intolerância
Cora Rónai: Kruela Kruel e o paradoxo da intolerância
A cultura do cancelamento é uma guilhotina desembestada: um dia, todos seremos cancelados. Ninguém perde por esperar
Esta coluna é, como todas são, como tudo o que não é amanhã é, um eco do passado. São oito da noite de terça-feira, e, se o meteoro não atingiu o planeta entre agora e logo mais, Karol Conká terá sido eliminada do “Big Brother 21” com uma rejeição recorde, ou quase isso, porque afinal bater os 98,76% anteriores, do Nego Di, é difícil até para uma arquivilã de caricatura.
(Sim, foi: 99,17%. Só mesmo eleições na Coreia do Norte atingem esse nível.)
Karol Conká cabe como uma luva na clássica definição que o ministro Luis Roberto Barroso pregou na testa do colega Gilmar Mendes, uma das joias mais perfeitas da História do Brasil: ela é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia.
Nem o seu fã-clube aguentou, e desativou a conta que tinha criado para segui-la na casa:
“Nós, como fãs da carreira musical da Karol, decidimos criar esse perfil para informar e acompanhar ela no BBB. Mas, devido a todos os acontecimentos dentro da casa, percebemos que ela na verdade é uma pessoa horrível. Iremos desativar a página e desejamos que ela se f*.”
Pronto, fãs, desejo atendido.
O problema é que uma trama sem vilões perde muito. Ainda sobram vilões no “BBB 21”, mas nenhum com o talento para o papel da Karol Conká. Karol aparece na tela e o público imediatamente se alvoroça, porque sabe que lá vem treta.
Karol é cruel, falsa e fofoqueira — mas é inteligente, interessante e tem uma capacidade de liderança inquestionável. É carismática e vistosa como a madrasta da Branca de Neve ou a Cruela Cruel. Sabe plantar dúvidas nos corações, semear a discórdia e ferir os outros. O mais fascinante é que faz tudo isso sem perceber, convencida de que é boa gente e que não fez nada de mais. Fica genuinamente surpresa quando alguém se queixa das patadas, e se exime de responsabilidade moral com o argumento de dez entre dez pessoas grosseiras: “Eu sou assim mesmo!”.
(Tiago Leifert foi no ponto na eliminação ao questionar os brothers sobre quem são; e foi cauteloso e gentil ao criar um colchão metafórico para atenuar o tombo descomunal da Conká.)
O “BBB 21” vai perder muito da dinâmica e da graça com a ausência da sister — mas isso me perturba.
A questão é: a que custo nos divertimos? Os participantes fazem questão de frisar, continuamente, que o programa não passa de um jogo. Mas é um jogo jogado por humanos reais, com os sentimentos de que dispõem.
Os jogos do Coliseu romano também eram jogados por humanos, e também eram considerados divertidos illo tempore.
O que vai acontecer com Karol Conká?
Horrível ou não, ela é uma pessoa real. Vê-la experimentar do próprio veneno só é gratificante até o momento em que nos damos conta de que esse veneno é, exatamente, o que nos causa tanta repulsa.
Pessoas boas odeiam pessoas más por serem más, mas acham justificável serem más com os maus.
Quem somos, afinal?
A cultura do cancelamento é uma guilhotina desembestada: um dia, todos seremos cancelados. Ninguém perde por esperar.
El País: Ameaças de neonazistas a vereadoras negras e trans expõem avanço do extremismo
Ataques contra vereadoras de várias cidades ocorreram em dezembro e polícia ainda busca autores. Vítimas relatam rotina de medo especialistas alertam para escalada das ameaças no país, enquanto os EUA refletem sobre banalização dos discursos de ódio nas redes
Injúrias raciais, infelizmente, não são uma novidade para a professora Ana Carolina Dartora, 37 anos. Primeiro vereadora negra eleita nos 327 anos da Câmara Municipal de Curitiba, e a terceira mais votada na capital paranaense nas eleições 2020, sua campanha foi permeada por ataques, sobretudo nas redes sociais. Até então, Carol Dartora ―como é conhecida a vereadora filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT)― considerava as mensagens inofensivas. Mas no início de dezembro ―logo após uma entrevista do prefeito Rafael Greca (DEM) na qual o mandatário disse discordar da existência de racismo estrutural na cidade― ela recebeu por e-mail uma mensagem a ameaçando de morte, inclusive com menção ao seu endereço residencial.
No texto, o remetente chama a vereadora de “aberração”, “cabelo ninho de mafagafos”, e diz estar desempregado e com a esposa com câncer. “Eu juro que vou comprar uma pistola 9mm no Morro do Engenho e uma passagem só de ida para Curitiba e vou te matar.” A mensagem dizia ainda que não adiantava ela procurar a polícia, ou andar com seguranças. Embora Carol tenha ouvido de algumas pessoas que as ameaças eram apenas “coisas da Internet”, especialistas ouvidos pelo EL PAÍS ponderam que não se deve subestimar os discursos de ódio ―a exemplo de toda a discussão que permeiam os Estados Unidos desde a quarta-feira, 6 de janeiro, quando extremistas apoiadores de Donald Trump invadiram o Capitólio em protesto contra a derrota do presidente, provocando cinco mortes.
O e-mail, com texto igual, também foi enviado para Ana Lúcia Martins (PT), também a primeira mulher negra eleita para vereadora em Joinville (SC). As vereadoras trans Duda Salabert (PDT), de Belo Horizonte, e Benny Briolly (PSOL), de Niterói (RJ), também foram ameaçadas pelo mesmo remetente. Até aqui, as investigações policiais dão conta de que o ataque orquestrado partiu de uma célula neonazista que atua sobretudo nas profundezas da internet, a chamada deep web. O provedor do qual a mensagem foi enviada tem registro na Suécia, o que dificulta o rastreamento por parte das polícias civis e, no caso do Paraná, do Núcleo de Combate aos Cibercrimes.
“Fiquei olhando para a mensagem perplexa, sem conseguir processar muito. O espanto de outras pessoas do partido me deu o alerta”, contou Carol ao EL PAÍS. “A violência não é só objetiva. A violência política acompanha a minha trajetória e a das outras vereadoras ameaçadas, com barreiras que vão se criando para que a gente não tenha êxito. Nenhuma mulher deveria enfrentar tanta coisa para exercer um direito básico da democracia”, frisa.
Desde então, o medo faz parte do cotidiano da vereadora de Curitiba. “Tô tentando ser mais discreta. Estou pensando até em mudar o meu cabelo. Isso é muito minimizado, desprezado. As pessoas pensam que é bullying, coisa de Internet. É muito nítida a questão de gênero, do sexismo aliado ao racismo.” Mas foi na Internet, por exemplo, que foi planejado, durante semanas, os ataques ao Capitólio dos EUA por grupos de extrema-direita que não aceitam a derrota de Trump para o democrata Joe Biden.
Ódio racial
Filiada ao PT desde os anos 1980, Ana Lúcia Martins, 54, foi a primeira mulher eleita pelo partido em Joinville (SC) e, assim como Carol Dartora, a primeira negra na Câmara Municipal. A professora, educadora física e alfabetizadora iniciou a sua formação e participação política ainda na adolescência, em grupos de jovens da Igreja do Cristo Ressuscitado, no bairro Floresta, onde nasceu e cresceu. Decidiu disputar o pleito após um longo amadurecimento junto aos movimentos negros e de mulheres.
Após sua vitória nas eleições 2020, as primeiras intimidações já surgiram pelo Twitter, quando ela ainda comemorava a vitória. “Uma conta fake veio e comentou: ‘agora a gente precisa matar ela para o suplente, que é um homem branco, assumir’. Então não era uma questão de ódio ao partido, ou somente machismo. O ódio era racial mesmo”, pontua. Dias depois recebeu o mesmo e-mail que a vereadora curitibana, do mesmo remetente. “Diante dessa denúncia a gente pensou que não podia mais descuidar” conta Ana Lúcia, que agora anda escoltada por seguranças pagos por membros do partido. Segundo ela, essas pessoas fizeram uma vaquinha para arcar com os custos.
Foi oferecido à vereadora integrar o Programa Federal de Assistência a Testemunhas. “Para nós isso não serve, porque aí não poderia exercer meu mandato, e queremos essa garantia” salienta Ana Lúcia. A Polícia Militar catarinense ofereceu rondas e viatura em eventos públicos, desde que a vereadora solicite com antecedência, via ofício.
Pressão internacional
Advogado do Diretório Municipal do PT em Curitiba e também professor da pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paulo Opuska disse acreditar que medidas mais assertivas em relação à proteção de Carol, Ana Lúcia e outras vereadoras ocorrerão por pressão de entidades internacionais. Ele, que acompanha o caso, fez um relatório a respeito para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Opuska procurou a Secretaria de Segurança Pública do Paraná (Sesp) para solicitar segurança à vereadora do Estado. “O secretário [Romulo Marinho Soares] não atendeu a Carol. Você não pode deixar que a responsabilidade saia da mão do agente [Estado]. Temos que ter o cuidado de não banalizar. Não é difícil acontecer o que aconteceu com a Marielle [Franco]em uma cidade como Curitiba, cujo racismo estrutural aparece no discurso do próprio prefeito.”
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública afirma que “após haver solicitação de audiência para que o secretário atendesse a vereadora eleita, ele designou um delegado especializado, integrante da Segurança Pública, para recebê-la (tendo em vista que ele estava com outras agendas prévias e externas). Sendo assim, a vereadora teve o devido atendimento”, argumenta a pasta. Ainda de acordo com a entidade, o caso requer uma “investigação complexa”.
Necessidade de reação
Na análise da professora do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), Megg Rayara Gomes de Oliveira, existe um consentimento por parte do Poder Público para que esses grupos neonazistas se movam com certa liberdade. Primeira travesti negra a obter o título de doutora pela universidade onde hoje leciona, Meggy fala que as denúncias de mulheres negras acabam sendo desacreditadas. “Para ter validade precisa passar pela tutela de pessoas brancas. As pessoas respeitam o cargo que ocupam nosso título. Quem é respeitada não é a mulher preta mas a vereadora eleita.”
Ela também critica a atuação dos partidos sobre a coação sofrida pelas vereadoras. “Elas são de três partidos de esquerda, que não estão dando importância para a gravidade dessas ameaças. Fica evidente que o PSOL não deu atenção para tudo o que acontecia com a Marielle. Parece que os partidos não estão muito preocupados em proteger esses corpos.”
Precursora no Brasil em pesquisas sobre grupos neonazistas que se movimentam na internet, a antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias fala que o neozanismo no Brasil é uma “miríade”. “Existem muitos grupos, cada um deles com uma ou várias células que às vezes partilham da mesma base”, explica.
Em sua tese de doutorado pela Unicamp, ela reúne mais de 15 anos de pesquisas junto a sites, fóruns, blogs e comunidades para descrever como pensam esses extremistas. “Há grupos antigays, de supremacia branca, hitleristas, os que tendem para um discurso nacionalista. No ferver dos ovos, o que está ali é o ódio. Que busca desmanchar a humanidade de uma pessoa, impedir que ela tenha a sua personalidade reconhecida”, explica.
De acordo a antropóloga Adriana, a situação no Brasil hoje é grave e houve um crescimento desses grupos após a eleição que elegeu Jair Bolsonaro presidente em 2018, com um discurso bastante violento. “Para se ter uma ideia, uma professora de ensino fundamental me disse que estava dando uma aula sobre o livro da Anne Frank [autora infantil judia assassinada na Segunda Guerra] e a videoconferência foi invadida. A situação está ficando grave no Brasil, e as pessoas não estão se dando conta. É preciso que a sociedade civil reaja de forma veemente. Não pode acontecer a essas vereadoras o que aconteceu com Marielle. Elas precisam ser protegidas pelo Estado. Como sociedade civil que pensa no processo civilizatório, temos que reagir.”
Cacá Diegues: Um novo modo de ver o mundo
As redes sociais deviam ser um instrumento de conhecimento, como a ciência
Miles Taylor, ex-chefe de Gabinete do Departamento de Segurança Interna dos EUA, acaba de se identificar como autor do artigo publicado como anônimo pelo “New York Times” há cerca de dois anos. No artigo, que o jornal informava apenas ter sido escrito por um colaborador do presidente, Taylor dizia que Trump era contraditório, mesquinho, ineficaz, amoral, um risco para as instituições democráticas do país. Na época, Trump mandou abrir investigação entre seus funcionários para descobrir o autor. Agora, Taylor pediu demissão de seu cargo, sem nunca ter sido descoberto.
Ainda no mundo do inesperado, Donald Trump, depois de empossado, demitiu de sua assessoria o famoso Steve Bannon, criador do sistema de fofocas e mentiras virtuais, as célebres fake news que, pelas redes sociais, o haviam elegido. Demitido, Bannon se mandou para a Itália, onde foi assessorar o populismo de direita que tomou o poder com o Movimento 5 Estrelas e a Liga. Reclamando do tratamento de Trump, Bannon foi consolado por fãs e discípulos de todo o mundo. Como Eduardo Bolsonaro, que o visitou e prestou homenagens ao mestre.
O reencontro de velhos inimigos jurados, assim como desavenças definitivas entre aliados de sempre, é mais ou menos uma constante na prática política de hoje em dia. Podíamos simplificar, dizendo que essa é uma das consequências do moderno embaralhamento ideológico. Ou do fim das ideologias com rigor de catecismo. Mas há outras razões, além dessas.
A BBC News revelou recentemente os termos de explosivo memorando interno da cientista de dados Sophie Zhang, ex-funcionária do Facebook. Com o título de “Tenho sangue nas mãos”, Zhang se queixava de não ter podido ou não ter tido tempo de acessar certos países, em vista de eventos antidemocráticos que neles viu acontecer. Diz ela: “Nos três anos que passei no Facebook, encontrei várias tentativas de governos nacionais de abusar da plataforma para enganar seus cidadãos e criar notícias internacionais que serviam a eles”. Aquelas famosas e genéricas fake news.
Zhang citava exemplos de manipulação política, no período em que esteve no Facebook. Como as 10,5 milhões de falsas reações de falsos seguidores, removidas de perfis de políticos de destaque no Brasil, durante a campanha presidencial e, nos EUA, durante as eleições legislativas de 2018. Além disso, o Facebook levou nove meses para agir, diante das informações sobre o uso de robôs (bots) para impulsionar o presidente de Honduras. Contas falsas e robôs também foram registrados na Bolívia e no Equador. Tudo do conhecimento do Facebook, que não fazia nada, segundo Zhang, devido à “carga excessiva de trabalho”. E Mark Zuckerberg demorou a entender a manipulação política de sua rede social.
Durante a pandemia, Zhang descobriu e removeu 672 mil contas falsas, que atuavam contra ministros da Saúde do mundo inteiro. A jornalista Carole Cadwalladr, do Reino Unido, já havia denunciado o uso manipulado de dados do Facebook pela consultoria Cambridge Analytica, pivô na eleição de Trump e na campanha do Brexit. “A velocidade e a escala de danos que o Facebook está causando às democracias em todo o mundo são verdadeiramente aterrorizantes”, escreveu. Zhang recusou perto de US$ 100 mil para não dar conhecimento público de seu memorando. Ela mesma tratou de divulgar seu conteúdo.
Quando penso na conquista do mundo pela nova cultura digital, penso logo na invenção de Gutenberg e no sucesso dela no Renascimento. As redes sociais deviam ser um instrumento de conhecimento, como a ciência e a literatura, o iluminismo e um novo humanismo, as ideias que refundaram a humanidade naquele período. Uma nova versão do mundo, pelo conhecimento e pela cultura, de como somos e de como queremos ser. Em vez disso, estamos deixando que se transformem em difusão de consumo imposto e de horror político, contra a busca da verdade e a democracia. Não podemos permitir que essa nova cultura, fruto da inteligência, da ciência e da inspiração humanas, se consolide como intervenção demoníaca em nossa civilização.
Já estava fechando este artigo, quando me ocorreram os versos de Vinícius de Moraes, citados na nova encíclica do Papa Francisco, publicada no dia de outro Francisco, o santo dos pobres: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.
Guerra ideológica aterroriza vítimas de estupros no Brasil, mostra reportagem
Dados e histórias de vítima são contados em reportagem especial da revista Política Democrática Online de setembro
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“Ele me colocou no colo, passou a mão em mim e, depois, tirou a roupa e começou a me acariciar na minha cama”. A declaração é de uma menina de 11 anos de idade que foi estuprada, aos 9 anos, em casa, pelo padrasto, enquanto a mãe estava no supermercado, na região do Gama, a 35 quilômetros de Brasília. “Ele me machucou muito, mas depois pediu para ficar calada porque senão minha mãe iria me bater”, conta, em reportagem especial da revista Política Democrática Online de setembro.
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A reportagem mostra que, a cada hora, quatro crianças e adolescentes de até 13 anos são estupradas no país, segundo o Anuário de Segurança Pública 2019, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com informações de todas as unidades da Federação. Outro levantamento, baseado no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS), revela que, por dia, o Brasil registra seis abortos em meninas de 10 a 14 anos estupradas.
O assunto mobilizou ainda mais população do país contra esse tipo de crime em agosto deste ano, conforme lembra a reportagem. “Religiosos conservadores e grupos de extrema direita no país perseguiram uma menina de 10 anos que teve autorização da Justiça para realizar aborto no Espírito Santo. Ela ficou grávida após ser estuprada pelo tio, por quem era violentada desde os 6 anos. O criminoso está preso’, diz o texto.
Em 2018, de acordo com o Anuário de Segurança Pública, o Brasil registrou mais de 66 mil casos de violência sexual, o que corresponde a mais de 180 estupros por dia. Entre as vítimas, 54% tinham até 13 anos. Foi a estatística mais alta desde 2009, quando houve a mudança na tipificação do crime de estupro no Código Penal brasileiro. O atentado violento ao pudor passou a ser classificado como estupro.
A reportagem especial da revista Política Democrática Online também mostra que, em sessão remota, o Senado Federal aprovou, no dia 9 de setembro, a criação do Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro, que deve conter, obrigatoriamente, características físicas, impressões digitais, perfil genético (DNA), fotos e endereço residencial da pessoa que recebeu condenação judicial. O texto seguiu para sanção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
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População LGBTI+ se organiza para empoderar minorias diante de ataques de Bolsonaro
Reportagem especial da revista Política Democrática online mostra que alvos de Bolsonaro não se silenciam diante de repressão de presidente
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Integrantes da população LGBTI+ (Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexos e mais) afirmam que as minorias devem se mobilizar contra as diversas formas de preconceito e violência estimuladas pelo governo de Jair Bolsonaro. Eles alertam as minorias para se unirem e se empoderarem, como mostra reportagem especial da 15ª edição da revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira). Todos os conteúdos da revista podem ser acessados gratuitamente no site da entidade.
» Acesse aqui a 15ª edição da revista Política Democrática online
O coordenador nacional da Diversidade do Cidadania 23, Eliseu de Oliveira Neto, demonstra preocupação com o que chama de “efeito manada” do governo Bolsonaro, referindo-se à capacidade de grupos carregados de ódio e preconceito, como homofóbicos, machistas, feminicidas e racistas, contaminarem outra parcela da população. “Esses grupos se sentem empoderados, representados, e, dessa forma, acabam convencendo pelo ódio outras pessoas que estavam sem opinião formada, no ‘meio do caminho’ e que poderiam ser conscientizadas de forma pedagógica”, lamenta ele, que já foi vítima de homofobia mais de uma vez.
Assim como Eliseu, a educadora social e mulher trans Rubi Martins do Santos Correa afirma que a população de minorias precisar se unir para não se marginalizar e se oprimir diante das práticas do governo Bolsonaro. “Somos um país de pessoas resistentes. Temos gays em todos os lugares”, acentua. “Temos que empoderar a população LGBTI+ e as outras minorias para ocuparem os espaços na sociedade. O empoderamento é chave para as minorias atuarem como sujeitos de direitos e deveres. Não sei quanto tempo vai levar, mas um dia chegaremos lá”, afirma ela.
A população LGBTI+ reconhece que sempre sofreu violência e teve de se organizar em movimentos político-sociais para terem seus direitos reconhecidos. No entanto, de acordo com Rubi, Bolsonaro “legitima atos violentos contra as minorias”. “Isso dá certa autonomia para as pessoas destilarem os seus preconceitos. Elas se sentem no poder de praticar violência porque até o presidente naturaliza isso”, assevera a educadora social, que também coordena um trabalho junto à população em situação de rua e extrema vulnerabilidade no Distrito Federal.
Como também tem dificuldade de articulação no Congresso, Bolsonaro ocupa o tempo se envolvendo em polêmicas sustentadas em pauta sobre moral e costumes. “É a pauta dos conservadores”, afirma Eliseu. “Bolsonaro é um homofóbico que não tem pudor de colocar as pessoas em risco e de mentir para se manter no poder”, acrescenta ele.
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Revista Política Democrática || Ivan Alves Filho: Presença negra
Um dos países centrais na comunidade internacional por seu peso demográfico, por sua extensão territorial e também pela inegável importância econômica que adquiriu, o Brasil possui a segunda maior população negra do mundo. E esse é um dado fundamental para se compreender nossa realidade.
"Sem Angola, não há Brasil", vaticinou, certa vez, o Padre Antonio Vieira. E poderíamos acrescentar: sem o negro, não há Brasil. Afinal, o povo faz história pelo trabalho. E o povo negro vem carregando esse país nas costas há cinco séculos. Das atividades nas plantações de cana de açúcar, algodão e café ao chão das fábricas e construções. Isso, no plano material. Mas, no plano da cultura espiritual, não seria muito diferente. Como falar da nossa literatura sem Machado de Assis? Da nossa música sem Pixinguinha? Da nossa arquitetura sem Aleijadinho? Do esporte brasileiro sem Pelé? Das nossas rebeliões sem Zumbi dos Palmares?
Mesmo assim, há evidente exclusão social do negro entre nós. E isso mergulha suas raízes num passado não tão distante assim. Se, por um lado, o regime escravista integra o negro na economia, por outro o exclui da cidadania. E a própria Abolição, ao libertar o escravo, esqueceu-se de libertar o negro. A nossa única revolução social – até aqui, ao menos, já que reapresentou uma mudança no modo de produção – ficaria incompleta. Vale dizer: para que a Abolição cumprisse plenamente sua função histórica, ela deveria vir acompanhada de uma medida fundamental como a reforma agrária, por exemplo.
Isso significa reconhecer que a questão negra é, acima de tudo, uma questão nacional. Ou seja, uma luta de todos os brasileiros. Conforme escrevemos recentemente no livro Presença negra no Brasil, editado este ano pela Fundação Astrojildo Pereira, "a batalha pelos direitos dos negros no Brasil é parte da luta e não uma luta à parte". Com essa ótica, acreditamos ser fundamental unir o particular ao geral, uma vez que as chamadas lutas setoriais não devem ter um tratamento setorial.
Esse talvez seja o melhor caminho para combater o racismo e a exclusão. Afinal, o que denominamos por brasilidade, essa formidável síntese cultural do nosso país, repousa em boa parte na contribuição dos afrodescendentes.
Política Democrática: ‘Intolerância baseia-se na certeza de se ter verdade absoluta”, diz Babalawô Ivanir dos Santos
Análise é do doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Babalawô Ivanir dos Santos, no artigo Tolerância X Intolerância, publicado na quarta edição da revista Política Democrática online.
Cleomar Almeida
“A tolerância, segundo Bobbio, nasce assim, no século XVI, como uma tentativa de convivência pacífica entre as denominações religiosas cristãs dentro dos recém-formados Estados modernos. Intolerância baseia-se na certeza de se ter a verdade absoluta”. A análise é do doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Babalawô Ivanir dos Santos, no artigo Tolerância X Intolerância, publicado na quarta edição da revista Política Democrática online.
De acordo com Ivanir dos Santos, que também cursa pós-doutorado em História Comparada e é pedagogo pela Notre Dame, o filósofo italiano Norberto Bobbio analisa que o significado histórico da noção predominante de tolerância se refere ao problema da convivência, o que, conforme diz no artigo, foi provocada principalmente após a ruptura entre cristãos católicos e o cisma protestante. “No mesmo esteio, o autor aponta que a intolerância se baseia na certeza de se possuir a verdade absoluta, seja do ponto de vista religioso ou social, caracterizada por procedimentos de exclusão e de perseguição”.
» Acesse aqui a revista Política Democrática online de janeiro
Já a discriminação religiosa, segundo o Babalawô, pode ser entendida e interpretada como um tratamento desigual, que pode ser ocasionado ou proporcionado pelo preconceito racial, de gênero, classe social, ou religião. “Quando o Estado brasileiro concede permissão para a exibição de crucifixos e bíblias em prédios e repartições públicas, mas não para atabaques ou símbolos sagrados das religiões de matrizes africanas, está praticando clara discriminação religiosa, pois trata de maneira desigual os grupos religiosos, colocando em xeque a laicidade do Estado”.
Quando uma pessoa é vítima de violência psicológica, patrimonial e física por causa de sua escolha religiosa, isso se configura como intolerância, escreve o historiador. “Aqui podemos exemplificar o caso da menina Kaylane, de apenas de 11 anos de idade, que foi vítima de intolerância religiosa, em 14 de junho de 2015, e apedrejada após sair de um culto candomblecista. Esse fatídico episódio de intolerância religiosa não é exclusivo dentro da história das perseguições sobre as minorias religiosas no Brasil”.
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Amilcar Baiardi: Maniqueísmo ideológico no ambiente acadêmico
A intolerância existente hoje na universidade brasileira não tem precedente na História
O tema ideologia e intolerância no ambiente universitário tem merecido atenção da imprensa brasileira. Em menos de um ano foi foco em cinco edições do jornal O Estado de S. Paulo. Na página A2, por educadores com visões divergentes: em 22/4/2018 e 3/5/2018, pelos professores Carlos Maurício Ardissone e Roberto Macedo, respectivamente, e em 31/10/2018 pela professora Maria Paula Dallari Bucci. E em mais duas ocasiões na página A3, a de Notas & Informações: em 29/4/2018, no editorial A academia dominada e em 4/10/218, sob o título O papel da universidade. O argumento central de todos esses textos opinativos era a defesa da liberdade e da autonomia da universidade de promover debates e cursos, mas que estes contemplassem visões divergentes.
Não obstante essa percepção comum, provavelmente compartilhada por dirigentes universitários, ela não foi considerada por um grupo de instituições de ensino superior quando da oferta de disciplinas no primeiro semestre de 2018. Só assim se poderiam explicar os vários cursos que tinham como tema “O golpe de 2016 e o futuro da democracia”, aprovados pelos colegiados acadêmicos em 13 universidades federais - UNB, UFRJ, UFBA, UFSM, UFRGS, UFAM, UFSJ, UFJF, UFSC, UFop, UFU, UFC e UFRN -, em duas universidades estaduais paulistas, Unicamp e USP, algumas estaduais de outras unidades da Federação e poucas Pontifícias Universidades Católicas. Em nenhuma delas foram, concomitantemente, oferecidos cursos com visão divergente.
Pode-se supor que professores com concepções diferentes não tenham tido coragem de propor disciplinas alternativas. Mas parece mais plausível que, receando as reações das corporações e a ruptura de um pacto político que os levou à condição de dirigentes, reitores, pró-reitores e diretores não tenham estimulado a oferta de cursos que mostrassem a legalidade do impeachment.
Essa conduta se alinhava com anteriores que fizeram “vista grossa” a manifestações de intolerância nos câmpus universitários. As hostilidades contra o senador Cristovam Buarque, impedido de lançar seu livro Mediterrâneos Invisíveis no câmpus da UFMG durante a reunião da SBPC de 2017, e a não permissão para a exibição de filme baseado na obra de Olavo de Carvalho pela administração universitária da UFBA, em novembro do mesmo ano, repetindo o que ocorrera um mês antes na UFPE, são exemplos de como nas universidades se dá a cumplicidade entre dirigentes das instituições e lideranças corporativas visando a bloquear a difusão de ideias discordantes de suas visões.
Anteriormente, em outra universidade federal localizada na Bahia, a UFRB, houve impedimento físico de palestras do geógrafo e sociólogo Demétrio Magnoli e do filósofo Luiz Felipe Pondé, por serem contrários às cotas raciais. Em todos esses casos não houve diálogo nem possibilidade de negociação.
A intolerância existente na universidade brasileira não tem precedente na História. No seu nascimento, em 1287, na cidade de Bolonha, a universidade herdou dos colégios medievais, como aqueles em que ensinou Pedro Abelardo, uma atmosfera cultural que contemplava debates, com direito a réplicas, tréplicas, etc. Nessa atmosfera os debates, então denominados disputatio quod libetica, eram agendados e, neles, diferentes doxa (opiniões) eram defendidas sem assumirem a presunção de dogma. Apesar da interferência e do controle da Igreja Católica, vinculando a permissão para funcionar (bula papal) ao direito de emitir diplomas de professores (licentia docendi), a universidade medieval não impedia debates.
Antes mesmo da revolução científica, entendia-se que as controvérsias eram necessárias à incorporação de conhecimentos novos. Posteriormente, com a Reforma luterana e o Concílio de Trento, o argumento de autoridade impôs dogmas, limitando debates nas universidades escolásticas sob influência do catolicismo. Entretanto, a Reforma Protestante, diferentemente do que dizia Erasmo de Roterdã - “ubicunque regnat luteranismus, ibi litterarum est interitus” (onde quer que reine o luteranismo, a ciência entra em decadência) -, deu ensejo a outro modelo de universidade, definida como moderna, na qual a liberdade de debater e conviver com dogmas religiosos se impôs. Com a assimilação da pesquisa e da experimentação em seu campo de estudos a partir de meados século 19, sob a influência de pensadores como Schleiermacher, Fichte, Humboldt e Schelling, e após a reforma universitária alemã de 1848, as universidades reformadas passaram a refletir culturas nacionais, acolhendo ideias filosóficas em todos os campos. Essa mudança teve o protagonismo de Justus von Liebig, em Giessen, e é o marco do nascimento da universidade contemporânea. A teoria evolucionista de Darwin, malgrado contrariasse dogmas religiosos, foi debatida em 1860 na Universidade de Oxford, ocasião em que Thomas Huxley afirmou não se sentir envergonhado por ter um ancestral comum com os símios.
No século passado, no Ocidente, com exceção do que ocorreu nas universidades durante os regimes autoritários - nazismo, fascismo e o socialismo na Europa Oriental -, não se tem registro de intolerância ideológica em ambientes acadêmicos, nem mesmo na década de 1960 na França. Em quase 730 anos de existência da universidade, não são relatados fatos semelhantes aos do Brasil de hoje, uma cumplicidade entre dirigentes e movimentos corporativos visando a chancelar um “pensamento único”.
Considerando que é imanente ao papel da universidade estabelecer uma atmosfera de harmonia que contemple visões de mundo divergentes e seja refratária à barbárie, conviria enfatizar que o fomento de controvérsias favoreceria a avaliação das universidades brasileiras nos rankings internacionais, esvaziando o argumento de que elas se converteram em “madrassas” islâmicas, formando mais militantes do que cidadãos.
*DOUTOR EM ECONOMIA (UNICAMP), AMILCAR BAIARDI FOI PROFESSOR VISITANTE NAS UNIVERSIDADES DE AARHUS (DINAMARCA) E BOLONHA (ITÁLIA) E PRÊMIO JABUTI EM 1997.
Cacá Diegues: A pedra perdida
A sociedade brasileira de brancos segue atirando pedras nas cabeças de desempregados e necessitados que, não tendo como reagir, apostam naqueles que têm pior pontaria
O Estado Novo de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945, assim como a ditadura militar de 1964 a 1985, foram duas formas de vandalismo político. E, no entanto, Vargas sempre foi (e continua sendo) um herói popular, consagrado e seguido mesmo depois de sua morte, em 1954. Por outro lado, muita gente hoje pede a volta dos militares, mesmo que não tenham coragem de pedir expressamente a volta da ditadura. E o Bolsonaro não é o único a professar esse projeto.
Nós, brasileiros, nunca tivemos mesmo um padrão de reconhecimento em relação ao que nos acontece politicamente, agimos sempre no espaço entre um certo sentimentalismo mágico e aquilo que nos dizem com mais convicção dramática.
Converso com as pessoas nos botequins e na rua, ouço os taxistas com sincera atenção, leio as pesquisas de opinião que procuro entender. E não vejo nenhuma vontade de novidade política no que me dizem ou me mostram. Nenhuma vontade real de mudança. Os mais citados são sempre os mesmos ex-presidentes ou ex-governadores, os políticos ou ex-políticos que não almejam mais nada de diferente em suas vidas. Se continuarmos assim até outubro, vamos novamente viver de tosca esperança por mais quatro anos. Vãs esperanças.
Entre intelectuais e ideólogos, todos querem o centro que nos conforta e bloqueia o sobressalto. O centro da esquerda vai de um populismo de cordel para esquecer os anos desastrosos de Dilma, até as análises sofisticadas de impotência que justificam um certo muro. O centro da direita passou a agir, em vez de apenas observar por trás das cortinas, como era seu hábito. Mas, ainda assim, se divide entre o militar sem uniforme e volta dos uniformes militares ao poder.
Gostamos mesmo é de tudo aquilo que parece nos proteger, como o populismo que mais uma vez ameaça nosso progresso político. O partido que se preparou, durante toda a sua formação, para ser o mais ideológico e construtivo possível, exemplo de um partido democrático disposto a tudo para construir o novo do que ruía à sua volta, deixou de ser um partido político para, como disse um de seus líderes arrependido, “uma seita guiada por uma pretensa divindade”, uma definição contemporânea para nosso populismo atrasado.
Em 1808, o Rio de Janeiro se tornou, quase que por acaso, a capital do país. Dom João VI, obrigado a se mudar para a colônia com sua Corte, estava de saco cheio da sujeira e do calor da Bahia, para onde o haviam levado. Dos 60 mil habitantes do Rio de então, mais da metade era de escravos, a maior concentração deles no mundo ocidental. Os membros da Corte, a origem de nossa elite nacional, tratavam esses negros como desprovidos de humanidade, pior que seus bichos domésticos. Portanto, gente sem direito à vontade.
Os rapazes da Corte inventavam jogos e brincadeiras em que podiam usar os afro-brasileiros, seus escravos, como melhor entendessem. Uma das brincadeiras mais comuns era a da “pedra perdida”, em que os rapazes, a pé ou montados em seus cavalos, atiravam pedras nos negros que passassem ao largo. A ideia era sobretudo a de lhes atingir a cabeça e assim ganhar mais pontos para seu time.
A sociedade brasileira de brancos segue atirando suas pedras nas cabeças de desempregados e necessitados que, não tendo como reagir, apostam naqueles que têm pior pontaria ou que prometem, depois das pedras, cuidar do sangue derramado. A pedra talvez lhe doa menos, se tiver a promessa de uma sopa na porta dos palácios onde não entram.
Ninguém mais se sente representado politicamente no Brasil, a desconfiança em relação aos políticos em atividade é absoluta. Mas cada vez que tratamos desse assunto, escolhemos sempre negar a importância da política, eliminá-la do concerto das ideias que podem mudar a sociedade. A política é o universo dos maus políticos que conhecemos de sobra, portanto é preciso evitá-la. Se possível, eliminá-la de nossa vida.
E, com isso, damos origem ao nosso especial populismo, aquele que reconstrói, com um sorriso nos lábios e um abraço apertado, a dependência em que vivemos e que não deixamos nunca de cultivar.
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Está em cartaz, no Rio e em São Paulo, a 23ª edição do festival internacional de documentários. É Tudo Verdade, dirigido por Amir Labaki. Aliás, “dirigido" é muito pouco para explicar o que Amir Labaki tem feito pela cultura documentarista em nosso país. É Tudo Verdade, o maior evento dessa natureza na América Latina, tem ajudado nossos documentaristas a descobrir os mestres da atividade. Dessa vez, o festival deu grande espaço em sua programação a documentários brasileiros, realizados por cineastas consagrados ou jovens iniciantes. No Rio, a inauguração do festival ocorreu na tradicional sala do Museu de Arte Moderna, com a exibição de “Carvana”, filme de Lulu Corrêa, sobre nosso grande ator e cineasta.
* Cacá Diegues é cineasta
Roberto Freire: A marcha do ódio e um alerta para o mundo
Todo o mundo permanece estarrecido e acompanha com enorme preocupação as consequências dos acontecimentos do último fim de semana em Charlottesville, no Estado da Virgínia (Estados Unidos). As ruas da pequena cidade norte-americana, de cerca de 50 mil habitantes, foram palco de uma série de atos de violência perpetrados por grupos de supremacistas brancos de corte claramente neonazista, xenófobo e racista, e de confrontos com manifestantes que protestavam justamente contra os extremistas de direita. Ao menos uma pessoa morreu e dezenas ficaram feridas.
Historicamente considerada progressista, Charlottesville é a cidade onde viveu Thomas Jefferson (1743-1826), o terceiro presidente dos Estados Unidos e um dos mais emblemáticos “pais fundadores” da nação norte-americana, principal autor da Declaração da Independência e defensor do republicanismo. Os grupos extremistas de direita, aliados a neonazistas e adeptos da famigerada Ku Kux Klan, foram às ruas para protestar contra a retirada de uma estátua do general Robert E. Lee, um dos símbolos dos movimentos escravocratas e líder dos confederados na Guerra Civil Americana (1861-1865) – batalha sangrenta que opôs estados do sul (escravagistas) e do norte, deixando mais de 600 mil soldados mortos.
O que se pode observar das cenas que o mundo todo acompanhou nos últimos dias é a manifestação de um nacionalismo exacerbado que insufla discursos de ódio, intolerância e preconceito. Os grupos que tomaram as ruas de Charlottesville e protagonizaram cenas de horror são movidos pela xenofobia, pelo racismo, pela tentativa de anulação do outro. Não aceitam a diversidade e pretendem eliminá-la de qualquer forma, seja com socos, pontapés, paus, pedras, barras de ferro ou tiros.
Se em qualquer tempo, em qualquer época e sob qualquer circunstância esse tipo de violência é inaceitável, é evidente que ela se torna ainda mais ultrajante no mundo globalizado do século XXI, em que vivemos em uma “aldeia global” e estamos plenamente interconectados. Muitas vezes as pessoas vivem e trabalham longe de suas cidades ou mesmo de seus países de origem. Internacionalista que sou, não posso tolerar a xenofobia, a perseguição aos imigrantes ou refugiados, o extremismo que não aceita a convivência com o estrangeiro. O mundo de hoje, afinal, caminha para não ter mais fronteiras.
Como se não bastasse tamanho radicalismo, o que temos observado, especialmente nas redes sociais, é uma tentativa de parte da direita brasileira de relacionar o nazismo à esquerda. Evidentemente, trata-se de um raciocínio enviesado e desprovido de qualquer embasamento histórico. Guardadas as devidas proporções, essa estultice talvez só seja comparável à invencionice de alguns supostos intelectuais que chegaram às raias do absurdo ao negar a existência do Holocausto – o genocídio de milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, extermínio atroz praticado pelo estado nazista.
O horror nas ruas de Charlottesville não deixa dúvidas sobre os responsáveis pelo recrudescimento dessa horda radical e segregacionista. A origem de tais movimentos está justamente em grupos neonazistas da direita norte-americana, que felizmente enfrentam forte reação da parcela amplamente majoritária dos cidadãos daquele país. Grosso modo, a população dos Estados Unidos, independentemente de suas colorações partidárias, repudia com veemência os ideais racistas e xenófobos dos supremacistas e de uma espécie de “nova roupagem” da Ku Kux Klan – que nada tem de novidade, ao contrário, alimenta velhos preconceitos e o reacionarismo que sempre marcaram suas ações.
Traçando um paralelo com a realidade brasileira, por mais que os acontecimentos em Charlottesville nos pareçam distantes, temos de estar atentos para que esse tipo de manifestação não ganhe força também por aqui. Já existem no Brasil uma extrema-direita e parcelas da esquerda que não têm nenhum compromisso com a democracia. O principal líder de uma nova organização partidária possivelmente denominada “Patriotas” é um notório defensor da ditadura militar brasileira que infelicitou a nação por mais de 20 anos e entusiasta, inclusive, da tortura por ela praticada. Por outro lado, como se sabe, há uma parte da esquerda que apoia abertamente o regime ditatorial de Nicolás Maduro na Venezuela.
Nossa missão é trabalhar pela construção de uma candidatura que unifique o campo democrático e evite que, nas eleições de 2018, a disputa pela Presidência da República se polarize entre duas alternativas autoritárias e descomprometidas com os valores democráticos. Nesse diapasão, tenho acompanhado com entusiasmo o debate fomentado por organizações suprapartidárias e movimentos da sociedade civil sobre qual seria a melhor alternativa para aglutinarmos o campo do centro democrático em torno de um verdadeiro projeto de país.
Que o horror em Charlottesville sirva como um sinal de alerta não só para o Brasil, mas para todo o mundo. Nenhum país está a salvo do extremismo e dos discursos vazios que oferecem soluções simples e equivocadas para questões complexas. Em resposta ao ódio, pregamos a paz. Contra o racismo, defendemos a igualdade. No combate ao preconceito, propomos a tolerância. Para cada rompante autoritário, valorizamos ainda mais a democracia. A civilização sempre vencerá a barbárie.
José de Souza Martins: Os modernos inimigos de Galileu
Convidado pelo Reitor, o Papa Bento XVI deveria ter sido o orador que, na quinta-feira, dia 17 de janeiro, faria a conferência inaugural do ano acadêmico da Universidade La Sapienza, de Roma. No entanto, grupos de professores e alunos da universidade levantaram objeções à sua presença numa universidade pública. Invocaram a premissa do caráter laico da Universidade e questionaram as posições conservadoras do teólogo que este Papa também é. Em face do questionamento, conservador e retrógrado, aliás, o Vaticano preferiu cancelar a aula de Bento XVI.
O gesto da impugnação de sua presença e de sua aula nele vitimou, também, os profissionais do conhecimento, os pensadores, os cientistas, tanto os que creem quanto os que não são católicos e mesmo os que não creem. É justo o temor quando se descobre que nos próprios redutos da liberdade de pensamento essa liberdade tenha sido sacrificada por aqueles que dizem defendê-la.
Não se tratava de um sermão, em que a recusa seria até compreensível por parte de quem não professa uma religião. No plano intelectual, filosófico, sociológico e político pode-se discordar do Papa e ele mesmo, em mais de uma ocasião, tem convidado seus ouvintes e leitores, católicos e não católicos, crentes e não crentes, a terem com suas idéias e interpretações um diálogo crítico. Foi o que demonstrou quando foi à Academia Católica da Baviera, em 2004, debater com o filósofo e sociólogo Jürgen Habermas os fundamentos morais do Estado liberal.
O ministro da Universidade e da Pesquisa, em face do ocorrido, questionou o autoritarismo dos atos de impugnação da presença do Papa em La Sapienza e o fez em nome do astrônomo Galileu Galilei, condenado pela Inquisição a abjurar suas descobertas científicas relativas ao fato de que a terra gira em torno do sol e não o contrário. Mas Galileu estava certo e a Inquisição estava errada. O Papa compreendeu que estava agora na posição de Galileu. E, como Galileu, disse a seu modo “E no entanto, se move”, distribuindo o texto da aula densa e erudita, questionada antes de ser ouvida.
O conhecimento não resulta de um monólogo. Em sua conferência, o Papa trataria do conflito entre o bem e o interesse na busca da verdade. Defenderia a universidade e sua missão específica no campo do conhecimento e do ensino. Falaria como professor universitário que foi e optou por continuar a ser, mesmo sendo Papa.
O que aconteceu em Roma não foi fato isolado. Em muitos lugares vem acontecendo o mesmo, como ocorre aqui no Brasil. Em nome da esquerda, grupos que são de fato de direita impugnam a manifestação verbal e escrita daqueles que lhes são fundamentadamente críticos. É um silêncio que, se silencia quem poderia e deveria falar, empobrece e ensurdece quem deveria e poderia ouvir.
* José de Souza Martins, um dos mais importantes cientistas sociais do Brasil. Professor titular aposentado de Sociologia e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Pela Contexto, publicou os livros A sociabilidade do homem simples, Sociologia da fotografia e da imagem, Fronteira, O cativeiro da terra, A política do Brasil lúmpen e místico, A Sociologia como aventura, Uma Sociologia da vida cotidiana e Linchamentos.
Contra o ódio e a intolerância
Cada vez mais isolada e sem um discurso minimamente capaz de explicar o inexplicável ou justificar o monumental fracasso de um projeto de poder que se revelou nocivo ao país e gerou tamanha corrupção, desmantelo e a maior crise econômica de nossa história republicana, parte da esquerda brasileira resolveu apelar ao ódio e à intolerância para atacar e desqualificar seus críticos, contaminando o ambiente político e colocando em xeque a própria convivência democrática.
Recentemente, o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), um dos homens públicos mais respeitados e bem preparados do país, foi vítima de um grupo de fascistoides durante o lançamento de um livro de sua autoria na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde também se realizava a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Com xingamentos e tentativas de intimidação, essa pequena horda de militantes revelou a verdadeira face de uma esquerda populista, atrasada e essencialmente reacionária que perdeu o rumo, o discurso e a dignidade.
Curiosamente, mas não por acaso, são os mesmos setores que, há alguns dias, manifestaram novamente o seu apoio incondicional à ditadura comandada por Nicolás Maduro na Venezuela, um regime amplamente rejeitado pela comunidade internacional e por todos aqueles que prezam pela democracia e pela liberdade. Os que tentavam constranger o senador Cristovam na UFMG preferem fechar os olhos para uma tirania que reprime manifestações democráticas com violência (o que levou a mais de uma centena de mortes até o momento), censura a imprensa independente, viola as liberdades individuais, persegue e prende opositores políticos, controla o Poder Judiciário, entre outras atrocidades próprias de um governo autoritário.
Pessoalmente, jamais imaginei que tivesse de criticar forças de esquerda não por seus erros políticos, mas pelo nível de degradação moral em que parte delas se meteu. Mas é exatamente disso que se trata. É evidente que muitos foram os equívocos cometidos pela esquerda historicamente – e nós, do PPS, herdeiros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), nos incluímos nesse processo de autocrítica –, mas desta vez é necessário apontar e condenar, com veemência, o desmantelo moral que tomou conta de uma parcela significativa da esquerda na América Latina, em especial o chamado bolivarianismo. Lamentavelmente, para onde quer que se olhe entre os países latino-americanos, essa esquerda se enxovalhou da forma mais espúria com a corrupção, praticando um verdadeiro assalto aos cofres públicos. Os 13 anos de governos lulopetistas no Brasil, infelizmente, são um exemplo ilustrativo de tamanho descalabro.
Além da corrupção em si, o que já seria gravíssimo, os regimes que predominaram em diversos países do continente na última década foram marcados por um viés populista que atende aos setores historicamente espoliados, mas de forma superficial e imediatista – por meio de um assistencialismo barato que não oferece um futuro digno nem é capaz de mudar a realidade. Há uma série de estudos acadêmicos e livros publicados na área de ciência política que tratam justamente do fim do populismo na América Latina, em especial o chavismo, na Venezuela, e o lulismo, no Brasil. Guardadas algumas diferenças, os dois modelos se assemelham muito no essencial: não propuseram nenhuma mudança substancial na qualidade de vida dos cidadãos por meio da educação ou de um efetivo projeto de desenvolvimento. A aposta quase exclusiva foi no incentivo ao consumismo desbragado e nos programas assistencialistas.
Os ameaçadores gritos de guerra e as palavras de ordem dirigidas a um homem honrado como Cristovam Buarque são reflexo justamente dessa visão de mundo populista, autoritária, antidemocrática e intolerante, que demoniza aqueles que pensam de forma diferente e não tolera o contraditório no debate público. Ao investirem no ódio, os setores mais atrasados e reacionários da esquerda ficam ainda mais isolados da opinião pública e da sociedade em geral e são responsáveis, de certa forma, pelo fortalecimento de um segmento também populista, mas de uma direita reacionária e de corte claramente fascista, que acaba por fazer o contraponto no outro extremo do espectro político.
Não construiremos um novo país com agressividade ou violência, e muito menos com o populismo mais rasteiro. Devemos fomentar o debate, a convivência pacífica entre contrários, a diversidade. As agressões contra o senador Cristovam são o retrato de um tempo que ficou para trás, uma espécie de grito desesperado daqueles que perderam o seu naco de poder. A população brasileira está cansada de tanto ódio, de tanta raiva, de tanta divisão e do discurso surrado do “nós contra eles”. Contra o ódio e a intolerância, respondemos sem medo, com serenidade e democracia.
Fonte: http://www.diariodopoder.com.br/artigo.php?i=56279853968