Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman: O ponto de virada pelo impeachment

Os próximos dias dirão se a mudança de humor veio para ficar

Na última coluna em que defendi o impeachment de Bolsonaro, dia 11, eu pregava para convertidos. Em duas semanas, a maré virou, e a possibilidade de afastamento do presidente se tornou o grande tema nacional. O que houve nesses 15 dias?

A mudança não se deu no panorama geral. A inadequação do presidente e de seu governo, consubstanciada na sucessão de eventos passíveis de enquadramento como crime de responsabilidade, já estava presente.

Também já estavam em curso fenômenos que sabíamos que afetariam negativamente a popularidade da gestão, como o fim do auxílio emergencial e a segunda onda da epidemia. Ainda que tenham contribuído para a mudança, esses fatores não são bons candidatos a "tipping points" (pontos de virada).

O que surgiu de novo na última quinzena foram os relatos de pacientes morrendo por asfixia em Manaus, devido à incompetência do governo em assegurar estoques adequados de O2, e a constatação de que, também por culpa do governo, o Brasil só conseguiu uma quantidade mínima de vacinas.

Enquanto países que se prepararam, como Israel e o Reino Unido, já imunizaram coortes importantes da população e podem estar colhendo os frutos em termos de redução das hospitalizações, no Brasil não conseguimos doses nem para inocular os profissionais de saúde que lidam diariamente com a doença.

Ambas as "novidades" reúnem atributos de "tipping points" poderosos, que falam diretamente a nossos cérebros. A história de Manaus cutuca nosso medo ancestral de morrer por asfixia. A das vacinas apela a uma realidade alternativa muito desejada que só não se concretizou porque alguém (Bolsonaro) fez uma terrível besteira.

Os próximos dias dirão se a mudança de humor veio para ficar ou se não passa de um soluço. De qualquer forma, erra quem acredita que o apoio do volúvel centrão é proteção suficiente contra uma virada genuína da opinião pública.


Hélio Schwartsman: Bolsonaro é louco?

Segundo psiquiatras, o presidente apresenta comportamentos compatíveis com critérios de transtornos de personalidade

Como Jair Bolsonaro se sairia numa avaliação psiquiátrica? Ou, numa linguagem mais bolsonariana, ele é doido? Inspirado no livro “The Dangerous Case of Donald Trump”, que já comentei aqui, um grupo de ilustres psiquiatras brasileiros decidiu perscrutar a ficha corrida e as atitudes mais recentes do presidente. Chegou a conclusões que, se não permitem um diagnóstico definitivo, servem de alerta para o perigo que ele representa.

Na opinião desses profissionais, que pediram anonimato (o Código de Ética Médica faz restrições a diagnósticos sem exame direto do paciente), Bolsonaro não pode ser classificado como louco inimputável (ele sabe o que faz), mas apresenta comportamentos compatíveis com critérios de transtornos de personalidade descritos tanto no CID-11 como no DSM-5.

O que se destaca são traços de personalidade narcísica e paranoide, evidenciados por falta de empatia, agressividade, desconfianças (com o sistema eleitoral, por exemplo) e alguma desconexão com a realidade.

Isso basta para inabilitá-lo para a função? É preciso cuidado para não estigmatizar portadores de transtornos mentais. Eventuais inaptidões dependem muito da gravidade dos sintomas e do tipo de função exercida. Um portador de transtorno de controle do impulso pode dar um excelente engenheiro aeronáutico, mas um péssimo piloto comercial.

A questão que se coloca é se um cargo como o de presidente, entre cujas funções está a de promover o entendimento, liderar pelo exemplo e servir de bússola moral em momentos graves, é compatível com alguém incapaz de compaixão e que tem dificuldade para acatar regras.

Não penso que candidatos à Presidência devam ser previamente submetidos a uma junta psiquiátrica, mas creio que as impressões de profissionais da saúde mental devem pesar quando se considera a utilização de remédios constitucionais tarja preta como é o impeachment.


Hélio Schwartsman: Cuidado com a caça às bruxas na fila de vacinação

A vacinação será um processo longo, difícil e sujeito a falhas

Como era previsível, multiplicam-se os relatos de casos de pessoas que estariam furando a fila da vacina. Não há dúvida de que desrespeitar a ordem de prioridades constitui grave violação ética e, em algumas situações, se houver a participação de autoridades, pode caracterizar também irregularidade administrativa e até delito, mas é preciso cuidado para não transformar o justo sentimento de indignação numa caça às bruxas.Uma parte considerável das "furadas" que vêm sendo descritas se deve mais à falta de detalhamento dos grupos prioritários do que a uma intenção deliberada de passar outros para trás.
"Profissionais de saúde que atuam na linha de frente" pode parecer uma descrição precisa, mas ainda deixa muita margem a dúvidas. O dermatologista que trabalha em consultório particular e passa visita uma vez por semana na UTI está ou não na linha de frente?

Outra fonte de ruídos tem a ver com a forma de alocação das doses.

Um hospital que tenha recebido biofármacos para cobrir 50% de seu pessoal vacinará funcionários administrativos antes de uma instituição que tenha obtido imunizantes para apenas 5% ter terminado de inocular os profissionais das UTIs e pronto-socorros. Dá par ver aí uma ineficiência, mas não um crime.

Nossos pressupostos também podem ser um problema. Parece absurdo um médico que esteja em home office receber a vacina antes de alguém que lide diretamente com o vírus. Mas e se a imunização permitir que esse profissional, talvez um intensivista experiente, volte a atuar na linha de frente? Aí teríamos uma vacina muito bem aplicada. Sem dispor de toda a informação, é arriscado tirar conclusões.

A vacinação será um processo longo, difícil e sujeito a falhas. Haverá, também, sacanagens. Mas, até prova em contrário, é psiquicamente mais saudável imaginar que a maioria das pessoas se comportará de forma decente, esperando a sua vez.


Hélio Schwartsman: Biden e a necessidade de unir os EUA

Afinal, um dos motos do país é 'E pluribus unum' (de muitos, um)

Em seu discurso de posse, Joe Biden enfatizou a necessidade de unir o país. Depois de quatro anos de cizânia sob Donald Trump, que deixou como saldo até uma canhestra tentativa de golpe, era natural que o novo presidente tentasse esse caminho, que não é estranho ao DNA dos Estados Unidos. Um dos motos do país, afinal, é “E pluribus unum” (de muitos, um).

Uma das mais interessantes questões da sociologia é a de saber o que transforma indivíduos heterogêneos num povo. Em tempos mais remotos, quando todos vivíamos em grupamentos de algumas dezenas de pessoas, quase todas aparentadas, era o próprio DNA que dava a liga. Mas, à medida que passamos a habitar comunidades maiores, o problema da unidade foi se impondo.

Uma resposta que ecoa até hoje é a de autores românticos do século 19, como Johann Gottlieb Fichte. Para eles, é o passado, consubstanciado em categorias como sangue, raça e língua, que forja a nação. É uma narrativa perigosamente essencialista, que, em suas piores manifestações, desaguou na mitologia nazista.

Também no século 19, pela pena de autores como Ernest Renan, surgiram respostas mais democráticas. Nessa visão, é a vontade de construir um futuro comum muito mais do que o passado que conduz à unidade. Na imagem de Renan, a nação é um “plebiscito diário”, ao qual todos respondem sim. Não é coincidência que esse tipo de retórica fosse a predominante nos países do Novo Mundo, como os EUA, cujas populações tinham diferentes origens étnicas.

Minha impressão é que os EUA envelheceram. Vários grupos hoje preferem aglutinar-se em torno de versões idealizadas de um passado que nunca existiu a apostar em um futuro comum. Não sei se Biden vai ter força para mudar isso, mas sei que o atual estado de espírito cai como uma luva na definição de povo do sociólogo Karl Deutsch: “Um grupo de pessoas unido por uma visão distorcida do passado e pelo ódio aos vizinhos”.


Hélio Schwartsman: Doria derrota Bolsonaro

Depois de dizer 'NÃO SERÁ COMPRADA', Bolsonaro comprou 46 milhões doses da Coronavac

João Doria é valente. Em seu lugar, eu não teria entregado as vacinas contra Covid-19 ao governo federal antes de o cheque pela compra do biofármaco ter sido compensado. Para não dizer que Jair Bolsonaro e seus prepostos são um bando de salafrários, afirmo apenas que a confiabilidade do Planalto tende a zero.

Nem precisamos nos afastar da vacina para constatá-lo. Menos de três meses atrás, ao ser questionado por um apoiador sobre o anúncio de que o Ministério da Saúde iria adquirir a Coronavac sino-doriana, o presidente desautorizou seu ministro e escreveu no Facebook: "NÃO SERÁ COMPRADA". Comprou, 46 milhões de doses, com opção de mais 54 milhões.

Obviamente, não me queixo de o presidente ter descumprido a palavra. Mas, se tivesse dignidade, ofereceria uma explicação para a mudança de atitude, além de um pedido de desculpas aos chineses e ao governador paulista.

Daí não decorre que o comportamento de Doria tenha sido exemplar. Na comparação com Bolsonaro, ele é um farol de iluminismo, mas isso não o impediu de envolver o Instituto Butantan num constrangedor espetáculo televisionado de "cherry picking", desastroso para quem pretende fazer ciência a sério.

Devemos lamentar a politização da vacina, mas só até certo ponto. Se Bolsonaro e Doria não tivessem entrado numa irrefreada disputa pela foto da primeira agulhada, que o Bandeirantes venceu, o Planalto dificilmente teria se mexido, e estaríamos ainda mais atrasados na imunização.

Há, porém, um lado mais sombrio na politização da vacina. Existem discussões como a do aborto e a da legalização das drogas que, por envolver crenças filosóficas e valores, são quase que naturalmente politizadas. Mas há outras, como a mudança climática ou a vacinação, em que o espaço para o subjetivismo é menor. Quando elas se politizam, em geral é porque um dos lados se tornou imune às evidências, o que é sempre perigoso.


Hélio Schwartsman: O que fazer com as sandices que líderes populistas publicam nas redes sociais?

Mesmo longe de uma boa solução, banimento é preferível à censura estatal pura e simples

Uma das características da onda de extrema direita que varre o mundo é a instrumentalização da liberdade de expressão para propagar notícias falsas e discursos virulentos. A reação de muitos dos democratas tem sido a de defender uma relativização das proteções à liberdade de expressão. Será que é esse mesmo o caminho?

Vale lembrar que, durante ao menos dois séculos, versões razoavelmente fortes da liberdade de expressão desempenharam papel central na consolidação de algumas de nossas melhores instituições, como a democracia e a ciência. Não penso que devamos correr o risco de retrocesso nessas áreas só porque experimentamos um quinquênio de dissabores.

O que fazer, então, com as sandices que líderes populistas como Donald Trump e Jair Bolsonaro publicam em suas redes sociais? A pior solução seria atribuir a algum órgão de governo o poder de decidir o que vai ou não ser publicado. Felizmente, não há muitos defendendo esse caminho.

Uma saída mais popular tem sido pressionar as big techs para que exerçam seu poder de edição e banam ou ao menos reduzam a visibilidade dos discursos mais radicais/violentos. Isso é decerto preferível à censura estatal pura e simples, mas fica ainda longe de uma boa solução.

A reclamação de trumpistas e bolsonaristas de que a exclusão das redes também configura censura procede só em parte. Se o cidadão deve ter a liberdade de dizer o que quer, empresas devem ter a de escolher o que vão ou não publicar. Melhor ainda se elas forem muitas, ideologicamente diversas e se pautarem por regras racionais, claras e previamente anunciadas.

A principal dificuldade desse arranjo é que ele concentra poder demais nas mãos dos hoje poucos atores empresariais. Mas não deixa de ser um avanço trocar o quase impossível paradoxo da tolerância (precisamos tolerar os intolerantes?) pelo problema mais tratável de como lidar com monopólios.


Hélio Schwartsman: O general Pazuello e a minha vó

No Brasil, a autoridade sanitária repete as crenças (erradas) de minha avó

Custou-me acreditar no que li. Pessoas estão morrendo asfixiadas em Manaus por falta de oxigênio nos hospitais, e o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, atribuiu o colapso do sistema de saúde manauara ao aumento da umidade e ao fato de médicos locais não prescreverem "tratamento precoce".

O general dificilmente poderia estar mais errado. Ecoando as recomendações de minha avó, ele acha que o problema é as pessoas saírem na chuva e não tomarem cloroquina. No mundo real, é o clima seco, e não o úmido, que favorece as infecções respiratórias, e, apesar de a cloroquina já ter sido esquadrinhada por cientistas, nenhum estudo de qualidade demonstrou que ela tenha efeito importante contra a Covid-19.

A explicação científica mais geral para o caos em Manaus está na curva exponencial. Epidemias se caracterizam justamente por concentrar muitos casos num intervalo curto de tempo. Sem medidas de contenção, um vírus pode entrar em propagação exponencial e saturar rapidamente até os mais robustos sistemas de saúde.

O problema de Manaus, que não é diferente do de várias outras cidades, é que, apesar dos alertas dos especialistas, as pessoas relaxaram nas medidas de segurança. Cansaram das privações sociais, aposentaram máscaras, viajaram e celebraram a chegada do novo ano em populosas confraternizações. Em Manaus, ainda se aglomeraram para protestar contra as regras de distanciamento que o governo queria impor.

Redes de saúde pequenas como a do Amazonas e de Rondônia são as primeiras a colapsar, mas não há motivo para que grandes centros não enfrentem dificuldades parecidas, especialmente se estivermos lidando com mutações que geraram cepas virais mais infecciosas, como parece plausível.

Atentas a essa terrível possibilidade, autoridades sanitárias europeias estão endurecendo as restrições. No Brasil, a autoridade sanitária repete as crenças (erradas) de minha avó.


Hélio Schwartsman: O papelão do Instituto Butantan

A patacoada do instituto é um desserviço à ciência

O que a onda populista que varre o mundo ensina é que é possível sabotar o sistema sem violar formalmente nenhuma de suas regras. Hugo Chávez não cometeu crime quando reduziu limites às reeleições; Viktor Orbán seguiu os trâmites legais quando redesenhou o Judiciário húngaro para servi-lo.
O corolário disso é que, se o cidadão pode ter seu campo de ação limitado só pelas leis, figuras que desempenham papel-chave no sistema precisam cumprir as regras na forma e no espírito.

A necessidade do "fair play" não está restrita à política. Ela é ainda mais vital na ciência. Se pesquisadores fraudam ou embelezam os dados de seus trabalhos, minam a confiança na própria comunicação da ciência, que é o que a viabiliza como atividade colaborativa e cumulativa.

Se cada cientista tivesse de refazer pessoalmente todos os passos de seus antecessores, nós ainda estaríamos discutindo se a Terra é redonda, não só nas redes sociais, onde todos os delírios são permitidos, mas também na academia.

Faço essas reflexões como um lamento. Foi patética a participação do Instituto Butantan na entrevista coletiva da semana passada, em que se anunciou uma eficácia de 78% para a Coronavac. Na mais honesta entrevista desta semana, quando mais dados foram revelados, ficamos sabendo que a eficácia apurada no estudo foi de 50,4%. Os 78% representavam o recorte de casos que demandaram alguma assistência médica, não o total de sintomáticos.

Até acho que os 78% são um número mais relevante que os 50,4%, mas o "fair play" científico não tolera que se propagandeie o primeiro sem nem mencionar o segundo, como se fez na primeira coletiva. Que um político medíocre e marqueteiro como João Doria tenha aprontado essa é esperado. Que o Butantan, que conhecia os dados, tenha chancelado a patacoada é um desserviço à ciência. Penitencio-me diante do leitor por ter reproduzido os 78% sem questionamento.


Hélio Schwartsman: Epifania bolsonarista

Num átimo entendi a essência deste governo

Foi lendo o artigo do secretário de Comunicação Social do Ministério das Comunicações, Fábio Wajngarten, em que ele procura explicar as razões de o Brasil estar tão atrás de Israel na vacinação contra a Covid-19, que tive a epifania. Num átimo, entendi a essência do governo Bolsonaro: ocupam os cargos mais estratégicos aqueles que não têm qualificação para exercê-los.

No caso do secretário, isso fica evidente na própria peça, que incorre em erros lógicos e retóricos, além dos factuais. Como tenho pouco espaço, limito-me a apontar o que me pareceu o sofisma maior. Para Wajngarten, não se pode afirmar que o Brasil esteja atrasado na vacinação porque foi só agora que os laboratórios entraram com a papelada na Anvisa.

Não é preciso ser gênio para entender que o que permitiu a Israel ter imunizado cerca de 20% da população foi justamente ter-se antecipado às dificuldades, em vez de esperar que fabricantes, já abarrotados de pedidos, se mexessem. Israel pagou à Pfizer mais do que os europeus para ter acesso rápido a um estoque suficiente de vacinas e ainda ofereceu os dados do sistema de saúde local para a farmacêutica monitorar os efeitos da vacinação em massa.

O artigo de Wajngarten é uma tentativa incompetente de esconder a incompetência de outro auxiliar de Bolsonaro, Eduardo Pazzuello, o general que não sabia o que era SUS, mas comanda o Ministério da Saúde.

Outro ministro que não pode ser esquecido é André Mendonça, o titular da Justiça, que parece ter cabulado todas as aulas de direito penal, já que é incapaz de distinguir um crime de um artigo de opinião. Ele agora quer processar o Ruy Castro e o Ricardo Noblat por instigação ao suicídio devido a uma crônica de que não gostou.

É verdade que Wajngarten, Pazzuello e Mendonça são amadores perto do chefe, de longe o mais inepto de uma extensa galeria de figuras deploráveis que já passaram pela Presidência.


Hélio Schwartsman: O impeachment como dever

O processo não avançaria, mas temos obrigação moral de tentar

Na atual conjuntura política, um processo de impeachment de Jair Bolsonaro seria derrotado, mas daí não decorre que não tenhamos a obrigação moral de tentar.

Dilma Rousseff buliu com as contas públicas e foi corretamente afastada pelo Congresso. Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade muito mais graves, mas nada acontece com ele. Por quê?

Isso se deve à natureza meio capciosa do instituto do impeachment e, principalmente, à complacência da sociedade. Processos de afastamento de presidentes exigem uma base jurídica, que não é difícil de conseguir —"proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo" vale para qualquer coisa—, e a quase inviabilidade política, já que o titular só é de fato destituído se mobilizar contra si 2/3 dos parlamentares.

Como o segundo elemento é muito difícil de obter, fechamos os olhos para violações constitucionais com uma frequência muito maior do que a recomendável.

Se a situação socioeconômica não se deteriorar muito nos próximos meses, o que não desejo, Bolsonaro não tem com o que se preocupar. O centrão deverá segurá-lo no cargo. Mas, sob pena de potencializar ainda mais os já escandalosos níveis de complacência nacional, a parcela dos brasileiros que rejeitam as atitudes e as políticas de Bolsonaro tem o dever de marcar posição, pressionando para que a Câmara ao menos dê início a um processo de destituição.

Ainda que a derrota seja quase certa, é uma satisfação que devemos aos pósteros. O Partido Democrata dos EUA passou por idêntica situação em 2020 e optou por dar seguimento ao primeiro impeachment de Donald Trump, mesmo sabendo que o processo morreria no Senado. Os democratas e os americanos que os apoiavam fizeram questão de mostrar que não haviam ficado cegos nem abandonado as noções básicas de retidão e decência.

A patacoada golpista de Trump na semana passada prova que tinham razão.


Hélio Schwartsman: Caprichos vacinais

O próprio presidente trabalha para minar a confiança na vacinação

Numa cerimônia mais voltada a produzir fatos políticos do que a divulgar informações científicas, o governo de São Paulo finalmente anunciou que a Coronavac apresentou, no Brasil, uma eficácia de 78% na prevenção de doença sintomática. É um bom resultado; um pouco melhor do que o do imunizante da Universidade de Oxford/AstraZeneca —aposta do governo federal—, cuja eficácia foi estimada em 70%.

Politicamente, o governador de São Paulo, João Doria, se saiu melhor do que Jair Bolsonaro, já que o presidente, que jurara que jamais adquiriria a "vacina chinesa do Doria", teve de engolir a pirraça a seco e mandar comprar os imunizantes do rival paulista. Sorte de Doria, azar de Bolsonaro, já que, quando firmaram suas parcerias, era impossível saber qual vacina funcionaria melhor.

Numa perspectiva imediatista, o Brasil também teve sorte. Para um país que fez apostas tão limitadas (basicamente duas), ambas terem apresentado resultados bem razoáveis é boa notícia.

Num plano mais existencial, porém, o Brasil teve o pior azar imaginável. A pandemia chegou quando o país era governado pelo presidente mais despreparado de todos os tempos. Se atravessar a crise sanitária já teria sido difícil com um estadista no comando, com Bolsonaro tornou-se um pesadelo.

O tratamento que ele deu às vacinas é a maior prova disso. Um governante não precisa entender nada de medicina para fazer uma gestão decente na saúde. Basta saber que o grosso dos ganhos em expectativa de vida que a humanidade experimentou nos últimos dois séculos podem ser atribuídos a duas coisas: saneamento básico e vacinação em massa. São as duas vacas sagradas das quais nenhum gestor pode descuidar.

O Brasil era muito fraco na primeira e bom na segunda. Com Bolsonaro, continuamos ruins na primeira, mas ficamos péssimos na segunda, com o próprio presidente trabalhando para minar a confiança na vacinação.


Hélio Schwartsman: O golpe de Trump

Em apenas quatro anos, ele transformou os EUA numa república de bananas

Em apenas quatro anos, Donald Trump transformou os EUA do que muitos descreviam (exageradamente) como farol da democracia numa república de bananas. As cenas de barbárie a que assistimos na quarta-feira deixarão marcas profundas na política e na autoimagem dos americanos.

A tentativa de golpe incitada pelo ainda presidente Trump também se destaca pela incompetência. O exército de Brancaleone que ele mobilizou para invadir o Capitólio nunca teve condições objetivas de tomar o poder e nem mesmo de impedir a certificação de Joe Biden como próximo mandatário.

Se Trump planejava apenas galvanizar sua base de apoiadores e posicionar-se para uma eventual volta em 2024, então ele errou escandalosamente na dose do discurso sedicioso. Ao cruzar a linha vermelha inscrita na cabeça da maioria dos americanos, o magnata virou contra si um número não desprezível de apoiadores e lideranças do Partido Republicano. Já há quem fale em impeachment ou em acionar a 25ª emenda para retirá-lo do poder. Existe a chance de que seja processado ao término do mandato e acabe preso.

Incompetência, porém, não é a única explicação plausível para o destrambelhamento de Trump. Eu não descartaria a hipótese de ele viver um episódio psicótico que o leva a acreditar que realmente venceu a eleição e está sendo roubado. Em qualquer caso, não tem condições de governar. Como uma destituição-relâmpago não é algo trivial, talvez tenhamos de nos conformar em torcer para que nada de mais grave aconteça nas próximas duas semanas.

O assalto ao Capitólio traz, porém, lições que podem ser úteis. Ao revelar que Washington não é tão diferente das capitais de países do Terceiro Mundo, ele tende a moderar um pouco o excepcionalismo americano. Há mensagens válidas até para nós no Brasil: se o sistema não extirpa "ab origene" as tendências golpistas de líderes populistas, o pior pode acontecer.