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José Casado: A guerra seduz o presidente

Brasil renunciou à ambiguidade como força vital da diplomacia

Donald Trump girou a chave da guerra com o Irã. Esse é, essencialmente, um conflito dos Estados Unidos com China e Rússia na disputa por hegemonia, define Henry Kissinger, ex-secretário de Estado.

Arquiteto da distensão dos EUA com Pequim e Moscou nos anos 70, Kissinger gastou os últimos três dos seus 96 anos alertando sobre como o Irã se tornou fundamental para a China e a Rússia. Prevê reação à perspectiva de redução da influência na região — “se não o fizerem, estarão terminados, assim como os iranianos”.

A 12 mil quilômetros de Teerã, o ex-capitão Jair Bolsonaro resolveu se alinhar a Trump no conflito. Nada de novo, se o Itamaraty não liderasse uma manifestação contra o Irã.

O Brasil renunciou à ambiguidade como força vital da diplomacia. Assumiu inédito protagonismo, incitando governos da América do Sul a uma ofensiva contra o regime iraniano no dia 20, em Bogotá, na Conferência Hemisférica contra o Terrorismo.

O Itamaraty confirma em nota de dez parágrafos, na qual usa cinco vezes a palavra “terrorismo” em referência ao Irã. Nela, anuncia a inclusão do Brasil na “cooperação”, porque “não pode permanecer indiferente a essa ameaça, que afeta inclusive a América do Sul.” Faltou definir cooperação. Nos dicionários significa “operar juntamente”. Faltou, ainda, dizer se o Congresso foi consultado.

Bolsonaro não alcançou nenhum dos seus objetivos declarados na aliança com Trump. E sua política externa baseia-se numa coletânea de crenças obscurantistas. Por isso, o Congresso deveria abandonar as longas férias e procurar respostas para questões relevantes à sociedade. Duas delas: qual é o interesse brasileiro nesse conflito? O Brasil planeja ir à guerra aliado aos EUA?

Mais de 20% do superávit comercial de 2019 tiveram origem na região do Golfo, Irã incluído. Falta o governo explicar a lógica e apresentar seu plano para lidar com as vulnerabilidades do país numa economia global ameaçada. Decisões políticas têm custo, não dá para evitar as consequências.


José Casado: A Rio-2016 não acabou

Ninguém sabe quanto exatamente custou ou vai custar a Olimpíada

Faltam seis meses para os Jogos Olímpicos de Tóquio e, até hoje, o Brasil ainda não conseguiu encerrar a Rio-2016. Pior: ninguém sabe quanto exatamente custou ou vai custar. Estimam-se gastos de R$ 44 bilhões. A conta final, porém, talvez ainda leve anos para aparecer.

Ela depende da conclusão de uma série de ações judiciais, das obras de infraestrutura inacabadas e de pelo menos mil e um reparos considerados essenciais para que as estruturas na Barra da Tijuca não desabem, não sejam alagadas ou incendiadas.

Nesse legado carioca tem-se a síntese de uma antiga história de amor urbano por grandes obras que unem políticos, empreiteiros e especuladores imobiliários. No epílogo, predomina o caos no Rio pós-olímpico.

Entre responsáveis destacam-se o PT, o PMDB, o PCdoB e o PRB (atual Republicanos). Juntaram-se para injetar 80% dos recursos públicos num bairro, a Barra da Tijuca, onde vivem apenas 5% da população.

Alguns enriqueceram, como o ex-governador Sérgio Cabral. Empreiteiras e empresas de ônibus lucraram dançando quadrilha à direita, ao centro e à esquerda. Especuladores imobiliários embolsaram cerca de R$ 4 bilhões em negócios no eixo Barra-Recreio. E a burocracia partidária ampliou empregos bem remunerados na miríade de órgãos estatais.

No jardim das ilusões olímpicas, parcerias público-privadas foram anunciadas como responsáveis por 60% dos gastos totais. Empresas privadas bancariam quase metade do orçamento do legado olímpico. Chegariam a 80% dos investimentos no prodígio de marketing político-imobiliário do Porto Maravilha.

Restou um túmulo financeiro à beira-mar, onde está enterrado um tesouro em papéis da Caixa e do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Mas a morte nem sempre é o fim, e a história prossegue na briga pelo espólio estatal.

O governo Bolsonaro acaba de se juntar à confusão com o recém-criado Escritório de Governança do Legado Olímpico. Ele substitui a extinta Autoridade Olímpica, com 15 antigos oficiais militares a bordo. Por decreto, o Escritório fecha as portas em junho do ano que vem, antes da abertura dos Jogos de Tóquio. A Rio-2016 vai continuar.


José Casado: O ‘Zé com Zé’ de Bolsonaro com os liberais

Sua principal decisão sobre privatizações foi... criar uma nova estatal

Jair Bolsonaro precisa se explicar aos 57,7 milhões de eleitores aos quais prometeu um governo liberal na economia, com a venda de estatais.

Candidato, atravessou 2018 repetindo: “Vamos privatizar logo aquelas quase 50 criadas pelo PT, e ainda sobram 100.”

Presidente, viu passar na janela do palácio 340 dias. Sua principal decisão sobre privatizações foi... criar uma nova estatal.

É de Bolsonaro a 638ª empresa da União, a NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea S.A. É um novo gigante do setor público à beira-mar, com sede no Rio e duas mil pessoas a bordo da folha salarial.

A certidão de nascimento da NAV Brasil foi estampada dias atrás no Diário Oficial. Curiosamente, sem a assinatura do ministro da Economia.

É caso raro, talvez único, de criação de empresa controlada pela União sem aval do responsável pelo caixa do governo — no caso, Paulo Guedes, esteio da fração liberal no condomínio de poder presidido por Bolsonaro.

A NAV surge numa constelação federal composta por 46 estatais sob controle direto, 159 subsidiárias, 233 coligadas e 199 com participação acionária da União.

Elas fazem de tudo, de petróleo a brincos eletrônicos (chips) para bois, porcos e ovelhas. Algumas levam década e meia desenhando coisas no papel, como o trem-bala Rio-São Paulo.

Em setembro abrigavam 481,8 mil empregados. Esse é um ambiente essencialmente masculino: apenas 36% são mulheres, com acesso restrito a 21% dos postos de comando.

De cada dez sob controle direto do Estado, quatro sobrevivem somente com repasses do Tesouro. Custam R$ 54,7 milhões por dia, ou R$ 19,9 bilhões neste ano.

Isso equivale a 71% da dinheirama que a Petrobras efetivamente vai desembolsar, no próximo dia 27, em pagamento pelas áreas no pré-sal leiloadas no mês passado.

Governo vendeu, uma estatal comprou. No mercado financeiro esse tipo de negócio tem nome: “Zé com Zé”.


José Casado: Jair Bolsonaro triplica a aposta

Presidente usa os índios num jogo institucional de alto risco

Jair Bolsonaro resolveu flertar com a possibilidade um choque com o Supremo e o Congresso. Simultaneamente. Insiste em testar os limites institucionais usando, como instrumento, a desmontagem do sistema jurídico de proteção aos direitos da população indígena.

É sua terceira tentativa, em 11 meses, de reescrever na prática o trecho da Constituição que reconhece aos índios “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

No primeiro dia de governo, Bolsonaro transferiu ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos a gestão dos direitos indígenas. Repassou a Funai e a demarcação de terras para a Agricultura. Fez isso numa Medida Provisória (nº 870).

Em maio, o Congresso vetou as mudanças. Devolveu a demarcação à Funai e recolocou-a na Justiça, onde estava. Bolsonaro não aceitou. Refez tudo numa outra MP (nº 886).

O caso foi parar no Supremo que ratificou, unânime, a decisão legislativa. No plenário, o ministro Celso de Mello usou três adjetivos para qualificar a insistência do presidente: “Inaceitável, inadmissível e perigosa.”

Obstinado, Bolsonaro agora baniu os índios do sistema de planejamento (Siop) e dos orçamentos da União até 2023. Mandou ao Congresso proposta de orçamento para 2020 com corte de 40% no fundo da Funai para “proteção e promoção dos indígenas” (LOA 2019/Programa 2065).

Deixou o Plano Plurianual de governo (2020-2023) sem previsão para a área. E transferiu a gestão dos direitos dos índios, assim como parte do orçamento da Funai, para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, embora a fundação continue vinculada à Justiça.

Bolsonaro já foi garimpeiro amador. Por “excessiva ambição financeira”, registrou seu comandante, transgrediu normas do Exército em busca de ouro. Hoje, usa os índios num jogo institucional de alto risco. Conta com aplausos da ala mais extremista do lobby ruralista. É um grupo sectário e inepto, incapaz de reunir votos suficientes no Congresso para mudar a Constituição.


José Casado: Pirataria no petróleo

Negócios no submundo do óleo renderam a Taylor um fortuna

Aos 63 anos, o escocês Ian Roper Taylor tenta vencer um câncer na garganta e se manter na mesa de jogos com petróleo, onde aprendeu a viver perigosamente, como um pirata moderno em aventuras com figuras sombrias, como o iraquiano Saddam, o líbio Kadafi e o sérvio Arkan, responsáveis por alguns dos maiores massacres humanos do século XX.

Negócios no lado oculto do mundo do óleo renderam a Taylor uma das maiores fortunas do Reino Unido, avaliada em US$ 180 bilhões — superior ao PIB de Minas. Sua biografia remete à de Marc Rich, fundador da Glencore (Rich acabou condenado nos EUA a três séculos de prisão, maior que a pena do ex-governador Sérgio Cabral. Morreu em 2013, na Suíça).

A empresa de Taylor, Vitol, aumentou lucros em cem vezes nos últimos 25 anos, sobretudo na alta das commodities que mudou economias de Brasil, China e Índia e inflou o caixa da Venezuela, do Congo e da Nigéria.

Semana passada, os escritórios suíços da Vitol e das concorrentes Glencore e Trafigura foram invadidos pela polícia. A ordem judicial nasceu em Curitiba, onde se investigam contratos dessas empresas com a Petrobras.

Parte das transações delas com a Petrobras, entre 2004 e 2014, não teve registro e deu prejuízos à estatal. Foi azeitada com subornos a funcionários, intermediários e políticos de PT, MDB, Progressistas (antigo PP) e do PSDB. As propinas oscilaram de dez centavos até US$ 2 por barril — mostram os processos da Operação Lava-Jato.

Vitol negociou 14 bilhões de barris, e Taylor sabia de tudo — confessou um dos seus agentes, Carlos Herz. Segundo ele, o fundador da Trafigura Claude Dauphin (morto em 2015) e os executivos Tim Water e Mike Wainwright também pagavam para obter lucros fáceis com a Petrobras.

As investigações avançam em Curitiba, Houston e Genebra. Pela dimensão das empresas envolvidas, é previsível uma reforma nas regras do comércio de commodities. A última resultou na divisão da Glencore, de Marc Rich. Desta vez, quem está no centro é a Vitol de Taylor, benfeitor da Royal Opera House, de Londres, e filantropo de pesquisas contra o câncer.


José Casado: Um general de US$ 20 bilhões

Ele passou os últimos cinco anos numa vida discreta, encoberto como diplomata, mantendo quatro mil quilômetros de distância da tragédia humanitária que ajudou a construir no seu país, a Venezuela.

Em Brasília poucos sabem, mas Manuel Antonio Barroso Alberto, 51 anos, adido militar no Brasil da cleptocracia comandada por Nicolás Maduro, é protagonista de um dos maiores escândalos financeiros da década: o sumiço de US$ 20 bilhões (ou R$ 84 bilhões) das reservas cambiais venezuelanas.

A fraude aconteceu no governo Hugo Chávez, entre 2006 e 2013, durante a euforia das exportações de petróleo a preços recorde — o barril chegou a US$ 120. Barroso era coronel e presidia a Comissão de Administração de Divisas (Cadivi), órgão que autorizava empresas a remeter dólares ao exterior.

Em 2012 o Banco Central venezuelano estimou em US$ 20 bilhões o valor das licenças cambiais “sem justificativa” dadas por Barroso. As “importações fictícias”, via empresas-fantasmas, foram confirmadas pelos ministros Jorge Giordani (Planejamento) e Edmée Betancourt (Indústria e Comércio). Anunciou-se um “rigoroso inquérito”, o ditador Maduro extinguiu o Cadivi, demitiu Barroso, depois o promoveu a general e mandou-o a Brasília como adido militar.

Em Caracas, as investigações continuam interditadas pelo trio que patrocinou a carreira de Barroso, desde a secretaria do falecido Chávez (2001) ao generalato (2015). Por coincidência, são personagens influentes da cleptocracia e que ainda sustentam Maduro no poder: Diosdado Cabello, líder do partido chavista; Vladimir Padrino López, ministro da Defesa; e Jesús Suárez Chourio, comandante do Exército.

Semana passada, Barroso se envolveu num incidente com adversários do regime que tentavam ocupar a embaixada em Brasília. Discreto e com uma vida sem dificuldades financeiras, como os demais diplomatas venezuelanos, o general “Manolo” Barroso guarda a pista de um grande segredo da cleptocracia chavista: a lista dos favorecidos pelo Cadivi com o desaparecimento de US$ 20 bilhões das reservas cambiais da Venezuela.


José Casado: Jogos de espionagem

Houve de tudo. Principalmente, um inexplicável desvio do endereço (IP) de 350 máquinas

A liquefação institucional da Bolívia marca uma inflexão na biografia de dois influentes diplomatas latinos, cujas carreiras foram construídas na intimidade de governos de esquerda.

Um deles é Carlos Zamora, 76 anos, ex-embaixador de Cuba no Brasil nos governos Lula e Dilma. Ele atravessou os últimos 45 anos em cargos relevantes da chancelaria, incluindo a seção Estados Unidos e a embaixada na ONU.

“El Gallo” Zamora, coronel da Direção Geral de Inteligência de Cuba, chegou a La Paz em março, com a mulher Maura Isabel, também oficial da DGI. Virou conselheiro de Evo Morales. De “El Gallo”, porém, jamais se ouviu um canto no Palácio Quemado — ele apenas sussurrava nos ouvidos do presidente.

No páreo estava outro diplomata, o uruguaio Luis Almagro, 56 anos, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos. Emergira como chanceler do governo José Mujica, com quem rompeu ao qualificar a cleptocracia da Venezuela como ditadura (“Te digo adeus”, escreveu-lhe Mujica). Acabou expulso da Frente Ampla, ao admitir intervenção militar externa para remover o ditador Nicolás Maduro. Retrucou, reconhecendo o oposicionista Juan Guaidó como presidente “interino” da Venezuela. Passou a ser visto como agente americano.

Almagro incorporou Evo ao próprio plano de reeleição na OEA, no ano que vem, e até reconheceu-lhe a candidatura ao quarto mandato como “direito humano”, embora a Constituição boliviana proíba. Mas tropeçou em “El Gallo”. Desde então, responsabiliza Cuba e Venezuela por agitações na América do Sul.

No domingo, avalizou a auditoria da OEA dissecando a fraude montada para eleger Evo. Houve de tudo. Principalmente, um inexplicável desvio do endereço (IP) de 350 máquinas do tribunal eleitoral para processamento de votos num servidor externo, ainda desconhecido. “As manipulações são de tal magnitude que devem ser profundamente investigadas”, diz a OEA.

Em La Paz há quem considere o hackeamento similar aos percebidos em eleições na Venezuela, supostamente sob supervisão cubana. Sem provas, condimenta-se o imaginário da espionagem, com Almagro e “El Gallo” Zamora como protagonistas.


José Casado: Crime e poder

Bolsonaro e Witzel disputam o domínio da máquina eleitoral montada pelo PMDB

Desde o encontro na noite de quarta-feira, 9 de outubro, se passaram três semanas até a revelação de Jair Bolsonaro sobre sua conversa com Wilson Witzel. O presidente esperou 21 dias para acusar publicamente o governador do Rio de um crime: o vazamento de segredo de justiça. “O governador chegou e disse: ‘O processo está no Supremo.’ Que processo? O que eu tenho a ver?”

Era o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, há mais de 600 dias no Rio. Menção a Bolsonaro no inquérito obrigava a transferência ao Supremo Tribunal Federal. “E o Witzel disse que o porteiro citou meu nome. Ele sabia do processo que estava em segredo de Justiça.”

O governador não confirmou nem desmentiu. Juiz por duas décadas, Witzel sabe da dimensão criminal do vazamento de dados sigilosos de um processo por agente público.

A confissão de Bolsonaro sobre a cumplicidade, durante três semanas, dá tom de veracidade à descrição do crime, o vazamento, cujo único beneficiário seria... Bolsonaro. Nem acusador e nem acusado foram à Justiça, a única prejudicada.

Bolsonaro e Witzel dissolvem a sociedade no Rio. Agora disputam o domínio da máquina eleitoral montada pelo PMDB de Sérgio Cabral, Jorge Picciani e Eduardo Cunha, condenados por corrupção.

A eficácia dessa engrenagem foi reafirmada no ano passado. Bolsonaro obteve mais de 60% dos votos em 40 das 49 zonas eleitorais da capital. Em 22 recebeu mais de 70% do votos. Só perdeu (com 48,8%) em Laranjeiras.

O Rio abriga a área metropolitana onde o crime organizado mais avançou na política. A hegemonia da rede de milícias, narcotráfico, jogos ilegais e lavadores de dinheiro prevalece em 830 áreas da capital e de 21 municípios, segundo a Justiça Eleitoral.

Essa dinâmica de negócios e poder tem reflexos na movimentação clandestina de capitais nas eleições. Pelo menos 40% dos 730 mil financiadores registrados na última eleição para prefeito do Rio foram considerados “laranjas” pela Justiça Eleitoral. Não possuíam patrimônio compatível com as doações que fizeram.


José Casado: Justiça de rico e de pobre

São 337 mil. É gente suficiente para encher quase cinco Maracanãs em dia decisivo para o Flamengo matar a fome de 38 anos na Libertadores.

São quase todos jovens, periféricos, pobres, negros e mulatos, alguns quase brancos ou quase pretos de tão pobres, como descreve Caetano Veloso em “Haiti”.

Presos “provisórios”, para a burocracia, e já somam 41,5% do total de encarcerados (818,8 mil em agosto). São pessoas forçadas a viver dentro das 2,6 mil cadeias. Cumprem pena mesmo sem condenação.

A maioria está trancada há pelo menos quatro anos, 48 meses ou 192 semanas. Espera a assinatura de um juiz para decidir o rumo: vida em liberdade ou no exército oferecido pelo Estado brasileiro aos 80 grupos criminosos que controlam presídios.

Semana passada foram lembrados no plenário do Supremo pelo juiz Luís Roberto Barroso: “Justamente porque o sistema é muito ruim, perto de 40% dos presos do país são presos provisórios. Muitos, sobretudo os pobres, já estão presos desde antes da sentença de primeira instância.”

Debatia-se um aspecto da Constituição, a prisão após condenação em segunda instância. O tema é de interesse legítimo, imediato de 1.799 pessoas encarceradas (0,21% do total) por desvio de dinheiro público (1.161), corrupção ativa (522) e passiva (116). É a quarta revisão do STF em uma década.

É a mesma Constituição que assegura “a todos” o direito à “razoável duração do processo” e “a celeridade de sua tramitação”. No entanto, 337 mil estão lá, provisoriamente, nos porões do Judiciário.

“Pobre não corrompe, não desvia recursos públicos, nem lava dinheiro”, comentou Barroso, realçando a ausência de nexo num sistema que mantém pobres aos magotes aprisionados nas trevas — centenas de milhares, sem sentença—, enquanto conduz um punhado de ricos condenados à vida iluminada pela liberdade até o último recurso em Brasília, com chance de prescrição do crime (quase mil em dois anos).

O Judiciário brasileiro precisa resolver a equação da própria ineficácia. Até porque, já é um dos mais caros do planeta. Custa 1,3% do Produto Interno Bruto, nível de gasto só encontrado na Suíça, cuja população é 25 vezes menor e a renda cinco vezes maior.


José Casado: 50 dias de inépcia no litoral do país

Chegou na maré da Lua nova, no 4 de setembro, em Pernambuco. Avisos chegaram às prefeituras, governo estadual e, também, a Brasília, mas o ministro do Meio Ambiente estava ocupado — “gravação do Hino Nacional”, segundo a própria agenda.

Cavalgando correntezas, a goma negra e contaminante invadiu 43 praias do Rio Grande do Norte nas três semanas seguintes. O ministro Ricardo Salles viajava por São Paulo, Bonito (MT), Cartagena, Washington, Nova York, Paris e Berlim. Foi mostrar que o desmatamento da Amazônia é coisa de comunistas.

Declarou guerra na redes sociais a quem “viaja ao exterior para ficar falando mal do seu próprio país”. De Washington, escreveu: “O Brasil está se modernizando”. De Nova York, registrou: “O Brasil é exemplo de sustentabilidade!” Enquanto isso, a mancha negra se espraiava por Sergipe, levando o estado à emergência.

Quando setembro terminou, estava em Berlim. O petróleo cru já vazara em 72 municípios dos nove estados do Nordeste. Oleara dois mil quilômetros de praias, provocando inquietude na região que é um terço do país. Na volta ao Brasil, ele emitiu um autoelogio: “Estamos a serviço das boas causas em benefício dos brasileiros e do meio ambiente!”

Havia um mês de escória enlutando a costa do Maranhão à Bahia, quando anunciou: “O Pres. @jairbolsonaro determinou urgência na apuração de responsabilidades (...) Faremos vistoria in loco.” Era sábado, 5 de outubro. Ao meio-dia da segunda-feira foi a Aracaju. Lá ficou por 125 minutos— com fotos. Às 18h20 desceu em Brasília. Na Câmara, lamentou a “enorme dificuldade” (com o óleo).

Voltou a São Paulo, “com nosso querido Pres. @jairbolsonaro”, quando o petróleo já ondeava na Baía de Todos os Santos e decretava-se emergência em oito municípios.

Quarta-feira passada fez outra “vistoria nas áreas atingidas”. Novas fotos em Salvador, Maceió e Aracaju. Às 19h30, retornou a Brasília.

Se passaram 50 dias. No rastro da inépcia, a Justiça mandou o governo federal tomar providências. O ministro Salles, agora, tem ordem judicial para trabalhar.


José Casado: Governo errático amplia paraíso da elite do funcionalismo

Começou a ser desvendado um dos mistérios da República —a folha de pagamentos dos 11,4 milhões de servidores da União, dos estados e municípios.

O enigma da gestão de pessoal no setor público custa R$ 300 bilhões por ano e foi estudado pelo Banco Mundial, uma das instituições multilaterais moldadas no fim da Segunda Guerra pelos economistas John M. Keynes, britânico, e Harry Dexter White, americano, reputado como informante da antiga União Soviética.

Os resultados já obtidos são limitados na área federal — não incluem o Banco Central e a Abin —e a apenas seis dos 27 governos regionais (Alagoas, Maranhão, Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Norte e Santa Catarina).

Mesmo assim, jogam luz sobre a balbúrdia instalada por interesses políticos e corporativos na folha de pagamentos. E mostram como tem sido manipulada para iniquidades.

Existem 321 carreiras em 25 ministérios, administradas a partir de 117 tabelas salariais. Esse catálogo prevê 179 formas de pagamento. Contaram-se 405 tipos de gratificações, 167 delas “por desempenho” e extensíveis aos aposentados. Há, ainda, 105,5 mil cargos de chefia.

Dessa confusão nasceu uma elite burocrática: 44% dos servidores recebem mais de R$ 10 mil mensais. Estão no topo da pirâmide de renda. Em estados como Alagoas, eles têm renda média 60 vezes maior que a dos trabalhadores do setor privado.

Mais da metade (53%) desse grupo ganha entre R$ 10 mil e R$ 33,7 mil por mês. E 1% vai além, com supersalários. Nas carreiras jurídicas um iniciante ganha mais de R$ 20 mil.

O Ministério da Economia abriu as portas na última quarta-feira para apresentar esses dados, justificando uma reforma nesse paraíso. Horas depois, no plenário da Câmara, a vice-líder do PSL, deputada Bia Kicis, anunciou o apoio do presidente a uma aliança com o PT, PCdoB, PSOL, entre outros, para criação de nova carreira no funcionalismo, a da Polícia Penal. Será a 322ª na folha de pessoal.

O governo Bolsonaro ameaça chegar à perfeição: constrói pela manhã aquilo que enterra à tarde.


José Casado: Confissões do centro do poder

Conhecer pessoas certas em áreas-chave do governo pode ser lucrativo, embora seja radioativo

Amigos no poder podem prover informações exclusivas, que possibilitem ganhos de 90% em 24 horas ou lucros de 400% em um ano. Também podem criar um monopólio na corretagem de planos de saúde. Decidir uma bilionária disputa entre sócios de um supermercado. Resgatar um industrial arruinado na especulação cambial. Ou mandar fundos de pensão estatais salvar banqueiros.

Cenas explícitas desse capitalismo de laços estão nas confissões de Antonio Palocci à polícia. O ex-ministro de Lula e Dilma conta em 39 episódios como funcionavam as conexões entre governo e empresas amigas.

Narra uma constante de troca de favores com bancos (Bradesco, Unibanco, Santander, Safra, BTG e Votorantim); supermercados (Grupo Diniz e Casino); construtoras (Odebrecht, OAS, Camargo, Queiroz, Andrade, Asperbras, UTC, Engeform e PDG Realty); indústrias (JBS, Ambev, BRF, Souza Cruz); serviços (Rede D’Or, Grupo São Luiz, Amil e Qualicorp); estaleiros(KeppeleJurong);montadoras (Mitsubishi e Caoa) e seguradoras (BB Seguros, Prudential e Mapfre), entre outras. Todos negam ilícitos.

De 2009 a 2011, segundo ele, ministros da Fazenda vazavam informações privilegiadas para bancos. Adiantavam o valor referencial dos juros — conhecer a taxa Selic antes da divulgação é como obter antecipadamente o resultado da loteria.

Confessa “beneficiado o Bradesco”, que refuta “ilações descabidas”. Diz que o sucessor na Fazenda, Guido Mantega, informava o BTG: “Só para se ter uma ideia, entre 31 de agosto e 1º de setembro (de 2011), dia de inflexão dos juros, o Fundo Bintang saltou de 252,84% de rentabilidade acumulada para 335,76%. Num só dia!” O banco diz que era só administrador desse fundo. Advogados de Mantega qualificam tudo como falsidade.

Palocci anuncia um livro de memórias para este mês. Ontem, ele completou 13.793 dias de filiação “oficial e ativa” ao PT. Seguem unidos no cartório eleitoral desde 1981. Mas, no momento, o partido nega-lhe “qualquer resquício de credibilidade”.