela) —que pegou o microfone para sugerir ao comunicador a criação do "Ministério do Bem"— e Rubens Ometto (Cosan), deputados do Partido Novo e o ex-senador Jorge Bornhausen, a quem o apresentador agradeceu pela maneira como foi tratado, com “palavras gentis”, em entrevista publicada pela Folha.

Bornhausen disse ao jornal que o centro político vai apoiar Huck, e não João Doria (PSDB), contra o PT e Bolsonaro em 2022.


Valor: Huck amplia elos com DEM e busca ponte com esquerda

Apresentador aumenta rede de aliados, mas é visto com cautela no meio político

Por Malu Delgado, do Valor Econômico

SÃO PAULO - A candidatura de Luciano Huck à Presidência da República é um caminho possível para 2022, mas são muitas as baldeações no trajeto. A viabilidade da candidatura é escrutinada em constantes pesquisas de intenção de votos encomendadas por seus apoiadores, que são categóricos: nenhum passo objetivo será dado antes de 2021 e, até lá, todas as variáveis estão no radar: o protagonismo eleitoral do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hoje preso, é uma incógnita; o ministro Sergio Moro pode ser candidato; o próprio Huck pode declinar, como fez em 2018; a economia pode propiciar um gás inesperado à reeleição do presidente Jair Bolsonaro.

Nessas sondagens feitas para consumo interno, Huck já aparece com intenção de votos superior a Ciro Gomes (PDT), que terminou em terceiro na eleição de 2018. Há amostragens qualitativas que deixam os entusiastas da candidatura animados: entre cada cinco eleitores de Lula, três admitem votar em Huck, ou seja, é flagrante a entrada do apresentador nas classes C e D simpatizantes do lulismo. A viabilidade eleitoral de Huck funciona como ímã para várias forças políticas. O apresentador não admite a candidatura e, diante de sua alta exposição nos últimos meses, está mais recolhido. Ao Valor, Huck alegou que, com uma agenda atribulada, preferia não conceder entrevista no momento.

Enquanto concilia sua atividade profissional com o que seus apoiadores chamam de espírito cívico, Huck intensifica contatos políticos com lideranças de centro-direita, tendo aliados no DEM, mas está impelido a buscar também pontes com figuras da esquerda abertas ao diálogo.

O que é inegável, no momento, é que Huck amplia a sua influência para esboçar políticas públicas que poderão constar num programa de governo. O estímulo mais imediato para uma candidatura partiu de fundadores do Agora, movimento político suprapartidário ao qual Huck aderiu em 2017, mas há simpatizantes e apoiadores em outros movimentos sociais recém criados, como o RenovaBR e parte do Livres e Acredito.

Está em curso a reorganização de um campo que vai da centro-esquerda até uma visão liberal reformista”
— Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo

Interlocutor frequente de Huck, o cientista político e cofundador do Agora Leandro Machado diz que o apresentador encontra no grupo um canal de debate sobre questões relevantes do país, como educação e segurança, mas isso não significa que ali esteja se gestando o plano de governo de uma eventual candidatura ao Planalto. Machado questiona os interesses de partidos que, vendo em Huck um nome competitivo, se aproximam dele. “É ele se aproximando ou é o DEM e o PSDB que se aproximam dele?”, pergunta.

O empresário Eduardo Mufarej, criador do RenovaBR, é um dos maiores entusiastas da candidatura. Procurado pelo Valor, também preferiu não falar sobre o assunto. Se, por um lado, o apoio de movimentos é um gás para a candidatura, por outro, a antecipação da disputa deixa integrantes dos mesmos movimentos, que não querem se associar a partidos, mas a ideias, reticentes e ressabiados.

Fontes confirmaram ao Valor que Huck já pediu ajuda para conhecer mais profundamente alguns políticos da esquerda. Se o diálogo com o PT parece impossível, outras pontes vem sendo construídas. Um nome que está no radar do apresentador, por exemplo, é o do governador do Maranhão, Flávio Dino. Hoje no PC do B, Dino dá sinais de que se prepara para uma disputa presidencial, possivelmente no PSB.

“Antes de olhar para 2022 precisamos olhar o que dá para fazer numa caminhada positiva que diminua o sofrimento da população brasileira”, disse ao Valor o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung, hoje o principal conselheiro político de Huck. Em 2018, apresentado ao possível candidato pelo ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, Hartung chegou a ser sondado para vice, caso a empreitada fosse levada adiante. A primeira conversa por e-mail mais longa entre Armínio e Huck data de fevereiro de 2018.

“O que precisa ser reorganizado no país, e para a minha alegria isso está em curso, com muitas conversas e boa interlocução, é um campo político que vai do pensamento de centro-esquerda, que tem muita sensibilidade para os gravíssimos problemas sociais do país, até uma visão liberal reformista, que trabalha a ideia de modernização da economia, melhorar o ambiente de negócios, de dar segurança jurídica para quem quer trabalhar, gerar empregos, gerar oportunidades”, define Hartung. "Esse campo começa a dar passos de diálogo e a olhar para ajudar o país a sair dessa encrenca que entrou”, diz.

Não sou político, mas acho que o Luciano não tem que ficar na linha de frente da política. É muito cedo”
— Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central

Neste esforço contínuo de diálogo, o ex-governador trabalha para levar Dino ainda neste ano a uma conversa na Casa das Garças, no Rio, um espaço de debates sócio-econômicos identificado como reduto do pensamento tucano. Hartung também teve conversas recentes com o governador da Bahia, Rui Costa (PT). Os governadores de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), e do Ceará, Camilo Santana (PT), são outros interlocutores frequentes da esquerda com esse centro “liberal progressista”, como Hartung tem definido.

A aproximação com a centro-esquerda é pragmática e interessa aos dois lados: caso se desenhe, no futuro, um segundo turno que tenha em um dos polos a direita, como o presidente Jair Bolsonaro, essas outras forças pretendem traçar, desde agora, condições de diálogo para evitar o que ocorreu em 2018, quando o petista Fernando Haddad não conseguiu construir pontes ao centro e foi derrotado.

O apresentador tem, entre seus conselheiros políticos, também a ala mais jovem do DEM. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia é figura frequente em jantares promovidos por Huck ou por seus aliados. Há também grande proximidade do apresentador com o ex-ministro da Educação José Mendonça Filho, que Huck conheceu numa das viagens profissionais a Pernambuco no início dos anos 2000, quando Mendoncinha, como é chamado pelos amigos e correligionários, era vice-governador. Mendoncinha, hoje, frequenta a casa de Huck e o considera um amigo. Símbolo da renovação geracional do DEM, o presidente da sigla, ACM Neto, prefeito de Salvador, é outro político que Huck respeita e escuta.

Nenhum político experiente que endossa a candidatura de Huck fala abertamente sobre o assunto. Um integrante do DEM admite, reservadamente, que o partido está com o pé em três canoas e que a fase atual é delicadíssima. “É uma missão possível construir uma candidatura ao centro, liberal democrática, menos ortodoxa, distante dos polos. Mas de um lado tem a hegemonia petista e, do outro, a bolsonarista. Penetrar nesse meio todo não é fácil.” Parte do DEM, segundo esse político, tem simpatia por Huck, mas também por João Doria, e há ainda os três ministros do partido no governo Bolsonaro. “O diálogo com esses três vai existir no DEM. Bolsonaro é detentor de capital político bastante elevado. Tirar isso dele não é simples”, diz essa fonte.

Recentemente, Huck foi aconselhado a não citar o nome de Bolsonaro em suas palestras. Quando afirmou, num evento em Vila Velha, em agosto, que Bolsonaro era o último capítulo de uma história que não deu certo, Huck e seus apoiadores perceberam o tamanho do estrago que o fã-clube bolsonarista pode provocar em reputações. O próprio Huck confidenciou a um interlocutor que Bolsonaro lhe dará dor de cabeça. A estratégia, agora, é defender as iniciativas do ministro da Economia, Paulo Guedes, e estimular ações no Congresso, com o aval e a articulação direta de Rodrigo Maia, para que o máximo de reformas possam avançar neste governo.

A linha do discurso de Huck numa eventual campanha já está delineada e há até definição dos cinco eixos centrais que ele deve explorar: desigualdade social, sustentabilidade, educação, saúde e segurança pública. Para cada um desses eixos, conversas têm sido articuladas com especialistas em cada um desses setores.

O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga apresentou Huck aos economistas Marcos Lisboa, presidente do Insper, e Ricardo Paes de Barros, que também é do Instituto Ayrton Senna e conselheiro do Livres. PB, como é conhecido, foi o principal formulador do Bolsa Família e é hoje a maior referência no país para elaboração de políticas públicas com base em dados e evidências. Esses profissionais estão incumbidos de subsidiar debates sobre desigualdade e macroeconomia.

As conversas sobre desigualdade começaram no Agora, em 2017, quando o advogado Beto Vasconcelos, alinhado a governos do PT, e o cientista social Humberto Laudares, simpático a governos tucanos, fizeram a cabeça de Huck sobre aspectos estruturais do problema. Foi ali que Huck ouviu sobre a dificuldade de endereçar publicamente o problema já que ele faz parte da elite super rica do Brasil.

Definindo-se como liberal progressista, Armínio Fraga diz que o debate sobre desigualdade é imprescindível num país como o Brasil. “Eu não sou político, mas realmente acho que o Luciano não tem que ficar na linha de frente da política. É muito cedo, não faz sentido. Ele pode aprender, influenciar onde puder, e mais para a frente ele pensa nisso”, diz Armínio Fraga. O ex-presidente do BC admite que “Luciano está mordido pelos assuntos públicos há muito tempo, e ele deve continuar fazendo isso”, sem ter 2022 como foco. “Ele tem uma cabeça muito prática: esse é o problema, quero entender, como fazer para melhorar.”

Na área de segurança pública, por exemplo, Huck conta com Ilona Szabó e Melina Risso, ambas cofundadoras do Agora e com atuação nessa área e interfaces no terceiro setor.

Se lá na frente o cavalo continuar arreado, uma saída é Huck se filiar ao partido Cidadania, o antigo PPS, comandado por Roberto Freire. A hipótese, admite Freire, foi discutida em 2018 e ainda está no radar. “O Cidadania ficaria muito gratificado se ele decidir ser candidato e se integrar ao partido. Só que isso não vai acontecer nem tão cedo, nada agora vai ser decidido. Se isso vier a se concretizar, não tenho dúvida: vamos ser protagonistas em 2022”, afirma o ex-deputado da Constituinte. (Colaborou Cristian Klein, do Rio)

 


Valor: Desigualdade vai implodir país, diz Huck

Ao incluir-se no rol dos 1% de brasileiros mais ricos e admitir o desconforto com o "tsunami político" que assolou seu dia a dia, o apresentador e empresário Luciano Huck afirmou que o "abismo social gigantesco e a desigualdade social gritante" impedem o desenvolvimento e podem levar o país à implosão. "Hoje mais de 7 milhões de brasileiros vivem com menos de R$ 2 por dia. Se a gente não fizer nada esse país vai implodir", sentenciou, durante talk show no Fórum Exame 2019, num hotel em São Paulo.

"A gente não pode achar que vai discutir desigualdade, ou a solução para as favelas no Brasil, com um monte de gente branca, rica, sentada numa mesa na [avenida] Faria Lima", criticou Huck. O apresentador é visto no meio político e entre setores empresariais como um possível nome para disputar a Presidência em 2022.

Huck falou por 27 minutos sobre o tema "O Brasil que queremos" e apontou a desigualdade social como principal entrave ao desenvolvimento do país. Foi aplaudido de pé ao final. "Nós precisamos discutir seriamente a mobilidade social no Brasil. O Brasil já teve mobilidade social. Não tem mais. Hoje, se você nascer pobre, numa favela do Brasil, a chance de você morrer pobre, numa favela do Brasil, é enorme. Isso não está certo. É inaceitável."

Em nenhum momento Huck mencionou diretamente o presidente Jair Bolsonaro, mas por diversas vezes fez questão de enfatizar sua crença na necessidade de construções coletivas e respeito às diferenças. "Eu não fui treinado para o ringue da luta livre, eu não contribuí para a polarização, não sou um cara que grita, fala alto, eu não enxergo as pessoas que pensam diferente de mim como inimigos, eu também tento não excluir quem tem qualquer atitude e orientação diferente da minha. Estou com cabeça aberta ao diálogo de ideias e construção coletiva", disse.

O apresentador deu munição às especulações sobre sua candidatura futura. Afirmou que está fora de sua zona de conforto ao participar de eventos que promovem discussões políticas, mas disse entender que essa é a maneira de contribuir "para que o Brasil seja mais eficiente e um país mais afetivo, menos desigual". "Eu tinha dois caminhos: podia ser continuar sendo um peixinho dourado lá no aquário, protegido pelos muros do Projac, sendo alimentado diariamente com bastante fartura, fazendo o que eu gosto, ou me jogar no oceano e tentar de contribuir para que o Brasil seja um país melhor no futuro. A resposta está dada. Estou aqui."

Ressaltou, porém, que não quis se aproximar "da política tradicional" e optou - pelo menos até o momento - por não se filiar a nenhum partido, preferindo a atuação ligada a "movimentos cívicos", como o RenovaBR. Deixou claro, por outro lado, que trabalha ativamente na construção coletiva de um projeto alternativo de desenvolvimento do país, que está sendo gestado no movimento Agora. "Não é eleitoral, não é político, é aberto", explicou.

Huck citou o ministro da Economia, Paulo Guedes, reforçando a aproximação que tem com o economista. Mas fez questão de delimitar algumas diferenças de pensamento com os liberais ao enfatizar, com voz firme, que há uma geração perdida de brasileiros, analfabetos funcionais, sem direitos básicos e sem acesso a oportunidades, que precisa ser amparada pelo Estado. "Teremos que criar uma rede de proteção social para essas pessoas sim", disse, elevando o tom de voz. Foi fortemente aplaudido.

Segundo Huck, ainda que todos os filantropos e empresários brasileiros se unam, "o ponteiro da desigualdade não vai mexer". "Quem tem o poder para mexer no ponteiro da redução da desigualdade é o Estado." O apresentador defendeu a qualificação dos políticos e compromisso com o planejamento.

Em uma clara alusão a políticos da direita, citou o polêmico episódio no qual se envolveu o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB), ao determinar a retirada do HQ "Os Vingadores", da Marvel, da Bienal do Livro porque, segundo ele, eram impróprios a crianças por ter conteúdo sexual.

"O povo pra valer não está preocupado em como é o desenho do casal que está no gibi da Marvel. As pessoas querem saber é como a vida delas pode melhorar de verdade, só isso."

Mas Huck também fez uma crítica a governos petistas, citando o mantra preferido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "A gente precisa de uma narrativa conciliadora no Brasil. Não dá para ficar brigando com todo mundo, discutindo, iludindo as pessoas. E não é de hoje... Usaram muito a retórica 'muito antes na história desse país', e não é verdade. O 'nunca antes na história desse país só foi possível porque antes disso teve um governo que organizou o Estado, equilibrou o Estado". Os governos de Lula e Dilma Rousseff foram precedidos por dois mandatos do tucano Fernando Henrique Cardoso.

Ao final da palestra, Huck foi questionado sobre a Amazônia. Explicou que tem ouvido vários especialistas sobre o assunto e defendeu a "Amazônia 4.0". Ele criticou o modelo da Zona Franca de Manaus. "A gente continua produzindo bicicleta e geladeira em Manaus para vender em Santa Catarina. Não estou desqualificando a Zona Franca, acho importante. Mas é possível algo muito mais moderno. A Amazônia pode ser zona de inovação e tecnologia. "