intolerância

RPD || Kelly Quirino: Que projeto de país temos para o futuro?

Erradicar a polaridade política atual e discutir questões estruturais se faz urgente para a construção de um país para o século XXI

Que projeto temos para o futuro do Brasil? Um país estruturado em violência, exploração do trabalho, sexismo e racismo entra na década de vinte do século XXI escancarando seus problemas históricos, e as principais lideranças políticas do nosso país ainda não conseguem apresentar uma resposta para estas demandas.  

Começo por esta indagação, porque ao final do século XIX o projeto das nossas elites era modernizar o país. A ciência foi uma aliada para trazer o desenvolvimento e as políticas de imigração europeia para o Brasil ter uma mão de obra assalariada e também embranquecer nosso país, considerado preto demais para época. Era o projeto que até hoje é ostentando na nossa bandeira: “Ordem e Progresso”.  

A ideia de desenvolvimento pautado pela implantação da indústria no Governo Vargas, continuada por JK e pelos militares, durante a ditadura, foi responsável pelo chamado milagre econômico brasileiro que colocou o Brasil entre as dez principais economias do mundo.  

Ocorre que a exploração do trabalho, a violência e o racismo fizeram com que este projeto desenvolvimentista não fosse usufruído por grupos historicamente marginalizados: negros e indígenas.  

Por mais que desde o século XIX José de Alencar já celebrasse a miscigenação como uma identidade nacional – primeiro a partir da exaltação aos indígenas e portugueses –, e Mário de Andrade reconhecendo que a identidade do povo brasileiro era soma dos três povos: indígenas, negros e brancos, no célebre Macunaíma, a riqueza gerada se concentrou nos grupos de homens brancos e continuou mantendo as piores estruturas sociais para negros e indígenas.  

Aluísio de Azevedo, em O Cortiço, já apontava que o Estado brasileiro reservava os cortiços como moradia para os pretos no final do século XIX. Na década de 50, do século XX, Carolina Maria de Jesus em O Quarto de Despejo - denunciava os políticos, por negligenciar o povo favelado enquanto ela catava papel para alimentar seus três filhos.  

No nosso projeto de país no século XX, os que são considerados cidadãos são privilegiados, e utilizam o discurso da meritocracia, para justificar seus lugares sociais. E pior, não possuem vergonha de ter irmãos pátrios que passam fome, são assassinados diariamente e não possuem moradia e nem trabalho digno.  

Nosso projeto de país, criado no século XIX e que foi implementado no século XX não tem vergonha da desigualdade e ainda quer manter privilégios. As obras clássicas fundantes da sociologia brasileira nos ajudam a compreender este fenômeno parcialmente. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, defende que o brasileiro é um homem cordial. Avalio que seja cordial com seus iguais: homens, brancos, cristãos, instruídos, heterossexuais. Quem não faz parte disso, é tratado de forma violenta. Daí a importância de trazer a obra de Abdias do Nascimento, para refutar a tese de Buarque de Holanda. Em O Genocídio do Negro Brasileiro, Abdias afirma que o brasileiro não é cordial com as pessoas negras. A cada 23 minutos um homem, jovem e negro é assassinado no Brasil. O Atlas da Violência 2021 aponta que 77% das vítimas de homicídio do nosso país em 2019 eram negras.  

Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala defendia que a colonização no país foi harmoniosa, negros e portugueses se relacionavam de forma amistosa, e o sexo entre senhores e negras era consensual. E aqui Lélia Gonzalez, no artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, refuta esta tese ao afirmar que as mulheres negras e indígenas no Brasil foram vítimas de estupro, e, no nosso projeto de país, elas são a mulata para transar, a preta para trabalhar e a mãe preta para servir. É preciso trazer à luz na Sociologia brasileira obras como as de Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez para compreender o outro lado que Buarque de Holanda e Gilberto Freyre não contemplaram.  

E chegamos no século XXI como resultado de tudo isto, em um cenário obscurantista negando a ciência que tanto nos ajudou a sermos um país industrializado, negando que somos violentos, racistas, sexistas e ainda sem um projeto de país. E a pandemia ainda agravou muito mais estas desigualdades econômicas, raciais e de gênero: 14 milhões de pessoas desempregadas e voltamos para o mapa da fome.  

Que projeto de país temos para o futuro? Ainda não sabemos. Daí a importância de erradicarmos a polaridade política atual e discutir questões estruturais do nosso país, apontadas no decorrer deste artigo. Se faz urgente a união de vários setores da sociedade brasileira – intelectuais, políticos, organizações, sociedade civil organizada, partidos, sindicatos e as pessoas que estão nas redes sociais para construirmos um projeto de país para o século XXI. Do jeito que estamos, cada dia nos tornamos chacota mundial.  


Kelly Quirino é doutora em Comunicação pela Universidade de Brasilia (UnB), Mestre em Comunicação Midiática e Jornalista Diplomada pela Universidade Estadual Paulista. Pesquisa jornalismo, relações raciais e diversidade. 


RPD || Zulu Araújo: Faremos Palmares de novo

Ações do governo Bolsonaro visam destruir a fundação que é símbolo histórico da luta e resistência pela igualdade racial no país, avalia Zulu Araújo

A criação da Fundação Palmares é parte indissociável da luta democrática ocorrida no Brasil pela derrubada da ditadura militar e retomada da Democracia. A Constituição Cidadã de 1988 é a consolidação dessas conquistas. Ou seja, a Fundação Palmares simboliza a um só tempo a luta pela igualdade racial, social e a defesa da diversidade cultural. Em seu primeiro artigo, está inscrito seu objetivo maior: “Promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira.”, para “promover e apoiar a integração cultural, social, econômica e política dos afrodescendentes no contexto social do país.”.  

A Fundação Palmares não é, pois, uma instituição qualquer, criada a partir do bolso do colete de um político sagaz, um burocrata esperto ou um ministro sensível. É fruto de um movimento amplo, diverso, um momento histórico. A Palmares é filha dileta da grande mobilização nacional que empolgou o país em 1988, no qual as mulheres, os movimentos dos direitos humanos, da defesa das crianças e combate à intolerância religiosa se uniram aos partidos políticos, para defender o retorno da Democracia ao nosso país.  

Por isso mesmo, a Palmares é a vitória mais importante do movimento negro brasileiro, no século XX. Teve origem na sociedade, foi aprovada pelo Congresso Nacional, e é a primeira instituição do Estado brasileiro incumbida de elaborar políticas públicas de combate ao racismo e promoção da igualdade, a partir da valorização, preservação e difusão das manifestações culturais de origem negra no país. Isto não é pouca coisa. Essa vitória sem precedentes contou com a participação de muita gente, artistas, políticos, religiosos/as, militantes do movimento negro. Lá estavam pretos, brancos, mestiços, indígenas. Gente de esquerda, direita, tais como Ana Célia do (MNU), Embaixador Alberto Costa Silva, Carlos Moura (Comissão de Justiça e Paz), João Jorge (Olodum), Deputados/a Abdias Nascimento, Benedita da Silva e Paulo Paim, Clóvis Moura (sociólogo), Gilberto Gil (artista), Martinho da Vila (artista), Marcos Terena (indígena), Mãe Stela de Oxóssi (Yalorixá) e Zezé Mota (atriz), dentre tantos outros.  

Ao longo de 32 anos de existência, a Fundação Palmares passou por muita dificuldade, superou inúmeros desafios e se firmou como a grande representação política/cultural da comunidade negra brasileira. Conquistas importantes foram alcançadas: o Parque Memorial Quilombo dos Palmares em Alagoas, (10 mil metros quadrados de área construída) o Decreto 4887/03 (certificação e regularização dos territórios quilombolas, com mais de 4.000 reconhecidos), a Lei de Cotas raciais para o Ensino Superior,  ( mais de 1 milhão de estudantes negros, beneficiados), além de apoio a milhares  de projetos, grupos culturais, intercâmbios e trocas de experiências com comunidades negras de todo o mundo, em particular do continente africano.  

A Palmares realizou ações memoráveis como a participação na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, (Durban/África do Sul/2001), a II Conferência dos Intelectuais ada África e da Diáspora, realizada em Salvador em 2006 e que contou com a presença de mais de 3.000 intelectuais afrodescendentes do mundo inteiro, assim como a participação no III FESMAN (Festival Mundial de Artes Negras /Senegal/2010), no qual contou com a maior delegação de artistas negros (465). Em que pese as dificuldades orçamentárias, financeiras e de recursos humanos, a Palmares tem cumprido com sua missão.   

Portanto, o que está ocorrendo hoje na Fundação Palmares é algo muito mais profundo do que a maldade de um dirigente mal-intencionado. É a destruição de um símbolo de luta e resistência, dos nossos sonhos de igualdade, diversidade, fraternidade e de respeito ao outro, à religião do outro. Essa destruição está ocorrendo em todos os setores da cultura: patrimônio, memória, linguagens, produção de conhecimento, literatura, enfim, tudo aquilo que signifique inteligência, civilidade, cidadania.  Por isso mesmo, nossa luta precisa ter foco e precisão. Não devemos cair na armadilha da fulanização. O combate é contra um sistema, o governo. E, para tanto, temos de estar juntos para fortalecer a luta democrática e defender a diversidade. E, por fim, incluir na agenda política nacional a luta pela promoção da igualdade racial como algo de todos que são democratas e progressistas, visto que a promoção da igualdade, além de um avanço civilizatório é uma necessidade humana.  

Toca a zabumba que a terra é nossa! 


Zulu Araújo é diretor geral na Fundação Pedro Calmon. É arquiteto, produtor cultural e militante do movimento negro brasileiro, ex-diretor da Casa da Cultura da América Latina/UnB e ex-presidente da Fundação Cultural Palmares.


Deputado baiano propõe criação de mês de combate ao racismo religioso

Só nos primeiros nove meses deste ano, 19 casos de intolerância religiosa foram denunciados na Bahia

Dindara Ribeiro / Agência Alma Preta

Com objetivo de implementar políticas públicas que garantam o respeito e direito à liberdade religiosa, o deputado baiano Hilton Coelho (PSOL) acaba de apresentar um projeto de lei (PL) estadual que propõe a criação do "Janeiro Verde", mês voltado para o combate ao racismo religioso na Bahia.

O texto sugere que, durante todo o mês, o Governo da Bahia e demais órgãos estaduais realizem ações de combate, prevenção e conscientização sobre o racismo religioso através de palestras, rodas de conversa, campanhas publicitárias, debates, além de produções artísticas e culturais. O PL também destaca os direitos constitucionais da liberdade religiosa no país e sugere que a Secretaria da Educação fique responsável por promover ações educativas nas escolas a fim de valer as estratégias do ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e índigena e o desenvolvimento de um regime de proteção à liberdade religiosa e à laicidade na educação pública.

Leia também‘Não ao racismo religioso’: povo de terreiro protesta contra ataques discriminatórios

"Queremos, com esse projeto, provocar que as instituições públicas dos três poderes se comprometam com diversas formas de contribuição com o debate público sobre o racismo religioso, que é um crime de ódio e fere a liberdade e a dignidade humana. Mas, mais do que isso, queremos também que nesse compromisso institucionalizado o foco seja o protagonismo dos povos de religião de matriz africana na luta por sua memória ancestral. Então uma lei como essa, que determina a difusão do conhecimento sobre esse tema, ajuda a fissurar, de alguma forma, o racismo institucional, quando obriga as próprias instituições a promoverem ações refletidas e políticas públicas de combate a esse crime", disse Hilton à Alma Preta Jornalismo.

Na Bahia, as vítimas de intolerância religiosa e racismo são acompanhadas pelo Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado (Sepromi). Só nos primeiros nove meses deste ano, 19 casos de intolerância religiosa foram registrados pelo Centro. Em 2020, foram 29 ocorrências em todo o ano. No total, já são 270 casos de intolerância religiosa acompanhados desde a implementação do Centro, em 2013.

O preconceito religioso é considerado crime, conforme previsto no artigo 20 da Lei 7.716/1989. A pena para o crime varia de um a três anos, além da aplicação de multa. Em junho deste ano, a justiça da Bahia teve a primeira condenação em segunda instância por crime de intolerância religiosa contra uma evangélica. De acordo com a denúncia do Ministério Público, Edneide Santos de Jesus hostilizava candomblecistas do Terreiro Oyá Denã, localizado na região Metropolitana de Salvador, com sucessivos abusos racistas e expressões preconceituosas como a atribuição dos orixás à satanás. A mãe de santo do terreiro, ialorixá Mildredes Dias, conhecida como Mãe Dede de Iansã, morreu em 2015 e familiares atribuem a piora na saúde da religiosa aos constantes ataques feitos pela evangélica.

Um dos casos mais fatídicos de intolerância religiosa na Bahia e que se assemelha ao caso da Mãe Dede de Iansã foi a morte da ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, mais conhecida como Mãe Gilda de Ogum e fundadora do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador. Mãe Gilda também teve a saúde agravada por causa de ataques verbais, morais e físicos causados por membros da igreja Universal.

Em um dos ataques, evangélicos chegaram a invadir o terreiro dizendo que iriam "exorcizá-la". Mãe Gilda morreu no dia 21 de janeiro e a sua morte marca o Dia de Luta Contra a Intolerância Religiosa, data nacional em vigor desde 2007.

Diante do caso, o Supremo Tribunal de Justiça condenou a Igreja Universal a indenizar os familiares da ialorixá por danos morais e uso indevido de imagem, já que os evangélicos também usaram fotos e notícias falsas para difamar Mãe Gilda.

"Estamos num momento de acirramento do ódio e da efetivação de necropolíticas. E isso não está somente no plano nacional. Aqui na Bahia temos visto várias ações do governo Rui Costa que contribuem com o racismo estrutural. Então com tudo que o projeto poderá acionar, do ponto de vista do debate público e da conscientização sobre o racismo religioso, ações como a privatização dos parques públicos e áreas de proteção ambiental, como quer o governo do Estado, ou ainda a construção do elevatório de esgoto na Lagoa do Abaeté, por exemplo, com certeza serão temas colocados em pauta nessa agenda pública pelos movimentos populares contra o racismo religioso", completa o deputado.

Fote: Agência Alma Preta
https://almapreta.com/sessao/cotidiano/janeiro-verde-deputado-baiano-propoe-criacao-de-mes-de-combate-ao-racismo-religioso


Paulo Baía: A intolerância, o racismo, a ciência política e a UFRJ

Considero ruim, péssimo, ter que escrever esse artigo, na medida em que esta questão deveria ser tratada exclusivamente no âmbito da UFRJ

Paulo Baía / Cidadania e Política

O Departamento de Ciência Política do IFCS/UFRJ é um dos herdeiros do setor de política da antiga Faculdade Nacional de Filosofia e tem como histórico, desde 1972, quando entrei no IFCS-UFRJ como estudante, ambiguidades, obscuridades, conflitos sem foco, genéricos e egocentrados, intolerâncias pessoais, irracionalidades comportamentais e administrativas, individualismos fóbicos; ou seja, não se constitui como uma unidade funcional, acadêmica, profissional, educacional, pedagógica. Defino o DCP-IFCS como um organismo disfuncional, anômico, no estreito sentido que Émile Durkheim dá ao conceito de anomia. Foi criado para não ter projeto coletivo, projeto educacional, projeto de universidade, projeto de cidadania republicana. Exemplos de episódios rotineiros como disfuncionalidade não faltam, pelo individualismo fóbico associado à baixa produtividade acadêmica, universitária e a um diletantismo narcísico predador dos ethos de sociabilidade e possibilidades de convívio.

O DCP-IFCS teve a oportunidade de desenvolver um programa de pós-graduação em ciência política, que foi mais uma experiência de disfuncionalidade e predação institucional e pessoal. A pós-graduação do Departamento de Ciência Política da UFRJ foi de curta existência e traumática, foi descredenciada pela CAPES por incompetência e improdutividade.

A reunião do dia 11 de agosto de 2021 seria mais um encontro de agravos e deselegâncias existenciais rotineiras, caso não tomasse a dimensão extramuros, do cercadinho narcísico, transbordando os conflitos pessoais permanentes e irreversíveis para fora do departamento, envolvendo todo o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, a estrutura superior da UFRJ, assim como todas as associações científicas, acadêmicas e profissionais das ciências sociais.

A discussão entre dois professores, que não se gostam, não se toleram, foi no mínimo deselegante e, no limite do limite, agressiva, por divergências administrativas, de pensamento acadêmico, social, de mundo, de vida e políticos, por interesses pessoais distintos.

Extrapolou para uma acusação de racismo de um professor contra outro, de racismo estrutural e permanente da UFRJ contra um professor preto por ser preto, fora da reunião, bem depois do encontro disfuncional, nos espaços públicos da atualidade.

O foco da reunião, mais uma entre tantas, extrapolou a rotina profissional, acadêmica, funcional, demonstrando mais uma vez o que classifico como disfuncionalidade estruturante e predatória do Departamento de Ciência Política.

Sempre lembro que esse departamento faz questão de esquecer que teve como professor catedrático o equilibrado e notável Vitor Nunes Leal, que chegou ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) da república, como professor de Ciência Política da Universidade do Brasil, sendo um dos pioneiros que gestaram a ideia de ciência política no Brasil, na Universidade do Brasil e na UFRJ.

Quero acrescentar, ressaltar, que considero ruim, péssimo, ter que escrever esse artigo, na medida em que esta questão deveria ser tratada exclusivamente no âmbito da UFRJ, na Congregação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e das Instâncias Superiores da UFRJ.

Entretanto, o que nós estamos vendo e vivenciando é uma campanha publicitária, muito bem articulada, que já conta com mais de mil assinaturas em diversos abaixo-assinados on-line, com várias cartas manifestando apoio incondicional à acusação de racismo da UFRJ e do professor Josué Medeiros no Brasil e no exterior.

Matérias jornalísticas às dezenas, nas mais diversas mídias nacionais e internacionais, ratificando o racismo estrutural, permanente e o que isso significa, da UFRJ e do professor Josué Medeiros.

O apoio irrestrito à acusação de que o professor Josué Medeiros é racista e tem que ser afastado imediatamente da UFRJ virou um mantra, um salmo.

Fui chamado para apoiar esse movimento contra a UFRJ e o professor Josué Medeiros como racistas, para assinar petições on-line ou manifestar repúdio ao professor Josué Medeiros e à UFRJ como racistas estruturais, dar declarações na imprensa, nas mídias e redes digitais apoiando incondicionalmente o professor Wallace Moraes como vítima de racismo.

Não fiz isso, me recusei a entrar em um movimento de efeito manada, de torcedor revoltado de time de futebol, de facção e/ou partido.
Fiz o que sempre faço, fui buscar informações, fui apurar, fui escutar atentamente, nos detalhes, todas as versões, sentimentos e opiniões de quem participou da reunião fatídica, mais uma reunião do disfuncional e predador Departamento de Ciência Política do IFCS-UFRJ.

As acusações do professor Wallace Moraes contra o professor Josué Medeiros, a chefia do DCP-IFCS e a própria UFRJ se tornaram um debate público protagonizado por personalidades e ativistas de múltiplos movimentos políticos, estranhos aos quadros profissionais da UFRJ e sua imensa comunidade acadêmica. O que não significa um equívoco, mas uma imprudência, ao se tornar um debate público, midiático.

Sendo eu um intelectual público, um ativista dos direitos humanos, um ativo humanista e homem público no Brasil e professor da UFRJ, me manifestei inicialmente com uma carta aberta pública em que chamava atenção para a ideia de que o professor Wallace estava tendo uma visão ficcional da realidade, afirmativa que refaço nesse artigo, pois ao ouvir com mais detalhes vários relatos da reunião do dia 11 de agosto e do próprio professor Wallace Moraes, percebo que ele teve sua postulação, legítima, para participar como avaliador de uma banca de concurso público do DCP-IFCS desqualificada de forma deselegante, no limite máximo, com intolerância acadêmica e profissional, por uma ação de maioria eventual, como é a prática do DCP-IFCS. O professor Wallace Moraes teve a percepção de que estava sendo acuado em sua postulação administrativa/acadêmica e sua posição como docente escanteada no momento da reunião.

Todas e todos os participantes dessa reunião do DCP-IFCS do dia 11 de agosto foram responsáveis pelas deselegâncias, arrogâncias e intolerância acadêmica que descartaram a presença do professor Wallace Moraes como membro titular da referida banca de avaliação para um concurso público de muitos concorrentes, houve silêncio generalizado no instante da tomada de decisão da maioria do colegiado do DCP-IFCS.

Semanas depois do dia 11 de agosto formou-se uma estrutura profissional de comunicação e divulgação de uma acusação de racismo na reunião, uma estrutura de marketing de combate, de marketing de aniquilação, exigindo punição imediata para o professor Josué Medeiros e a chefia do DCP-IFCS. O pedido de apuração administrativa não era o foco, era secundário, alegórico, uma cereja no bolo punitivista de uma sentença já lavrada. Uma instrumentalização, aparelhamento indevido da acusação de racismo contra a UFRJ e o professor Josué Medeiros, que não posso apoiar em nenhuma hipótese.

A esse cenário de punitivismo preventivo, de linchamento moral de reputação, aniquilação midiática e condenação antecipada do professor Josué Medeiros, se juntou um vídeo de combate tecnicamente perfeito para o ataque a um inimigo individual, o professor Josué Medeiros, e as ciências sociais e demais ciências como um todo racistas, a atual UFRJ como uma instituição racista no tempo presente.

O vídeo profissional de marketing político de combate, de aniquilação, traz muitos perigos em função dos seus impactos psicossociais e/ou emocionais, com possibilidade efetiva de formação de um 'ethos' guerreiro, justiceiro, como nos ensina Norbet Elias, em algum jovem militante mais sensível ao chamamento e incentivo do vídeo tão bem elaborado, produzido e divulgado.
Como disse, o vídeo é uma peça de marketing político de combate irretocável, de aniquilação, pelo estilo de narrativa e estética audiovisual.

Logo, não é razoável que esse vídeo esteja circulando, pois ele estimula o ódio, a vingança, mesmo que contra uma posição que se considere injusta.
O vídeo e as demais ações de marketing político de combate, de aniquilação dos inimigos, a UFRJ e o professor, tem um elevado poder de destruição emocional e física do professor Josué Medeiros e de quem não é a favor, de maneira irrestrita, ao professor Wallace Moraes.
O foco no professor Wallace Moraes, no referido vídeo, o apresenta como um personagem "vítima irreversível e permanente" de racismo por ser o único professor preto do DCP-IFCS.

Na minha avaliação como especialista em campanhas políticas, é um vídeo manipulador, que instrumentaliza, de forma egocentrada, narcísica, as teses do racismo estrutural como definidas pelo professor Silvio de Almeida, do lugar de fala dos movimentos identitários exclusivistas, da legítima e histórica luta antirracista no Brasil e da tese da epistemologia do sul, formulada pelo sociólogo português Boaventura Santos.

O que torna o vídeo uma peça perigosa, pois articulações sob impacto do vídeo são fechadas a apurações diferentes da já definida como a verdade absoluta em sua estética e fala. O vídeo afasta as negociações de conflitos e mediações, direito à defesa, por mais singela que seja; pois para uma guerra de posições, de narrativas, não importam os fatos apurados ,o tempo, o espaço e as verdades diferentes reveladas por investigações técnicas e legais. O cálculo político do marketing de combate é a aniquilação do inimigo de imediato, tornando essa peça publicitária um "tiro de canhão" com objetivo de "rendição incondicional" ou "morte simbólica" dos inimigos elencados no vídeo, a UFRJ e o professor Josué Medeiros.

As teses e o argumentos do vídeo são potentes, aniquiladores, definitivos.

A história começou pelo fato de o professor Wallace Morais ter se sentido discriminado por racismo pela fala do professor Josué Medeiros, o que é um sentimento legítimo e inalienável do professor Wallace Moraes, é um sentimento individual, uma emoção íntima do professor Wallace. Quem sente a dor é ele, por suas vivências psíquicas, emocionais e suas subjetividades íntimas, mais ninguém.
O professor Wallace Moraes tem o irrestrito direito de ter suas emoções e sentimentos da maneira que as classifica em sua individualidade, em sua intimidade.

Essa questão vem sendo discutida nas teses que abordam o racismo estrutural, via Silvio de Almeida, na longa história escravista e brutal de cinco séculos no Brasil, nos estudos de traumas emocionais, psiquiátricos, psicanalíticos e de psicologia política. Ao mesmo tempo, é colocada dentro de um movimento sociopolítico por jovens que se autoproclamam libertários e/ou decoloniais, se articulando com a proposta de construção de epistemologias a partir do Sul Global, negando o movimento iluminista e seus legados ao longo de alguns séculos.

Esse movimento coloca em questão a noção de que a epistemologia do Norte Global não contempla as demandas e as realidades do Sul Global, chamando atenção para o fato de que tudo que foi feito nas ciências sociais deve ser descartado por ser colonizado, imperialista, escravista e racista, pois não representa a realidade social na qual estamos inseridos de fato. As ciências humanas são uma invenção colonial, na avaliação da maioria dos decoloniais e/ou libertários, ao estilo Charles Mills, nada serve.

Charles Mills, o esclarecidíssimo filósofo e pensador jamaicano, para chegar à frase "nada serve" , só "a filosofia africana", conhecia profundamente toda a produção filosófica e de teoria social feita em cada recanto do mundo, de sul a norte, de oeste a leste.

No entanto, tenho críticas e reações a esse movimento de desmonte dos saberes, que chamo de " metodologia do desfazimento". Sou muito grato pelo histórico das ciências sociais, pelo saber científico construído ao longo dos séculos pela humanidade, remontando aos saberes do mundo grego romano, da eclética Europa, dos norte-americanos, canadenses, argentinos, mexicanos, dos saberes asiáticos, latinos, africanos e dos ameríndios, mesmo que os ressignificando, os recontextualizando ou os contestando com evidências de pesquisas empíricas ou teóricas, como Alberto Guerreiro Ramos, Anísio Teixeira e Mário de Andrade fizeram com eficiência e eficácia.

As influências de Alberto Guerreiro Ramos, suas teses sobre "reducionismo sociológico' e "uma sociologia em mangas de camisa" são tatuagens em minhas percepções e análises.

Continuo gostando muito do que escreveu Clóvis Moura sobre o Brasil e Wright Mills sobre o fazer sociológico e a imaginação criativa.
Os decoloniais, libertários e/ou monopolistas do lugar da fala, em sua grande maioria -não em sua totalidade - não reconhecem a legitimidade, a autenticidade, a validade, a existência de pesquisas e elaborações teóricas que não sejam exclusivamente autorreferenciadas na trajetória de vida de quem fala, pelo fato delas, pesquisas, não serem considerados representantes da realidade social, suas porta-vozes militantes.

Eu adoro a ideia de nossa magistral Conceição Evaristo de "escrevivências", incentivo todas as pessoas a escrever, a relatar, a fazer testemunhos de suas vidas e trajetórias existenciais. Isso lança luz, lança lume, pistas, traz indícios, como nos ensina Carlo Ginzburg em sua "micro história" e seu indiciarismo ou surgimento do conceito de geo-história, elaborado pelo historiador francês Fernand Braudel.
Se ficarmos apenas com essa prática de exclusividade do lugar de fala, será o fim das pesquisas em ciências humanas, linguísticas e literárias.

Em geral, de forma militante, o "lugar da fala" como método tem sido uma apologia do senso comum, um "neopentecostalismo" acadêmico, artístico e literário.

É evidente que não me filio a esse pensamento revisionista, negacionista, de uma "metodologia dos desfazimentos" , tenho grande gratidão pelo histórico das ciências sociais com suas perspectivas, ensaios e erros, suas transformações, aos saberes a que tive acesso, que ressignifiquei, em minha formação continuada e permanente como pesquisador, professor e ativista por direitos civis, comunitários, fundamentais e humanos aos 70 anos de idade.
Por que faço desse movimento, desse episódio do DCP-IFCS, uma reflexão?

Fui chamado, pressionado, intimidado, seduzido, ameaçado, por ser um intelectual e professor negro, a ser a favor do professor Wallace Moraes, negro como eu. E a ser contra o professor Josué Medeiros por ser branco, portanto um racista permanente. Para mim isso é um simplismo, um primarismo político, existencial, ético e moral.

A maioria absoluta dos signatários dos vários manifestos contra o professor Josué Medeiros como racista e a favor do professor Wallace Moraes como vítima de racismo pela UFRJ e pelo professor Josué Medeiros não conhecem o episódio, "foram na fé", aderiram a pedido de amigos e amigas de pronto, assim me relataram.

Decidi apoiar a defesa do professor Josué Medeiros como um antirracista e a defesa da UFRJ como instituição republicana.
Vejo, percebo, avalio ao explicitar a minha posição nesse furdunço, que seria mais cômodo, confortável, ficar em silêncio como muitos estão, mas este episódio do DCP-IFCS do dia 11 de agosto acabou por produzir três vítimas públicas. O professor Wallace Moraes, o professor Josué Medeiros e a UFRJ como universidade e instituição centenária.

Reconheço que Wallace Moraes foi vítima, ao ser tratado de maneira deselegante, inconveniente, agressiva mesmo, não ocorrendo a mediação, a contenção necessária de todas e todos os demais presentes na reunião, que ao invés de trabalharem para o equilíbrio da reunião, aproveitaram para acirrar os ânimos. Sendo pois todos os presentes na reunião responsáveis pelo clima e ambiência de agressividade, de intolerância interpessoal, individualismo fóbico e egocentrismo acadêmico; em que o outro, o indivíduo, os grupos diferentes, não são reconhecidos, não existe alteridade. É o Departamento de Ciência Política sendo o Departamento de Ciência Política.

A perspectiva de diferenças é fundamental para o pensamento contemporâneo, assim como para uma universidade como a UFRJ, no ano de 2021 do século XXI, nos seus cem anos de vida institucional no estado brasileiro.

Uma universidade estruturada no pensamento de ensino iluminista, advindo dos anos 1200, e que se reinventa a todo o tempo com sua performance inovadora, criativa, produção de conhecimento e intercâmbio mundial.

A Universidade deve ser um espaço de multiplicidades, onde haja permanente e continuada combinação e convívio dos diferentes, do particular, do peculiar, da especificidade, com o universal, com o global. E isso o Departamento de Ciência Política insiste em não fazer.

Ao escrever esse artigo quero refazer a minha afirmação inicial de que o Professor Wallace Morais não foi vítima na reunião do dia 11 de agosto.

Sim, ele foi vítima sim, de intolerância pessoal e acadêmica, por uma posição egocentrada, arrogante e particular, mesmo que sem dolo e premeditada.

Volto a insistir que defendo, com muita tranquilidade e convicção, que o professor Josué Medeiros não é racista, nem foi racista na reunião de 11 de agosto do DCP-IFCS e não agiu com dolo ou má fé.

Não vou me ater à história de vida pública e/ou particular do professor Josué Medeiros, vou para frases específicas que constam no abaixo-assinado de acusação.

Não endosso que dizer que uma pessoa está se vitimizando por ser negra é uma frase que possa ser classificada, entendida, tipificada como racismo ou intolerância racial. Não há materialidade para racismo ou injúria racial neste caso do uso da frase, sem dolo. Em nossa luta, como negros e negras, não podemos deixar que detalhes nos desmoralizem administrativamente ou judicialmente. Logo, se o professor Wallace Moraes denunciasse o professor Josué Medeiros à direção do Departamento de Ciência Política do IFCS por intolerância acadêmica, a denúncia teria, talvez, alguma concretude, algum significado, restando verificar se houve dolo ou não.

Pois quando se acusa de racismo, temos que ser precisos, cirúrgicos.

Cheguei como negro na UFRJ em 1972, como estudante, frequentava os bailes da pesada no Canecão, apenas com músicas negras americanas, com o Big Boy. Assim como era frequentador assíduo dos bailes da Black Rio, no MAM. Me autodefinia como preto, como negro, e usava cabelo black. Enfrentava a resistência das esquerdas e das direitas, que me chamavam de americanizado, me acusavam de ser contra o socialismo e de ser alienado. Por décadas me senti deslocado, no IFCS-UFRJ, por ser o único professor negro no antigo departamento de ciências sociais. Entrei através de um processo seletivo com uma vaga para professor de Metodologia das Ciências Sociais. Os sociólogos, antropólogos e cientistas políticos da época não sabiam matemática, muito menos estatística, o que ocupava uma grande parte do edital. Eu tinha cursado técnico em estatística e bacharelado em estatística na ENCE/IBGE e tinha trabalhado no IBGE.

Pense em um jovem negro que se apresenta como negro e contesta técnica e teoricamente as teses de democracia racial no Brasil, como professor efetivo da UFRJ.

Indicando como leituras Guerreiro Ramos, Clóvis Moura e Du Bois, leituras que fiz orientado pelo velho trabalhista, professor e pastor batista José de Souza Marques, que me ajudou muito nesse mundo dos brancos.

Montamos um "núcleo da cor", para acolhimento e convívio dos poucos estudantes e docentes que se autodefiniam como pretos e pretas nos anos 1970/80.

Tive a sorte e a oportunidade de ser subsecretário estadual de Direitos Humanos do notável e bravo coronel da PMERJ, antropólogo e professor da UERJ, Jorge da Silva.

A resistência, o repúdio, foi quase unânime ao implementarmos o primeiro sistema de cotas raciais na UERJ e na UENF contra a maioria absoluta dos docentes, funcionários técnico-administrativos e corpo discente, contra a reitora da época, professora Nilcéa Freire, que depois se tornou aliada do sistema de cotas raciais.

O modelo usado pelo governo federal, com Lula presidente, para as universidades federais, foi nossa lei carioca e fluminense, sobretudo uma lei dos favelados cariocas e da baixada fluminense, aprovada pela Alerj, considerada constitucional pelo STF.
As portas das faculdades de medicina, engenharias, química, arquitetura, comunicação social, economia, biologia, das universidades federais foram arrombadas pelas cotas raciais.

Fui criado ouvindo diariamente a frase do professor, pastor e parlamentar trabalhista José de Souza Marques, negro, do qual tive a felicidade de ser aluno no Colégio Souza Marques, em Cascadura. E que nos incentivava a sermos negros em tempo integral, em todos os locais, em 1966. Ele usava exatamente a expressão: "Não se vitimize por ser negro, por ser pobre. Não vamos nos vitimizar por sermos negros. Nós temos que nos orgulhar de sermos negros e temos que enfrentar todas as adversidades cotidianas, separando, com muita precisão, aquilo que é um ato de discriminação racial, de cor, étnica, daquilo que é crítica ou afronta pessoal não racista, ou indicação e críticas de erros nossos."

Outro dado é que a frase "não se vitimizar por ser negro" está presente em vários dos discursos do pastor Martin Luther King, aos quais tive acesso via professor José de Souza Marques: "Se você não pode correr, ande; se você não pode andar, sente, se não pode sentar, rasteje; se você não pode rastejar, resista. Mas, não se vitimize por ser negro. Se afirme por ser negro."
A frase também está presente no pensador, sociólogo, filósofo nascido no século XIX e que marca sua carreira acadêmica e seu ativismo por direitos civis nos EUA, o professor William Edward Burghardt Du Bois.

Eles insistiam que, nós negros, não devemos nos vitimizar, mas nos reafirmar e lutar para nos colocar dentro de contextos gerais.
Não só na universidade, mas nas sociedades das quais fazemos parte, buscando conquistar espaços, direitos e reconhecimento.
Por isso, faz tempo, muito tempo, acredito que a expressão "se vitimizando por ser negro" não pode ser caracterizada como racista ou injúria racial.

Temos que encarar a questão do egocentrismo acadêmico em todas as universidades, das vaidades do mundo intelectual fora da universidade e das vaidades no mundo acadêmico em especial.

Quero chamar atenção às intolerâncias pessoais por vaidades e vedetismo nos ambientes universitários, independentemente de distinções raciais, étnicas, por sexo e por gênero espalhadas por todos os cantos acadêmicos.

Desejo chamar a atenção para o papel da UFRJ, com cem anos de existência, na construção da cidadania republicana, na luta contra a desigualdade social e contra o racismo.

Os atos e mecanismos estão aí, na estrutura e prática da UFRJ. É evidente que têm que ser modificados a cada movimento de transformação da sociedade, mas eles aí estão como conquista de pretos e pretas, em uma longa trajetória de gerações e gerações de toda a comunidade acadêmica da UFRJ.

Temos hoje dois professores - Wallace Moraes e Josué Medeiros - que são dois lutadores contra as desigualdades sociais, o racismo estrutural, trazendo essa nova terminologia do professor Sílvio Almeida.

Os dois professores em questão são necessários nas lutas pela ampliação da democracia, na concepção de Claude Lefort, no Brasil do tempo presente. É uma tarefa geracional, para consolidar e ampliar direitos civis fundamentais.

Assim, quero crer que o Departamento de Ciência Política deve ser ajudado a pensar a sua existência, sua disfuncionalidade permanente. Proponho, como sugestão, uma transformação radical do DCP-IFCS, sua extinção.

Que no seu lugar sejam criados novos departamentos na área de ciência política.

E, mais uma vez, manifesto, pelo meu histórico de vida, por minhas convicções humanistas, o meu compromisso de apoio integral à luta antirracista, principalmente a luta por uma sociedade que enfrente as suas desigualdades históricas e estruturadas, herdeiras de uma máquina política excludente, perversa e escravista. Enfim, termino esse artigo afirmando que professores apaixonados pela docência como Wallace Moraes e Josué Medeiros não precisam fazer as pazes, serem amigos, mas conclamo que tentem um pacto de convivência pessoal, já que vão conviver na UFRJ pelos próximos 35 anos.

Também concluo dizendo que a carta pública que o professor Josué Medeiros faz pedindo desculpas ao professor Wallace de Moraes foi de bom tamanho, abrangente e sincera, e tem meu apoio, mas deve ter um desdobramento, um fato novo, como uma fala pessoal, direta ao professor Wallace Moraes.

Uma fala em que manifeste reconhecer que foi agressivo, impertinente e deselegante com o professor Wallace na reunião do dia onze de agosto de 2021.

*Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ em 2 de outubro de 2021.

Fonte: Perfil Quarentena News/Facebook
https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=402650541429548&id=109159557445316&sfnsn=mo


MPT pede afastamento de Sérgio Camargo da Fundação Palmares

Investigação concluiu que atual gestor é responsável por perseguição político-ideológica, discriminação e tratamento desrespeitoso

MPT no Distrito Federal e Tocantins

Brasília - O Ministério Público do Trabalho no Distrito Federal (MPT-DF) foi à Justiça Trabalhista e pediu o afastamento imediato de Sérgio Nascimento de Camargo da Presidência da Fundação Palmares pela prática de assédio moral.

A Ação Civil Pública, ajuizada na última sexta-feira (27/8), também requer que a Fundação Palmares não permita, submeta ou tolere a exposição de trabalhadores a atos de assédio moral praticado por qualquer de seus gestores, além de cobrar, no prazo de 180 dias, diagnóstico do meio ambiente psicossocial do trabalho, realizado por profissional da área de psicologia social.

O MPT também pede que a Fundação Palmares e seu presidente, Sérgio Nascimento de Camargo, sejam condenados, a título de reparação por danos morais coletivos, no valor de R$ 200 mil, a serem pagos de maneira solidária.

Perseguição política-ideológica:

Após um ano de investigação e de ouvir 16 depoimentos, entre ex-funcionários, servidores públicos concursados, comissionados e empregados terceirizados, o procurador Paulo Neto, autor da Ação Civil Pública, concluiu que há perseguição político-ideológica, discriminação e tratamento desrespeitoso por parte do Presidente da Fundação Palmares, Sérgio Nascimento de Camargo.

Segundo o procurador, “os depoimentos são uníssonos, comprovando, de forma cabal, as situações de medo, tensão e estresse vividas pelos funcionários da Fundação diante da conduta reprovável de perseguição por convicção política praticada por seu Presidente e do tratamento hostil dispensado por ele aos seus subordinados”.

Os fatos apurados na investigação do MPT comprovam que Sérgio Camargo persegue os trabalhadores que ele classifica como “esquerdistas”, promovendo um “clima de terror psicológico” dentro da Instituição.

Para definir quem são os “esquerdistas” da Fundação Palmares, o presidente Sérgio Camargo monitora as redes sociais dos trabalhadores e até mesmo associa o tipo de cabelo com aparência típica de “esquerdista”.

Os relatos colhidos pelo MPT também confirmam o uso recorrente de palavrões e tratamento grosseiro contra os subordinados. A situação resultou no desligamento até mesmo de servidores concursados, que pediram para sair da Fundação em virtude do clima instalado a partir da chegada de Sérgio Camargo à presidência.

A Ação Civil Pública será julgada pelo juízo da 21ª Vara do Trabalho de Brasília.

Processo nº 0000673-91.2021.5.10.0021

Fonte: Ascom/MPT
https://mpt.mp.br/pgt/noticias/mpt-pede-afastamento-imediato-de-sergio-camargo-da-presidencia-da-fundacao-palmares-por-assedio-moral


Elio Gaspari: As Polícias Militares são uma questão militar

É ali que mora a encrenca

Elio Gaspari / O Globo

O ministro da Defesa, general Braga Netto, sabe melhor que ninguém o que está acontecendo em algumas Polícias Militares. Em 2018, ele comandou a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro. Enxugou gelo, mas sentiu a temperatura. Um episódio, ocorrido no 18º BPM (Jacarepaguá), ilustra o que acontecia.

Um general do Exército foi inspecionar o quartel e, para recebê-lo, havia uma guarda formada por 20 soldados. O coronel comandante ordenou que dessem continência ao general, e uma parte da tropa fez que não ouviu. Teve de repetir: “Todo mundo”. Só então foi obedecido.

O governador de São Paulo acaba de tirar o comando de um coronel da PM que convidou os “amigos” para a manifestação de apoio a Jair Bolsonaro no Sete de Setembro. Em manifestações anteriores, ele já havia chamado o presidente do Senado de “covarde”.

Motins de PMs entraram na vida nacional há poucas décadas. Desde 2012, foram pelo menos seis e, em quatro casos, foi necessária a intervenção da tropa do Exército.

Como general, Braga Netto conhece a relação funcional e auxiliar das Polícias Militares com as Forças Armadas. Como interventor no Rio, sabe quase tudo. Como ministro do governo de Bolsonaro, conhece os projetos que tramitam no Congresso dando autonomia administrativa às PMs. Conhece até mesmo o dispositivo que cria patentes de general nessas corporações. Isso para não mencionar a familiaridade de Bolsonaro com cerimônias de policiais militares. Em 2018, ainda candidato, visitou o Batalhão de Operações Especiais do Rio e saudou a tropa com o grito de “caveira”.

A ideia de um dispositivo político amparado em simpatizantes das PMs tem duas pontas. A primeira, visível, é a militância truculenta. Isso se viu no Recife e em episódios esparsos no Rio, em Goiás e em Minas Gerais. A segunda, muito mais tóxica, é a transformação das Polícias Militares numa espécie de quarta força armada. Bolsonaro nomeou dezenas de oficiais da ativa e da reserva das PMs para cargos federais. Numa trapaça da sorte, o astucioso Luiz Paulo Dominguetti, que negociava a compra de vacinas pelo Ministério da Saúde, é um cabo da ativa da PM mineira. Essa ponta do problema está sobre a mesa do general Walter Braga Netto, atual ministro da Defesa.

Enquanto a politização das Polícias Militares segue a agenda do Planalto, ela pode ser agradável para os generais do pelotão palaciano. Trata-se de um engano, pois, uma vez politizadas, as PMs podem mudar de agenda e, quando isso acontece, fica vulnerável o poder central.

Como capitão, Bolsonaro foi um mau militar. Como presidente, colocou as Forças Armadas, ou “meu Exército”, em situações constrangedoras, como sucedeu com a gestão do general Eduardo Pazuello e de sua tropa de ocupação no Ministério da Saúde. Tratou-se de uma má experiência, mas coisas desse tipo acontecem.

Bem outra coisa é o aparecimento de manifestações políticas amparadas em convites de coronéis das PMs para dar apoio a iniciativas do Planalto.

Braga Netto tem um problema sobre a mesa: as PMs são forças auxiliares do Exército, Marinha e Aeronáutica, ou o Exército, a Marinha e a Aeronáutica podem viver situações políticas em que são forças auxiliares das PMs?

Texto original: O Globo
https://oglobo.globo.com/opiniao/as-pms-sao-uma-questao-militar-25169171


Vera Magalhães: Aprovação de Aras não garante sossego a Bolsonaro

Vera Magalhães / O Globo

Em que medida o passeio no bosque que foi a votação da recondução de Augusto Aras à Procuradoria Geral da República, nesta terça-feira, melhora o ambiente do Senado para Jair Bolsonaro?

Aras foi bem-sucedido ao conseguir descolar sua sabatina e votação em plenário do processo idêntico para a indicação de André Mendonça ao Supremo Tribunal Federal. Costurou isso laboriosamente, alertando senadores e integrantes do governo para a possibilidade de que, caso a recondução tardasse, poderia haver vacância da Procuradoria-Geral da República, com a ocupação de sua cadeira por alguém que poderia mudar os rumos da gestão atual.

E é essa nova cara do Ministério Público Federal que explica a extrema facilidade que Aras encontrou, simbolizada à perfeição pelo ridículo comitê de boas vindas armado pelo presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Davi Alcolumbre, com senadores de todos os partidos para, vejam só! -  recepcionar o sabatinado e conduzi-lo à comissão. Como esperar alguma dificuldade a partir de tão ridículo salamaleque?

Aras conseguiu o milagre de obter um apoio suprapartidário no momento mais radicalizado da polarização política do Brasil. O segredo do sucesso é justamente a desarticulação que promoveu, ao longo de dois anos, do aparato de investigação do MPF e de fiscalização da atividade dos políticos.

Sob o discurso conveniente de que combateu a “criminalização da política” promovida pelos antecessores, Aras falou o que os senadores do PT a Bolsonaro queriam ouvir. Uma coisa é combater excessos, que houve de fato, nos períodos anteriores, sobretudo sob o instável Rodrigo Janot. 

Outra é mudar a própria natureza do que a Constituição preceitua no artigo 127 como atribuições do Ministério Público, entre as quais se destaca, como síntese, a de defesa do estado democrático de direito.

No momento em que essa democracia é mais vilipendiada, Aras se omite, e os senadores assentem com essa omissão ao reconduzi-lo sem sequer admoestá-lo.

Nesse sentido, o Senado faz um favor indireto ao Planalto. Mas a votação não deve abrir caminho, por exemplo, para que o Senado, sob Rodrigo Pacheco, embarque em outras pautas obscurantistas do presidente, como o pedido de impeachment de ministros do Supremo.

Da mesma forma, André Mendonça não deverá ter sua indicação analisada antes Sete de Setembro, data que vai caminhando para ser o ensaio de uma ruptura institucional.

Senadores são claros ao estabelecer a relação: caso se confirmem as previsões sombrias, fruto de monitoramento das redes sociais bolsonaristas, de que haverá incitação à desordem e até a tentativa de invasão de prédios dos demais Poderes, adeus Mendonça.

Não seria possível, nem para os afáveis cordeirinhos da CCJ, aprovar a indicação para a mais alta Corte da Justiça de alguém que foi ministro da Justiça e advogado-geral da União de um governo que promove a arruaça cívica.

Pesa ainda contra o indicado de Bolsonaro ao STF a antipatia pessoal do mesmo Alcolumbre que estendeu um tapete vermelho para Aras.

Caso seja desarmada a bomba do Sete de Setembro, ou que ele fique circunscrito às ameaças da bolha mais fanática do bolsonarismo, o ex-AGU volta a ter as chances aumentadas. Afinal, seria inédito até para os padrões do esgarçamento das relações do governo Bolsonaro rejeitar uma indicação do Executivo para o Supremo.

E a CPI? Esta perdeu um pouco mais de força com o passeio de Aras.

Com o provável engavetador mantido na função, fica óbvio que o relatório final, por mais duro que seja, será apenas uma peça para manchetes de jornais. Ainda que o PGR tenha feito um acordo para acatar uma ou outra recomendação em troca da boa vontade dos senadores, o cerne da coisa, as imputações de crimes a Bolsonaro, deverá ir parar na lata do lixo sem chance de apelação.

Texto original: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/aprovacao-de-aras-nao-garante-sossego-bolsonaro.html


Aman, a ‘fábrica de oficiais’ por onde passa a política brasileira dos militares

A AMAN é responsável pela formação militar e pelos valores do presidente Bolsonaro e dos principais ministros que estão hoje no poder. A “tutela” da República é um dos princípios que guiam os generais

Felipe Betim, El País

Às margens da rodovia presidente Dutra, em seu quilômetro 306, um imponente portão dá acesso a uma rua que se estende por 700 metros, como se fosse um corredor, cortando um imenso gramado em direção a um edifício branco e largo de poucos andares que se assemelha a uma fábrica. Neste caso, uma fábrica de oficiais do Exército brasileiro, como é conhecida a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). A grandiosidade das instalações contrasta com a pacata cidade de Resende (RJ), onde a academia está situada. O município de 132.000 habitantes serve de dormitório tanto para a grande maioria dos 12.000 militares que circulam pela AMAN diariamente como para os trabalhadores da indústria automobilística instalada nos arredores. Mas por esse lugar, afastado dos grandes centros urbanos, a cerca de três horas de São Paulo e duas horas do Rio de Janeiro, passa a política brasileira de hoje. E talvez a do futuro.

Mais de 400 cadetes se formam todos os anos na AMAN, depois de quatro anos intensos cursando Ciências Militares —curso reconhecido como graduação universitária—, e iniciam uma carreira militar que pode levá-los ao Alto Comando do Exército. De lá saíram o presidente Jair Bolsonaro, em 1977, o vice Hamilton Mourão, em 1975, e seus principais ministros. O titular da Defesa, general Braga Netto, que ficou em evidência esta semana, formou-se em 1978. “É na AMAN que, além do treinamento militar, se incutem os valores da disciplina, hierarquia, patriotismo e honradez, além das convicções políticas”, explica o historiador José Murilo de Carvalho. “Entre essas últimas estão as que são repetidas com frequência pelos comandantes: defesa externa e interna do país, garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem”, completa. “É o que está na Constituição, cujo artigo 142 dá margem à interpretação de que as Forças Armadas têm um poder moderador sobre os outros poderes. Chamo a isso de tutela sobre a República”.


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Bolsonaro não perde a chance de confraternizar com os formandos desde seus tempos de deputado. No final de 2014, lá estava o então deputado para saudar os cadetes que concluíam sua estadia na academia. “Nós temos que mudar este Brasil, tá ok? Alguns vão morrer pelo caminho, mas estou disposto em 2018, seja o que Deus quiser, a tentar jogar para a direita este país”, disse aos formandos que celebravam o então deputado federal pelo Rio de Janeiro, logo após ser reeleito naquele ano com 464.000 votos. A promessa virou realidade nas eleições seguintes, em 2018.

Já como presidente, Bolsonaro também participou das formaturas em 2019 e 2020 ao lado de ministros e parlamentares. No ano passado, houve inclusive transmissão ao vivo da TV Brasil e comentários em tempo real de um coronel, como se fosse a cerimônia do Oscar ou de abertura das Olimpíadas. “Todos nós sabemos que o papel do militar, além daquela garantida e definida na nossa Constituição, é a nossa soberania e garantir a nossa liberdade, tão ameaçadas nos últimos tempos”, discursou na última cerimônia.

O EL PAÍS solicitou uma visita à AMAN, mas teve o pedido negado por conta das restrições da pandemia. O ambiente político dentro do complexo militar é uma incógnita, mas alguns fatos relevantes dos últimos anos dão algumas pistas do que pensam os futuros coronéis e generais do Exército.PUBLICIDADE

As últimas visitas de Bolsonaro e de seus ministros são recordadas em Resende, que o elegeu com 64,74% dos votos no primeiro turno e 74,28% no segundo. “Alguns ministros vieram almoçar aqui no restaurante”, conta o garçom Junior, que trabalha num local especializado em comida italiana. Em 2020, o prefeito —bolsonarista— Diogo Balieiro (DEM-RJ) foi reeleito com 82,57% dos votos, um recorde histórico. Se em 2017 Balieiro tomou posse no tradicional Colégio Salesiano, neste ano a cerimônia aconteceu em um teatro da AMAN —um sinal não só da importância da academia para a cidade, mas também de seu papel político. “Eu vim pra cá há 20 anos e demorou até que eu fizesse amigos. Não é como no Rio ou em São Paulo. Por conta do militarismo, as pessoas são muito fechadas”, explica o mesmo garçom, sobre a influência dos militares na vida da cidade.

Vista da cidade de Resende (RJ), cidade onde fica a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), no dia 24 de junho de 2021.
Vista da cidade de Resende (RJ), cidade onde fica a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), no dia 24 de junho de 2021. Foto: Felipe Betim/El País

Nas ruas do centro de Resende, construído às margens do rio Paraíba do Sul, a cinco minutos da rodovia Presidente Dutra, é possível ver os fardados circulando a partir de 18h, quando terminam o expediente. Eles são discretos, geralmente andam em grupo e muitas vezes são desconfiados ao conversar com alguém, segundo relatos ouvidos por este jornal. Como muitos são de cidades distantes, acabam alugando um apartamento ou dividindo residência com outros colegas do Exército. Para os cadetes, as restrições são maiores. Eles vivem em alojamentos na AMAN e, no primeiro ano, só podem deixar a academia nos finais de semana. Conforme avançam de ano, ganham mais liberdade para deixar o complexo militar. “Durante a semana eles vão ao shopping para comer algo. Nos dias de folga, muitos aproveitam para dormir, porque a rotina é muito puxada, ou para sair com familiares que chegam até a cidade para visitá-los”, afirma uma recepcionista. “Quando eles saem para um bar ou se divertir, ficam todos juntos numa mesa grande”, afirma a comerciante de um shopping.

O principal ponto de encontro dos cadetes nos finais de semana é o Resen Bar, um boteco de mesas vermelhas na calçada também conhecido como o “bar da tia”. A tia é uma senhora que se chama Rose e que vive há 14 anos em Resende. “É um momento deles de relaxar. Mas são muito disciplinados até na hora de se divertir. Nunca vi falarem de política, mesmo em eleições”, conta ela, que garante nunca ter tido nenhum tipo de problema com os frequentadores do local. A farda não é permitida em local como bares, mas, mesmo assim, eles não interagem muito com outras pessoas. “Estão sempre juntos, em grupo”, afirma Rose, repetindo a frase dita por outros moradores escutados pelo EL PAÍS. Querida entre muitos jovens na cidade, não apenas os militares, ela conta que oferece todo fim de ano um almoço para os cadetes que estão se formando. Nas paredes de seu bar estão mensagens de agradecimento deixadas pelos que se tornam aspirante a oficial. “Me escolheram, não sei por quê. São como meus filhos, me identifico muito com eles”.

A “bolha” da AMAN
A “fábrica de oficiais” foi instalada em Resende em 1944, há 77 anos, com o intuito de afastar os futuros oficiais da agitação política da capital Rio de Janeiro. Pelos 67 quilômetros quadrados da AMAN circulam cerca de 12.000 pessoas por dia. A estrutura inclui vilas militares com mais de 500 casas para oficiais e seus familiares, além de alojamentos para 1.800 cadetes. Características de uma pequena cidade, como tratamento de esgoto, igrejas e hospitais, convivem com os elementos básicos de uma academia militar, como um complexo de tiro para o treinamento de atiradores de elite e áreas para o treinamento militar.

“É uma bolha. Como os cadetes estão longe de suas famílias, eles ficam muito imersos naquele mundo da academia, no convívio com outros cadetes e com os oficiais, que são seus instrutores”, explica Mauricio Santoro, professor de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2008, ele ajudou a implantar a disciplina na AMAN e deu aula para os cadetes nos anos seguintes. “Isso é preocupante, eu acho. Acabam tendo ali um nível de isolamento nesses anos decisivos”, completa. Uma possível solução para isso seria promover uma maior interação entre militares e civis desde os primeiros anos de formação, abrindo a possibilidade de que futuros oficiais possam fazer sua graduação em universidades brasileiras ao invés de somente a AMAN.

Para o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza, que nos últimos tempos vem criticando o envolvimento das Forças Armadas na política, os militares da ativa e da reserva que ocupam cargos no Governo Bolsonaro —e que um dia também foram instrutores na AMAN— passam “um mau exemplo” para os jovens cadetes. “Infelizmente, essa juventude que está na academia já começa a sofrer os efeitos dessas influências negativas”, diz Pimentel. “Não porque aprendem isso lá dentro, mas porque observam o comportamento político das lideranças militares, que até ontem dirigiram as Forças Armadas, e passam a torcer por elas”, explica. Ele cita uma conversa com um jovem tenente em que mostrava onde estavam posicionados no Governo os oficiais de sua geração. Eram companheiros de turma, pessoas que ele comandou ou que o comandaram. Hoje estão em ministérios, autarquias, agências reguladoras... “Ele concordou que havia ali um aparalhamento, mas que o ‘outro lado’, quando governava, fazia o mesmo”. A conclusão é a de que o jovem já se considerava como parte de um grupo político que havia subido ao poder. Mas Pimentel reitera que o problema não está nas baixas patentes, onde “todos são muito bem formados e disciplinados”, mas sim entre os superiores. “São os generais que estão causando crises disciplinares”, afirma.

O general e ministro da Defesa Walter Braga Netto e o presidente Jair Bolsonaro, em fotografia tirada após uma reunião em Brasília em 22 de julho.
O general e ministro da Defesa Walter Braga Netto e o presidente Jair Bolsonaro, em fotografia tirada após uma reunião em Brasília em 22 de julho. Foto: Adriano Machado/Reuters/El País

Apesar de não ter notado um ambiente político carregado em seus anos dando aula na AMAN, Santoro respalda essa ideia do “mau exemplo” que vem de cima: “Os cadetes olham para os ministérios e veem muitos militares, alguns inclusive da ativa. Isso por si só já cria uma série de expectativas, de valores, de possibilidades de carreira”, explica. Mas há outras evidências do que pensam os cadetes que se formam na academia. Em sua tese de mestrado sobre a “construção da identidade oficial do Exército”, publicada em 2012, o coronel Denis de Miranda mostrou que, entre as baixas patentes, 63,5% dos entrevistados para sua pesquisa concordam com a ideia de que “cabe ao Exército agir, mesmo que politicamente, quando a Pátria estiver em perigo”. O índice vai caindo nos setores com mais anos de serviço na corporação, chegando a 48,7% entre os mais velhos —uma cifra ainda alta.

Posteriormente, em sua tese de doutorado sobre o processo de socialização militar, publicada em 2019, o mesmo coronel descreve a academia como “uma escola que segue princípios conservadores, necessariamente, porque o Exército assim espera”. A mudança, explica ele, existe, mas deve ser bem lenta. Por exemplo, somente a partir de 2016 a instituição passou a aceitar mulheres. “É desde o berço da formação do oficial que os profissionais combatentes adquirem o espírito militar e suas marcas conservadoras”, explica.

Para entrar na academia é preciso prestar um concurso nacional dificílimo com o objetivo de, primeiro, ingressar na A Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), em Campinas (SP). Somente depois de um ano, em que devem apresentar boas notas e um bom rendimento acadêmico e físico, é que iniciam a graduação em Ciências Militares na AMAN. A pesquisa do coronel também demonstrou que a maioria dos cadetes que ingressaram na academia em 2016 era branca (56,53%) e vinha de famílias com rendimento mensal de quatro a 15 salários mínimos (69,39%). Entre 2016 e 2019, 76% deles eram provenientes, em média, das regiões Sul e Sudeste. Cerca de 40% possuem militares na família e buscam, ao entrar no Exército, estabilidade na carreira para o resto da vida.

Santoro, o professor da UERJ que deu aulas na AMAN, destaca que o Exército “nunca se considerou uma força politicamente neutra”, e que os oficiais sempre se viram com um papel de destaque muito grande na formação da sociedade brasileira. “Existe essa ideia de que são guardiões de um conjunto de valores, de que a sociedade civil perdeu valores que os militares conservam”, explica. “O que vimos ao longo dos últimos cinco anos, com uma série de crises políticas no Brasil, foi que uma taxa muito grande da população comprou essa ideia de messianismo”, acrescenta. Havia um processo de profissionalização das Forças Armadas desde o fim da ditadura militar que foi cortado. Elas voltaram a ter um papel político. E, para o professor, isso impacta na formação dos cadetes mesmo que Bolsonaro não comparecesse em suas formaturas.

Como esses elementos se refletem em suas opiniões sobre o Governo Bolsonaro? Entre parte dos oficiais de baixa patente que dão expediente nos quartéis de Brasília, onde ficam os principais postos de comando do Exército, o mandatário é visto como um dos poucos capazes de evitar que o petismo volte ao poder. Por essa razão, ainda tem tanto suporte. “Nós o apoiamos não é por ser militar. Ele é mais político do que militar, mas ao menos ele não é corrupto como os petistas”, disse um tenente ouvido pela reportagem.

Como não podem conceder entrevistas sem autorização de seus superiores, tampouco emitir opinião política, todos os oficiais ouvidos na capital federal pediram para manter seus nomes sob sigilo. Um capitão e um major que tomavam uma cerveja em um bar nas proximidades do quartel onde trabalham, depois de uma pelada de futebol, concordaram com o argumento do colega de farda. “Só uma terceira via seria capaz de fazer com que não votemos no Bolsonaro em 2022”, disse um deles. “Como ela não aparece, vamos nele, mesmo”, completou o outro.

E como avaliam sua gestão? “Ele é um ogro, não tem o mínimo de educação. Mas queremos um presidente honesto, não um marido. Nesse quesito, acho que errou na pandemia, mas tem acertado em outros setores, como na economia”, afirmou o major. “Neste ponto, discordo dele. Acho que nenhum presidente saberia lidar com essa pandemia”, declarou o capitão.

Outro major entrevistado pela reportagem disse que pouco se importa com a política. Para ele, basta saber que o soldo —o salário dos militares— está caindo em dia e que não haja tanta interferência na economia ao ponto de atrapalhar os seus investimentos financeiros. “Sou de uma geração que pensa no futuro. Se o governante não atrapalhar a evolução das ações que invisto, já está bom para mim”. Mas e a consciência social? “Já faço muito pelo meu país servindo ao Exército. Com certeza, é mais do que muita gente”, respondeu o oficial.

Ainda assim, o historiador José Murilo de Carvalho acredita que a possível politização das baixas patentes ainda é uma especulação. Bolsonaro, explica ele, “tenta politizar, fala do ‘meu Exército’, mas o tiro pode sair pela culatra. Nada pior para as Forças Armadas do que a politização de seus quadros, o que leva à quebra da disciplina e da hierarquia. E não há evidência de que isto esteja acontecendo no Exército”.

Com informações de Afonso Benites, em Brasília


'Pesquisadores vivem ameaças como na ditadura'

Radicada na Bélgica, professora da USP que estuda papel nocivo dos agrotóxicos na produção de alimentos diz que ficou impossível permanecer no Brasil em meio a "terrorismo psicológico"

Edison Veigas, DW Brasil

Foram dois anos em que a geógrafa brasileira Larissa Mies Bombardi, professora da Universidade de São Paulo (USP), não conseguia dormir em paz. O pesadelo começou com o lançamento, na Europa, da versão em inglês do seu atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia.

Ao levar para fora do país o cenário dos agrotóxicos na produção de alimentos no Brasil, ela contribuiu para aumentar a pressão internacional sobre o setor. "A maior rede de orgânicos da Escandinávia passou a boicotar produtos brasileiros por conta do meu trabalho", relata.

A geógrafa passou a viver uma rotina de ameaças e enfrentou uma série de posicionamentos contrários de instituições ligadas ao setor agropecuário.

"Teve um e-mail de uma pessoa que se identificou como piloto de avião. Era uma mensagem muito ambígua, falava que 'se a professora diz que pulverização aérea não é uma coisa segura, então eu convido a professora a dar uma voltinha no avião pra ver como tem segurança'", conta.

No ano passado, sua casa foi assaltada. Bombardi tomou a decisão de sair do país. Transferiu-se para a Bélgica e segue sua carreira acadêmica na Universidade Livre de Bruxelas. Em entrevista à DW Brasil, ela dá detalhes sobre as ameças sofridas.

DW Brasil: Ameaças e um assalto… Quando você percebeu que era hora de deixar o Brasil?
Larissa Mies Bombardi: Depois que eu lancei em inglês o atlas [Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia], em 2019, foi a primeira vez que perdi o sono. Entendi que havia um risco e começaram as intimidações, umas mais veladas, outras menos. Precisava me proteger, proteger meus filhos e ficar fora do Brasil.

Pode descrever alguma ameaça que recebeu?
Foram várias coisas, mas teve um e-mail de uma pessoa que se identificou como piloto de avião. Era uma mensagem muito ambígua, falava que "se a professora diz que pulverização aérea não é uma coisa segura, então eu convido a professora a dar uma voltinha no avião pra ver como tem segurança". […] Então a maior rede de orgânicos da Escandinávia [a Paradiset, da Suécia] passou a boicotar produtos brasileiros por conta do meu trabalho. Um professor da USP, Wagner Ribeiro, falou que eu não podia lidar com isso sozinha.

Como a USP se posicionou?
Esse professor contatou a diretora da faculdade [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a FFLCH], que nos recebeu e pediu um dossiê. Na manhã seguinte, ela contatou o reitor, que concordou que eu precisava deixar o país, seguir por um período meu percurso acadêmico fora. A reitoria se mostrou sensível e ofereceu a guarda universitária para me proteger. Não quis, achei que emocionalmente seria muito pesado lidar com isso. Recebi orientações de lideranças de movimentos sociais para evitar as mesmas rotinas, os mesmos caminhos.

No fim do ano [de 2019], fui convidada a falar no Parlamento Europeu, numa conferência sobre o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia. Ali me falaram que lidar com esses temas no Brasil era muito perigoso. Eu respondi que nunca tinha sido efetivamente ameaçada. "Mas não precisa, as coisas não acontecem com aviso sempre", ouvi de volta.

Fiquei gelada, mas ainda falei: "Sou professora universitária, branca, tenho esse viés de classe e, infelizmente, do racismo estrutural que existe no Brasil." Ouvi então que "Zuzu Angel [(1921-1976), estilista, vítima da ditadura brasileira] também era branca". O plano passou a ser me mudar [para a Europa] em março [de 2020]. Mas aí veio a pandemia, precisamos adiar.

Em agosto do ano passado, sua casa foi assaltada… Acredita que uma coisa tenha relação com a outra?
Nunca vou saber se foi relacionado ao meu trabalho ou não. Mas levaram pouquíssimas coisas, o laptop que eu usava, que era velho. Não tinha sentido, estava defasado. Mas vasculharam minha casa por três horas, mantendo minha mãe e me mantendo sob tortura psicológica. Foi horrível. Vasculharam a casa inteira. Foi muito pesado, mas não sei se tem a ver com uma tentativa de intimidação ou com uma busca de dados.

Você está na Bélgica neste ano de 2021. Segue vinculada à USP?
Aprovei um projeto de pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas, é um projeto sobre green criminology na Amazônia, um trabalho sobre conflitos ambientais. A reitoria [da USP] autorizou meu afastamento e estou trabalhando neste tema. Em maio lancei um novo atlas no Parlamento Europeu sobre as relações comerciais entre Mercosul e União Europeia. Chama-se Geografia das assimetrias, colonialismo molecular e círculo de envenenamento.

O que significam esses conceitos?
Mostro esse lugar de colônia que o Mercosul ocupa dentro da economia mundial, em especial na relação com a União Europeia. Colonialismo molecular, porque, se antes havia esse saque das riquezas naturais da América Latina, agora ele continua mas não é só um impacto físico, é um impacto químico, por causa dos agrotóxicos. Colonialismo molecular porque essas substâncias atingem nossas moléculas, causam um dano sem precedentes, de uma crueldade que a gente nunca tinha visto.

Essa suposta modernidade da agricultura, ela traz um ônus que nos oblitera, que potencialmente altera nossos corpos por conta de substâncias que não são autorizadas na União Europeia mas são vendidas por empresas da União Europeia, sem pudor em vender [para países como o Brasil] substâncias que são proibidas em seus próprios países por conta dos danos à saúde e ao meio ambiente.

Como foi a pressão sofrida quando você publicou uma pesquisa relacionando a covid-19 à suinocultura?
Publicamos no ano passado dois artigos sobre as possíveis correlações entre suinocultura e covid-19. Vimos uma certa correspondência espacial em Santa Catarina, ou seja, áreas com maior densidade de criação de porcos também eram áreas com maior número de casos, proporcionalmente, de covid. Ficou um trabalho interessante, mas apenas levantamos a hipótese de que os vírus não teriam sido trazidos pelos morcegos, mas pelos porcos, via morcegos, já que há muitas similaridades [dos humanos] com os porcos. E os porcos vivem praticamente imunodeprimidos, com todos os animais criados de maneira intensiva. Eles não têm como exercer seus hábitos mais básicos e então — vou falar com cuidado, entre aspas — eles "podem ser" laboratórios de vírus. São animais que defecam e comem no mesmo local […].

Associação Brasileira de Proteína Animal escreveu uma carta para a USP [desqualificando o trabalho da professora], a Embrapa também produziu uma nota técnica… Mas a gente estava trabalhando com uma hipótese, em momento algum afirmando ser algo definitivo. Encerramos o texto dizendo que é preciso mais pesquisas. Não tem outro jeito de caminhar na ciência se não for buscando hipóteses, né? É assim que a gente caminha. Estou há quase 15 anos na USP e nunca vi isso de perto, como estou vendo. Essa atmosfera invasiva das entidades se acharem no direito de contestar pesquisa, de fazer ameaça… Isso é ameaça à minha carreira.

Você se considera exilada?
Sim, de alguma forma me considero exilada porque [faz uma longa pausa] simplesmente ficou impossível permanecer no Brasil lidando com essa temática. É um terrorismo psicológico gigante, e eu precisava proteger a mim e aos meus filhos. Foi um alívio gigante sair do Brasil, e isso ilustra a condição de exílio.

Está muito desesperador e eu sei que não sou só eu, há outros pesquisadores que passam por coisas parecidas, de ameaças institucionais a ameaças externas. Isso ficou muito claro a partir do governo [do atual presidente Jair] Bolsonaro, ficou nítido. É uma indecência, a gente não tem tranquilidade para fazer pesquisa. A última vez que a gente viu isso foi quando? Na ditadura. A única diferença é que agora aparentemente vivemos num regime democrático. Mas, no fundo, estamos vivendo um período de exceção.

Planeja um dia voltar ao Brasil?
Não. Pelo menos não até o fim deste governo.


Zulu Araújo: Primeira prefeita negra de Cachoeira (BA) é ameaçada de morte

Considerada uma joia do Patrimônio Cultural Brasileiro, desde 1971, com belos casarões e igrejas e com bens tombados pelo IPHAN desde 1940, Cachoeira, cidade histórica do Recôncavo Baiano, vive hoje momentos de terror. A prefeita Eliana Gonzaga, primeira mulher e primeira negra eleita para governar a cidade está sendo ameaçada de morte por milicianos políticos. O caso é tão grave que o Governo do Estado da Bahia determinou que a mesma tivesse escolta militar dia e noite.

O drama da prefeita e da cidade começou no dia 15 de novembro de 2020, quando ela, juntamente com sua vice Cristina Pereira, venceram as eleições para a prefeitura com mais de 2.500 votos de vantagem, num universo de 18 mil votos, numa vitória histórica. O derrotado que concorria pela quarta vez a prefeitura foi um grande empresário da região e que continua inconformado. Por conta dessa vitória, Cachoeira não teve mais sossego desde então.

Para quem não sabe, a cidade tem uma importância histórica para a Bahia e o Brasil. Em 25 de junho de 1822, por meio da Câmara Municipal de Cachoeira foi declarada a verdadeira Independência do Brasil e o inicio das sangrentas batalhas que culminaram com a expulsão dos portugueses da Bahia e a declaração de sua independência no dia 2 de Julho de 1823. Por conta dessa atitude corajosa a Cachoeira é conhecida como “Cidade Heroica”.

Se não forem adotadas medidas urgentes e rigorosas contra esses milicianos, Cachoeira pode viver mais uma tragédia. Pois as ameaças não são de brincadeira. Dois dos apoiadores da campanha eleitoral da prefeita já foram assassinados em plena luz do dia sem que até o momento se tenha conhecimento dos autores. São eles, Ivan Passos (morto dois dias após as eleições e Gerolando Silva, assassinado com 10 tiros, em frente à delegacia local.).

Importante dizer que Cachoeira é uma cidade eminentemente negra, com mais de 80% da população de origem africana. Onde os terreiros de candomblés tem uma forte presença, assim como a famosa Irmandade da Boa Morte que é liderada por negras sexagenárias da cidade e encanta o mundo inteiro. Ainda assim, nunca uma mulher negra havia sido eleita para dirigi-la. Ao que parece o racismo e a misoginia se juntaram para impedir que a vontade da população seja respeitada.

“Eu não vou renunciar. Eu não tenho medo. Junto com os meus ancestrais, aqui também pulsa a veia sindical, e muito forte e não sou covarde. A veia do sindicalista não recua”, disse a prefeita, que já foi feirante, líder sindical e vereadora na cidade por dois mandatos. Ela também tem recebido apoios importantes, tanto de entidades do movimento negro baiano, a exemplo da Unegro, do Movimento de Mulheres e de parlamentares de todas as matizes, como a deputada federal Lidice da Mata, que denunciou as ameaças durante audiência na Procuradoria da Mulher da Câmara Federal. Enfim, essa luta também é nossa, afinal, não podemos permitir que uma nova Marielle Franco se materialize na nossa querida Cachoeira.


Ancelmo Gois: 'Os racismos brasileiros são perversos', diz o historiador Alberto da Costa e Silva

Dia 12 de maio, agora, o historiador Alberto da Costa e Silva completará 90 anos. Vai comemorar lançando, mais uma vez, um livro sobre sua paixão: a África. A “A África e os africanos na história e nos mitos”, pela Nova Fronteira, inclui Mansa Musa, rei do Mali, que em pleno século XIV acreditava que o Atlântico tinha outra margem, o Brasil.

Aqui, na semana em que foi condenado o policial branco que matou George Floyd, o grande historiador aborda o racismo nos EUA e no Brasil:

“Os racismos brasileiros não possuem as mesmas formas que os dos norte-americanos. Pode-se escrever um livro grosso, para mostrar as diferenças. Mas os racismos brasileiros são perversos, ainda quando dissimulados ou indesejados. Ouçamos o que dizem os negros, e até mesmo os poucos que consentimos serem bem sucedidos na vida. Uma das diferenças é definir quem é negro. No Brasil, é predominante uma questão de aparência; nos EUA, de ascendência.

Faz algum tempo, um importante político brasileiro, um daqueles de quem temos saudade, me dizia, a propósito, o seguinte: ‘Eu sempre fui considerado branco, e tratado como tal; meu irmão, que é escuro, sempre foi tido por negro. Somos ambos mulatos, com o mesmo pai e a mesma mãe’. Outro exemplo: um artista norte-americano que viveu alguns anos no Brasil, enviava os seus trabalhos semanalmente para os Estados Unidos e de lá recebia o pagamento em dólares.

Perguntei-lhe certo dia, numa roda de amigos, por que estava vivendo no Brasil. E ele respondeu prontamente: ‘Porque nos EUA sou negro, e no Brasil, sou branco, e é enorme a diferença. Aprendemos a ser racistas quando crianças. A escola fortalece (ou até bem pouco fortalecia), ao fazer um retrato negativo do africano, de sua arte e de sua história e do papel fundamental dos africanos na formação do Brasil’’’.


Irapuã Santana: Uma boneca negra; um sorriso negro

Representatividade e inclusão importam. Esse precisa ser nosso ponto de partida em comum para iniciar um debate que, à primeira vista, parece desimportante, mas é, ao contrário, um planejamento de futuro da maior parcela da população brasileira: a mulher negra. Ela representa algo em torno de 27% de todos os brasileiros, segundo a PNAD do IBGE.

Entretanto o mercado não oferece o mínimo razoável de opções para um nicho das bonecas, que tem gerado bons dividendos para quem nele investe. Em 2018, a linha correspondia a 19,2% do total de faturamento, que chegou em 2019 a mais de R$ 7 bilhões, conforme o último relatório da Abrinq.

Com um cenário tão favorável, a lógica seria haver uma seção específica para bonecas negras, atendendo a esse mercado consumidor. Todavia elas correspondem a somente 6% da totalidade das fabricadas e 9% das comercializadas em lojas on-line, de acordo com a ONG Avante, que elaborou um relatório sobre essa triste realidade das meninas negras brasileiras.

Ao entrar numa loja de brinquedos, a criança, que precisa de um referencial para construir sua autoimagem, não tem acesso ao mínimo. Dentro de uma perspectiva psicológica, a mudança ocorrida a partir do contato com um brinquedo parecido consigo mostra a oportunidade de sonhar mais concretamente, gera uma sensação de pertencimento, que traz efeitos de maior segurança para desenvolver suas potencialidades no futuro.

Infelizmente, o Brasil revela a cruel exclusão do negro, desde o início da vida, com a ausência de opções. Se não somos vistos nos lugares, evidencia-se que esses espaços não são para nós.

Mas, se tem mercado consumidor e demanda, qual a justificativa racional para tamanho desperdício de oportunidade?

Por isso, é importante buscar diversidade na oferta, tendo em vista que nossas crianças querem ser vistas, ouvidas e incluídas na sociedade como um todo. Mas é necessário ir além: não basta colocar qualquer boneca, com qualquer história por trás. O imprescindível é levar boas referências para as meninas negras, com princesas e heroínas, médicas e engenheiras, advogadas e juízas...

Mas, para que isso ocorra, é relevante também estar atento para não impedir o acesso dos mais pobres a esse tipo de bem. Uma rápida pesquisa em sites de lojas de brinquedo apresenta um fenômeno perverso relativamente ao preço das bonecas negras, que acaba sendo elevado significativamente, em comparação com as brancas, pelo fato de serem raridade nas prateleiras.

Felizmente, a própria comunidade negra, ciente de suas necessidades, vem trabalhando no sentido de valorizar a produção e a comercialização do brinquedo voltado para um público tão grande quanto especial. Isso já foi sentido pelas grandes marcas, que também abriram espaço a novas personagens e a novas linhas de atuação.

Portanto, devemos fortalecer tais iniciativas e fazer com que elas possam crescer e florescer, levando o encanto dos sonhos, fazendo nascer sorrisos genuínos nos rostos de nossas lindas meninas negras.