Lava Jato

George Gurgel: Brasil Insustentável - No auge da pandemia as eleições pautam a agenda nacional

Nesta semana, no auge da pandemia, fomos surpreendidos com a pauta da Lava Jato tomando conta dos meios de comunicação e da opinião pública brasileira.  O Supremo Tribunal Federal - STF, através de uma decisão monocrática do ministro Edson Fachin, decidiu que as ações contra o ex-presidente Lula deveriam ter transcorrido em Brasília, anulando as decisões da Lava Jato em relação às condenações sentenciadas pelo ex-juiz Sérgio Moro, nos últimos cinco anos, e confirmadas pelo Superior Tribunal de Justiça. Nesse julgamento, os atos processuais sem carga decisória poderão ser aproveitados pelo novo juiz que assumir o caso.

Ato continuo, no julgamento da Segunda Turma do STF, em andamento, os votos dos ministros Gilmar Mendes, relator, e Ricardo Lewandowski foram pela suspeição de Sergio Moro.  Se vencedor esse entendimento, obrigará que os processos contra o ex-presidente Lula recomecem da estaca zero.

Diante dessas posições conflitantes estabeleceu-se o impasse nos julgamentos em andamento no STF que tratam das condenações do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. O julgamento foi suspenso por pedido de vistas do ministro Kássio Nunes Marques e o colegiado do Supremo discute estratégias para superação desta inusitada situação.  

O episódio em questão reflete uma disputa interna no próprio Supremo envolvendo os ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin. As medidas e as consequências deste e de outros julgamentos e desta disputa entre visões jurídicas distintas e seus reflexos na sociedade brasileira, deveriam ser melhor  avaliados pelos contendores e todos os membros da mais Alta Corte brasileira:  a beligerância visível existente no próprio Supremo, entre os poderes da República e a polarização política vivida na sociedade brasileira nos últimos anos e atualmente, em plena pandemia, são situações que deveriam preocupar a cidadania e toda a sociedade brasileira.

Como entender esta realidade?

Como a cidadania pode fazer a leitura destes episódios?

Nesta conjuntura de tragédias sem fim, a disputa presidencial de 2022 é antecipada nos meios de comunicação e na opinião pública em geral, tirando o foco dos reais problemas econômicos, sociais e de saúde pública que a sociedade brasileira enfrenta no seu dia a dia.

As narrativas construídas na conveniência de cada discurso político traz embates cotidianos sem nenhum foco na questão principal: o combate efetivo à pandemia que deveria unir toda a sociedade. As pautas dos meios de comunicação e a maneira de funcionamento dos entes federativos não ajudam a entender e superar esta difícil realidade.

O que mais poderia acontecer?

O que se pode esperar dos governantes e da sociedade em geral frente a esta realidade?

Quais são as nossas urgências?

Na vida real, longe dos palácios, uma boa parte da população continua abandonada à própria sorte no seu trágico cotidiano de falta de leitos e de assistência médica, na maioria dos municípios brasileiros, com cenas dantescas que acompanhamos como normalidade no nosso dia a dia, no auge da pandemia.

Apesar desta trágica realidade, ainda não temos um Programa Nacional de Vacinação com metas e cronogramas estabelecidos que tranquilize e passe confiança à sociedade brasileira, demonstrando a incapacidade governamental de planejar ações básicas de combate à pandemia. 

 O ritmo de vacinação no Brasil continua lento por falta de vacinas, as metas anunciadas pelo Governo Federal estão sendo adiadas, diferente da situação de muitos países, cuja população já avança no processo de vacinação. As evidências apontam que até o final do ano não teremos a população brasileira vacinada, pela simples razão de que não há vacinas na quantidade devida para o Brasil, no mercado internacional.

A ideologização da pandemia e a falta de planejamento para enfrentá-la caminharam e continuam a caminhar juntas, com consequências graves para a sociedade brasileira.  Embora a maior responsabilidade seja do Governo Federal, que minimizou e minimiza a gravidade da situação vivida pela população, a sociedade deve exigir posicionamentos adequados dos outros entes da Federação, caso concreto do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional, dos governadores e prefeitos: como eles estão contribuindo para o enfrentamento da pandemia? O que se pode e o que está sendo feito? Exige-se dos entes federados foco e uma resposta urgente frente à tragédia vivida pela cidadania brasileira.

 Em plena pandemia, a crise econômica e de saúde pública que vive o Brasil traz para o cotidiano da sociedade cenas de horror, de mortes por falta de leitos hospitalares e de oxigênio, da falta de assistência médica em geral, inclusive na área privada, colocando, após um ano de pandemia, a dimensão real da nossa realidade: a incapacidade da área federal, dos estados e dos municípios de construir um programa mínimo, em diálogo com a sociedade e o mercado, para o enfrentamento dos problemas urgentes provocados pela pandemia no Brasil.

A insegurança continua. Os dados em relação à contaminação e às mortes são assustadores. São milhões de contaminados e milhares de mortos – colocando o Brasil na liderança em relação a contaminados e mortos pela Covid 19 no cenário internacional.  Já não existem leitos disponíveis na área pública, nem privada, na maioria das capitais brasileiras.

No pior momento da pandemia, os milhões de brasileiros continuam abandonados à própria sorte frente ao desemprego, à falta de uma renda emergencial que lhes assegurem o mínimo de dignidade para atravessar a crise. O Governo Federal, como principal responsável pela Política Nacional de Combate à Pandemia, com sua política negacionista e plena de contradições, só faz agravar a situação com  falas que agridem ao bom senso.  

O esforço dos governos e de toda a sociedade, das lideranças políticas em particular, é criar as condições de focar no que é principal: o combate e a superação da pandemia, vacinando com a urgência devida toda a população. Pautar e antecipar a disputa política-eleitoral de 2022, nesse momento trágico, no auge da pandemia, desqualifica qualquer proposta política, mesmo a melhor intencionada. Vive-se  um sentimento de impotência na sociedade, angustiando uma parte considerável da população que não encontra  caminhos e respostas à difícil realidade brasileira.

Urge medidas governamentais para o enfrentamento real dos problemas do cotidiano já existentes, ampliados com a pandemia. A sociedade está desafiada a se unir a favor de um Programa Nacional de Vacinação: vacinar com a urgência devida toda a população é a única maneira de retornar a vida social com segurança.

As polarizações das narrativas hoje existentes na sociedade, o proselitismo político e os salvadores da pátria, assim como a antecipação da campanha presidencial não resolvem, neste novo ano de pandemia, as dificuldades reais da sociedade brasileira.

Desde o mensalão até à Lava Jato, a sociedade brasileira ficou com a sensação que mudanças positivas estavam acontecendo no Brasil: políticos no seu amplo espectro ideológico e empresários corruptos foram indiciados, julgados e presos. Muitos com confissões que abalaram a cena política e empresarial, causando perplexidade à sociedade brasileira – o PT foi o partido que teve o maior número de lideranças indiciadas, julgadas e presas: de José Dirceu a Lula, incluindo presidentes, tesoureiros, ministros de Estado, diretores da PETROBRAS e parlamentares. O PSDB, o principal partido de oposição ao PT, também teve governadores, senadores, deputados, prefeitos denunciados, processados e presos, atingindo uma das suas principais lideranças - na época da denuncia, presidente nacional da agremiação e senador da república e ex- candidato a presidência da República, Aécio Neves. Nos processos transitados e julgados foram devolvidos centenas de milhões de reais aos cofres públicos. Os processos e as investigações continuam.

Por outro lado, deve-se combater a instrumentalização das instituições de direito a favor de um determinado partido, empresa ou lideranças políticas e empresariais, devendo ser fruto de preocupação e vigilância permanente da cidadania e de toda a sociedade brasileira.

Então, a expectativa da cidadania e da sociedade brasileira é que este seja um caminho sem volta – uma conquista efetiva de toda a sociedade no combate à corrupção. Naturalmente, aperfeiçoando e combatendo comportamentos judiciais que afrontam o Estado de Direito e a Constituição brasileira.

Assim, a construção e a afirmação da democracia não comportam ou não deveriam comportar mais visões simplistas, binárias, do “nós contra eles”, como maneira de realizar a política e enfrentar os complexos desafios da sociedade brasileira.

Portanto, podemos e devemos enfrentar a pandemia abrindo o diálogo necessário entre as forças democráticas, no caminho de uma agenda que leve a um efetivo enfrentamento dos reais e urgentes problemas econômicos, sociais e de saúde, trazendo para o exercício da política a voz dos excluídos da sociedade, pressionando os que governam a República para pautar os problemas  reais da população, buscando a melhoria da qualidade de vida de milhões de brasileiros que vivem em condições precárias de moradia, sem segurança, educação, saúde,  saneamento e  mobilidade urbana no Brasil.

São estas as questões e os desafios a serem enfrentados por cada um e por todos nós se quisermos efetivamente superar a trágica realidade vivida atualmente, em plena pandemia, por toda a sociedade brasileira.

*George Gurgel de Oliveira, professor da Universidade Federal da Bahia, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia


Operação Lava Jato

Jerusa Burmann Viecili: A Lava-Jato lutou contra um sistema que foi feito para não funcionar

Muitas coisas mudaram em sete anos. A corrupção e a impunidade, infelizmente, não. Leia o artigo de procuradora que integrou força-tarefa da operação em Curitiba

Fevereiro de 2021 marca o enterro da Operação Lava-Jato. A morte dela já estava anunciada pelo menos desde o final de 2018 e ela respirava por aparelhos há muito mais tempo. Foi um caso emblemático que teve conhecimento e apoio público como grande diferencial e trouxe luzes a grandes casos de corrupção que assolam a administração pública brasileira em todas as esferas. Alertou a sociedade sobre as malezas causadas pela corrupção e trouxe à tona a discussão sobre a ineficiência do sistema penal e processual penal brasileiro.

De forma inédita, recuperou elevados valores, especialmente ocultados no exterior, aos cofres públicos, além de processar, condenar e punir poderosos empresários, agentes políticos e operadores financeiros.

Foram quase sete anos de luta contra um sistema que foi feito para não funcionar, mas sim para proteger os aliados do poder político e econômico. Sete anos de muitas batalhas perdidas, erros e acertos, que trouxeram esperança de que os trilhos da impunidade pudessem ser alterados para alcançar a eficácia da persecução criminal e de que o ciclo corrupção x impunidade x corrupção pudesse ser quebrado de forma a permitir o alcance da punição adequada e suficiente à prevenção e à repressão dos crimes de colarinho branco.

Enquanto o sucesso da Lava Jato era latente, a ampla maioria aplaudiu, muitos colheram seus louros e poucos teceram críticas que seriam construtivas e poderiam ter sido decisivas naquele momento. Mas, a partir do declínio da operação, mesmo ela tendo processado e condenado políticos de diversos partidos, os apontamentos de falhas e excessos pareceram superar um legado de que deveria persistir de maneira perene.

Nos últimos anos, não foram poucos os que levantaram a bandeira do combate à corrupção, mas foram escassas as medidas para alterar o quadro de corrupção sistêmica vivenciado. Palavras ao vento não modificam o estado das coisas e essa verdadeira doença que assola o país parece cada vez mais distante de encontrar tratamento adequado.

Pelo contrário, os poucos avanços que pareciam ter sido alcançados desde 2014 hoje estão cada vez mais distantes, pois soterrados diante de tantos retrocessos legislativos, jurisprudenciais, administrativos e até mesmo em palavras, tanto que já se fala em corrupção tolerável porque feita “por todo mundo”, como se um fato criminoso deixasse de ser típico por ser generalizado.

Fato é que aos poucos se vai esquecendo de tudo que a Lava Jato significou para o Brasil, tanto em termos de fortalecimento das estruturas de combate à corrupção, quanto no sentido de permitir à sociedade conhecer o funcionamento do processo penal e principalmente os meandros dos esquemas de corrupção existentes.

A história, neste ponto e talvez em nome de disputas notoriamente estranhas ao mundo jurídico, repete o triste fim da italiana Operação Mãos Limpas, apagando marcas que poderiam significar uma verdadeira mudança no sistema de combate à corrupção e à criminalidade.

Muitas coisas mudaram em sete anos. A corrupção e a impunidade, infelizmente, não.

*Jerusa Burmann Viecili é Procuradora da República e foi integrante da Força-Tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba.


O Globo: 'Em 2022 devemos ter alternativas não polarizadas', diz Sergio Moro

Ex-ministro da Justiça diz que todo mundo está conversando sobre a sucessão presidencial, sem citar o próprio nome como possível candidato de centro

Bela Megale, o Globo

BRASÍLIA — Ao GLOBO, Sergio Moro critica o ambiente de polarização entre esquerda e direita e admite que tem conversado com nomes que buscam construir uma alternativa. Reconhece que esteve, em outubro, com o apresentador Luciano Huck, como informou o jornal 'Folha de S.Paulo', para “conversar sobre o Brasil”, mas nega que, neste momento, seja candidato ao lado de Huck. “A construção disso é importante, e não necessariamente passa por mim. Não existe nada pré-determinado”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Estamos a dois anos das eleições presidenciais. O senhor está se articulando com lideranças para construir uma terceira via de candidatura?

Eu ficaria bastante desapontado se chegássemos em 2022 e tivéssemos apenas, como perspectivas eleitorais, dois extremos polarizados, a esquerda e a direita. O brasileiro tem um perfil mais moderado, e essa moderação favorece comportamentos de tolerância, que é o que nós precisamos, e o fim desse ciclo de ódio, que envolve principalmente as figuras do presidente (Bolsonaro) e igualmente do PT, especialmente o ex-presidente Lula. A construção disso é uma coisa importante, e não necessariamente passa por mim. Existem várias pessoas.

O senhor teve uma conversa com o apresentador Luciano Huck sobre as eleições. Trabalha na construção de uma chapa com ele?

Existe muita especulação sobre 2022. O que posso dizer é que há uma movimentação de pessoas com perfil de centro que têm conversado. Várias pessoas podem ser bons candidatos de centro, como o próprio Luciano Huck, o (governador) João Doria, o ex-ministro Mandetta, o João Amoêdo ou mesmo o vice Hamilton Mourão. São conversas, mas isso não quer dizer que exista algo preestabelecido.

Mas saiu algum compromisso dessa conversa com Huck?

Foi só uma conversa. Eu já conhecia o Luciano faz um tempo. Nós nos encontramos e conversamos apenas sobre o Brasil, o cenário, mas não existe nada pré-determinado.

O senhor tem falado com outros nomes?

Todo mundo está conversando, mas isso não significa que vou ser candidato. Minha preocupação é com o momento atual. Essas questões eleitorais sobre o que irei fazer no futuro são meramente especulativas. O que penso é que essa polarização de hoje obscurece os debates reais que temos que realizar. É meu desejo, como o de muita gente, que, em 2022, tenhamos alternativas não polarizadas. Qualquer candidato que apele para o discurso de ódio não é um bom candidato.

O senhor e o ex-ministro Mandetta mantêm conversas desde que deixaram o governo. Essa é mais uma alternativa para 2022?

Mandetta teve um papel relevante no início da pandemia, porque precisava manter as convicções dele baseadas em evidências, em contrariedade ao próprio presidente. Ele se destacou bastante.

O senhor diz que está preocupado com 2020, e não com 2022. O que isso significa?

Eu saí da vida pública, da magistratura, e depois do cargo de ministro. Hoje, meu plano é continuar sendo uma voz ativa em prol dos princípios e bandeiras nas quais acredito. Temos um Brasil cada vez mais isolado na perspectiva internacional. Isso tem consequências para o desenvolvimento. Temos questões na área ambiental, urgências na economia. Há muita coisa para acontecer até 2022 e o foco não pode ser esse (a eleição).

O que significa a vitória de Joe Biden nos EUA?

O resultado nos Estados Unidos mostra que o país continua uma democracia forte. Um dos significados da democracia é permitir essa alternância de poder. O presidente eleito acenou para a união de todos americanos, esse é o espírito que deve prevalecer. Biden tem o histórico de ser um político moderado. As relações entre Brasil e Estados Unidos, que são boas, devem ser trabalhadas para ficarem melhores ainda.

O presidente Bolsonaro já disse que não tem corrupção no seu governo. Dias depois, um aliado do governo apareceu com dinheiro na cueca. O que pensa disso?

Não temos ouvido notícias a respeito de escândalos de corrupção como tínhamos no passado, mas têm surgido casos pontuais que precisariam ter uma resposta dos órgão de controle. Temos tido retrocessos sim, infelizmente. E isso acontece desde o ano passado, não só por decisões de outros poderes, mas também por uma certa inação do Poder Executivo.

Quais retrocessos?

Vejo a omissão do governo em apoiar a retomada do restabelecimento da prisão após a condenação na segunda instância. Isso é injustificável e contraria, inclusive, as promessas de campanha feitas em 2018. Da mesma forma, havia uma expectativa de que poderíamos caminhar para a redução do foro privilegiado. O governo tem se mantido inerte em relação a esses temas. Então, a afirmação de que não existe corrupção, em primeiro lugar, não é absolutamente consistente com os fatos. Segundo, se não trabalharmos em um sistema de controle e prevenção, a corrupção vai voltar e, talvez, mais intensa do que foi no passado.

O senhor vê uma mudança de postura do governo sobre esse tema?

O governo tinha uma posição bastante rígida no início, em relação ao não loteamento político-partidário dos cargos públicos, por exemplo. Parece que essa política mudou sensivelmente no decorrer deste ano. Isso também acaba sendo uma possível fonte de oportunidades de práticas de corrupção. Se diminui o risco para o criminoso e aumenta a oportunidade, a prática é previsível.

O envolvimento do senador Flávio Bolsonaro em investigação criminal tem contribuído para esses retrocessos?

O governo federal tem falhado, principalmente por sua postura omissa em relação ao restabelecimento da prisão em segunda instância, por PEC ou por projeto de lei. Também senti isso na falta de apoio a várias medidas do projeto de lei anticrime. Os motivos dessa omissão devem ser indagados ao próprio governo. Não tenho condições de responder por ele.

Algumas leis de combate à corrupção são alvos de propostas que enfraquecem, por exemplo, ações contra lavagem de dinheiro? Como vê esse movimento?

Ainda não existe um texto final desse projeto de lei que está no Congresso, mas a minha impressão é que estamos brincando com fogo. Ao mudarmos a nossa legislação sem tomar cuidado com nossos parâmetros internacionais de combate à corrupção e lavagem, corremos o risco de sermos expulsos do Gafi/FATF (Grupo de Ação Financeira contra Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo, entidade intergovernamental que trata do tema). Além do risco de nos tornarmos paraíso para lavagem de dinheiro de crimes como tráfico de drogas, ainda podemos prejudicar nossa economia. É preciso ficar muito atento para verificar se esse projeto, no final, não vai afetar nossa posição na comunidade internacional.

Que tipo de medida, na prática, pode ser prejudicial?

Se a nova lei proibir, por exemplo, o compartilhamento de relatórios de inteligência do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) com órgãos de investigação, estaremos na direção errada. Corremos um sério risco de o Brasil se tornar um párea internacional no âmbito da lavagem de dinheiro, embora tenha gente que não veja problema nisso. Não faço juízo definitivo sobre esse projeto e o que trata da lei geral de proteção de dados, porque ambos estão em andamento, mas temos que olhar para frente, não para trás.

O governo alimenta o plano internacional de entrar na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Essas eventuais mudanças ameaçam esse projeto?

Elas não só comprometem nosso ingresso na OCDE, como podem afetar nossa reputação, com risco de sermos expulsos de certos órgãos internacionais. Fazer parte desses órgãos não é só uma questão de prestígio internacional, mas algo que tem reflexos reais na economia. Temos um exemplo que aconteceu em julho do ano passado. Na época, foi concedida uma liminar pelo ministro Dias Toffoli, que suspendeu um processo de investigação por lavagem de dinheiro (Moro se refere ao caso sobre o pagamento de rachadinhas que envolve Flávio Bolsonaro, quando foi deputado estadual no Rio). Como esse processo tinha uma repercussão geral, afetou todas as investigações em curso no país baseadas em dados sigilosos compartilhados pela Coaf sem prévia autorização judicial.

E qual foi a consequência dessa liminar?

Aquilo gerou um risco de suspensão do Brasil no Gafi/FATF. Foi enviada uma comissão antissuborno da OCDE para o Brasil, com observadores. Visitaram várias autoridades, houve envio de cartas do presidente do Gafi, externando essa preocupação. Posteriormente, o próprio STF, inclusive o ministro Toffoli, acabou revendo a liminar. Se não tivesse havido essa revisão, seríamos expulsos do Gafi, e isso teria consequências terríveis para a economia. Tanto é assim que quem capitaneou o convencimento com os ministros do Supremo para evitar essa expulsão foi o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Eu vi as propostas de mudança na lei de lavagem. É cedo para avaliações, mas uma crítica que já pode ser feita à Comissão que debate o assunto é a pouca participação de órgãos do Poder Executivo.

Quais órgãos?

Não constam representantes da PF, do Conselho de Atividades Financeiras, da CGU. Há uma predominância de advogados. Isso não tem nada de negativo, em princípio, mas seria interessante que houvesse representantes desses órgãos para ter uma visão especifica, já que eles estão encarregados, muitas vezes, do combate à lavagem.

O senhor mencionou que o governo também enfrenta questões na área ambiental.

Nessa área, o governo peca, essencialmente, pelo discurso. Tem feito operações importantes, como a Verde Brasil, capitaneada pelo vice Hamilton Mourão. Esses esforços, porém, ficam prejudicados, quando há um discurso equivocado da parte da nossa liderança maior, porque isso acaba comprometendo o próprio efeito preventivo dessas ações contra o desmatamento. O discurso dessa liderança nega qualquer problema e invoca, a meu ver, com cálculo eleitoral, a questão da Amazônia com perspectiva ufanista, de que é nossa e que, por isso, podemos fazer o que quisermos.

O senhor se refere ao presidente Jair Bolsonaro.

É… o presidente da República tem um grande poder. Ele ensina as pessoas, ao dar exemplo. As palavras são muito fortes. Quando uma ação é prejudicada pelo discurso equivocado da liderança maior, seu efeito diminui, até porque a comunidade internacional ouve muito a palavra dessa liderança.

Sobre o STF, o senhor avalia que o perfil garantista de Kassio Marques foi essencial para que ele fosse indicado pelo presidente?

Não conheço pessoalmente o ministro Kassio e espero que ele tenha sorte e sucesso na carreira. Ele se autoafirmou como garantista. Acho que esses rótulos não se justificam, porque todo magistrado tem preocupação com os direitos do investigado. Isso não significa defender um sistema judicial que não seja efetivo contra os culpados. Estamos vendo vários episódios nos últimos meses em que lamentamos não ter um sistema mais efetivo. Tivemos recentemente a soltura de um grande traficante (André do Rap, líder do PCC). Vamos ver a atuação dele no STF e não julgar o ministro antes mesmo dele exercer o cargo.

Bolsonaro mudou o perfil da escolha que previa para o Supremo?

De certa forma, o presidente, quando foi eleito, tinha o discurso um pouco diferente em relação ao perfil dos magistrados que iria indicar ao Supremo. Isso não é uma crítica ao indicado, mas uma ponderação em relação à posição do presidente. No cenário atual, parece difícil que ele indique pessoas com um perfil mais linha dura no trato da questão criminal, haja visto o discurso que ele vem adotando em relação a essa temática. Assim como o governo deixou de lado a execução da prisão após a segunda instancia, parece que hoje essa não é mais uma preocupação.

Acredita que o STF vai se posicionar pela depoimento presencial do presidente Bolsonaro e dar o mesmo tratamento que o senhor teve no inquérito que os envolve? Que desfecho espera dessa investigação?

Esse inquérito foi aberto e isso até me surpreende. A minha intenção não era essa, mas sim esclarecer por que eu estava saindo do governo, além de buscar alguma proteção para a PF. Houve uma iniciativa do procurador-geral (Augusto Aras) de instaurar o inquérito, inclusive, me colocando como um dos investigados. Eu não tenho interesse pessoal nesse inquérito. O que o STF decidir sobre o depoimento do presidente e o que for concluído, não dou muita importância. Para mim, é irrelevante.

O senhor se posiciona com frequência nas redes sociais sobre diversos temas. Como lida com o ambiente de ódio?

Tenho tido muito cuidado nas minhas postagens, para evitar qualquer tipo de fomento a esse discurso de ódio. Até me penitencio por uma ou outra postagem em que posso ter sido mais veemente, mas hoje tenho esse compromisso comigo de evitar qualquer espécie de agressão em rede social. Não podemos combater fogo com fogo.

O que achou da atuação da Justiça no caso do estupro de Mariana Ferrer?

Vi o vídeo que circulou na internet. Fica claro que o advogado errou ao tratar, na audiência, a pessoa que denunciou um estupro com aquela agressividade. Sinceramente, penso que o advogado deveria, pelo menos, pedir desculpas públicas e, quem sabe, até mesmo indenizar a ofendida. Digo isso independentemente da questão do estupro, já que cabe aos tribunais julgar a acusação. Pelo menos o vídeo teve o efeito positivo de chamar a atenção de todos, para que ajam com maior cuidado e respeito às vítimas em processos por crimes sexuais. Não raramente, a prática é de tentar desconstruir a vítima, o que é reprovável e significa submetê-la a novo padecimento moral.

A sua quarentena de ministro acabou em outubro. Quais os planos agora?

Acredito muito no potencial do setor privado para implementar políticas anticorrupção. Minha pretensão, no momento, além de participar do debate público, é fomentar, no setor privado, esse processo para que as próprias empresas tomem iniciativas para adotarem políticas de conformidade com a lei. Vou fazer o que eu acredito no âmbito do setor privado, sem prejudicar outras atuações.

Como enxerga o presidente Bolsonaro hoje?

Não tenho nenhum sentimento de animosidade. O que eu vejo, a distância, e ainda quando estava no governo, é que falta um ímpeto mais reformista.

O que o senhor quer dizer com isso?

Tivemos uma reforma importante, que foi a da previdência, no ano passado, mas existem várias reformas na agenda, mais ambiciosas ou microrreformas, que podem fazer diferença. A própria agenda anticorrupção aparenta ter sido abandonada. Não podemos esperar um eventual segundo mandato, um próximo presidente. Temos que trabalhar nas reformas desde já.

Neste mês, faz dois anos que o senhor aceitou integrar o governo Bolsonaro. Está arrependido?

Eu aceitei ir para o governo diante de circunstâncias muito específicas. Tinha a ambição, não no sentido pessoal, de que poderia implementar políticas públicas consistentes com o que acredito. Em certa parte, isso foi bem-sucedido, especialmente no combate ao crime organizado. Agora, em relação à agenda anticorrupção, não pude avançar, em parte, pela falta de um apoio maior do Planalto. Senti que era o momento de sair. Agora, olhando para 2018, vejo que a minha decisão de entrar no governo foi racional e apoiada, até por pesquisas da época, por grande parte da população. Não me arrependo por ter tentado fazer o que acredito.


Vera Magalhães: Suprema bagunça

Tudo é lamentável no caso André do Rap, síntese dos nossos vícios recentes

É inútil tentar explicar à grande massa da opinião pública o intrincado novelo legislativo, interpretativo e jurídico que permite que, num intervalo de um dia, um ministro do Supremo Tribunal Federal mande soltar um dos mais perigosos traficantes do País, e outro mande prender. O que salta aos olhos, nesse caso, é a barafunda da mais alta Corte de Justiça do País, uma situação que vem sendo construída a muitas mãos, tijolo a tijolo, ao longo dos últimos anos.

O sabor das conveniências e os alinhamentos de ocasião, políticos e jurídicos têm levado a que o STF aja, sistematicamente, de maneira disforme, disfuncional e, sobretudo, política.

Então, houve um momento em que o vento soprava a favor do punitivismo, e por ele se guiaram antes históricos garantistas.

Veio a Lava Jato, que, por alguns anos gozou de prestígio similar na Corte, mantendo a tendência anti-impunidade e levando a que a operação tivesse confirmadas quase todas as suas principais (e até as mais polêmicas) decisões.

A maré virou, e não adianta negar, depois do impeachment de Dilma Rousseff. Foi só ali, depois de o axioma de Romero Jucá (aquele do acordão com o Supremo, com tudo) se tornar conhecido, que os hoje propalados reparos à Lava Jato vieram à baila e o assim chamado garantismo voltou à moda entre os togados.

A ponto de o tribunal se ver cindido em dois. O grupo antilavajatista colecionou vitórias na gestão Dias Toffoli e graças à composição da Segunda Turma, mas agora o comando trocou de mãos.

Só que os alinhamentos e o movimento do pêndulo não são tão simples. À frente da Corte está Luiz Fux, alguém que não goza de popularidade interna nem entre os antilavajatistas nem particularmente entre os apoiadores da operação.

Há ainda ministros que não jogam fechados em nenhum dos times, como Marco Aurélio Mello, pivô do lamentável episódio André do Rap, a enigmática Rosa Weber e Alexandre de Moraes, que tem sido mais independente em relação a esses grupos.

Além disso, a saída de Celso de Mello e a decisão de retornar ao plenário do STF as questões referentes a inquéritos e ações penais vão necessariamente reconfigurar estratégias e alianças.

Este é o pano de fundo político que permitiu a que se chegasse a um papelão nacional como esse da soltura de André do Rap.

Cheira a cinismo de advogados louvarem o caráter “técnico” da decisão de Marco Aurélio. Mesmo a análise fria do que mandou a lei anticrime, e que agora está consignado no Código de Processo Penal, recomenda deixar para o juiz singular decisão de revogação de prisão preventiva, quando não justificada pelo Ministério Público ou autoridade policial.

Ainda que fosse tecnicamente correta, a decisão não se sustenta diante da periculosidade do traficante e o risco – agora confirmado, com sua óbvia fuga – de sua soltura. E não adianta vir com firulas jurídicas: é, sim, papel do STF zelar pela ordem pública, e não se espera de um magistrado da Corte suprema que esteja de prontidão para, a qualquer cochilo de prazos do Ministério Público, conceder liminar com esse teor num sábado pré-feriado.

O jogo de gato e rato iniciado entre os ministros depois da decisão e de sua revogação por Fux, com direito a indignidades de troças quanto ao penteado do presidente da Corte, é sinal de que foi longe demais o esgarçamento da institucionalidade na cúpula do Judiciário.

É este o retrato do Poder com o qual a sociedade vem contando para, vejam só, colocar freios no presidente com pendores autocráticos. Enquanto uma ala da Corte está confraternizando com ele e opinando sobre indicações para o Supremo, a outra está se engalfinhando numa disputa infantil enquanto um criminoso perigoso foge nas suas barbas. Aterrador.


Elio Gaspari: Luiz Fux comeu a jabuticaba

Alteração no regimento do STF levou para o plenário questões penais que envolvem foro privilegiado

Ao alterar o regimento do Supremo Tribunal Federal levando para o plenário questões penais que envolvem maganos com foro privilegiado, o presidente do Supremo Tribunal, ministro Luiz Fux, limitou o alcance da jabuticaba das duas turmas da Corte. Com a provável chegada de Kassio Nunes à segunda turma, no lugar de Celso de Mello, Gilmar Mendes reinaria absoluto. Com o seu voto, o de Kassio, mais o de Ricardo Lewandowski, formariam maiorias automáticas, inclusive nos processos da família Bolsonaro.

Isso no varejo. No atacado, Fux fez muito mais, pois as turmas do Supremo são uma jabuticaba criada no século passado. Não há no mundo corte constitucional renomada que decida em turmas. A Constituição diz que os ministros são 11, e 11 deveriam ser os ministros que decidiriam. Gilmar Mendes não gosta que se busquem paralelos na Corte Suprema dos Estados Unidos, mas lá só há turmas quando os juízes fazem ginástica no último andar do prédio.

A providência é tão cristalina que Gilmar Mendes não gostou, mas votou a favor da mudança, decidida por unanimidade.

A provável chegada de Kassio Nunes ao Tribunal, com seu currículo e seu percurso, obrigará Fux e seus colegas a trabalhar para recolocar a composição nos trilhos. Limitando o poder das turmas, a bola volta ao centro do campo, e as decisões que envolvem maganos com foro privilegiado vão para o plenário. A menos que se faça uma pirueta, muita coisa poderá acontecer em função dessa mudança, e mudará a qualidade da proteção de réus condenados por malfeitorias e roubalheiras. Aquilo que poderia ser resolvido com três conversas, precisará de pelo menos seis.

Paes e o óbvio
Com a segurança de um banqueiro alemão, doutor Eduardo Paes, ex-prefeito do Rio e candidato a um remake, anunciou: “Não faria a ciclovia da Niemeyer. É óbvio. É uma área frágil, entre o mar e a encosta. Morreram duas pessoas.”

Paes usa a expressão “é óbvio” de um jeito que os outros parecem bobos, e ele, esperto. O mar e a encosta já estavam lá quando ele resolveu fazer a ciclovia Tim Maia, “a mais bonita do mundo”, nas suas palavras. Quando ela desabou, em 2016, ele pontificou: “É óbvio que se essa ciclovia tivesse sido feita de forma perfeita, nós não teríamos essa tragédia, esse absurdo”. A ciclovia foi licitada, contratada e fiscalizada por seu governo.

Prefeito do Rio de 2009 a janeiro de 2017, Paes fez uma administração exuberante, com a Olimpíada (que deixaria um legado) e o Porto Maravilha. Resultou um Carlos Lacerda que deu errado.

Entre 1960 e 1965, Lacerda fez a adutora do Guandu e criou o parque do Aterro do Flamengo. Os dois estão aí até hoje. O legado da Olimpíada e o Porto viraram micos.

Paes disputa a prefeitura com Marcelo Crivella e seus parrudos e óbvios Guardiões comissionados.

Cadê?
Bolsonaro diz que acabou com a corrupção no governo. Como Lula diz que nunca houve corrupção no dele, vá lá.

Mesmo assim, falta explicar porque em agosto de 2019 o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação publicou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e tablets, coisa de R$ 3 bilhões. A Controladoria-Geral da União descobriu que o sistema estava viciado e mostrou que uma escola de Minas Gerais receberia 30.030 laptops para seus 255 alunos. Outras 355 deveriam receber mais de um equipamento para cada estudante.

O edital foi suspenso e depois cancelado. De lá para cá, passaram pelo MEC quatro ministros, e pelo FNDE, cinco presidentes. Nunca se explicou como o tal edital foi concebido, como tramitou nem quem foi seu patrono.

Detalhe: o jabuti foi percebido, interceptado e neutralizado pelos mecanismos de controle do governo de Bolsonaro, mas o dono do bichinho continua no escurinho de Brasília.

Prêmio Nobel
O ano de 2020 entrará para a história do Prêmio Nobel como aquele em que se quebrou a barreira do gênero na ciência. Duas mulheres ganharam o prêmio de Química e uma compartilhou o de Física. (Como dizia Larry Summers, o presidente de Harvard que foi defenestrado, as mulheres não têm aptidão para a ciência.)

Andrea Ghez, que ganhou o prêmio de Física, é neta de um judeu que foi para os Estados Unidos depois da promulgação das leis racistas do fascismo italiano.

O pai de Andrea nasceu em Nova York em 1938, quando o alemão Otto Hahn descobriu a fissão nuclear. Trabalhava com ele a cientista Lise Meitner. Por judia, foi demitida da universidade e teve que fugir da Alemanha; por mulher, foi esquecida. Hahn ganhou o Nobel sem reconhecer a participação de Meitner na descoberta.

Algum dia, Lise Meitner terá o devido reconhecimento. Se não for pela sua participação nas pesquisas da fissão, que seja pelo fato de que, em 1943, foi convidada para um projeto secreto anglo-americano. Ela sabia o que se queria e recusou a oferta: “Não quero ter nada a ver com a bomba.”

Em agosto de 1945, quando Hiroshima foi destruída, Meitner esfriou a cabeça caminhando por cinco horas e à noite anotou em seu diário: “Ninguém entendeu nada.”

Grande Witzel
Citando Gilberto Amado, um beija-flor de vaidade, o professor Joaquim Falcão resumiu a patetada de Kassio Nunes ao turbinar seu currículo:

“Ser mais do que se é, é ser menos.”

Turbinar currículo é um vício recente. A mania pegou Dilma Rousseff, Damares Alves, Ricardo Salles, Marcelo Crivella, Carlos Alberto Decotelli e Wilson Witzel.

Nesse grupo, quem brilhou foi Witzel. Em vez de fraudar títulos de universidades comuns ou até chumbregas, mentiu grande e anunciou-se diplomado por Harvard, onde nunca pisou.

Em tempo: o ministro Celso de Mello, em cuja cadeira Kassio Nunes quer sentar, foi um dos maiores juízes da Corte. Era apenas advogado, sem mestrado nem doutorado.

Destruição destruidora
A geração que nasceu depois de 1955, como Jair Bolsonaro, deve ter sido a única na História humana que financiou a criação de três polos de construção naval. Houve o de Juscelino Kubitschek, o de Ernesto Geisel e o de Lula. Três fracassos, muitas roubalheiras, um pior que o outro.

Agora o governo apresentou em regime de urgência um projeto de lei apelidado de BR do Mar, que vai na direção contrária e poderá resultar na destruição das empresas de cabotagem que existem no Brasil. Não houve debate, não se conhecem estudos técnicos e há o risco de se entregar esse mercado a um cartel de grandes empresas internacionais às vezes associadas a grupos brasileiros. A ideia da BR do Mar pode ter virtudes, mas levada a tapa no escurinho de Brasília, tem tudo para dar errado.

Guedes fatiado
O centrão está em marcha batida para fatiar o Ministério da Economia.

Há dois anos, Paulo Guedes prometia combater “piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político”.

Está sendo obrigado a conviver com eles.


Eliane Cantanhêde: Não tem corrupção?

A Lava Jato vai e vem, mas não acabou e tem aliados articulados, como Luiz Fux

Odiada pelo PT desde sempre e desprezada pelos bolsonaristas após a queda de Sérgio Moro do governo, a Lava Jato continua no centro das preocupações e, se tem adversários poderosos, tem também aliados ágeis e articulados. Acaba de ter uma vitória preciosa no Supremo e obriga o presidente Jair Bolsonaro a providenciar frases de efeito e versões para jurar que não é contra a Lava Jato nem atrapalha o combate à corrupção. Acredita quem quer.

Rápido e de surpresa, o novo presidente Luiz Fux conseguiu, por unanimidade, tirar os inquéritos e ações penais das duas turmas e jogar para o plenário do Supremo. Perderam os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, ganhou a Lava Jato. Condenar ou absolver os implicados na operação vai deixar de depender de dois ministros e voltar a ser responsabilidade de todos os onze da casa.

Voltar ao plenário não é garantia de vitória ou derrota dos réus da Lava Jato, mas confere mais credibilidade, peso e força para as decisões, sejam numa direção ou na outra. O que não era mais possível é transformar julgamentos em leilão: cair na Primeira Turma era prenúncio de condenação; cair na Segunda, de absolvição na certa.

O racha no Supremo volta com tudo, Fux tende para o lado oposto do antecessor, Dias Toffoli, e o primeiro ministro indicado por Bolsonaro vai fazer toda a diferença. Ainda não se aposta para que lado ele pende, mas, como a divisão costuma ser meio a meio, para qualquer lado que ele vá, o resultado vai.

E aí mora um perigo, porque o desembargador Kassio Nunes Marques começa mal, envolto em suspeitas, com currículo cheio de buracos e companhias duvidosas, como o ex-advogado de Jair e Flávio Bolsonaro, Frederick Wassef. Como tem apoio do Senado, do Supremo e do Centrão, afugentou os bolsonaristas que ainda não entenderam nada. E como já tomou muita tubaína com Bolsonaro, que responde a inquérito no STF e tem filhos um tanto enrolados, ele multiplica a desconfiança no conjunto da sociedade.

O Dr. Kassio é considerado “muito político”, “simpático”, “uma boa conversa” e, como o TRF-1 é em Brasília, tem acesso direto, e fácil, a Congresso, Judiciário e Executivo. Mas o que se espera de um ministro que vai (se tudo der certo para ele) ficar 27 anos no Supremo não é nada disso, é “notório saber jurídico” e “reputação ilibada”. Se inflou o currículo com cursos rápidos e até plágios com os mesmos erros de digitação e de português, ele compromete um e implode o outro. Péssimo para Bolsonaro, que já tem o professor Decotelli na conta.

Por essas e outras, Bolsonaro se saiu com essa, bem ao estilo da realidade paralela de Donald Trump: “Eu acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo”. Uma frase, vários erros. Quem pode criar ou acabar com a Lava Jato é a Procuradoria-Geral da República e não dá para dizer que “não tem mais corrupção” no governo ou fora dele, com tantas investigações sobre a família presidencial.

Provavelmente Bolsonaro jogou isso no ar para dar discurso a seus seguidores, que traíram Moro e o que ele representa com muita ligeireza e nunca perguntaram por que o presidente perseguiu o Coaf, mexeu pauzinhos na Receita e não sossegou até demitir o diretor-geral da Polícia Federal e o superintendente no Rio – base política dele e de dois de seus filhos.

Nada disso é trivial, tanto que o Supremo vai ouvir Bolsonaro sobre a obsessão pela PF, que começou quando Fabrício Queiroz, rachadinhas, fantasmas e mania de dinheiro vivo entraram em pauta e se tornou questão de vida ou morte quando Bolsonaro atrelou sua sobrevivência ao Centrão. Quem depende do Centrão não quer ouvir falar de Lava Jato. Ele nem pode acabar com a Lava Jato, mas bem que gostaria. E tem agido claramente para isso.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Merval Pereira: O fantasma de Bolsonaro

Não vale a pena ficar revoltado com o cinismo do presidente Bolsonaro quando diz que acabou com a corrupção no Brasil. Quando todo poderoso ministro-chefe do Gabinete Civil, José Dirceu tinha um mantra. Repetia, para convencer os incautos: “Este é um governo que não rouba nem deixa roubar”.

Por baixo do pano, corria solto o mensalão, com os mesmos partidos que hoje formam a base parlamentar do governo Bolsonaro. Imaginar que esses mesmos políticos possam hoje estar imunes às práticas nada republicanas que levaram muitos deles a serem investigados, denunciados ou condenados na Operação Lava-Jato, é ser ingênuo, o que Bolsonaro e os seus não são.

Como sempre, o que Bolsonaro mira é sua reeleição, e acabar com a Operação Lava-Jato significa para ele um trunfo eleitoral, pois teoricamente apagaria a memória do ex-juiz Sérgio Moro, que Bolsonaro considera um concorrente perigoso em 2022.

Por isso também o presidente está interessado em desmoralizá-lo através da sua condenação na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) como juiz parcial no julgamento do ex-presidente Lula no caso do triplex. Pode, no entanto, estar dando um tiro no pé ao empenhar seu escolhido para a vaga no Supremo em uma ação pessoal contra Moro.

A fixação de Bolsonaro em seu antigo auxiliar é tamanha que, ao ser questionado sobre a escolha do desembargador Kassio Marques para o STF, respondeu irritado: “Você queria que colocasse lá o Moro?”. Acabar com a Lava-Jato seria acabar com as investigações sobre corrupção, uma maneira simples de acabar com a corrupção, que continuaria escondida como sempre aconteceu no Brasil antes do mensalão e, sobretudo, do petrolão levantado pela Operação Lava-Jato.
Une Bolsonaro e alguns ministros do Supremo a idéia de que aniquilar a imagem de Moro como justiceiro fará com que a Justiça brasileira volte a seu curso normal, com o Supremo sendo o último bastião de defesa do devido processo legal. Boa parte do Supremo, porém, considera que o “garantismo” que critica a Lava-Jato quer, na verdade, ter o controle dos processos de políticos, blindando-os da Justiça de Curitiba.

Esses juízes chamados “consequencialistas”, ou “punitivistas” consideram, como o ministro Luis Roberto Barroso já disse, que o sistema de Justiça criminal no Brasil foi feito para não funcionar, protegendo os privilegiados. O que os ministros “garantistas” consideram excessos da Lava-Jato, os que a defendem acham que são medidas necessárias para evitar que fiquem impunes os privilegiados.

A partir do mensalão, em 2005, até recentemente, a punição aos culpados por crimes do colarinho branco tem sido uma constante no Supremo Tribunal Federal (STF), e Bolsonaro chamou para seu governo o então juiz Sérgio Moro para aparentar que o combate à corrupção seria sua prioridade.

Questões pessoais, envolvendo seus filhos, e ele próprio sendo investigado por ações na Presidência da República para controlar a Polícia Federal e outros órgãos de investigação como o Coaf, fizeram com que caísse a máscara de Bolsonaro.

A união ao Centrão, grupo de partidos ligados ao fisiologismo, com diversos integrantes investigados pela Lava-Jato, marcou de vez a mutação, de combatente da corrupção a conivente com “criaturas do pântano”, no dizer de Sérgio Moro. Fazer graça com a idéia de “acabar com a Lava-Jato” é um ato falho de quem disputa com o fantasma de Moro, que o persegue nas redes sociais que um dia foram suas.

A reação à fala de Bolsonaro mostrou que não será fácil acabar com a Lava-Jato, que se incorporou ao imaginário popular como um avanço civilizatório.


Bruno Boghossian: Conveniência política dita relação entre Bolsonaro e a Lava Jato

Presidente nunca foi um político particularmente interessado no combate à corrupção

Jair Bolsonaro extraiu benefícios eleitorais da avalanche produzida pela Lava Jato, mas nunca foi um político particularmente interessado no combate à corrupção. Como deputado, não deu atenção ao tema e, na última campanha, só falava da roubalheira para fustigar seus adversários na disputa.

A rigor, o presidente não tem vínculos diretos com a operação. Como circulava no baixíssimo clero da política, não figurava entre os alvos que operavam nas estatais investigadas. Depois de chegar ao Planalto, não trabalhou a favor das forças-tarefas nem lançou uma discussão séria para corrigir seus excessos.

Os movimentos de Bolsonaro em relação à Lava Jato e ao combate à corrupção, de maneira geral, seguiram basicamente conveniências particulares e políticas. A ficha só caiu quando o presidente enxergou investigadores no encalço de seus parentes e de seus novos aliados.

Depois de pegar carona no discurso da operação e de aproveitar sua retórica moralista para eleger um governador no Rio, Flávio Bolsonaro resolveu acordar. Em agosto, ele celebrou as decisões do procurador-geral Augusto Aras para impor limites à operação e disse que “os excessos precisam ser investigados”. Se Fabrício Queiroz não tivesse passado alguns dias na cadeia, talvez o senador não tivesse percebido nada disso.

A desenvoltura com que o clã presidencial passou a falar da operação é respaldada pelos políticos que sobreviveram a ela. O novo líder do governo, Ricardo Barros (Progressistas), já disse que vê “uma parcialidade na posição da Lava Jato” e que a operação tirou o ex-presidente Lula da eleição de 2018. “Não precisamos fazer muito esforço para perceber ativismo político”, declarou.

Acuado por críticas que ligam a indicação de Kassio Nunes para o STF a um acordo para enterrar a Lava Jato, Bolsonaro tentou fazer piada. Nesta quarta (7), ele disse ter acabado com a operação “porque não tem mais corrupção no governo”. A Lava Jato pode até não incomodá-lo, mas seus esforços são inegáveis.


Merval Pereira: O vento muda

Como sempre em uma democracia não totalmente amadurecida como a nossa, mudanças súbitas no quadro institucional acontecem, alterando o processo em andamento e manobras que estavam em gestação. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luis Fux, tirou das Turmas e levou para o plenário o julgamento de ações penais, retirando do ministro Gilmar Mendes o controle das ações da Lava-Jato na Segunda Turma.

Paralelamente, a substituição do ministro Celso de Mello pelo desembargador Kassio Marques subiu no telhado. O que parecia ter sido a sorte grande de sua vida acabou se transformando num pesadelo que pode até mesmo inviabilizá-lo para o posto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que almejava, antes de ter sido catapultado para a vaga do Supremo Tribunal Federal (STF) por interesses ainda não claramente identificados.

Assim como, num passe de mágica, apareceu do nada para compor o grupo de chamados “garantistas” no Supremo, cujo objetivo político imediato combina com o de Bolsonaro, de desmoralizar o ex-ministro Sérgio Moro, Kássio Marques pode estar em processo de autodestruição.

As inconsistências no currículo, onde registra título inexistente de pós-doutorado e duvidosas provas de mestrado e doutorado quase ao mesmo tempo, foram agravadas com a denúncia da revista digital Crusoé de que apresentou uma dissertação de mestrado na Universidade Autônoma de Lisboa com “trechos inteiros copiados de artigos publicados na internet por um advogado”.

A revista utilizou um aplicativo chamado Plagium para analisar as 127 páginas do trabalho com que o desembargador ganhou o título de mestre em Direito, e identificou passagens inteiras copiadas de textos do advogado Saul Tourinho Leal, piauiense como ele. Até mesmo um erro de grafia, trocando “Namíbia” por “Naníbia”, foi copiado.

A festa em que estava transformada a indicação de Bolsonaro, com reuniões sociais onde acusados e acusadores, juízes e advogados confraternizavam, está a ponto de desandar. Porém, o que, num país civilizado, seria obstáculo para a indicação de um ministro do STF, no Brasil pode não dar em nada.

Até pela manhã, o desembargador Kassio Marques aparecia no noticiário com duvidosos títulos em seu currículo, mas do jeito que as coisas são feitas por aqui, à base da amizade e do relacionamento pessoal, a confirmação de seu nome pelo Senado parecia não ser problema.

O desembargador aparece todos os dias em jantares, almoços ou bate papo na internet com os senadores que irão argui-lo. Essa ligação pessoal do indicado com quem vai julgá-lo é promíscua. Não me lembro de outro ministro do STF tenha ficado nessa socialização com todos ao ser indicado. As visitas formais de apresentação são naturais, mas nada além deveria acontecer se a sabatina do Senado fosse mesmo para valer.

No entanto, a denúncia da Crusoé eleva o sarrafo na avaliação do candidato pelo Senado, mesmo nesse ambiente. Como ministro, Kassio Marques iria para a Segunda Turma do STF, e seria o voto de desempate da turma, certamente para o lado que frequenta, a favor do grupo dito “garantista”, onde predominam Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Agora, pode nem estar na posição de ministro nos próximos dias, e a história pode ser outra. Com a decisão do presidente Luis Fux, apoiada por unanimidade pelo plenário, restarão às turmas os habeas-corpus, como o de Lula argüindo a parcialidade do então juiz Sérgio Moro no seu julgamento no caso do triplex do Guarujá, onde foi condenado nas três instâncias.

Mesmo assim, se a Segunda Turma considerá-lo parcial, o processo volta à estaca zero. Lula, porém, foi condenado em segunda instância em outro processo, o do sítio de Atibaia. Nesse caso, o juiz Moro aceitou a denúncia, mas quem condenou foi a juíza Gabriela Hardt. Vai ser muito difícil para os advogados de Lula conseguir a anulação desta segunda condenação para que ele se torne novamente elegível. Ainda mais agora, que o vento mudou novamente de lado no caso da Lava-Jato.


Bruno Boghossian: Na corrida por uma vaga no STF, Bolsonaro frustra parte de sua base

Reviravolta mostra dificuldade do presidente em equilibrar suas alianças de conveniência

A corrida pela próxima vaga do STF ensina a Jair Bolsonaro o desafio de equilibrar as alianças de conveniência que o sustentam no poder. A reviravolta produzida pelo presidente aprofunda seu namoro com a classe política, mas também coroa seu divórcio com o lavajatismo e aborrece parte da base ideológica mais radical do governo.

A escalada do juiz federal Kássio Nunes ao posto de favorito à primeira indicação de Bolsonaro para a corte se deu contra os sinais públicos que o presidente emitia sobre a decisão. Nos últimos dias, ele buscou apoio do centrão e apresentou seu escolhido para ministros do STF que representam a ala do tribunal mais crítica aos excessos da Lava Jato.

Antes de chegar ao Planalto, Bolsonaro já explorava o poder de indicar novos ministros para surfar na onda anticorrupção. Na campanha, ele falou em aumentar o número de cadeiras do STF e prometeu nomear “dez do nível do Sergio Moro” para a corte. O papo ajudou a colar sua candidatura à imagem da operação.

O presidente não demorou a trair quem acreditou na conversa –a começar pelo próprio Moro. Depois que Bolsonaro escancarou sua intenção de usar a caneta para proteger seu grupo político de investigações, nem mesmo os lavajatistas em negação, que ainda apoiam o governo, podem se dizer surpresos.

A guinada no processo de escolha, se confirmada, frustra segmentos mais apegados à pauta ideológica em que Bolsonaro se apoia. O presidente prometeu um ministro “terrivelmente evangélico” para o tribunal, mas depois modulou o discurso e avisou a pastores que seu escolhido seria apenas um conservador. Kássio Nunes, no entanto, nunca deu peso público a essa agenda.

Bolsonaro pode repetir com a indicação o mesmo estremecimento que sofreu ao nomear Augusto Aras como procurador-geral. Na ocasião, sua base ficou furiosa e tentou vincular o escolhido ao combate à Lava Jato. Em busca de sobrevivência política, o presidente se mostra disposto a seguir esse caminho.


Vinicius Torres Freire: As farsas de Moro e a elite que toca no show de Bolsonaro

Ex-juiz pode interrogar presidente sobre a intervenção na Polícia Federal

Sergio Moro pode interrogar Jair Bolsonaro. O ex-juiz poderá inquiri-lo no processo sobre a intervenção do presidente na Polícia Federal, mas agora como réu, investigado.

A cena faz parte de duas farsas, uma delas obra pronta, outra em progresso. As duas contam um pouco da história da nossa viagem ao fundo da noite.

Na primeira peça, o lavajatista-mor torna-se colaborador do bolsonarismo, é escorraçado do governo feito um bagaço e então tenta refazer a carreira política ao acusar um ataque presidencial à democracia, de modo tardio e oportunista. Bolsonaro, como se sabe, tenta controlar a polícia e a espionagem a fim também de livrar filhos da cadeia.

Na farsa que ainda está sendo escrita, empilham-se indícios de que os Bolsonaro viviam de rachadinhas administradas por Fabrício Queiroz, agregado da milícia.

Esse rinoceronte de evidências esparramou-se no meio da sala, mas a classe dirigente finge que não vê o paquiderme, e dois terços do país parecem ignorá-lo. Tanto faz a cena de Moro ou mais alguém apontar crimes presidenciais.

Não há o crescendo de indignação, não raro farisaísmo histérico, o atropelo de denúncias contra o PT e Lula da Silva, caçado, interrogado e abatido por Moro. Os tartufos coxinhas do lava-jatismo são espanados pela Procuradoria bolsonarista. A geringonça de direita que comanda o que sobra do país deixa estar o caso das rachadinhas e acha que conteve o golpismo de Bolsonaro.

Que existam colaboracionistas e adesismo de direita não causa surpresa, embora ditos liberais possam estar cavando assim a sua cova. Espanta que a oposição também se acomode, com o mesmo efeito prático de deixar Bolsonaro solto.

A geringonça de direita é essa mistura de parlamentarismo branco com a coalizão liberal-reformista de certas elites, em parte gerenciada por mumunhas e arreglos do Judiciário politizado. Não é brincadeira. A geringonça vai ainda mais fundo nas mudanças socioeconômicas que começaram com Michel Temer e “faz o ajuste” sem pagar um centavo extra de imposto.

A elite da geringonça parece acreditar no próprio taco. Acha que o povo miúdo vai ficar quieto na longa travessia das “reformas” até a volta de um (talvez) crescimento. Ignora até sinais de autoritarismo econômico de Bolsonaro, evidentes nas suas tentações dirigistas quando preços sobem, da gasolina ao arroz.

Há dilemas concretos, de resto. Bolsonaro e até a anestesia social demandam um plano de renda mínima para o qual não há dinheiro bastante dentro do teto de gastos, mesmo que se esfole o funcionalismo, próximo projeto da geringonça. Parte do governo deseja esculhambar o teto, o que enerva os financistas —os juros de longo prazo voltaram a subir, ainda acima do nível pré-pandemia.

Parte da ala política da geringonça gostaria de ver Bolsonaro pelas costas, mas espera que as “condições objetivas”, como um rolo policial, caiam do céu. A esquerda, na prática, vai na mesma linha, acreditando ainda que as “contradições do governo” vão minar o prestígio presidencial.

A crise econômica de fato ainda irá longe e fundo para os mais pobres, mas uma revolta é incerta.

Moro pode interrogar Bolsonaro. O que já foi também um drama nos tempos de Lula agora é cena de uma farsa que pode descambar para terror burlesco. Desta vez, as classes dirigentes acomodam-se à ficha corrida da família presidencial e também aos achaques autoritários, à propaganda de mentiras, da epidemia às queimadas, e ao desgoverno geral. Enquanto isso, Bolsonaro está solto.


Eliane Cantanhêde: De quem é a culpa?

A crise do Rio confirma que a culpa da descrença na política não é da Lava Jato, é de políticos

Quem tem certeza de que a culpa pela eleição de Jair Bolsonaro, o esfarelamento do PT e a desgraça dos partidos, da política e dos políticos é da Lava Jato e da mídia deve parar, pensar e olhar o que acontece no Rio de Janeiro, um dos três estados mais importantes, que abriga o cartão postal do Brasil no mundo. Ali, não sobra pedra sobre pedra.

A crise no Rio é moral, ética, política, econômica, financeira, social, de segurança, de saúde, de educação… Isso tudo não é resultado da Lava Jato e da cobertura da mídia. Ao contrário, veio à tona exatamente porque houve um mergulho dos órgãos de investigação no que vinha ocorrendo e se eternizando e porque a mídia registrou. Ou melhor, revelou.

Sérgio Cabral não existiu por causa da Lava Jato, mas a Lava Jato existiu por causa dos Sérgio Cabral. Ele virou o que virou pela impunidade, ela surgiu contra a impunidade. A roubalheira ficou tão fácil que foi crescendo a perder de vista, contaminou instituições, dragou belas biografias, operou com quantias de tirar o fôlego. A corrupção no Brasil e no Rio se mede aos muitos milhões, aos bilhões de reais.

Os últimos cinco governadores do Rio estão na cadeia ou passaram por ela, ex-presidentes e líderes da Assembleia Legislativa também, a cúpula do Tribunal de Contas desmoronou. O atual governador, Wilson Witzel, está afastado e toda a linha sucessória comprometida: o vice em exercício, Cláudio Castro, e o presidente da Alerj, André Ceciliano, acabam de ser alvos de busca e apreensão.
Ceciliano é do PT, mas Witzel e Castro são do PSC, da linha de frente de apoio ao governo federal e presidido pelo Pastor Everaldo, que acaba de ser preso, é acusado também de ter ganho R$ 6 milhões para fingir ser candidato a presidente para insuflar a candidatura de Aécio Neves, do PSDB, e foi quem batizou Bolsonaro no rio Jordão, em Israel.

O prefeito do Rio, aliás, é Marcelo Crivella, da Igreja Universal do Reino de Deus, e passou raspando na votação do pedido de abertura de impeachment na Câmara de Vereadores, por pagar sua própria “milícia” com dinheiro público. São servidores públicos que impedem que cidadãos denunciem os desmandos da saúde à mídia nas portas dos hospitais e transformam em fakenews e oba-oba os eventos públicos do prefeito. O líder passou a ganhar R$ 18 mil por mês em plena pandemia.

Crivella viajou com Bolsonaro no avião presidencial justamente no dia em que sofreu busca a apreensão. Bolsonaro, o senador Flávio e o vereador Carlos apoiam a reeleição de Crivella, que concorre em novembro com o ex-prefeito Eduardo Paes, igualmente alvo da Justiça, e a ex-deputada Cristiane Brasil, que se entregou à polícia anteontem. Ela é filha do presidente do PTB, Roberto Jefferson. E até a Fecomércio, o Sesc e o Senac do Rio estão na mira, junto com advogados de Witzel e do ex-presidente Lula e o misterioso ex-advogado de Bolsonaro e Flávio.

A Mãos Limpas produziu o indigesto Berlusconi na Itália e a Lava Jato desaguou em Bolsonaro, Witzel, juízes, procuradores, militares, policiais e neófitos que assumiram o discurso moralista e agora caem na mesma rede dos antecessores. Assim como o PT foi só mais um a cair nessa rede, Witzel é só o exemplo mais vistoso do que veio em seguida.

A culpa por essa avalanche de escândalos, que atinge partidos e políticos de todos os matizes, muito experientes ou arrivistas, é da Lava Jato? Das TVs, rádios, jornais e revistas? Quem gerou o bolsonarismo e seus filhotes não foram a Lava Jato, que descortinou a sujeira, muito menos a mídia, que a mostrou ao distinto público. Foi, sim, a própria política. O erro original está no sistema. Que tal fazer a reforma política, eleitoral e partidária? Mas para valer.