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José Casado: A crise em câmera lenta

Construção do impedimento está se tornando fato político

Quem assistiu ao vídeo da reunião ministerial de 22 de abril pôde confirmar: o governo resolveu preencher com palavras o vazio de ideias sobre a crise humanitária.

Morreram mais de 16 mil pessoas até ontem. São 1.105% mais vítimas do que o país possuía apenas um mês atrás. É como se, em quatro semanas, houvesse desaparecido a população inteira de cidades do tamanho de Sumidouro, no Rio, Pindorama, em São Paulo, ou Canudos, na Bahia.

As cenas gravadas são de inusual crueza. O Planalto surge como centro de um pandemônio político na pandemia. Bolsonaro e alguns ministros se desqualificam em atmosfera de vulgaridades, incapazes de discernir entre a realidade e a fantasia autoritária. Confirmam a ironia do vice Hamilton Mourão: “Está tudo sob controle… só não se sabe de quem.”

O vídeo contém fragmentos de um processo de suicídio político, em câmera lenta. É parte do mosaico de autoflagelo que justifica pressões crescentes, hoje materializadas em três dezenas de pedidos de impeachment. Elas aguardam decisão do presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Há pedido no STF para impor à Câmara uma rápida resolução dos requerimentos sobre o impedimento de Bolsonaro. O Supremo vai decidir sobre o tempo de Maia para aceitar ou recusar. O caso é relatado pelo juiz Celso de Mello e tem desfecho previsto para esta semana. Maia alegou que não há prazo regimental, mas especialistas acham que o tribunal tende a reconhecer o direito de petição, e a obrigação de resposta diligente do servidor público.

A construção do impedimento está se tornando fato político, a despeito da decisão do procurador-geral sobre eventual crime de responsabilidade ou de Maia rejeitar os atuais pedidos de impeachment.

É impossível prever o desfecho, mas Bolsonaro percebeu o quanto já aumentou o custo da sua permanência no poder. Ontem entregou ao grupo de Valdemar Costa Neto, do PL, notório ex-presidiário do mensalão, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), onde se gasta por ano o equivalente a 20% do orçamento do Ministério da Saúde.


José Casado: Falta governo na pandemia

País desconhece a realidade sanitária nas cidades, de pessoal, leitos e equipamentos na rede hospitalar

Falta governo na saúde. A evidência está na devastação provocada pelo vírus em menos de vinte semanas.

Em dezembro, quando a China confirmava a disseminação, 11 estados brasileiros fechavam 17 hospitais e 30 postos do SUS. Faltou dinheiro, alegaram aos repórteres André de Souza, Marlen Couto e Sérgio Roxo.

Jair Bolsonaro repetia Dilma Rousseff, que presidiu a desativação de 11,5 mil leitos hospitalares — um a cada duas horas —, nos primeiros dois anos e meio. A redução da rede e as greves aumentaram a fila do SUS, única opção para três em cada quatro brasileiros. A imprevidência fez nascer outra fila, a das aposentadorias.

Antes do carnaval, no 28 de janeiro, deputados cobraram um plano federal para a Covid-19. Fez-se silêncio no Palácio do Planalto e na Esplanada dos Ministérios. A prioridade era o corte linear nos gastos.

Quando a “gripezinha” ameaçou o SUS de colapso, em abril, houve uma miríade de promessas: 2 mil novos leitos de UTI, 40 mil respiradores, 44 milhões de testes para Covid-19, entre outras coisas. Até sexta haviam sido entregues 400 leitos de UTI (20% do prometido), 487 respiradores (1,2% ) e, com sorte, maio acaba com 2 milhões de testes (4,5%).

Com menos 17 hospitais no país, o governo resolveu erguer 48 unidades de campanha ao custo de R$ 10 milhões cada. Bolsonaro posou para imagens num deles (220 leitos), em Águas Lindas (GO). Está pronto há semanas, mas continua fechado, assim como o de Boa Vista (88 leitos).

O desgoverno na saúde levou a um apagão de informações. O país sabe o ritmo da inflação a cada dia, mas desconhece a realidade sanitária nas cidades, de pessoal, leitos e equipamentos na rede hospitalar.

Com fila de mais de mil doentes, o Rio vive a agonia da anarquia na pandemia. Possui oito instituições federais de saúde em extrema precariedade. Elas consomem R$ 3,5 bilhões por ano, o equivalente ao custo anual da rede de 66 hospitais estaduais.


José Casado: Na pandemia e sem plano

Guedes anunciou que tudo segue como antes

Há quatro semanas, Jair Bolsonaro recebeu um esboço de plano para criação de 1.008.635 empregos nos próximos dois anos. Encomendara o projeto a assessores, militares na reserva, e aos ex-deputados Rogério Marinho (PSDB-RN), ministro do Desenvolvimento, e Onyx Lorenzoni (DEM-RS), da Cidadania.

Bolsonaro entregou o programa ao chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto. Atravessaria os próximos dois anos em campanha pela reeleição, inaugurando obras com 42 mil novos empregos a cada mês. A pandemia já delineava um cenário tétrico, com 200 mortes, mas ele se mantinha no modo ignorância desdenhosa: “Outros vírus já mataram muito mais”. Já decidira demitir Luiz Mandetta (Saúde) e Sergio Moro (Justiça).

Marinho e Onyx estavam ajudando-o a abrir as portas do governo a lideranças políticas notórias pelo clientelismo. Se reuniram com Paulo Guedes, da Economia. Sobraram divergências e ressentimentos, com excesso de acidez entre Guedes e Marinho. A “agenda única” escanteava Guedes, e invertia sua proposta liberal, impondo protagonismo ao Estado na saída da crise. Era uma rasteira no “Posto Ipiranga”, dada pelo presidente, sob o bastão de comando ao chefe da Casa Civil.

Guedes dissimulou em público com a passividade de monge budista. Assistiu, quieto, ao presidente comandar uma sessão de slides sobre 65 obras rodoviárias, 42 aquaviárias, 32 aeroportuárias e sete ferroviárias. No silêncio efervesceram conversas sobre sua demissão.

Ontem, Bolsonaro recuou. Guedes agradeceu-lhe a “confiança” e anunciou que tudo segue como antes. O presidente já colecionava 24 pedidos de impeachment, dois inquéritos criminais no Supremo e a caminho de um novo, por improbidade. Em três semanas o número de mortos pelo vírus subiu de 200 para mais de mais de 4.500 — mais de 2.150% no registro oficial. Ainda não há indício de que o governo tenha um plano, além do pandemônio político criado em plena pandemia.


José Casado: Os novos sócios de Bolsonaro

O negro gato desfilou diante das lentes do fotógrafo Orlando Brito e buscou abrigo do sol de domingo embaixo do automóvel presidencial, estacionado numa quadra da Asa Norte, em Brasília. No apartamento em frente, Jair Bolsonaro e filhos degustavam milho com ketchup, ao lado de uma metralhadora na parede.

O negro gato fugiu antes de o presidente subir no carro preto e seguir para o QG do Exército. Ativistas o aguardavam, como vivandeiras mascaradas, temerosas da morte pelo vírus, invisível e democrático na contaminação. Apelavam para uma ditadura liderada, claro, por Bolsonaro.

Na cena havia algo fora da ordem institucional. O comandante em chefe das Forças Armadas usava a portaria do QG do Exército para um comício planejado, com coro contra o “bando de ladrões no STF, Senado e Câmara”. Presidia um ato de potencial desqualificação do poder militar, inédito também porque jamais se permitiu comício no portão do Forte Apache, como é conhecido o Setor Militar de Brasília. Bolsonaro sorria e, frequentemente, tossia.

Foi para casa, vestiu camiseta amarela, bermuda e chinelos pretos e sentou-se para assistir a críticas de Roberto Jefferson, seu antigo líder no PTB, ao deputado Rodrigo Maia (DEM). Outro jogo combinado.

Bolsonaro quer eleger o sucessor de Maia na Câmara. Sonha com novos sócios no bloco de centro direita, o Centrão, para dominar a pauta legislativa na campanha eleitoral em crise econômica, marcada pelo número de vítimas da “gripezinha”.

Em público diz que não pretende “negociar nada. Mas atravessou os últimos 15 dias em acertos com líderes do Centrão, entre eles Roberto Jefferson (PTB), Valdemar Costa Neto (Progressistas, antigo PP), Gilberto Kassab (PSD) e Marcos Pereira (Republicano/Igreja Universal). Alguns são personagens do mensalão e da corrupção na Petrobras. Todos, como Bolsonaro, tentam garantir a sobrevivência política na crise pós-coronavírus, se possível culpando outros pela imprevidência — o número de mortos já é o dobro da semana passada.


José Casado: O falso dilema de Bolsonaro

Presidente passa a flertar com o suicídio político

Morreu um brasileiro por hora nos últimos 20 dias de pandemia. É provável que o número de mortos no país aumente para 25 por hora na média dos próximos 180 dias. Em São Paulo, a previsão oficial é de 111 mil mortos até setembro. É o cenário governamental mais suave para os próximos seis meses.

O que faz o presidente? Jair Bolsonaro insuflou uma crise de confiança na sua capacidade de liderar o país na devastação. Talvez consciente da própria inconsciência, resolveu apostar no agravamento da situação.

Ele se esforça para submeter o ministro da Saúde à tortura da humilhação pública. Até agora, só conseguiu aumentar o respaldo a Luiz Mandetta nas pesquisas e o estresse na gerência do socorro à população.

Alguns veem fobia paranoica na fantasia de criar inimigos para afirmar o poder. Outros percebem em Bolsonaro apenas um político oportunista, à procura de dividendos na tragédia, interessado só na reeleição.

Podem ser as duas coisas, mas a insistência de Bolsonaro no falso dilema entre salvar vidas ou a economia, talvez seja ainda mais reveladora sobre o presidente-candidato.

Mostra que, na prática, ele opera com a lógica da busca pelo número “mágico” de vítimas da pandemia — o do total de mortos que imagina “aceitável” pela sociedade em troca de pontos de aumento do PIB.

Incapaz de conduzir políticas que evitem o colapso econômico sem aumentar o número de caixões, recorre à exaltação do seu poder legitimado nas urnas. Porém, a política é cruel, dizia Tancredo Neves: “Voto você teve. Você não tem, você teve”.

Quando, tacitamente, estimula ministros e a parentela a reverberar racismo contra a China, transforma a suposta paranoia em fator de risco ao país, porque os chineses são principais sócios estrangeiros na infraestrutura e compram um terço de tudo que o Brasil exporta. O sinais de prejuízos já são notáveis em redutos de Bolsonaro, dependentes das exportações, e que lhe deram mais de 70% dos votos locais em 2018.

Ao fomentar crises interna e externa em plena pandemia, Bolsonaro passa a flertar com o suicídio político.
Postado por Gilvan Cavalcanti de Melo às 09:52:00


José Casado: ‘Vão morrer, ué, lamento’

Governadores têm aprovação até 30 pontos acima do presidente

A sociedade se move. De Manaus a Porto Alegre, incontáveis voluntários, líderes religiosos, comunitários e empresariais multiplicam a coleta de alimentos e de kits de higiene para áreas onde o poder público não alcança, porque delas sempre se manteve distante — salvo nas ações de repressão policial.

São 74 milhões (37%) de brasileiros sem saneamento, parte abrigada em imóveis com mais de três por quarto, e a maioria agrupada em famílias cuja renda oscila no salário mínimo. Estão mais expostos ao vírus.

“Alguns vão morrer? Vão morrer, ué, lamento” — disse Jair Bolsonaro, semana passada, com a naturalidade de quem lava as mãos e o distanciamento, talvez consciente, de possíveis cenas de comboios de caixões, com vítimas da “gripezinha”. A lógica de Bolsonaro é a da campanha pela reeleição mesmo num cenário devastado pelo medo coletivo: “Nós não podemos parar a fábrica de automóveis porque tem 60 mil mortes no trânsito por ano, está certo?”

A maioria reage, mostram pesquisas recebidas no Planalto. Indicam um presidente em derretimento na própria base. O Datafolha (20/3) confirma: entre aqueles que assumem ter votado em Bolsonaro, 15% declararam-se arrependidos.

Não é irreversível, mas é a fotografia eleitoral mais recente. Isso equivale à perda potencial de 8 milhões de votos sobre os 57 milhões de 2018. A corrosão é visível nos estados, onde governadores têm aprovação até 30 pontos acima do presidente.

Na raiz está a imprevidência. Um mês atrás (20/2), Bolsonaro insuflava protestos contra o Congresso e o Supremo, atacava governadores ameaçados por motins de PMs e calculava eventuais prejuízos à reeleição com avanço do PIB a 2% no ano.

Enquanto isso, na Alemanha, a conservadora Angela Merkel organizava um plano emergencial de saúde pública, aumentava gastos e garantias às dívidas. Na época, o Brasil tinha 14 casos suspeitos, nenhum confirmado. Hoje, as projeções para o PIB são de -1,7% (Citi), - 2,8% (Safra) e - 3,4% (Goldman Sachs). Bolsonaro persevera na campanha. Agora caça culpados pelos próprios erros.


José Casado: O alto custo da inércia política

O novo vírus zerou o mundo, expondo o espetacular fracasso

Líderes políticos deveriam olhar para a novidade na paisagem urbana: pessoas confinadas em casa têm ido às janelas agradecer aos trabalhadores de saúde e de serviços básicos — médicos, enfermeiros, lixeiros, os “caras” da água, luz, internet e TV, feirantes e entregadores, entre outros.

As manifestações espontâneas se repetem, como em outros países. Trazem a mensagem do desejo comum de reinvenção do futuro sem repetir o passado enterrado no último carnaval, três semanas atrás.

O novo vírus zerou o mundo, expondo o espetacular fracasso na saúde, no saneamento e na distribuição da renda. Os prejuízos acumulados, certamente, já superam a soma de meio século de cortes nos orçamentos da higienização da vida em sociedade, desinvestimentos em ciência, tecnologia e inovação e transferências induzidas de renda dos pobres.

Prevalece o pavor pesaroso com o flagelo da doença, morte e desemprego, num cenário de paralisia de líderes como Jair Bolsonaro, Donald Trump e o mexicano Manuel López Obrador. Ególatras, falam demais, e, até agora, foram incapazes de mapear uma rota para o amanhã. Ocultam fiascos, como o de prover testes rápidos e abrangentes para limitar a pandemia. Vagueiam na irrelevância (Bolsonaro, abraçado a uma oposição sem alternativa até de liderança).

Sábado, a XP (R$ 409 bilhões em ativos) reuniu Rubens Menin (MRV), André Street (Stone), Benjamin Steinbruch (CSN), Wilson Ferreira Júnior (Eletrobras) e Pedro Guimarães (Caixa). Estavam perplexos com os riscos de colapso em saúde, internet, água e luz, e com a depressão — James Bullard (Fed St. Louis) fala em até 30% de desemprego nos EUA. Street, da Stone, contou que seus clientes, pequenas e médias empresas, só têm capital para 27 dias. Mas a burocracia segue, mostra a Receita no prazo do Imposto de Renda.

Líderes em Brasília e nos estados deveriam ouvir os confinados, sair da letargia e reconstruir tudo, rápido. Talvez, até entoando o mantra do cientista Alan Kay: “A melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo.”


José Casado: Nas ruas, rir é resistir

A sátira transborda pelos blocos

Está nas ruas uma nova e bem-humorada devassa política. Resulta das desilusões coletivas com os “vigários” de gravata, como canta a São Clemente: “Brasil, compartilhou/ viralizou, nem viu!/ E o país inteiro assim sambou/ Caiu na fake news!”

É um salve-se quem puder, avisa a União da Ilha, ao relatar a anarquia no Rio de tiroteios, intercalados pela “solidariedade” de governantes aos baleados: “Esse nó na garganta, vou desabafar/ O chumbo trocado, o lenço na mão/ Nessa terra de Deus dará... Eu sei o seu discurso oportunista/ É ganância, hipocrisia/ Seu abraço é minha dor, seu doutor.”

Na cidade de Marcelo Crivella, lembra a Unidos da Tijuca, só resta a súplica aos céus: “O Rio pede socorro / É terra que o homem maltrata / Meu clamor abraça o Redentor.” Virou zona de intolerância, protesta a Grande Rio: “Pelo amor de Deus/ Pelo amor que há na fé/ Eu respeito seu amém/Você respeita o meu axé.”

Foi esse Rio que deu ao país Jair Messias Bolsonaro, evocado pela Mangueira na saga de Jesus da Gente, filho de carpinteiro desempregado com Maria das Dores Brasil: “Favela, pega a visão/ Não tem futuro sem partilha / Nem Messias de arma na mão.”

A sátira transborda pelos blocos (pura ironia num país cujo Congresso analisa mais de 60 projetos para restringir a liberdade de expressão).

Não se esquece o governador Wilson Witzel vendendo bactérias Cedae: “Tem dó de nós, governador/ Tem dó de nós, governador/ Água amarela e com cheiro de cocô (bis).”

Inesquecível, também se tornou o ministro da Economia, Paulo Guedes. Ele caiu na rede dos Marcheiros: “Se eu contar, ninguém acredita/ Tive um sonho e acordei passando mal/ O meu insider trader virou parasita/ E o boletim não chegou na ‘pactual’... Fugi pra Disney, pra escapar desse BO/ Eu de doméstica ali na imigração/ O americano, veja só.../ Falou, tchuchuca, tenha dó/ Não tem escola de Chicago ou tubarão/ Pode algemar e manda pra deportação!/ ... Ai que baixo astral/ Que foi o meu pesadelo liberal/... E o pibinho, ó...”

“Sorrir é resistir”, ensina o Salgueiro em reverência a Benjamin de Oliveira, o primeiro palhaço negro do Brasil.


José Casado: O silêncio do clã Bolsonaro

Com o filho Flávio, Jair cultuava o ex-capitão do Bope

Escolheram o silêncio, estranharam amigos de ambos na Polícia Militar do Rio. Até há pouco não perdiam chance de louvá-lo: um “brilhante oficial”, nas palavras do patriarca Jair, ou, um homem de “excepcional comportamento”, na definição do primogênito Flávio. Viam nele um combatente urbano, treinado no Batalhão de Operações Especiais, hábil no gatilho à distância, sagaz em perseguição camuflada na geografia carioca.

Os Bolsonaro o reverenciavam. Jair, por exemplo, se apresentou como deputado federal no julgamento do amigo, no outono de 2005. Assistiu à sua condenação (19 anos e 6 meses de prisão) pela execução “de um elemento que, apesar de envolvido com o narcotráfico, foi considerado pela imprensa um simples flanelinha”, como descreveu em discurso de protesto na Câmara.

Com o filho Flávio, cultuava o ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega como símbolo de uma PM cuja prioridade, julgavam, deveria ser a eliminação sumária de suspeitos, “porque vagabundo tem de ser tratado dessa maneira”. Dedicaram-lhe discursos, homenagens e até inscreveram seus parentes na folha salarial do Estado do Rio.

Estavam numa cruzada por alguma forma de legitimação das milícias. No plenário da Assembleia, o deputado Flávio argumentava: “Será que um vagabundo sendo preso poderá se recuperar? Temos de deixar de ser hipócritas! Não há recuperação mesmo.” E justificava o avanço desses grupos à margem da lei: “Não podemos generalizar, dizendo que esses policiais, que estão tomando conta de algumas comunidades, estão vindo para o lado do mal. Não estão.”

Era uma visão consensual no clã liderado por Jair. Em 2003, na Câmara, saiu em defesa das execuções feitas por policiais baianos. “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio será muito bem-vindo. Se não houver espaço na Bahia, pode ir para o Rio. Terão todo o meu apoio... Meus parabéns!”

Acusado de liderar matadores de aluguel no Rio, o ex-capitão do Bope fluminense acabou morto pelo Bope baiano em Esplanada, cujo cemitério foi erguido por Antônio Conselheiro, líder do fanatismo religioso no sertão do final do século XIX. O clã Bolsonaro preferiu o silêncio.


José Casado: Milícias na eleição

Acabou-se a discrição na trapaça

O Rio é um lugar onde armas de guerra dividem a paisagem com o mar, as palmeiras e os trens suburbanos. É, também, a terra onde mais florescem as milícias armadas.

Nos palácios celebram-se liturgias de leniência com a expansão da influência desses grupos em instituições públicas. Eles garantem votos. Em troca, recebem apoio aos negócios.

Acabou-se a discrição na trapaça. Pela primeira vez, o Rio poderá ter um candidato a prefeito com origem miliciana atestada em juízo.

Jerônimo Guimarães Filho, 71 anos, pioneiro de bandos na Zona Oeste, está em campanha pelo Partido da Mulher Brasileira (PMB). Foi vereador pelo MDB por oito anos, até ser condenado por crimes como uma chacina de nove pessoas.

Jerominho, como é conhecido, nega tudo. Depois de uma década na cadeia, parece querer legitimar as alianças das milícias. Seu reduto é a Zona Oeste. Estava preso, em 2008, quando elegeu a filha vereadora. Na época, ela habitava uma cela no presídio de Catanduvas (PR), a 1,4 mil quilômetros da Câmara do Rio.

Se confirmada, sua candidatura pode iluminar parte dos porões da política carioca. Ajudaria a dimensionar o tamanho e a influência das quadrilhas, além de indicar tendências da população refém da falência do Estado — no Hospital Federal de Bonsucesso, doentes de câncer esperam seis meses por atendimento.

O controle de voto oxigena as milícias. Isso já prevalece em 468 seções da capital, com mais de 610 mil eleitores (12% do total), sugerem dados da Justiça Eleitoral sobre a votação concentrada em candidatos apoiados por milícias na Zona Oeste.

O antigo chefão da Zona Oeste entraria na disputa com Bolsonaro, Witzel, Crivella & Cia. por pedaços da máquina eleitoral na cidade perdida pelo MDB desde a prisão do ex-governador Sérgio Cabral.

A eficácia dessa engrenagem foi reafirmada na última eleição presidencial. Garantiu a Bolsonaro mais de 60% dos votos em 40 das 49 zonas eleitorais do Rio. Ele só perdeu (com 48,8%) em Laranjeiras. Em 22 zonas, recebeu mais de dois terços dos votos.


José Casado: Os lucros com a cleptocracia em Angola e no Brasil

Políticos e empresários ganharam fortunas em negócios obscuros

Estava tudo dominado no Brasil, em Angola e em Portugal. Inquéritos nas duas margens do Atlântico mostram como políticos e empresários ganharam fortunas em negócios obscuros e interligados, com dinheiro das empresas estatais Petrobras e da Sonangol e a participação de bancos e fundos públicos brasileiros, angolanos e portugueses.

Nesse bioma floresceu Isabel, afortunada primogênita do ex-presidente angolano José Eduardo Santos, com US$ 2 bilhões em patrimônio, acionista de 424 empresas, das quais 155 em Portugal e sete no Brasil, disseminadas por setores como energia, finanças e comunicações.

É sócia (15%) da Galp, que explora petróleo em sete áreas da costa brasileira (na Bacia de Santos, projeto Lula/Iracema). Os laços se estendem ao grupo Sonae, com 40 mil empregados, e avançam pela praça financeira europeia, onde liquida 42,5% do banco EuroBic. Nada seria possível sem o aval de governos e de auditorias como BCG, PwC e McKinsey.

Pode-se olhar para Isabel como filha dileta da cleptocracia angolana, mas não é possível abstrair vínculos do chefe do clã Santos, o ex-presidente José Eduardo, do seu vice Manuel Vicente e de alguns generais do MPLA em Portugal e no Brasil.

Em Portugal há inquéritos sobre pactos angolanos com o ex-primeiro-ministro José Sócrates, o banqueiro Ricardo Salgado (Espírito Santo), e executivos como Armando Vara, ex-presidente da Camargo Corrêa em Angola, hoje preso.

No Brasil, as alianças da cleptocracia se consolidaram sob Lula, privilegiaram a família Odebrecht, e abrangeram outros, como a Asperbras (grupo Colnaghi). A Lava-Jato coleciona testemunhos de Emílio e Marcelo Odebrecht, do ex-ministro Antonio Palocci e de ex-diretores da Petrobras sobre várias transações nebulosas. Uma delas foi relatada por Nestor Cerveró, antigo chefe da área Internacional da Petrobras. Ele contou como Angola “contribuiu” com US$ 12 milhões, o equivalente a R$ 48 milhões, para a campanha de reeleição de Lula em 2006.


José Casado: Esqueceram as pessoas

Governo é autor de fiasco tecnológico: a volta das filas na Previdência

Depois de usar e abusar da internet na eleição, Jair Bolsonaro agora utiliza a rede para alavancar um projeto de poder. É legítimo.

O problema está no governo, autor de um fiasco tecnológico: a volta das filas na Previdência. Mais de um milhão aguarda, há meses, solução dos seus pedidos, mas o Estado não responde.

Bolsonaro ecoa Lula. Em 2003, o governo do PT intimou os maiores de 90 anos à fila do INSS. Exigia prova de vida, com corpo presente.

Na origem do problema atual estão trapalhadas do INSS e da Dataprev, vinculados ao Ministério da Economia. O instituto deu licença-saúde a um de cada cinco servidores, revelou a repórter Idiana Tomazelli. A estatal congelou cidadãos num sistema operacional defeituoso. E assim, o milagre da modernidade digital virou vinagre na Previdência Social.

Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, devem desculpas aos brasileiros. Se preocuparam somente com o ajuste das contas previdenciárias. Esqueceram as pessoas.

Mais grave, porém, é o que ocorre na Esplanada dos Ministérios. A política externa binária, de alinhamento robotizado aos Estados Unidos, está induzindo o governo analógico a marginalizar o país na revolução tecnológica da telefonia móvel, o 5G.

Havia um leilão de frequências marcado para março. Seria a estreia do Brasil na disputa por essa tecnologia. Foi adiado indefinidamente.

O 5G é evento transformador, talvez só comparável à introdução da luz elétrica na vida humana. Deve aumentar o PIB mundial em 3%, com 20 milhões de novos empregos até 2035. Equivale a acrescentar uma Índia à economia global.

É insensatez parar tudo e esperar pelas empresas dos EUA, sob a vaga promessa de um 5G de “código aberto”. É, também, ingenuidade a insegurança com a China, dona de metade da rede móvel disponível no país. “Não há razão”, já disse Andrew Parker, chefe do serviço secreto britânico (MI-5), sócio principal dos EUA na espionagem global.

Lento na pista, o Brasil não tem chance na corrida mundial pelo 5G. Ainda há tempo.