Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman: Democracia na América

Sistema eleitoral nos EUA é pouco republicano e ruim de apurar

Se fizéssemos um concurso para escolher o pior sistema eleitoral do planeta, teríamos dificuldades para projetar algum que superasse o americano. Ele é pouco republicano (os votos dos cidadãos não têm o mesmo peso), ruim de apurar e multiplica por 51 a probabilidade de resultados apertados que podem dar margem a contestações. Ainda assim, não vejo como se possa afirmar que os EUA não são uma democracia.

E isso nos leva ao tema da coluna de hoje: boas leis ajudam a criar um ambiente favorável à democracia e a outras virtudes públicas, mas é possível exercê-las mesmo se as leis não forem muito boas. Temos um justificado fetiche por protocolos e normas escritas que tanto nos facilitam a vida, mas eles são só a face mais visível da institucionalidade, que, ao fim e ao cabo, tem mais a ver com os comportamentos e atitudes adotados no mundo real do que com sua codificação.

Isso nem deveria ser uma surpresa. O Reino Unido e Israel são democracias mesmo sem dispor de uma constituição escrita. No polo oposto, a constituição soviética de 1936 era ótima no capítulo dos direitos e liberdades, o que não impediu a URSS de ser uma ditadura.

Nada disso era segredo para Tocqueville, que, em sua obra clássica, identificou nas atitudes da sociedade civil a força da democracia na América. Podemos ter visto uma demonstração disso na reação de cidadãos, empresas e instituições à tentativa de Trump de melar as apurações.

O presidente transpôs uma linha vermelha, porque até políticos aliados e órgãos de comunicação simpáticos ao magnata rejeitaram com veemência seu discurso delirante sobre fraudes. Redes de TV aberta chegaram a interromper a transmissão de sua fala. Algo parecido se deu nas redes sociais. Órgãos federais, como a FAA (agência federal de aviação) e o Serviço Secreto, em tese subordinadas a Trump, já começaram a proteção do virtual presidente eleito —sem perguntar nada para o chefe.


Hélio Schwartsman: O que deu errado?

Trump driblou os caciques para ser indicado pelos republicanos à Presidência

Donald Trump não perdeu de lavada. O que isso diz sobre os EUA em particular e sobre o mundo em geral? Não faltavam motivos para votar contra o presidente americano. Para começo de conversa, ele é um mentiroso compulsivo que não tem o menor respeito por minorias nem pelas instituições, incluindo a própria democracia.

Como se não bastasse, sua gestão foi um fracasso frente à pandemia de Covid-19, tendo transformado os EUA num dos países mais mortíferos do planeta. A economia, que poderia ser uma razão plausível para votar em Trump, ia bem até a chegada do vírus, mas, desde então, entrou em forte recessão.

Em tempos normais, bastaria um desses fatores para arrasar qualquer tentativa de reeleição e afundar o partido que a patrocinasse. Mas não estamos em tempos normais nem lidando com um candidato normal. Trump foi um postulante competitivo, e o Partido Republicano não foi mal no pleito, sendo grandes as chances de conservar maioria no Senado e até de ampliar suas cadeiras na Câmara. Como é possível?

Uma das características da atual leva de líderes populistas é que eles parecem ter o dom de levar eleitores a desapegar-se de fatos e da ideia, tão central para a democracia, de punir governantes por maus resultados.

A pergunta relevante, então, é como um sujeito com as características de Trump, tão pouco afeitas à tradição do presidencialismo americano, conseguiu chegar à Casa Branca?

Cada país tem seu conjunto de salvaguardas para impedir que políticos muito controversos conquistem o poder. Em presidencialismos mais modernos, há o segundo turno. Deu errado no Brasil, mas funcionou na França.

Nos EUA, a função de "gatekeeper" cabe aos partidos políticos. O sistema falhou quando uma figura como Trump driblou os caciques e conseguiu a indicação dos republicanos para disputar a Presidência em 2016. Já há quem fale que ele pode voltar em 2024.


Hélio Schwartsman: Por uma pitada de cosmopolitismo

Esquerdas se ocuparam da pauta identitária e esqueceram o discurso universalista

Uma explicação recorrente para o populismo de direita no mundo rico é a globalização e a desigualdade. A transferência de postos de trabalho dos países desenvolvidos para os emergentes fez com que a classe trabalhadora do primeiro grupo de nações não se beneficiasse tanto dos ganhos econômicos das últimas décadas. Sentindo-se abandonado, esse contingente populacional, que antes se identificava com partidos mais à esquerda, passou a flertar com coisas como o brexit e Donald Trump, dando-lhes eventuais vitórias.

Não discordo dessa explicação, mas reluto em comprar seu corolário, isto é, a ideia de que a globalização é um processo concentrador, disruptivo e que deve ser combatida.

O deslocamento de postos de trabalho para emergentes, em particular para China e Índia, é responsável por tirar milhões de pessoas da miséria. O abismo entre países ricos e pobres, embora ainda profundo, se reduziu. Até a pandemia, em nenhum outro período da história a proporção de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza havia sido tão pequena.

A pergunta que se coloca é se devemos adotar a visão mais paroquialista, na qual a globalização é o vilão, ou a mais cosmopolita, na qual ela é um passo para a redução das desigualdades.

Não escondo minha simpatia pelo cosmopolitismo, mesmo sabendo que nossos cérebros estão mais calibrados para o localismo. Vou um pouco mais longe e arrisco dizer que o grande erro das esquerdas nos últimos anos foi ter sucumbido tanto às pautas identitárias, esquecendo o discurso universalista.

Não que isso alteraria os resultados econômicos, mas poderia afetar a psicologia. Trabalhadores brancos sem diploma superior que dão duro para viver provavelmente não se sentiriam tão abandonados se os partidos em que sempre cofiaram viessem com um discurso que defendesse os direitos de todos, em vez de dizer que eles são privilegiados por não serem mulheres nem negros.


Hélio Schwartsman: 'Je suis Samuel Paty'

Liberdade de expressão faz parte das inovações que puseram Europa na rota da tolerância

Estou com Emmanuel Macron. O Ocidente não pode desistir de princípios como a liberdade de expressão só porque certas palavras e desenhos ferem suscetibilidades religiosas. A liberdade de expressão faz parte do pacote de inovações, primeiro cognitivas e depois institucionais, que colocaram a Europa na rota da ciência, da prosperidade e da tolerância.

Uma das coisas que mais me chocou quando do atentado contra o semanário satírico francês Charlie Hebdo, em 2015, que deixou 12 mortos, foi que várias vozes respeitáveis da sociedade civil condenaram o ataque, mas fizeram questão de acrescentar que o estilo excessivamente irreverente e provocativo da publicação havia chamado a tragédia para si.

A nova crise, que já contabiliza um saldo de dois atentados, o assassinato do professor Samuel Paty e o ataque a uma Igreja Católica em Nice, mostra os limites do raciocínio contemporizador. O professor Paty não tinha a intenção de provocar ninguém. Ele estava apenas explicando o conceito de liberdade de expressão. Antes de exibir as charges retratando o profeta Maomé, alertou os alunos muçulmanos para o potencial ofensivo dos desenhos e os convidou a deixar a sala, se quisessem. Tal cuidado não o impediu de ser decapitado por radicais islâmicos.

O problema, portanto, não está na atitude daqueles que criticam religiões, mas no fato de certos grupos não aceitarem o mais básico dos princípios do pacto civilizatório, segundo o qual diferenças são resolvidas sem recurso à violência física.

Ninguém pede que os muçulmanos aplaudam as charges. Eles têm todo o direito de criticá-las e os seus autores. Podem xingá-los. Podem até, como estão fazendo, promover boicotes a produtos franceses, mas não podem matar uma pessoa porque não gostam do que ela diz ou desenha. Quer dizer, até podem, como mataram, mas, ao fazê-lo, saem do pacto civilizatório para tornar-se terroristas.


Hélio Schwartsman: Ponto para a democracia

Chile transformou Constituição com forte vício de origem em experiência real de democracia

Símbolos importam. E os chilenos foram claros quanto a isso ao determinar, por uma margem de quase 80%, que a atual Carta, herança da ditadura de Pinochet, seja substituída por uma nova, a ser elaborada por uma convenção constitucional exclusiva. Ponto para a democracia.

No mundo da vida prática, porém, o Chile, apesar da origem espúria da Carta, já era uma democracia sólida, com alguns ciclos de alternância de poder entre esquerda e direita. Os aspectos mais autoritários da Constituição foram extirpados por uma série de emendas aprovadas ao longo dos anos, notadamente em 1989 e 2005. Não teria sido impossível persistir nesse caminho.

Aliás, num cálculo puramente numérico, será mais difícil aprovar a nova Carta do que emendar a velha. Pelas regras em vigor, algumas matérias constitucionais exigem maioria de 3/5 dos parlamentares para ser modificadas, e outras, as mais sensíveis, de 2/3.

Pelas regras da convenção, só irão para o novo texto constitucional artigos aprovados por 2/3 dos constituintes, e, ao fim dos trabalhos, o projeto ainda terá de ser chancelado pela população em plebiscito.

Outro aspecto interessante do processo constitucional é que será o primeiro no mundo a ser conduzido por uma convenção paritária, com 50% de mulheres e 50% de homens. Achei um pouco autoritário não terem dado aos eleitores chilenos a oportunidade de exercer uma escolha ativa diante de algo tão novo (a opção pela convenção exclusiva já vinha com a paritária), mas são os tempos em que vivemos.

Meu ponto é que constituições são uma parte importante da democracia, mas nem de longe o jogo inteiro.

Há Cartas que são ótimas no papel, mas que na vida real não geram nada parecido com uma democracia, e há casos como o do Chile, que conseguiram transformar uma Constituição com forte vício de origem numa experiência real de democracia. Símbolos importam, mas a prática também.


Hélio Schwartsman: E quando a ordem é absurda?

Civis ou militares, estamos todos obrigados a avaliar a moralidade de nossas ações

Em junho, o presidente Jair Bolsonaro proclamou que as Forças Armadas não cumprem ordens absurdas. Penso que ele tem razão. O direito internacional também. Pelo menos desde os Julgamentos de Nuremberg, ficou estabelecido que a obediência a ordens de superiores não isenta o agente de responsabilidade penal por suas ações.

Assim, se o tenente manda e o soldado atira na nuca do suspeito rendido, ambos cometem homicídio qualificado. Se o presidente manda e o ministro some com a papelada incriminadora, os dois infringem a lei. Estar abaixo na hierarquia pode no máximo ser considerado circunstância atenuante.

Não há escapatória, civis ou militares, estamos todos obrigados a avaliar o tempo todo a moralidade de nossas ações.

Diante disso, o general Eduardo "um Manda e o Outro Obedece" Pazuello, ministro da Saúde, pode ficar em maus lençóis. O militar, ainda nos quadros da ativa do Exército, acatou determinação do presidente de encerrar colaboração com o Instituto Butantan para a aquisição de uma vacina chinesa contra a Covid, a Coronavac. Foi uma ordem absurda?

A questão é traiçoeira. Não penso que governos precisem fazer compras antecipadas de um imunizante que ninguém sabe se vai funcionar. O terreno é suficientemente incerto para não gerar obrigações. Mas é importante atentar para o fato de que a administração Bolsonaro já firmara um acordo desses para obter a vacina da Universidade de Oxford.

O presidente até pode sustentar que o acerto deve valer num caso e não no outro, mas precisaria oferecer uma justificativa racional para isso. Sem essa justificativa, que não apareceu, a ordem se torna de fato absurda, o que daria a Pazuello, seja como ministro, seja como militar, o direito de desobedecê-la.

Ordens absurdas até podem ser executadas, mas só se forem inócuas o suficiente para não causar danos. Caso contrário, o executor se torna coautor.


Hélio Schwartsman: Quando a leviandade mata

Chilique presidencial é cálculo político míope e mesquinho

Jair Bolsonaro é o presidente. Foi eleito democraticamente. Mas não tem condição moral nem intelectual de exercer o cargo, do que dá prova a leviandade com que trata a questão da vacina.

Não sei se a Coronavac, a "vacina chinesa do Doria", no linguajar presidencial, vai funcionar bem. Ninguém sabe. Mas, na atual conjuntura, é um dos fármacos mais promissores em fase final de testes. Engajar-se num programa de compra e produção antecipadas é uma opção de risco, mas, se o imunizante tiver sucesso, fazê-lo nos dará um ou dois meses de dianteira no processo de vacinação, o que pode salvar muitas vidas e reduzir o estrago econômico da pandemia.

Vale observar que o governo fez exatamente a mesma aposta no caso da vacina da Universidade de Oxford, o que desmonta por inteiro a afirmação de Bolsonaro de que não se pode avançar na compra de vacinas até que elas tenham sido licenciadas pelos órgãos competentes.

Ao que tudo indica, o chilique presidencial não tem motivação técnica, mas é fruto de um cálculo político míope e mesquinho, que procura agradar à base mais amalucada do bolsonarismo, que tem alergia a coisas feitas por "chineses comunistas", ao mesmo tempo em que se recusa a fazer qualquer gesto que possa beneficiar um rival, no caso, Doria.

Num país um pouco mais sério, um líder que tomasse decisões de vida e morte com base em comentários de simpatizantes em redes sociais e não em justificativas racionais já teria sido democraticamente defenestrado pelo impeachment. Mas estamos no Brasil.

Meu consolo é que a posição dos bolsonaristas é pior que a minha. Quem se opõe ao presidente apenas perdeu uma eleição, mas os que o apoiaram foram traídos. O candidato que falava em acabar com a corrupção, varrer o sistema político carcomido e impor uma agenda ultraliberal se tornou um protetor de corruptos, que come na mão do centrão e está prestes a furar o teto.


Hélio Schwartsman: O sistema de escolha de juízes para o STF funciona?

Receio que, se funcionasse, Kassio Nunes não seria aprovado

O que aconteceria com Kassio Marques se nosso sistema de escolha de juízes para o STF fosse plenamente funcional? Receio que, neste caso, o futuro ministro não teria seu nome aprovado pelo Senado.

É possível que Marques seja um bom magistrado e que sua fortificação curricular seja um pecado venial, mas não estamos falando de um cargo obscuro nos meandros da administração, e sim de uma vaga na Suprema Corte do país, onde deveriam ter assento apenas os melhores e mais probos de cada geração.

Não é possível que, entre os cerca de 2 milhões de brasileiros em carreiras jurídicas, não exista ninguém com excelência técnica e sem pecados curriculares.

Apesar de eu mesmo ter classificado como pouco funcional nosso modelo de seleção, no qual o presidente indica mais ou menos livremente um nome, que precisa ser sabatinado e aprovado pelo Senado, devo dizer que o sistema não é tão ruim quanto alguns o pintam. O risco maior, que seria a entronização de ministros próximos demais de quem os designou, foi posto à prova e não se materializou.

Embora as últimas composições do STF tenham tido a maioria de seus integrantes apontados pelo PT, a corte, em seu conjunto, não hesitou em tomar decisões que contrariaram os interesses do partido, como se viu no julgamento do mensalão e do impeachment de Dilma. O segredo é a vitaliciedade. Uma vez nomeado, o ministro não precisa mais se preocupar com seu próximo emprego e pode dedicar-se só a sua biografia. A vaidade faz o resto.

Para o sistema tornar-se plenamente funcional, o Senado teria de exercer sua prerrogativa de realmente avaliar os candidatos e rejeitar os que não estivessem à altura do cargo. Como isso dificilmente acontecerá, até acho que poderíamos limitar mais a escolha do presidente, restringindo-a a listas de nomes elaboradas por outros atores, mas eu não mexeria na vitaliciedade. É a parte que está dando certo.


Hélio Schwartsman: Governantes se dividem entre quem apoia ou refuta a ciência

Jair Cloroquina Bolsonaro e Donald Lysol Trump não dão pelota a especialistas

Não me parece muito prudente a posição dos mais de 6.000 cientistas e médicos que assinaram uma carta aberta pedindo aos governos dos EUA e do Reino Unido que estimulem a circulação de jovens para atingir a imunidade de rebanho, mas acho importante que esse tipo de manifestação ocorra e gere discussões.

A polarização política fez com que dividíssemos os governantes no campo dos que seguem a ciência e no dos que a rejeitam. Não há a menor dúvida de que dirigentes como Jair Cloroquina Bolsonaro, Donald Lysol Trump e Alexander Sauna & Vodca Lukashenko agem sem dar pelota para o que os especialistas têm a dizer sobre a pandemia, mas daí não decorre que a ciência tenha respostas únicas e inequívocas para todas as nossas perguntas. Pelo contrário, se há algo que caracteriza a ciência (ainda que não os cientistas) é a dúvida metódica e o ceticismo em relação a suas próprias conclusões. Em ciência, até as certezas são necessariamente provisórias.

Nesse contexto, é fundamental que existam pessoas que desafiem os chamados consensos (que nunca são tão consensuais assim), especialmente se o fizerem com bons argumentos. Mesmo que sua posição não seja a melhor nem a que triunfará, a simples necessidade de responder às críticas já leva a maioria a reformular seus próprios argumentos, aperfeiçoando-os. Com alguma frequência, esses questionamentos acabam gerando programas de pesquisa em áreas que vinham sendo negligenciadas.

No caso específico da Covid-19, penso que os constantes avanços no manejo do paciente crítico e a perspectiva da chegada de várias vacinas, ainda que imperfeitas, nos próximos meses recomendam que não se dê nenhum passo precipitado. Já está em curso um movimento natural de relaxamento do distanciamento social. Nem os países mais atingidos pela segunda onda cogitam fazer novos lockdowns tão duros quanto os da primeira. Não parece sábio reforçar ainda mais essa tendência.


Hélio Schwartsman: Bolsonaro e a corrupção

Há uma semana, ele declarou que não havia corrupção em seu governo

Os deuses sabem ser irônicos. Poucas horas depois de Jair Bolsonaro ter afirmado que daria uma voadora no pescoço de quem praticasse corrupção em sua gestão, a Polícia Federal flagrou o senador Chico Rodrigues (DEM-RR), vice-líder do governo, com cerca de R$ 100 mil em sua residência, dos quais R$ 30 mil se encontravam em sua cueca, algumas notas "entre as nádegas", como fizeram questão de publicar, por pudicícia, alguns veículos.

A operação policial que apanhou o repleto senador é parte de uma investigação sobre desvio de verbas destinadas ao combate à Covid-19. Uma semana antes dessa pilhéria divina, o presidente declarara que não havia corrupção em seu governo e que por isso ele acabara com a Lava Jato.

Embora Bolsonaro tenha no passado dito que tinha "quase uma união estável" com Rodrigues, esse não é o caso controverso mais próximo do presidente.

Abstraídos os vários rolos de ministros, dois de seus filhos são investigados por desvio de verbas nas famosas "rachadinhas", um nome mais simpático para peculato. Contra o primogênito, o senador Flávio, já há um impressionante acervo de provas. Até a primeira-dama recebeu cheques, cuja soma chega a R$ 89 mil, do arquissuspeito Fabrício Queiroz e de sua fiel esposa.

OK, tecnicamente a família não faz parte do governo, o que, se desobriga o presidente de dar-lhes voadoras no pescoço, não o dispensaria de oferecer explicações à sociedade.

Para quem já atingiu a ataraxia, é possível divertir-se com esse pregar de peças do destino. Mas é preciso reconhecer que, no fundo, a culpa é nossa. Como já escrevi aqui, o Brasil merece Bolsonaro. Ele não apenas foi eleito democraticamente —apesar dos sinais prévios inequívocos de que não era confiável— como sua popularidade vem crescendo —apesar do desastre que é sua administração e da pilha de mais de 150 mil mortos pela Covid-19. Democracia tem consequências.


Hélio Schwartsman: Bem-vindos ao clube

Marco Aurélio poderia ter optado por outro caminho com o chefe do PCC, mas, se o fizesse, não seria Marco Aurélio

O ministro Marco Aurélio Mello agiu bem ao determinar a soltura de um dos chefões do PCC? Se você, dileto leitor, pensa que ele extrapolou, seja bem-vindo ao clube do consequencialismo, corrente filosófica que, devido a uma campanha de propaganda negativa, não goza da melhor das reputações, ainda que funcione bem em grande parte das situações.

O problema com a posição de Marco Aurélio é que, pela letra da lei, ela é corretíssima. Sob a perspectiva da deontologia, a escola rival do consequencialismo, devemos obediência apenas à legalidade, independentemente das consequências. Immanuel Kant, o representante maior dessa corrente de pensamento, disse tudo quando escreveu “fiat iustitia, et pereat mundus” (faça-se justiça, mesmo que o mundo pereça).

E, no ano passado, o Congresso adicionou ao artigo 316 do Código de Processo Penal um dispositivo que corretamente obriga as autoridades judiciais a renovar a cada 90 dias a fundamentação para manter uma prisão preventiva, sob pena de torná-la ilegal. Não fizeram isso no caso do líder pececista, e aí Marco Aurélio fez “iustitiam”.

Para contestar a kantiana decisão do magistrado, é preciso abandonar a legalidade estrita e sorver um pouquinho de consequencialismo: não é prudente utilizar uma interpretação mecanicista da lei para pôr em liberdade alguém que representa perigo físico para a sociedade e que, na primeira oportunidade que teve, tornou-se um foragido. Vale observar que preservar a segurança pública e evitar a possibilidade de fuga são, pela lei, razões que justificam a prisão preventiva.

É claro que Marco Aurélio poderia ter optado por um caminho menos conspícuo. Sem trair o espírito da lei, ele poderia ter exigido que o procurador e o juiz do caso se manifestassem ou ter levado a questão ao pleno do STF, para fixar os limites do novo dispositivo, mas aí Marco Aurélio não teria sido Marco Aurélio.


Hélio Schwartsman: O que justifica as cotas?

Elas seguem na lógica de que podemos definir o destino de alguém com base em suas características fenotípicas

Há dois caminhos principais para justificar as cotas raciais. Pelo primeiro, elas seriam uma forma de reparar injustiças históricas. É preciso ser estatística e historiograficamente cego para não ver que existe racismo estrutural no Brasil e que a escravidão tem muito a ver com isso. Uma compensação aos descendentes de escravos na forma de cotas seria, então, uma forma de fazer justiça.

Não gosto muito dessa justificativa. O argumento central contra ela é que há um considerável descompasso entre o universo de prejudicados pela injustiça original e o de beneficiados pela política reparatória. As cotas, afinal, favorecem só um número pequeno dos descendentes de escravos, em geral os com mais instrução e que menos precisariam de impulso. Os negros mais necessitados, aqueles que não completam o ensino fundamental, lotam as cadeias e vão parar precocemente nos cemitérios, nada ganham com elas.

No polo oposto, o branco preterido no vestibular não é necessariamente um descendente de traficantes de escravos. Para a ideia de reparação fazer sentido, temos de apelar à noção de culpa coletiva, que é bem problemática.

O outro caminho me parece melhor. Por ele, as cotas não se justificam pelo passado, mas pelo futuro. Há um bom corpo de pesquisas mostrando que, quando diferentes pessoas, com diferentes backgrounds e perspectivas, se põem a trabalhar sobre os mesmos problemas, as soluções encontradas tendem a ser melhores. O bacana aqui é que a racionalidade das cotas também salta do indivíduo para a sociedade, e a culpa coletiva dá lugar à responsabilidade social.

Considero essa justificativa aceitável, mas devo confessar que não sou um grande fã de cotas raciais. Por mais que douremos a pílula, elas seguem na lógica de que podemos definir o destino de uma pessoa com base em suas características fenotípicas, que é justamente o que torna o racismo um problema moral.