Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman: Vacinação pública ou privada?

Vacinações são por excelência uma estratégia coletiva de saúde

A vacinação só será capaz de pôr fim à epidemia se estiver no âmbito de um programa universal e público. E, se a circulação do vírus permanecer muito elevada, nem quem tem dinheiro para pagar por um imunizante estará livre de riscos. Vacinações são por excelência uma estratégia coletiva de saúde.

Isso dito, não vejo problemas em permitir que clínicas particulares importem e apliquem vacinas contra a Covid-19. A rigor, qualquer agente que consiga trazer para o Brasil biofármacos que de outra forma não chegariam aqui está contribuindo para o esforço comum.

É preciso, contudo, alguns cuidados. Seria decerto um despropósito se a iniciativa privada e o setor público entrassem numa disputa suicida pelos mesmos imunizantes. Mas há fórmulas menos drásticas que o veto às clínicas particulares para evitar esse tipo de situação.

Uma objeção que merece consideração é a de que a participação privada, ao criar oportunidades diferenciadas de acesso à vacina com base em renda, corrompe o caráter público da fila e o princípio do acesso igualitário. Não vejo como discordar, mas receio que o argumento seja forte demais. Parece-me complicado usá-lo para vacinas, mas deixá-lo de lado para todo o resto.

Nós, afinal, não adotamos a fila única para leitos de UTI em hospitais públicos e privados. E não é só na pandemia. Há décadas aceitamos que pacientes de câncer do SUS morram à espera de vagas para tratamento, enquanto elas sobram na rede particular. A aplicação consistente do princípio da igualdade de acesso implicaria uma espécie de veto à medicina privada, o que não ocorre em nenhum país democrático.

O fato de eu não ver com maus olhos a participação de clínicas particulares na vacinação não significa que ela seja solução. Só voltaremos a algum tipo de normalidade depois que a maioria dos brasileiros tiver recebido sua vacina —e apenas o poder público é capaz de fazer isso.


Hélio Schwartsman: As palavras do presidente

Ainda bem que elas não valem muito

Todas as vezes em que se viu politicamente acuado, o presidente Jair Bolsonaro reagiu —em geral com um chilique, como se viu no dia em que fez ameaças pouco veladas ao STF.

Não há motivos para crer que ele vá mudar esse padrão apenas porque está agora sob a proteção do centrão. Pelo contrário, há elementos para temer que, nessa nova condição, arroubos presidenciais se tornem potencialmente mais destrutivos.

O problema de fundo é que as perspectivas para Bolsonaro não são das mais animadoras. Ele mostrou notável resiliência nas pesquisas de popularidade, mas os números brutos escondem uma mudança importante. O presidente perdeu apoio entre os mais ricos e mais instruídos e ganhou entre as classes populares, muito provavelmente por causa do auxílio emergencial.

Só que a ajuda em tese acabou. É difícil saber o que vai no coração do eleitor brasileiro, mas, se toneladas de escritos em ciência política valem alguma coisa, o mais provável é que o respaldo popular ao governo decline à medida que o dinheiro encurte. O repique/segunda onda, que derruba os pequenos negócios que iam se reerguendo, não ajuda.

Ao ver a aprovação declinar, Bolsonaro, que agora conhece o caminho das pedras, pode ficar tentado a abraçar soluções populistas. Ter o centrão como sócio aumenta esse perigo. O risco aí é o fiscal. Os "faria-limers" que ajudaram a pôr Bolsonaro no comando podem ser tolos, mas sabem defender seu dinheiro. Se sentirem que o governo age irresponsavelmente, teremos dólar e juro nas alturas e inflação.

Até existem respostas racionais para o dilema. Faria todo o sentido, por exemplo, substituir subsídios ineficientes, como o abono salarial e o seguro defeso, por programas de maior retorno social, como uma ampliação do Bolsa Família. O problema aí é que Bolsonaro já vetou explicitamente esse tipo de solução.

Ainda bem que a palavra presidencial não vale muito.


Hélio Schwartsman: Brasil errou ao apostar em apenas duas vacinas

Faria mais sentido assegurar que o país tivesse acesso ao máximo possível de doses do maior número possível de vacinas

Se há algo que une militares de direita a sanitaristas de esquerda é a preocupação, às vezes obsessiva, com a transferência de tecnologia. É claro que é melhor ser capaz de fabricar seus próprios imunizantes do que não ser, em especial se houver necessidade de revacinações periódicas como parece ser o caso da Covid-19. Mas eu receio que, ao buscar primariamente acordos que previssem a transferência de tecnologia, o Brasil tenha limitado demais suas apostas.

O governo federal jogou tudo no imunizante da Universidade de Oxford/AstraZeneca, que deverá ter produção local pela Fiocruz, e o governo paulista investiu apenas na Coronavac, parceria entre chineses e o Instituto Butantan.

Na situação de emergência pandêmica que vivemos, teria feito mais sentido assegurar que o país tivesse acesso ao máximo possível de doses do maior número possível de vacinas, mesmo que sem previsão de autossuficiência.

E, para piorar, não tiramos a sorte grande em nossas apostas. A vacina Oxford apresentou 70% de eficácia (contra 95% do biofármaco da Pfizer) e atrasou. A Coronavac ainda não divulgou seus números, mas já sabemos que o braço brasileiro do estudo não apresentou eficácia superior a 90%.

Ficamos para trás em relação a outras nações, mas ainda não estamos no pior dos mundos. Quando falamos em eficácia, o “endpoint” (desfecho clínico) considerado é o desenvolvimento de doença. Significa, no caso da Oxford, que 70% dos voluntários que tomam a vacina ficam protegidos contra formas sintomáticas da moléstia. Mas esse não é o único “endpoint” relevante.

Outros desfechos de interesse são saber se as vacinas evitam a infecção propriamente dita (se o fizerem, fica bem mais fácil controlar a circulação do vírus) e se são capazes de prevenir os quadros graves e os óbitos. Se nossas vacinas transformarem uma doença potencialmente letal numa gripezinha, já estamos bem servidos.


Hélio Schwartsman: A matéria-prima da tragédia

A oposição entre a lei impessoal e obrigações morais particularistas não é novidade

Você e seu melhor amigo estão no carro. Ele dirige. De repente, ele atropela um pedestre. Estava a uma velocidade acima da permitida. Não há câmeras nem testemunhas, além de você. O advogado de seu amigo diz que, se você testemunhar, assegurando que ele trafegava abaixo do limite de velocidade, vai poupá-lo de sérios problemas.

O que você pensa disso:

a) Que seu amigo tem todo o direito de esperar que você testemunhe em seu favor, e você deve mesmo honrar os deveres da amizade.

b) Que seu amigo deveria ter pouca ou nenhuma expectativa de que você testemunhe, e você não deve mentir em juízo.

Como ensina Joseph Henrich, esse é um dos testes usados para diferenciar países “weird” (acrônimo em inglês para ocidental, educado, industrializado, rico e democrático) dos demais.

Em nações como EUA, Canadá e Suíça, mais de 90% dos empresários e gerentes submetidos ao teste responderam “b”; já em países como Nepal, Venezuela e Coreia do Sul, a maioria optou por “a”. O Brasil fica no meio do caminho.

Embora seja tentador ver a resposta “a” como antiética, parece mais acertado afirmar que ela se pauta por uma ética diferente.

Populações “weird” tendem a valorizar abordagens universalistas, nas quais a aplicação das regras deve ocorrer de forma abstrata e impessoal. Já as não “weird” costumam ser mais particularistas, isto é, dão mais peso à ideia de que o tipo de relacionamento que você tem com uma pessoa é que determina seus deveres em relação a ela. Mesmo o mundo “weird” não abandona totalmente esse princípio: você tem o dever de manter e educar os seus filhos, não os filhos dos outros.

Embora tenhamos assistido, nos últimos séculos, à ascensão do Ocidente e sua ideologia “weird”, a oposição entre a lei impessoal e obrigações morais particularistas não é novidade. Os gregos a compreenderam bem e a transformaram na matéria-prima das tragédias.


Hélio Schwartsman: As sementes do abuso

Desde que existem sistemas de Justiça, sabe-se que eles podem falhar

Desde que existem sistemas de Justiça, sabe-se que eles podem falhar. Não estamos falando apenas de erros materiais, que são em tese sanáveis por revisões feitas no âmbito do próprio Judiciário. O problema é mais sério. Muitas vezes, a aplicação fria da letra da lei é que causa a situação de injustiça —falha endógena que o sistema não consegue resolver bem.

Um dos remédios criados para lidar com isso é o poder de graça, pelo qual um corpo externo ao Judiciário, em geral o chefe do Executivo, é autorizado a reverter condenações impostas por magistrados. O instituto existe desde a Antiguidade e está presente hoje nas legislações de quase todos os países, ainda que seu alcance e os trâmites para implementá-lo variem bastante.
Todo princípio, porém, já traz as sementes de seu próprio abuso. Donald Trump, a poucos dias de deixar a Casa Branca, anunciou um trem da alegria de perdões presidenciais, que abarcam ex-auxiliares, aliados, contraparentes e até "protegés" de celebridades como Kim Kardashian.

Pior, especula-se que, antes de sair, Trump poderá conceder a si mesmo um perdão preventivo, para que não precise responder por crimes federais que tenha cometido. Mais imaginativo e mais eficiente, o presidente Vladimir Putin, que tem hegemonia completa sobre o Legislativo, sancionou um projeto de lei que dá imunidade jurídica a ex-presidentes do país e seus familiares, não apenas durante o período que ocuparam o cargo, mas por toda a vida. Operações de busca, prisões preventivas e intimações para interrogatórios policiais contra essas pessoas ficam terminantemente proibidas. Como sujeira pouca é bobagem, a norma também dá a ex-presidentes cadeira cativa no Senado.

Para que o leitor não termine o ano deprimido, vale destacar que há aí uma boa notícia. Ao editar a lei, Putin, que está no poder desde 2000, sugere que tem planos de um dia deixar a Presidência.


Hélio Schwartsman: O país das carteiradas

Uma das explicações para o fracasso do Brasil é que ele é atávica e renitentemente corporativista

Uma das explicações para o fracasso do Brasil é que ele é atávica e renitentemente corporativista. Em vez de as pessoas se pensarem como cidadãs de uma República de iguais, veem-se (e agem) como membros de corporações que se julgam detentoras de direitos especiais.

Tanto o STF como o STJ enviaram à Fiocruz ofícios em que pediam a "reserva" de alguns milhares de doses de vacinas contra a Covid-19 para aplicação em seus servidores.

Mais espertos do que o grupo de promotores paulistas que tentara uma despudorada carteirada para a categoria furar a fila da imunização, os responsáveis pelos tribunais evitaram o uso de termos como "prioridade" e "preferência". Escreveram os ofícios de um jeito que ficava parecendo que receber as vacinas era uma espécie de sacrifício que as cortes fariam em prol da coletividade.

Felizmente, a Fiocruz, num raro exemplo de espírito republicano, rejeitou ambos os pedidos, enfatizando que toda a produção de vacinas será destinada ao Ministério da Saúde e que a fundação não estava reservando doses nem para seus próprios funcionários.Como já escrevi aqui, não há um critério único para organizar filas éticas. Pode-se dar a prioridade aos mais vulneráveis ou aos mais expostos ou ainda proceder a diferentes combinações dessas duas lógicas. Só o que não faz sentido, em termos éticos, é dar preferência a grupos específicos pelo fato de eles terem mais prestígio ou mais poder de influenciar. As duas mais altas cortes do país deveriam saber disso e dar o exemplo. Lamentavelmente, preferiram a carteirada envergonhada.

A crer nas ideias de economistas como Daron Acemoglu e James Robinson, o que distingue nações que fracassam das que dão certo é o desenho de suas instituições. Quando elas servem primordialmente a elites extrativistas, o país naufraga; quando são inclusivas, o desenvolvimento chega. O corporativismo está matando o Brasil.


Hélio Schwartsman: Desigualdade vacinal

Podemos e devemos fazer é afastar pelo voto ou outro meio legal dirigentes que falharam em proteger seus governados

Numa era que abomina desigualdades, nenhuma delas poderia ser mais vital do que a diferença no acesso a vacinas contra a Covid-19. Enquanto a União Europeia já contratou imunizantes para inocular toda a sua população duas vezes, o Reino Unido e os EUA, para quatro, e o Canadá, para seis, vários países pobres ou remediados ficaram chupando o dedo.

Não é a face mais nobre da humanidade, mas o fenômeno era esperado. Apenas repete em escala biofarmacológica o que já víramos acontecer na disputa por respiradores no início da pandemia.

Nem vejo muito como recriminar os governantes dos países que açambarcaram o mercado. Eles, afinal, não foram a uma gôndola de supermercado e levaram para casa muito mais víveres do que serão capazes de consumir. Só acumularam tantas doses porque, diante das incertezas que cercavam e ainda cercam as vacinas, diversificaram suas apostas —o que é bem básico.

Quando esses dirigentes firmaram seus acordos, ainda não se sabia quais imunizantes funcionariam e quais seriam descartados no meio do processo. Também não havia clareza em relação à eficácia de cada um deles e aos prazos de entrega.

O fato, porém, é que o Canadá não vai vacinar seus cidadãos seis vezes no próximo par de anos, de modo que há uma sobra de imunizantes contratados. O destino que o país dará a eles pode fazer a diferença entre uma atitude, digamos, fominha e uma posição ética. O ideal é que essas nações que adquiriram mais vacinas do que usarão doem o excedente a países pobres.

Embora sempre possamos sonhar com um mundo igualitário, em que os habitantes do Sudão receberiam vacinas no mesmo dia que canadenses, não devemos ver nada parecido tão cedo, e não me parece que devamos condenar os governantes que se mostraram capazes de proteger seus governados. O que podemos e devemos fazer é afastar pelo voto ou outro meio legal os dirigentes que falharam nessa missão.


Hélio Schwartsman: Guerra, militares e boas histórias

Se desempenho de oficial à frente da Saúde equivale ao de nosso Exército, então Bolívia pode conseguir saída para oceano Atlântico

Na tentativa de entender melhor a cabeça dos militares, que ocupam espaço cada vez maior no governo brasileiro, comprei, baixei e comecei a ler "War" (guerra), da historiadora Margaret MacMillan. Não me arrependi.

A tese central da autora é simples. A guerra é muito mais central para o ser humano do que estamos dispostos a admitir. E ela não serve só para matar gente. Muitos dos avanços científicos, tecnológicos e até de organização da sociedade resultaram de conflitos. O forte do livro, porém, não são teorias, e sim as boas histórias que conta sobre guerras, militares e os que teorizaram sobre isso.

Examinemos o caso da intendência. O general alemão Erwin Rommel não foi nada ambíguo em relação ao que achava dela: "A condição essencial para um exército ser capaz de suportar batalhas é um estoque adequado de armas, combustível e munição. Na verdade, as batalhas são travadas e vencidas pelos oficiais de intendência antes de os tiros serem disparados".

E, se sempre foi vital garantir armas a guerreiros, a intendência ganhou ainda mais importância nos conflitos modernos. Foi a introdução de serviços de higiene, como a lavanderia, na 1ª Guerra que fez com que, pela primeira vez, doenças não causassem mais baixas que o fogo inimigo.

A intendência alterou a natureza do conflito, já que permite que ele tenha duração indeterminada. Nas batalhas antigas, a peleja não podia ir além da comida disponível nas imediações. Pior, ao fazer a ligação entre a capacidade de produção de um país e sua performance na guerra, a logística borra a distinção entre alvos legítimos e ilegítimos. O operário civil de uma fábrica de uniformes pode ser abatido?

Bolsonaro entregou o Ministério da Saúde a um oficial de intendência. Se seu desempenho à frente da pasta é representativo do de nosso Exército, então a Bolívia poderá conseguir sua tão sonhada saída para o mar, pelo Atlântico...


Cristina Serra: Sobreviver até 2022

Bolsonaro ainda tem 742 dias no poder para executar seu projeto de dissolver o país; resta-nos morrer de inveja de quem tem a vacina

O mundo da ciência e das luzes pode se orgulhar de uma façanha que vai beneficiar toda a humanidade: a produção de vacinas contra o coronavírus apenas um ano depois do registro dos primeiros casos de contaminação. Os países que se adiantaram para comprar os imunizantes comemoram, autoridades se vacinam em público para dar exemplo, as populações felizardas respiram aliviadas e se preparam para um Natal cheio de esperança.

Mas isso é lá fora. No Brasil, comandado pela personificação do mal, a torcida é contra o antídoto, seja qual for a sua origem. Quem tomá-lo pode virar "jacaré"; se for homem vai "falar fino", se for mulher, pode "nascer barba". E você, que está ansioso esperando pela vacina, pode tirar o cavalinho da chuva porque "não vai ter para todo mundo".

A língua malsã de Bolsonaro reverbera no submundo digital por meio de uma rede de seguidores extremistas, jornalistas, pastores, políticos e médicos vigaristas. O vírus da desinformação se propaga tão rapidamente quanto a pandemia e se hospeda comodamente em parcela significativa da sociedade, que se reconhece e se vê representada em Bolsonaro.

Com o discurso de sabotagem à vacina, Bolsonaro consegue esfarrapar o tecido social, esvaziando as reservas de solidariedade que qualquer grupo precisa mobilizar diante de uma situação de perigo, como a que vivemos agora. Compreender isso e contrapor projetos alternativos para o Brasil são os maiores desafios nos próximos dois anos para os que acreditam na democracia.

Com o horizonte do novo ano já ao alcance da vista, se tivéssemos a certeza de um plano de vacinação para todos poderíamos tentar virar a página desse infausto 2020. Mas o vírus volta a se infiltrar entre as famílias, a abrir covas e a erguer jazigos, o impeachment é uma miragem e Bolsonaro ainda tem 742 dias no poder para executar seu projeto de dissolver o país. Resta-nos morrer de inveja de quem tem a vacina e tentar sobreviver até 2022.


Hélio Schwartsman: A culpa é do brasileiro

Um dos problemas com a democracia é que ela realiza as preferências do eleitorado

Juro que tento pautar-me pelo humanismo e pela compaixão nas avaliações que faço da epidemia de Covid-19 no Brasil, mas às vezes é difícil. O último Datafolha foi uma ducha de água fria em meus pendores filantrópicos.

Sim, Jair Bolsonaro é um dos grandes responsáveis pela situação de descalabro que vivemos, mas receio que a população brasileira não fique muito atrás. E não o afirmo apenas porque caiu a disposição do brasileiro em ser vacinado (ela agora é de 73%, contra 89% em agosto) e porque a maioria (52%) considera que o presidente não tem nenhuma culpa pelas mais de 180 mil mortes, resultado que já comentei no início da semana. Novos achados da mesma pesquisa contribuem para derrubar minha fé, senão na humanidade, ao menos no brasileiro.

A crer na "vox populi", a primeira coisa que deve ser fechada para evitar os contágios são as escolas (66%)... e a última, as igrejas (49%). Até os bares (55%) vêm antes da educação. Com prioridades assim não é um espanto que estejamos no ponto em que estamos, como a segunda nação com mais mortes no planeta.

E não são meus impulsos anticlericais que me levam à revolta. Pela própria lógica dos religiosos, que creem num Deus benevolente, onisciente e onipresente, não deveria fazer diferença se o fiel faz suas preces no templo ou em casa. Em tese, o Cara ouve de qualquer lugar.

Outro ponto que me deixa desconfortável é ter de aplaudir João Doria. O governador de São Paulo, embora não seja muito menos conservador e autoritário que o presidente, ao menos abraçou a causa da vacina e da abertura das escolas. Mais, ainda que se valendo de um certo populismo, conseguiu fazer com que o Ministério da Saúde se mexesse para acelerar a vacinação.

Um dos problemas com a democracia é que ela realiza as preferências do eleitorado. Isso significa que, se a maioria desejar bobagem, mais cedo ou mais tarde bobagens serão cometidas.


Hélio Schwartsman: Como deve ser a fila da vacina?

Pode-se priorizar os mais vulneráveis ou buscar o máximo de proteção coletiva

A epidemiologia é uma ciência firmemente calcada na matemática, mas que não trabalha bem com a conceituação binária certo e errado. A razão do paradoxo é que é grande a interface entre epidemiologia e ética, e esta, apesar dos esforços de certas correntes filosóficas, resiste à matematização.

O problema fica escancarado agora, quando países definem os grupos prioritários para a vacinação contra a Covid-19. Existem duas lógicas a orientar as decisões. Pode-se tanto dar primazia aos mais vulneráveis como procurar extrair o máximo de proteção coletiva de cada dose aplicada. Nada impede a criação de um sistema híbrido, que combine as duas.

Pelo primeiro critério, ganham dianteira na fila idosos, portadores de doenças que agravam a Covid-19, populações institucionalizadas, indígenas etc. Pelo segundo, a prioridade deve ser dada a indivíduos que, mesmo sem correr grande risco pessoal, desempenham funções essenciais e lidam como muita gente, o que os torna elos importantes na cadeia de transmissão: profissionais de saúde, policiais, certos comerciários, motoristas de coletivos, entregadores etc.

Como tudo é novo com essa doença, estamos fazendo as escolhas meio no escuro. Se as vacinas previnem a infecção e não só quadros sintomáticos, teríamos um motivo adicional para enfatizar a segunda estratégia. Se elas não funcionam tão bem com idosos, um efeito esperado, a melhor forma de proteger essa população pode ser imunizando não o indivíduo diretamente, mas as pessoas que se relacionam com ele.

Para tornar tudo mais complicado, há o problema dos "free riders", a turma que quer furar fila. Critérios como idade são relativamente fáceis de controlar. Já os que dependem de autodeclaração (sou motoboy) podem gerar confusão.

Aqui não há certo e errado, mas escolhas diferentes. Só o que é definitivamente errado é menosprezar a vacinação, como fazem alguns governantes.


Hélio Schwartsman: Luta contra Covid não é só incompetência

O fracasso contra a Covid-19 se deve à sabotagem dos consensos científicos sobre a doença

É impressionante a resiliência de Bolsonaro na pesquisa Datafolha que avaliou as percepções do eleitorado sobre sua performance. Apesar do agravamento da epidemia, a aprovação ao presidente continua em 37%, mesmo nível registrado em agosto, quando a curva das infecções refluía.

Seria tentador decretar que o eleitor é um marciano cego, incapaz de reconhecer a realidade que o cerca, desistir da democracia e sonhar com um déspota esclarecido. Mas não é tão simples. A Covid-19 é corretamente percebida como um problema, e a maior parte dos entrevistados (42%) considera o desempenho do presidente nessa frente como ruim ou péssimo --30% cravaram bom ou ótimo.

Não obstante, a maioria (52%) afirma que o presidente não tem nenhuma culpa pelos mais de 180 mil brasileiros mortos, e 38% dizem que ele tem alguma responsabilidade, mas não é o principal causador dos óbitos.

Há aqui, acredito, um problema de "accountability". Seria um despropósito apontar Bolsonaro como o principal culpado pelas mortes, como fizeram 8% dos entrevistados. O presidente se sai mal em praticamente tudo o que diz respeito ao controle sanitário da pandemia, mas não foi ele que criou e espalhou o vírus, a causa mais direta do morticínio.

Só que isentá-lo de qualquer responsabilidade, como fizeram, vale repetir, 52%, significa ignorar as funções precípuas do Estado contemporâneo, que existe, entre outros objetivos, para dar respostas coordenadas e efetivas a emergências nacionais, sejam elas decorrentes de guerras, desastres naturais, crises econômicas ou epidemias.

O que torna o caso de Bolsonaro especialmente revoltante é que o fracasso do Brasil no manejo da Covid-19 não se deve apenas à incompetência das autoridades, um fato da vida, mas à insistência do presidente em sabotar os poucos consensos científicos sobre a doença a fim de extrair ganhos políticos pessoais. E isso é abominável.