Lava Jato

Celso Rocha de Barros: A eleição de 2020 será normal?

A Lava Jato, a antipolítica e o rescaldo de 2013, fatores que complicaram a eleição de 2018, parecem ter morrido

A próxima eleição para prefeito é especialmente difícil de prever: não tem nenhum modelo de ciência política que incorpore os efeitos de uma pandemia que matou 110 mil pessoas e impedirá a campanha de rua, ou a ressaca de uma tentativa de golpe de Estado frustrada, ou o desmonte aberto, sem resistência, do principal fator que explicou a eleição de dois anos atrás (a Lava Jato).

O presidente da República, que até outro dia tentava o autogolpe, não montou um partido para si, porque achava que não ia ter mais que se preocupar com essas coisas. O ciclo político de indignação que começou em 2013 parece ter terminado com o exercício do poder pelos que têm dinheiro e armas da maneira mais aberta, criminosa e impune possível.

E o impressionante é que a eleição de 2020 pode ser a mais “normal” desde 2013, justamente por isso. Os fatores que complicaram 2018 —a Lava Jato, a antipolítica, o rescaldo de 2013— parecem ter morrido no desabamento posterior.

Talvez por isso, pode haver um retorno à política mais pé no chão.

Muitos candidatos que lideram as pesquisas são administradores cujas gestões são, ou foram, razoavelmente aprovadas: Eduardo Paes, Alexandre Kalil, Bruno Covas. Mesmo onde a esquerda tem chances de vencer, trata-se de lugares onde ela é ou já foi poder várias vezes.

Se esses candidatos estabelecidos forem vencedores, 2020 pode ser o anti-2018, não, necessariamente, por ser anti-Bolsonaro, mas por ser anti-antissistema, do mesmo modo que o governo é anti-antifascista.

Nesse cenário, pode ser uma eleição “fria”, sem os grandes entusiasmos dos últimos anos, que, repito, parecem ter sido desperdiçados.

Mas é cedo para cravar isso. Em primeiro lugar, há a possibilidade de o auxílio emergencial reforçar Bolsonaro como cabo eleitoral. Se a eleição se nacionalizar, ela pode esquentar, e os bolsonaristas tentarão avançar sobre as posições da centro-direita com o populismo robusto de que falamos na última coluna. Se você confia que um Bolsonaro fortalecido dessa maneira não voltará a ser golpista, você é mais otimista do que eu.

A nacionalização da eleição poderia, em tese, ser boa notícia para a esquerda, que vai muito mal nas pesquisas até agora. A campanha pode ser a primeira grande chance para a esquerda denunciar Bolsonaro.

Mas a esquerda brasileira vive um momento difícil. A falta de campanha de rua é um problema para a militância. Mais do que isso, há uma disputa pela liderança do bloco da esquerda cujo resultado ainda é incerto, o que se reflete na fragmentação das candidaturas.

É perfeitamente possível que, em algumas cidades, a soma dos votos de esquerda seja significativa, mas os progressistas fiquem fora do segundo turno. Espero ter a chance de discutir as várias opções da esquerda nas próximas colunas.

No fundo, a eleição de 2020 será um bom momento para a centro-direita descobrir se valeu a aposta de não derrubar Bolsonaro. Se a eleição for normal, ela deve ser a grande vencedora da rodada. Aumentarão as chances de uma coalizão liderada por Doria, Moro ou Luciano Huck, mas, sobretudo, aumentarão as chances de estabilização institucional.

Por outro lado, se Bolsonaro sair vitorioso e ressurgir como fator de instabilidade, a turma do deixa-disso de 2020 pode se arrepender de suas escolhas.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra)


Elio Gaspari: Um terreno baldio chamado Palocci

O comissário petista avacalhou as delações

Não foi por falta de aviso. Em 2018, quando se falava numa eventual colaboração de Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda de Lula e quindim da banca, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, da Lava-Jato, dizia que aquilo que poderia ser uma delação do “fim do mundo” estava mais para “fim da picada”. Palocci negociava com o Ministério Público, mas sua colaboração foi rebarbada. O doutor estava na cadeia, onde cultivava uma pequena horta. Começou a conversar com a Polícia Federal e com ela conseguiu fechar um acordo que o levou para casa. Passaram-se alguns meses, e Carlos Fernando voltou à carga: “O procedimento de delação virou um caos”.

De nada serviram as advertências. O caos prosperou, e a colaboração de Palocci, com suas 86 páginas, foi astuciosamente divulgada pelo juiz Sergio Moro dias antes do primeiro turno da eleição de 2018.

Olhada de longe, foi explosiva. Examinada de perto, assemelhava-se à cabeça daqueles que Tancredo Neves queria maltratar: “Parece um terreno baldio, onde as pessoas que passam jogam o que querem”. Naquele terreno baldio havia lixo, mas lá estavam também coisas que poderiam ser investigadas. A ajuda do ditador líbio Muamar Kadafi às primeiras campanhas de Lula, por exemplo. Palocci indicou como o dinheiro teria chegado ao PT, mas não se conhece providência para puxar esse fio.

Num dos 39 anexos, Palocci contou à Polícia Federal que Lula acertou com o banqueiro André Esteves (BTG) uma conta-propina de R$ 10 milhões que seria abastecida pelos ganhos com informações privilegiadas. O comissário indicou detalhadamente como o banco foi favorecido. A PF quebrou sigilos, ouviu operadores e dois personagens que estavam colaborando com a Justiça.

Conclusão: “As afirmações feitas por Palocci parecem todas ter sido baseadas em dados públicos, sem acréscimo de elementos de corroboração, a não ser notícias de jornais”.

A Polícia Federal colheu o depoimento, Moro jogou-o no ventilador, e agora a própria PF concluiu que ali havia muito pirão e nenhuma carne.

A estrepitosa colaboração de Palocci incriminou algumas das maiores empresas do país, constrangeu cidadãos, alimentou vinditas e ações espetaculosas. O encanto que o andar de cima teve pelo então ministro da Fazenda permite supor que ele mantivesse relações promíscuas com alguns maganos. O médico que o PT elegeu prefeito de Ribeirão Preto em 1992 acumulou considerável patrimônio, devolveu uma parte, ralou uma cadeia e hoje está preso em casa. Tornou-se símbolo do “fim da picada” e do “caos” previstos e denunciados pelo procurador Carlos Fernando. Sua colaboração, liberada durante a campanha eleitoral pelo juiz que desafortunadamente viria a aceitar o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, caminha para ser o que sempre foi: uma ardilosa construção para tirá-lo da carceragem de Curitiba.

Palocci transformou em realidade a piada do advogado que, na madrugada de 24 de agosto de 1954, teria sido chamado para atender um cliente preso com uma faca ensanguentada, saindo de um quarto de pensão do Catete onde estava, morta, uma mulher. O advogado não sabia o que fazer, até que, às oito e meia da manhã, um rádio anunciou o suicídio de Getúlio Vargas.

O rábula virou-se para o delegado e disse: “Doutor, esses dois eventos são conexos.”


Merval Pereira: Manobra interrompida

As decisões dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux e Celso de Mello sobre o julgamento de Deltan Dallagnol pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), marcado para ontem, mas suspenso, dão uma visão menos política e mais técnica das disputas sobre os procedimentos da Operação Lava-Jato.

Por isso, é apressado tirar-se alguma conclusão sobre os efeitos da decisão de ontem sobre sua posição futura, se participar do julgamento da Segunda Turma do STF sobre a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro nos julgamentos do ex-presidente Lula. Mas é possível fazer-se a ilação de que sua posição de exigir provas evidentes para uma decisão exclui a utilização das reportagens do Intercept Brasil baseadas em informações roubadas dos celulares de procuradores de Curitiba, pois são provas ilegais.

Já iniciado, esse julgamento conta com dois votos dados a favor de Moro, os dos ministros Edson Fachin e Carmem Lucia. O ministro Gilmar Mendes, que pediu vistas e decidirá quando o tema voltará à pauta, e Ricardo Lewandowski devem votar a favor de Lula, ficando para o decano o desempate.

Mas ele se aposenta em novembro, e se até lá a ação não for julgada, a Segunda Turma poderá decidir com apenas quatro ministros, e o empate favorece Lula. Ou o então presidente Luiz Fux poderá designar algum ministro para o lugar de Celso de Mello.

Seria feio julgar assunto tão delicado e polêmico sem a turma completa. Existe também a possibilidade de o futuro novo ministro ocupar o lugar do decano na Turma, mas essa substituição demorará muito, pois haverá necessidade de o indicado ser sabatinado pelo Senado.

A decisão de Celso de Mello suspendendo o julgamento é magnífica, pois define o papel do MP como defensor da sociedade que não pode ser calado, fala sobre manobras que impediram o exercício pleno da defesa do chefe dos procuradores da Operação Lava-Jato em Curitiba, inviabilizando o devido processo legal, e ressalta a importância singular do Ministério Público: “(…) a Constituição da República atribuiu ao Ministério Público posição de inquestionável eminência político-jurídica e deferiu-lhe os meios necessários à plena realização de suas elevadas finalidades institucionais, notadamente porque o Ministério Público, que é o guardião independente da integridade da Constituição e das leis, não serve a governos, ou a pessoas, ou a grupos ideológicos, não se subordina a partidos políticos, não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem, não importando a elevadíssima posição que tais autoridades possam ostentar na hierarquia da República, nem deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer que seja, sob pena de o Ministério Público mostrar-se infiel a uma de suas mais expressivas funções, que é a de defender a plenitude do regime democrático”.

O julgamento de ontem era sobre casos que já haviam sido julgados; estava tudo marcado para punir Dallagnol, com uma série de irregularidades sendo aceitas como normais. O ministro Luiz Fux, vendo que estava sendo preparada uma armadilha, anulou uma advertência contra Dallagnol imposta anteriormente, que seria um agravante contra o procurador.

Irritado com a decisão de Celso de Mello, mas sem referir-se diretamente ao caso, o Procurador-Geral da República Augusto Aras, que está empenhado em controlar a Operação Lava-Jato, fez um pronunciamento no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pedindo “mais respeito” à suas decisões, e às do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), lembrando que “não há ninguém acima da Constituição”.

Ao contrário, o que estava em curso era uma reação política. O relator do processo, Bandeira de Mello, foi chefe de gabinete do senador Renan Calheiros, autor de uma das acusações. As cartas estavam marcadas, e é uma vergonha para o Conselho Nacional do Ministério Público.

Foi montado um circo para dar “uma lição” na Lava-Jato através de sua figura mais proeminente hoje. Acredito que, a partir de agora, o caso seguirá dentro dos parâmetros normais e assim, não há por que retirar Deltan Dallagnol da função de coordenador da operação Lava-Jato.

Nada grave aconteceu para que ele fosse punido dessa maneira. Não é possível transformar em bandidos os juízes e procuradores que desvendaram o maior esquema de corrupção do país.


Ricardo Noblat: A barbárie do extremismo religioso contra a criança estuprada

O Estado brasileiro é laico. O que significa: ele não permite a interferência de correntes religiosas em assuntos estatais, nem privilegia uma ou algumas religiões sobre as demais. Garante e protege a liberdade religiosa de cada cidadão, mas evita que grupos religiosos exerçam interferência em questões políticas.

“Os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais”, disse o ministro Marco Aurélio Mello em 2012 quando o Supremo Tribunal Federal, por oito votos contra dois, decidiu que grávidas de fetos sem cérebro podem interromper a gravidez com assistência médica prestada pelo Estado.

Em mais duas situações, o aborto é plenamente legal no Brasil: quando a continuação da gravidez importa em risco à vida da mãe e em caso de estupro. Foi o que aconteceu com a menina de 10 anos de idade, estuprada desde os seis anos por um tio no Espírito Santo, levada às pressas para abortar no Recife.

Em Vitória, um hospital negou-se a respeitar a ordem judicial de fazer a cirurgia na menina, conforme sua vontade reiteradamente manifestada em diversas ocasiões. A gravidez decorreu de um crime, tipificado em lei. Para a menina, suportá-la e dar a luz equivalia a um processo de tortura. Tortura é outro crime.

O que pretenderam os militantes cristãos, comandados por políticos da direita e da extrema direita, que na noite do último domingo cercaram o hospital no Recife onde a menina estava sendo esperada para submeter-se à cirurgia? Na prática, tornar a Constituição letra morta, ignorando o que ela prescreve.

Lava Jato ganha sobrevida com decisões de Fux e de Celso de Mello

Por ora, a sangria continua

Ainda não foi desta vez. Dava-se como certo nos meios jurídicos de Brasília que o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força tarefa da Lava Jato em Curitiba, seria condenado pelo Conselho Nacional do Ministério Público em dois procedimentos disciplinares a que responde por abuso de poder.

Prestes a assumir por dois anos a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux, à tarde, suspendeu os efeitos de uma advertência imposta em novembro a Dallagnol, o que tornava mais distante seu afastamento da chefia da Lava Jato. À noite, Celso suspendeu o julgamento marcado para hoje.

Fux fez por merecer a fama que tem de amigo número um da Lava Jato. Em 2016, logo após a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma, depois de uma conversa que teve com Fux, Dallagnol contou a um grupo de procuradores o que ouvira dele: “Disse para contarmos com ele para o que precisarmos”.

Ao que o então juiz Sergio Moro, informado sobre a conversa, comentou por escrito: “Excelente. In Fux we trust” (Em Fux nós confiamos”). Moro poderia acrescentar que também em Celso ele e a Lava Jato podem confiar pelo menos até novembro, quando o ministro, ao atingir os 75 anos de idade, deixará o tribunal.

No seu despacho, Celso afirmou que é “inaceitável a proibição ao regular exercício do direito à liberdade de expressão” de membros do Ministério Público e afirma que limitar esse direito “revela-se em colidência com a atuação independente e autônoma garantida ao Ministério Público pela Constituição”.


Merval Pereira: Dallagnol na mira

Dando seqüência à tentativa de desconstruir a Operação Lava-Jato, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) julgará na terça-feira casos envolvendo o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava-Jato em Curitiba. Não são os primeiros, nem serão os últimos casos, pois ao longo de seu trabalho à frente da força-tarefa de Curitiba Dallagnol já teve cerca de 50 reclamações disciplinares contra si, a maior parte vinda de investigados e réus e seus aliados.

Apenas duas delas, e sempre por opinião, mereceram advertências. Por isso, é estranho que na reunião de terça exista a possibilidade de afastamento cautelar devido a um procedimento disciplinar por remoção compulsória por interesse público, impetrado pela senadora Katia Abreu, investigada pela Lava-Jato. Até hoje, foram poucos os afastamentos a bem do interesse público, e ambos por questões totalmente diversas das que Dallagnol está sendo acusado.

Um por trabalho ineficiente em defesa do consumidor, e outro por assédio moral e outras faltas funcionais. Ambos ao fim de um processo em que houve possibilidade de o acusado apresentar sua defesa, não de maneira cautelar. O afastamento cautelar de Dallagnol feriria de morte a garantia de inamovibilidade de integrantes do Ministério Público, o que afetaria a independência do órgão e levaria uma insegurança funcional nos demais membros do órgão investigador, que ficariam expostos à retaliações políticas.

Outro que apresentou Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra Dallagnol foi o senador Renan Calheiros, que pede sua punição por ter defendido a votação aberta para a eleição da presidência do Senado, afirmando que a eleição de Calheiros seria prejudicial ao combate à corrupção. O plenário do CNMP já rejeitou a mudança da caracterização da fala como atividade político-partidária, e negou o afastamento cautelar de Dallagnol pedidos ainda em 2018.

O relator é Luiz Fernando Bandeira de Mello, braço-direito de Renan Calheiros no Senado, onde atua até hoje como secretário-geral da Mesa Diretora. Por essa relação, um grupo de senadores pediu que ele fosse considerado suspeito para relatar os casos. Vários deles já foram julgados em outras reclamações disciplinares e considerados legítimos, como as palestras remuneradas que Dallagnol deu, ou o acordo da força-tarefa com a Petrobras envolvendo a restituição bilionária de multa paga nos Estados Unidos e que ficaria no Brasil com a criação de uma fundação para combate à corrupção.

Uma fundação polêmica, que acabou anulada pelo Supremo, mas, alega a defesa de Dallagnol, aprovada por diversos órgãos como uma solução jurídica legítima. Além disso, há uma questão técnica importante, que pode inviabilizar o julgamento.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é composto por 14 membros, e é preciso maioria absoluta para aprovar uma remoção por interesse público. No momento, no entanto, existem somente 11 conselheiros em atividade, pois três indicações estão paradas no Senado para aprovação, o que desequilibra a composição do Conselho, pois o Ministério Público fica sub representado.

Há, portanto, uma discussão preliminar que deve ser enfrentada no julgamento de terça-feira: sem sua representação integral, o CNMP pode julgar uma ação dessa envergadura, raramente usada para punir procuradores? A não nomeação de dois representantes do Ministério Público por questões internas do Senado, como a paralisação dos trabalhos devido à pandemia, não é motivo para adiar a decisão? Há ainda a posição do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que abriu guerra declarada contra a Operação Lava-Jato.

Nas votações anteriores, os procuradores sempre tiveram o voto do Procurador-Geral da República, o que não é garantido desta vez. Todas essas circunstâncias formam um quadro que indica, no mínimo, que o julgamento desta terça-feira não está organizado dentro dos melhores padrões, e pode levar insegurança a todos os membros do Ministério Público.

O procurador Deltan Dallagnol é a face mais exposta da Lava-Jato em atividade em Curitiba. O interesse público é o fortalecimento do combate à corrupção, que fica fragilizado se do julgamento sair uma decisão que cheire a mais uma ação contra a Operação Lava-Jato.


Luiz Sérgio Henriques: Simão Bacamarte e a política nacional

O balanço do impacto de grandes operações judiciárias, como a Lava Jato, sobre o sistema partidário é, no mínimo, inquietante. Alguns dos seus aspectos mais problemáticos já foram ressaltados e outros mais virão com o tempo, mas é fato que operações inicialmente focadas em questões específicas, ainda que graves, ampliaram-se em demasia, conferiram um veio salvacionista aos principais atores, tomados por uma espécie de complexo de Simão Bacamarte, o qual, como se sabe, pretendia encerrar no manicômio de Itaguaí todos os que, a seu juízo, tinham comportamento desviante. Os resultados não foram lá muito animadores e o Bacamarte terminou encerrando-se na Casa Verde, depois de livrar a multidão de internados.

Não devemos esperar desfecho análogo: nenhum dos personagens da grande confusão brasileira, independentemente de culpas, se encaminhará por vontade própria até o manicômio. Nem entre os aprendizes de Bacamarte nem entre seus pacientes forçados surgirá espontaneamente uma avaliação serena de erros e exageros, parcialidades de julgamento e desvios reais de comportamento, de modo que, ainda no rescaldo daquelas operações, seremos obrigados a retomar pacientemente o ofício de trabalhar as duras vigas de madeira que constituem a política, de acordo com a lição clássica.

Deixemos provisoriamente de lado pequenos e grandes bacamartes; a eles voltaremos outras vezes, com particular ênfase na escolha política desastrada que fizeram na única circunstância em que efetivamente não podiam errar, a saber, na eleição de Jair Messias Bolsonaro e nas decisões judiciais que direta ou indiretamente a favoreceram. E reconheçamos, de cara, que o paciente – o sistema partidário – não estava bem das pernas (e da cabeça) quando sobre ele se abateram as acusações dos procuradores e o martelo dos juízes. Personalismo e fragmentação excessiva eram males que deformavam o funcionamento daquele sistema, para não mencionar o problema crônico – e longe de ser resolvido – das relações entre dinheiro e política, financiadores e campanhas, empresas e administradores públicos, com o atalho para o enriquecimento desonesto.

O personalismo tem múltiplas facetas e não será fácil reduzi-lo a proporções mais razoáveis. Partidos, entre nós, costumam ser empreendimentos individuais, “movimentos” que se estruturam em função de uma determinada candidatura presidencial e muitas vezes com ela desaparecem. Raramente são agrupamentos estáveis, com capacidade de expressar demandas da sociedade, selecionar grupos dirigentes ao longo do tempo, propor uma relação mais ou menos coerente entre valores e política. Nestes trinta anos de vigência da Carta de 1988 perderam-se ocasiões interessantes – não sabemos se para sempre – de um enraizamento mais definido de partidos como o PFL/DEM, que poderia ter sido expressão de uma necessária direita democrática; ou como o PSDB, embrião de uma boa socialdemocracia que, sem no entanto ter implantação sindical, se reduziria crescentemente a uma federação de “notáveis”; uma federação, de resto, facilmente desafiada e batida, à esquerda, pelo PT, cuja implantação mais forte acabaria por associar as características mais problemáticas do partido “orgânico” e da liderança carismática, tornando-se assim um partido poucas vezes capaz de pensar além de si mesmo e das suas conveniências mais imediatas.

A fragmentação, de certo modo, não foi um traço inteiramente endógeno do sistema. Natural que, após o regime autoritário, com sua ação arbitrária no sentido de dissolver os três grandes partidos da democracia de 1946 – e, obviamente, manter a proscrição dos partidos comunistas –, soprasse um vento libertário. O exagero aqui consistiu em confundir o direito à livre associação no terreno da sociedade e o direito de acesso às casas legislativas e aos fundos públicos, a ser regido por algum mecanismo mínimo de desempenho eleitoral. A intervenção “exógena” do STF, em 2006, adiou a adoção das cláusulas de barreira, que teriam dado – como começaram a dar já em 2018 – o pontapé inicial para o enxugamento e a racionalização da presença dos partidos na cena parlamentar.

A cada ato legislativo que se proponha regular os mecanismos partidários e eleitorais cabe fazer, a nosso juízo, um conjunto de perguntas intimamente relacionadas: tal ato contribui, ou não, para atenuar o grau de personalismo dos partidos e da política? Ainda que a médio prazo ele favorece a ação de forças centrípetas, impedindo que atores individuais e coletivos, semelhantes entre si, exerçam furiosamente o narcisismo das pequenas diferenças? Que regras até mesmo corriqueiras, como a da famosa “janela de transferências” às vésperas de cada pleito, podem ser aperfeiçoadas – e por certo endurecidas – para que tantos políticos “não mudem de partido como quem muda de camisa”, segundo o lugar comum que trazemos na ponta da língua? O presente mecanismo de financiamento público das campanhas será o Santo Graal finalmente encontrado ou ainda é preciso imaginar formas complementares, que necessariamente supõem limite, transparência e accountability para não se transformarem em atividades que transcorrem nas sombras?

É preciso reconhecer que estes e outros problemas não foram coerentemente formulados e menos ainda equacionados pelos políticos e partidos que dirigiram a democracia brasileira nos primeiros trinta anos do novo ordenamento constitucional. Ao contrário, foram muitas vezes varridos para debaixo do tapete, e o custo desta omissão paga-se em termos de desprestígio dos parlamentos, dos partidos e da ação política. No vácuo assim criado surgiram os salvadores da pátria – de toga, beca ou farda, tanto faz. Com os resultados calamitosos que sempre ocorrem depois que se desmoraliza a ciência dos bacamartes, a mágica dos ilusionistas e a aura mítica dos liberticidas.


Reinaldo Azevedo: Não há diálogo com os walking dead verde-amarelos

Procuradores não são pagos para agir contra delinquentes

Já desisti de convencer os citadores sem lastro de que, em "O Príncipe", Maquiavel não escreveu ou deu a entender que "os fins justificam os meios". Apelo, então, à suavidade honestamente pueril de outra obra: o Pequeno Príncipe jamais desistira de uma pergunta. E eu nunca desisto de uma porfia. Volto, pois, aos embates entre a Lava Jato e Augusto Aras, procurador-geral da República.

"Promover a realização da justiça, a bem da sociedade e em defesa do Estado Democrático de Direito." Eis a missão do Ministério Público Federal, segundo o que está escrito em seu site, sintetizando o que vai na Constituição. Não! Procuradores não são pagos para agir contra delinquentes, como quer certa… delinquência ignorante.

Essa até poderia ser a definição da função da polícia, mas ainda carregaria certa carga de truculência protofascistoide. Ela existe para proteger os cidadãos. E só por consequência atua contra os tais delinquentes. De resto, uma das atribuições do Ministério Público é fazer o controle externo da polícia, não excitar a sua discricionariedade. Não sei se a estupidez é doce, mas é certamente saliente.

Não com o propósito de contestar o hálito fétido que emana das catacumbas —posto que não há diálogo possível com os "walking dead" verde-amarelos—, lembro, então, que os membros do Ministério Público têm o dever de zelar também pelos direitos dos criminosos, distintos dos nossos. Se aquele que se encontra sob a guarda do Estado é submetido ao vale-tudo, o que pode acontecer a quem não se encontra?

Nada mais distante da ação de justiceiros do que o papel reservado ao promotor e ao procurador. Há aí a diferença que distingue o "Estado democrático e de Direito" (gosto com o conectivo "e"), que aparece lá na página oficial do MPF, da barbárie miliciana.

Não há nenhuma evidência de que a abertura da caixa-preta da Lava Jato atenderia a interesses de Jair Bolsonaro. Essa é só uma reserva de falso temor, simulada por aqueles que exibem neutralidade na disputa entre a corda e o pescoço, numa expressão desprezível de covardia.

Faço aqui um desafio: evidenciem, ainda que por hipóteses plausíveis apenas, por quais caminhos a criação de uma Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), no âmbito do MPF, poderia degenerar em uma polícia política.

Lembro que a Unac não eliminaria ou tisnaria nenhuma das prerrogativas dos senhores procuradores, notadamente a inamovibilidade, a vitaliciedade e a irredutibilidade dos salários. Tampouco criaria circunstâncias que obrigariam um deles a desistir de uma investigação. O máximo que pode acontecer, em benefício da institucionalização de procedimentos, é a redução do espaço da arbitrariedade.

De resto, alinhar-se com o atual estado de coisas em nome do risco de que a mudança poderia ser instrumentalizada pelo atual governo corresponde a escolher a atuação degenerada da Lava Jato. Foi ela, em grande medida, a catalisadora do reacionarismo que conduziu Bolsonaro à Presidência.

Permitiremos que, mais uma vez, ao arrepio da lei, essa máquina de erigir e destruir reputações defina quem vai governar o país? Já conhecemos as consequências. Vamos ao "é da coisa": o beneficiário direto dos desmandos em voga é Sergio Moro. Sua pré-campanha à Presidência já está em gestação nos subterrâneos das redes sociais.

E o mote é precisamente a "defesa da Lava Jato" como sinônimo de combate à corrupção. Não é preciso fazer grande esforço interpretativo para entender que, nessa perspectiva, a operação, mera fração de um ente do Estado —o MPF—, resolve tomar o seu lugar.

Os meios qualificam os fins. Os empregados pelo lavajatismo corroem instituições e o devido processo legal. Existem provas robustas a respeito, não suposições. Não há desfecho virtuoso possível.
É imoral a isenção na disputa entre a corda dos justiceiros e o pescoço de suas vítimas, culpadas ou inocentes. Umas e outras têm de ser protegidas pelo devido processo legal. Parte da própria imprensa ainda não entendeu esse fundamento —e, portanto, não entendeu nada.


Hélio Schwartsman: A Lava Jato morreu?

A correção dos excessos da força-tarefa não pode se transformar num movimento pró-impunidade

Nós gostamos de xingar corruptos e amaldiçoar a corrupção, mas ela é a segunda melhor forma de organização da sociedade. É obviamente menos eficiente do que um sistema no qual tudo funcione direitinho, segundo regras impessoais previamente estabelecidas, mas é superior a um regime no qual empreendimentos e a prestação de serviços possam ser bloqueados apenas pelo capricho de autoridades ou, ainda pior, um no qual as “concorrências” e outras disputas se resolvam à bala. É por ser razoavelmente eficaz —e lucrativa para gente influente— que é tão difícil acabar com ela.

A Lava Jato foi uma tentativa de fazer com que o Brasil passasse do estágio da corrupção disseminada, que marca os países menos desenvolvidos, para um em que ela fosse mais contida. É um objetivo importante, que foi em alguma medida cumprido. Bilhões de reais desviados foram restituídos aos cofres públicos e dezenas de políticos e empresários, que já nos acostumáramos a ver como intocáveis, foram julgados e condenados.

Não há, porém, como defender os erros cometidos pela força-tarefa de Curitiba e pelo ex-juiz Sergio Moro, que, em várias ocasiões, desvirtuaram a interpretação da lei para alcançar seus propósitos condenatórios. Penso que há elementos para anular algumas das sentenças do braço curitibano da operação.

É preciso, porém, muito cuidado para que a necessária correção dos excessos da Lava Jato não se transforme num movimento pró-impunidade. A situação de delicado equilíbrio em que vivíamos no último ano, em que um STF dividido arbitrava as questões ora para um lado, ora para outro, pode ter sido rompida agora que a Procuradoria-Geral da República passou a combater mais abertamente a Lava Jato.

O Brasil já desperdiçou tantas oportunidades que é muito possível que não consigamos mais escapar à chamada armadilha da renda média. Espero que o mesmo não ocorra em relação à corrupção.


Bruno Boghossian: Moro terá dificuldades para preservar capital político até 2022

Futuro eleitoral do ex-juiz depende quase exclusivamente do destino da Lava Jato

O palanque de Sergio Moro anda meio bambo. O divórcio com Jair Bolsonaro lançou o ex-juiz na arena eleitoral de maneira precoce, como adversário do presidente que o levou a Brasília. Sem os holofotes da toga e do governo, seu futuro político agora depende quase exclusivamente do destino da Lava Jato.

A revisão dos excessos cometidos em Curitiba e o embate dentro do Ministério Público Federal sobre os rumos da operação definirão os caminhos de Moro até 2022. O ex-juiz pode escolher se apresentar como vítima de um conluio para enfraquecer o combate à corrupção, mas deve ter dificuldades para cantar nessa única nota pelos próximos dois anos.

As críticas feitas por Augusto Aras aos trabalhos da Lava Jato reforçam uma trilha que Moro começou a percorrer no dia em que deixou o governo. Alinhado a Bolsonaro, o procurador-geral que tenta impor limites aos investigadores se torna um atalho para acusar o presidente de tentar desmantelar a operação.

O lance do ex-juiz, nesse caso, seria empurrar Bolsonaro para o córner do establishment político, ao lado dos neoaliados do centrão e de opositores do lavajatismo no Supremo. Moro tentaria roubar do ex-chefe o rótulo antissistema, mas ainda precisaria explicar por que jurou fidelidade a um presidente que jamais se interessou em demonstrar compromisso com o combate à corrupção.

Do outro lado do ringue, há outras incertezas. O debate sobre a atuação de Moro nos processos contra Lula pode levar à anulação de condenações do ex-presidente e torná-lo um potencial candidato na próxima campanha. O ex-juiz seria um inimigo natural do petista, mas precisaria disputar o mesmo eleitorado que Bolsonaro já conquistou em 2018 e poderá cativar de vez com a máquina do governo nas mãos.

Ainda que Moro tenha se tornado um dos personagens mais populares do país, seu capital político acumulado pode se desvalorizar com certa rapidez nos próximos anos. Até hoje, o ex-juiz que usou a Lava Jato como vitrine não aprendeu a ser vidraça.


El País: Ataques à Lava Jato pavimentam caminho ao julgamento decisivo de Sergio Moro no STF

Corte beneficia Lula ao excluir de seu processo delação de Palocci divulgada por ex-juiz em 2018. Coalizão antilavajatista sonha em barrar candidaturas de ex-magistrado e Dallagnol

Afonso Benites e Carla Jiménez, El País

Lava Jato vive um annus horribilis em 2020, atordoada por decisões na Suprema Corte, e uma campanha ostensiva do procurador-geral Augusto Aras contra os métodos da operação, sob as graças do Planalto. O mau agouro respinga na figura do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, personagem que mais encarnou a cruzada anticorrupção que sacudiu o Brasil e alguns países da América Latina desde 2014. Hoje, para boa parte do meio jurídico, ele personifica a deterioração da Justiça e dos ritos democráticos. Em um dos lances mais recentes desse revés, na última terça-feira, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão a favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), condenado duas vezes por Moro por corrupção e lavagem de dinheiro.

Os ministros da Corte entenderam que a delação do ex-ministro Antonio Palocci, divulgada por Moro na semana prévia à eleição em primeiro turno de 2018, não poderia ser incluída nos processos contra o ex-presidente, o que pode anular ao menos um processo contra Lula em Curitiba. Nas palavras do ministro Gilmar Mendes, a divulgação parecia ter “sido cuidadosamente planejada pelo magistrado para gerar verdadeiro fato político na semana que antecedia o primeiro turno das eleições presidenciais de 2018”. Também concederam aos defensores acesso ao acordo de leniência da empreiteira Odebrecht. “O Supremo reconheceu algumas de nossas queixas. Uma delas é a de que essa foi uma condenação política. Outra, de que não tínhamos acesso a tudo o que precisávamos para fazer a defesa”, diz o advogado de Lula, Cristiano Zanin.PUBLICIDADE

Partiu da defesa do ex-presidente petista, no final de 2018, o recurso no Supremo pela suspeição de Moro que anularia as sentenças proferidas contra o ex-presidente Lula. São processos que correram em Curitiba, como o caso do triplex do Guarujá, pelo qual o ex-presidente já cumpriu parte da prisão, o caso do sítio de Atibaia, e um terreno para o Instituto Lula que teria sido aceito, segundo Palocci, em acordo com a Odebrecht. Dentre os argumentos da defesa, estão a parcialidade do ex-juiz, escancarada depois de aceitar o cargo de ministro da Justiça do Governo Bolsonaro. A ação foi encorpada com as revelações do The Intercept Brasil sobre as comunicações estreitas entre Moro e procuradores de acusação do ex-presidente, que reforçam a leitura de parcialidade.

O jogo virou, celebram inimigos da Lava Jato, embora o destino da operação — e das decisões de Moro — esteja longe de ser definida. A decisão de terça-feira virou uma prévia de um julgamento previsto para ocorrer nas próximas semanas no qual será analisada também pela segunda turma a parcialidade de Moro, o ex-juiz que por um ano e quatro meses foi ministro da Justiça de Bolsonaro. Os cinco juízes decidirão se Moro tinha interesses particulares na condenação de Lula. Dois deles já proferiram seus votos contra a tese da defesa do ex-presidente: Edson Fachin e Cármen Lúcia. Outros dois, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski sinalizaram que acatarão a tese. O voto de minerva deve ser o de Celso de Mello, o decano da Corte.

A pancada do Supremo esta semana sobre o que pareciam intocáveis —Moro e a Lava Jato— vem numa sequência de golpes que passa também pelo descolamento do presidente Bolsonaro da febre lavajatista. Justamente depois de ter sido eleito sob a bandeira anticorrupção da mais longeva operação contra a corrupção no Brasil, que levou para o banco dos réus dezenas de empresários, doleiros e políticos. Moro dividiu com Bolsonaro o seu troféu na Lava Jato, a prisão de Lula, e reforçou a base eleitoral do presidente.

As máscaras, entretanto, caíram em abril quando Moro pediu demissão do cargo de ministro da Justiça, e Bolsonaro passou a hostilizar sua figura e, com apoio de seu aliado na PGR, Augusto Aras, a própria operação que ajudou a elegê-lo. Começou com Bolsonaro limitando os poderes de Sergio Moro no Ministério da Justiça, enfraquecendo os mecanismos de combate à corrupção, tentando interferir na Polícia Federal e acusando seu antigo subordinado de agir mais politicamente do que em defesa do Governo. Moro se demitiu, posou de vítima e atacou o chefe, o que resultou em um inquérito no STF contra ambos. Até 2018, quando aceitou ser ministro, Moro era a principal cara da operação. Idolatrado por parte da população nas ruas e assediado por partidos políticos para uma candidatura. Agora, entre bolsonaristas, é chamado de traidor e vê uma clara tentativa de limitação de sua atuação na seara política.

Enquanto isso, no Congresso, há uma intensa discussão, com apoio do Governo, para se aprovar um projeto de lei que obrigue juízes e membros do Ministério Público a cumprir uma quarentena de oito anos para poderem se candidatar à cargos eletivos. A ideia é tirar Moro e o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa do Paraná, do tabuleiro político de 2022. O ex-juiz é um dos presidenciáveis, enquanto que o procurador é apontado como um possível nome ao Senado.

“É lamentável que em meio a uma pandemia nossa preocupação seja com essa quarentena, não com a sanitária”, disse o cientista político Leandro Consentino, professor do Insper. “Não podemos super-empoderar promotores, endeusar juízes. Isso é perverso para o sistema de Justiça”, diz o advogado Marco Aurélio de Carvalho, ferrenho defensor da quarentena aos egressos do MP e da Justiça. Apoiador da Lava Jato, o procurador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu, diz que a quarentena deveria valer também para outras carreiras, como defensores públicos, policiais e oficiais das Forças Armadas. “A quarentena é uma salvaguarda de profunda relevância, mas não essa. Porque é seletiva”, diz Livianu. Ele ainda questiona o longo prazo. “Um crime de homicídio tem pena de seis anos. Deixar um juiz, um promotor oito anos impossibilitado de disputar uma eleição é mais do que uma punição”.

A mão de Aras

Na semana passada, foi a vez do procurador-geral da República, Augusto Aras, abrir uma série de ataques à Lava Jato, quando insinuou em live com advogados do Grupo Prerrogativas, formado por críticos da operação, que os procuradores de Curitiba, liderados por Deltan Dallagnol, tinham uma “caixa de segredos” com dados de mais de 38.000 pessoas. Em junho ele enviou a subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo a Curitiba para que ela obtivesse todos os arquivos que constavam do banco de dados da força-tarefa. Recebeu um não. Recorreu ao Supremo e conseguiu, em julho, uma decisão a seu favor das mãos do presidente da Corte, José Antônio Dias Toffoli. Era o período de recesso judiciário. Mas assim que as férias dos ministros acabaram, o relator da Lava Jato no STF, Edson Fachin, revogou a decisão de seu colega e determinou que os dados ficassem onde estavam.

“É uma afronta. Procuradores e promotores têm independência funcional. Eles não estão subordinados ao PGR”, reclama o procurador Roberto Livianu. Outro movimento de Aras que pode interferir nas apurações da Lava Jato e de outras forças-tarefa é a criação de um órgão central de combate à corrupção. Batizado de Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), seu coordenador seria subordinado ao PGR. “Centralizar essas investigações é pedir para que o combate dê errado. Há um alto risco de interferência política nas apurações”, alerta Livianu.

O argumento da interferência política, porém, é o mesmo que se voltou contra a Lava Jato depois da ida de Moro para o Governo Bolsonaro na sequência da liberação da delação de Palocci às vésperas da eleição, e das revelações do The Intercept Brasil. Aos poucos, firma-se um debate vocalizado recentemente pelo ministro Gilmar Mendes sobre a relação entre a operação comandada em Curitiba e o atual Governo, que já demonstrou inúmeros arroubos golpistas e desprezo pela democracia. “A Lava Jato é a mãe do bolsonarismo”, lançou Gilmar Mendes, numa entrevista em maio deste ano. A pressa em fazer justiça quebrou rituais jurídicos e atropelou acordos internacionais do Brasil, acusam as vozes de defesa dos investigados na operação, que começam a somar algumas vitórias. “A Lava Jato criou uma engrenagem, inventou um mecanismo de opressão judicial, de assassinato de reputações, para trucidar investigados, com concentração de competência”, diz o advogado criminalista Fabio Tofic, que integra o Grupo Prerrogativas. “A competência foi afirmada com ataques ao Direito e a tribunais superiores que ousassem ir contra eles. Nasceu ali o embrião de agressão ao próprio sistema, e o ataque às instituições”, completa.

Tofic é um dos autores do Livro das Suspeições, obra lançada neste final de semana que coloca o ex-juiz como um agente que colabora com o desgaste da democracia e as agressões ao Supremo que tomaram o país. Num momento de ataque às instituições democráticas no mundo inteiro, a Lava Jato fica vulnerável, posta numa trincheira oposta ao que preconizava quando nasceu.


Maria Hermínia Tavares: Lava Jato morre agora não como explosão, mas como murmúrio

Ninguém, entre os caciques políticos, verte pela força-tarefa uma furtiva lágrima

A Operação Lava Jato agoniza, sufocada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, sob a aprovação silenciosa do conjunto de partidos e líderes políticos —de A a Z.

Na origem, a força-tarefa encarnou a autonomia do sistema de Justiça em relação ao Executivo, sustentada nos poderes ampliados que lhe conferiu a Constituição de 1988. Tornou-se possível com o advento de uma nova geração de promotores e juízes que já não dependiam da patronagem, mas de seus méritos aferidos em concursos públicos, para ingressar na carreira. Faz sentido que se vissem como guardiões da lei maior ameaçada por um sistema político no seu entender irremediavelmente corrupto.

A Lava Jato trouxe à luz a existência daquilo que, décadas antes, o cientista político americano Gordon Adams tinha chamado triângulos de ferro: arranjos informais e secretos que ligam firmas de prestação de serviços, burocratas de estatais e partidos políticos, em benefício dos envolvidos e em detrimento do interesse coletivo.

De fato, os cruzados de Curitiba revelaram o poderoso triângulo de ferro incrustado na maior empresa pública nacional, a Petrobras, sólido o suficiente para sobreviver ao vaivém de presidentes e coalizões governantes, encabeçadas primeiro pelo PSDB e depois pelo PT.

A Lava Jato não criou a crise política que pulverizou o sistema de partidos e abriu caminho para a ascensão da extrema direita. Mas forneceu o combustível para as campanhas da imprensa e as grandes manifestações de rua, as quais, associadas à crise econômica, à polarização política e ao desmanche da base parlamentar governista, tornaram possível o impeachment de Dilma Rousseff e tudo o que se lhe seguiu.

Os métodos reprováveis a que recorreram promotores e o juiz Sergio Moro —especialmente sua inaceitável proximidade durante a montagem dos processos— tampouco contribuíram para o aperfeiçoamento da aplicação da Justiça e a criação de instrumentos legítimos para reduzir a corrupção política.

No Brasil, o discurso moralista foi componente central de todas as grandes crises políticas sob regime democrático. Apesar do retrospecto, a Lava Jato morre agora não como explosão, mas como murmúrio —e sem ninguém, entre os caciques políticos, a verter por ela uma furtiva lágrima.

Mas os triângulos de ferro do professor Adams sobrevivem a ela. Ativados e operantes, existem em empresas públicas e agências reguladoras. Por isso, a retórica anticorrupção continuará sendo um recurso da luta política. Alimentará o populismo de direita enquanto não ocupar também posição de relevo na agenda dos democratas.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Merval Pereira: A orelha de Bolsonaro

A obsessão do presidente Jair Bolsonaro por informações dos serviços de inteligência faz com que se espalhe pela administração federal uma tendência à bisbilhotice que nos aproxima perigosamente de um estado policial.

Nada explica, a não ser esse ambiente, a existência de uma lista de funcionários públicos considerados “antifascistas”, isto é, opositores do governo, elaborada por uma tal de Secretaria de Operações Integradas (Seopi). Na maioria professores e policiais.

Além de implicitamente admitirem que são fascistas, os que organizaram a lista consideram que servidores públicos têm um dever de lealdade ao governo a que servem. Não é à toa que a Controladoria Geral da República editou recentemente uma norma técnica que proíbe servidores de usarem as redes sociais para críticas a medidas do governo.

Comentários que possam gerar “repercussão negativa à imagem e credibilidade à instituição” merecerão punição administrativa. Isso quer dizer que, além de estarem sujeitos a uma censura nas redes sociais que utilizam em nome pessoal, os funcionários públicos também não se sentirão seguros para utilizarem os canais internos de reclamação.

Esse clima de espionagem foi ampliado por um decreto editado na sexta-feira ampliando não apenas os quadros da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), mas o escopo de sua atuação com a criação de um Centro de Inteligência Nacional que reunirá os órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin).

Esses movimentos todos respondem à exigência do presidente Bolsonaro naquela fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril de ter um sistema de informações que não o deixe desprotegido. Vai daí, ao que tudo indica, o ímpeto com que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, se jogou na guerra contra a Operação Lava-Jato, pretendendo centralizar em seu gabinete todas as informações que foram coletadas nos últimos cinco anos de investigações e denúncias.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello definiu bem a situação: compartilhamento tem que ter objeto específico, senão vira devassa. O jurista Joaquim Falcão, em live promovida pelo jornal Valor Econômico, chamou a atenção para o fato de que o governo Bolsonaro pretende neutralizar órgãos que têm autonomia funcional garantida pela Constituição, como o Ministério Público e a Polícia Federal que, por sinal, foi o primeiro a sofrer uma interferência direta do presidente da República que está sob investigação do Supremo.

Não tendo podido nomear o amigo de sua família, delegado Alexandre Ramagem, para a chefia da Polícia Federal, Bolsonaro trocou seu comando, provocando a saída de Sérgio Moro do ministério da Justiça, e agora ampliou as atribuições da Abin, aumentando o poder de Ramagem nesse universo, e na unificação dos serviços de informações do governo.

Esses movimentos só comprovam o acerto do STF ao barrar a transferência de dados das companhias telefônicas na integralidade para que o IBGE pudesse fazer pesquisas para o censo neste ano de pandemia. A relatora, ministra Rosa Weber, disse que a medida provisória “não apresenta mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida”.

Foi seguida por 10 dos 11 ministros do STF. O ministro Lewandowski chamou a atenção para o fato de que a maior ameaça ao regime democrático hoje é a crescente possibilidade de que governos autoritários, de qualquer tendência ideológica, tenham acesso a dados pessoais dos cidadãos. Escrevi aqui a favor desse compartilhamento, mas vejo hoje que fui ingênuo. Não estava em análise ali a idoneidade e seriedade do IBGE como instituição, mas um governo que não é confiável.

Há na Sicília uma caverna que o pintor Caravaggio denominou de Orelha de Dionisio, não apenas por seu formato, mas principalmente pela lenda que diz que o tirano Dionisio I de Siracusa usava a caverna como prisão política dos dissidentes e, devido à acústica perfeita, ficava sabendo dos planos dos opositores.

Bolsonaro tem no Palácio da Alvorada uma imensa escultura azul em forma de orelha, que será leiloada num gesto nobre pela primeira-dama Michelle em benefício de associações que cuidam de pessoas com problemas auditivos.

Talvez Freud explique.