Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman: E os R$ 89 mil?

Será total desmoralização se apurações sobre Flávio não virarem um processo

O Celso Rocha de Barros talvez não concorde, mas acho que dá para afirmar que Bolsonaro foi finalmente moderado. Não o foi pelo cargo, nem pelos militares, nem pela Covid-19, mas pelo duplo temor de sofrer um processo de impeachment e de ver familiares na cadeia por "rachadinhas" e sabe-se lá mais o quê.

Não penso que o presidente tenha se convertido à institucionalidade nem deixado de acalentar a esperança de um autogolpe, mas, independentemente do que se passe no recôndito de sua mente, o fato é que o Bolsonaro de hoje tem pouco a ver com o que assumiu a Presidência em janeiro de 2019 ou com o que, poucos meses atrás, fazia ameaças não tão veladas ao STF. Ele mordeu a língua e sentou gostosamente no colo do centrão.

A questão que se coloca é se ele poderia ter adotado essa atitude desde o início, poupando o país de parte dos dissabores vividos no último ano e meio. Receio que não. O governo Bolsonaro é essencialmente reativo. Para mudar seu comportamento, foi preciso que o presidente sentisse o cheiro de encrencas grossas e visse que sua popularidade não depende só da base de extrema direita --a ajuda emergencial que a administração inicialmente não queria acabou sendo um presente dos céus.

Seja como for, é positivo que o governo esteja se entendendo com o Congresso em vez de demonizá-lo. A política, afinal, é um jogo de negociações e compromissos. Mas, ao contrário do que Bolsonaro e outras altas autoridades parecem desejar, é inadmissível que a Justiça entre em qualquer tipo de acordo, entendimento ou "détente".

O Judiciário só age quando provocado e, uma vez provocado, não pode deixar de agir. Será a desmoralização completa do sistema de Justiça se as apurações sobre Flávio Bolsonaro, que já reuniram uma enormidade de indícios de irregularidades, não virarem um processo e se os investigadores esquecerem os cheques de Queiroz para a primeira-dama.


Hélio Schwartsman: A maldição do currículo

A mania de ficar embelezando CVs é generalizada

A indicação de Kassio Nunes para uma vaga no STF vai sobrevivendo às inconsistências curriculares. Carlos Alberto Decotelli, que fora apontado para ocupar o MEC, não resistiu mais do que alguns dias quando apanhado na mesma situação. Não tenho como provar que a diferença de tratamento se deve ao fato de Decotelli ser negro, mas essa é uma daquelas suspeitas difíceis de afastar.

Não é, porém, o racismo estrutural que eu gostaria de discutir hoje, e sim a mania de ficar embelezando CVs. Ela é generalizada. Levantamento de 2019 da DNA Outplacement mostra que 75% dos currículos enviados a RHs de 500 empresas no Brasil continham informações distorcidas. Os pontos sobre os quais os candidatos mais mentem são salário (48%) e fluência no inglês (41%). Escolaridade e títulos acadêmicos são deturpados por 10%.

Se a prática é tão disseminada, deve funcionar. Mas, se é razoável imaginar que pequenas empresas deixem de proceder a checagens, tal complacência é inimaginável quando falamos dos principais cargos do país, que estão sob os holofotes da imprensa e de lobbies variados. E isso reforça o mistério: se é grande a chance de ser desmascarado, por que tantos candidatos a altos postos insistem em turbinar seus CVs?

Nossa espécie tem uma relação ambivalente com a verdade. Se, de um lado, nós a glorificamos e pintamos o mentiroso como alguém cujo caráter é falho, de outro criamos dinâmicas sociais em que faltar com a verdade é uma necessidade. Você elogia a comida do anfitrião mesmo que ela seja intragável.

E fica pior. Pesquisas mostram que há correlação positiva entre capacidade de mentir bem e popularidade. Isso significa que é justamente entre aqueles que navegam com facilidade nos círculos sociais e na política que encontraremos as pessoas que se sentem mais à vontade mentindo. Às vezes ficam tão à vontade que esquecem que algumas afirmações serão conferidas.


Hélio Schwartsman: O fim da epidemia

Será um fenômeno muito mais psicológico do que físico

A pandemia foi deflagrada por uma causa muito concreta, o Sars-CoV-2, mas seu fim será um fenômeno muito mais psicológico do que físico. A esta altura, acho que ninguém mais acredita que o vírus possa ser eliminado. Ele está se tornando endêmico e deve permanecer entre nós por muito tempo, cada vez menos perigoso, espera-se. E é a sensação de segurança que ditará o ritmo da volta ao normal pré-pandêmico.

Há motivos para cautelosa esperança. Os médicos vão aprendendo a tratar os diferentes quadros críticos que a doença é capaz de provocar. A mortalidade do paciente grave já caiu significativamente do início da epidemia para cá.

A imunidade coletiva, sobre a qual muito se especulou, parece ainda distante, como indicam as várias segundas ondas registradas principalmente na Europa. Mas é importante notar que, antes de atingirmos os limiares necessários para alcançar a proteção comunitária, reduções no contingente de suscetíveis irão tornando as cadeias de transmissão do vírus menos eficientes. É possível que o uso mais disseminado das máscaras, ao diminuir a dose viral nos episódios de infecção, contribua para que os casos mais recentes sejam de menor gravidade.

E há as vacinas. Elas exigirão certo tempo para ser testadas, produzidas, distribuídas e aplicadas, mas só a perspectiva de que estejam próximas já ajuda a criar um clima de que sair de casa não é tão arriscado.

Diferentes pessoas retomarão suas vidas em tempos diferentes. Há desde o bolsonarista clássico que nunca usou máscara nem deixou de ir a festas até o hipocondríaco renitente que está há meses entrincheirado e passa álcool gel até na comida. A segmentação também ocorre por tipo de atividade. É provável que o sujeito esteja disposto a enfrentar uma reunião presencial no trabalho antes de sentir-se seguro para jantar fora ou ir ao cinema.

Para alguns a epidemia vai durar mais que para outros.


Hélio Schwartsman: Trump e o espírito santo

Ou ele é um dos piores empresários do país ou um sonegador contumaz

Num furo histórico, o jornal The New York Times obteve as declarações do imposto de renda de Donald Trump, que, contrariando uma tradição de décadas entre candidatos e presidentes, ele sempre recusara mostrar. O resultado é arrasador.

Em 2016, ano em que foi eleito, ele pagou US$ 750 em impostos federais, uma ninharia não apenas para um suposto bilionário, mas para qualquer contribuinte. Eu próprio, no ano em que passei como "fellow" numa universidade americana, recebendo uma bolsa, gastei mais do que ele em tributos federais.

E fica pior. Trump pagou tão pouco porque alega sofrer enormes prejuízos em seus negócios. Se diz a verdade, é um dos piores empresários do país; se mente, é um sonegador contumaz. Não obstante, analistas não prognosticam nenhum efeito devastador sobre a corrida eleitoral. O presidente já disse que a reportagem é "fake news", e seus apoiadores tendem a acreditar nisso.

Parece haver uma classe de políticos que é quase invulnerável a escândalos e declarações absurdas. São às vezes chamados de candidatos teflon, pois nada grudaria neles. Trump está nessa categoria, assim como Bolsonaro, Lula, Maluf, Ademar de Barros. Eles sobrevivem a coisas como fama de ladrão, condenações judiciais e podem sem temor defender o indefensável. Não raro transformam tais passivos em ativos, que vão compondo uma espécie de mitologia pessoal. Por quê?

O primeiro a ensaiar uma resposta foi o sociólogo alemão Max Weber. Para ele, algumas lideranças, que chamou de carismáticas, são postas à parte do universo das pessoas comuns e passam a ser tratadas, ao menos por seus seguidores, como se tivessem poderes especiais ou mesmo sobre-humanos. Não é coincidência que Weber tenha ido buscar o termo "carisma" na teologia cristã. Só o espírito santo explica por que alguns "escolhidos" se livram tão facilmente de pecados que seriam fatais para políticos mais normais.


Hélio Schwartsman: Como se livrar de um presidente

Crise econômica é a melhor chance de eleição produzir resposta sólida contra um dirigente

Agora que Jair Bolsonaro se pôs sob a guarda do centrão, nossa melhor esperança de nos livrarmos desse presidente disfuncional são as urnas. E a melhor chance de as urnas produzirem uma resposta sólida contra um dirigente de turno é serem acionadas sob crise econômica.

Já lancei essa ideia algumas vezes e, sempre que o faço, algum leitor me escreve, comentando que o governante já tem pronto um discurso que o isenta de responsabilidade pela economia. Dilma afirmava que a crise tinha origem externa. Bolsonaro já vai alardeando que o período complicado que teremos pela frente é culpa de governadores e prefeitos que exageraram no lockdown.

É claro que é melhor para o líder ter um discurso do que não ter, especialmente se houver gente crédula o bastante para aceitar desculpas esfarrapadas. Mas as decisões do eleitorado não precisam ocorrer de forma consciente. O que há de mais fascinante em pleitos são justamente os fatores que determinam o comportamento de grandes coortes sem que as pessoas se deem conta deles.

Um exemplo bem documentado desse fenômeno são os ataques de tubarões na costa de Nova Jersey , nos EUA, que quase custaram a reeleição a Woodrow Wilson em 1916. No início do século passado, ninguém colocava entre as atribuições do presidente zelar pela segurança de banhistas. Não obstante, a onda de ataques naquele verão —e os efeitos econômicos decorrentes da fuga dos turistas— produziu uma insatisfação difusa no eleitorado que se converteu em rejeição ao mandatário. Sabemos que os tubarões estão envolvidos porque Wilson perdeu mais votos (em relação ao pleito de 1912) nas localidades que sofreram mais ataques.

Crises econômicas seguem esse mesmo padrão. Elas podem roubar o discurso do governante, mas não é preciso que o façam. Só o fato de a situação estar difícil já gera um mau humor no eleitorado que costuma empurrá-lo para a oposição.


Hélio Schwartsman: Bolsonaro e a ONU

Governo atual é prova de que mundo acertou ao não conceder vaga no CS ao Brasil

O governo de Jair Bolsonaro e seus posicionamentos na arena internacional são a prova definitiva de que o mundo acertou ao não conceder ao Brasil um lugar como membro permanente do Conselho de Segurança (CS) da ONU, organização que completa 75 anos de existência.

Não que tenha havido uma chance clara de galgarmos tal condição. As discussões sobre reforma da ONU dificilmente passarão de discussões. Mas, durante muito tempo, em especial nos governos petistas, conquistar uma vaga permanente foi meta quase obsessiva do Itamaraty, o que, aliás, nos levou a posicionamentos moralmente discutíveis, incluindo a defesa de ditaduras de olho em seus votos.

Os despautérios sobre queimadas e pandemia que Bolsonaro deve proferir hoje em seu discurso de abertura da Assembleia Geral ficam mais ou menos limitados a nos expor ao ridículo, porque não passamos de um membro ordinário da organização Mas, se tivéssemos um papel de maior relevo, aí as inconstâncias e insensatezes de governos brasileiros teriam um impacto negativo mais concreto sobre o mundo. Uma das funções do CS é promover a moderação e limitar a capacidade das grandes potências de fazer o que bem entenderem.

O problema de fundo, que nos inabilita para uma vaga permanente no CS, é que nossa institucionalidade não evoluiu o bastante para diferenciar na prática os interesses estratégicos do Estado brasileiro dos objetivos propagandísticos de governos, que são por definição transitórios.

Pessoalmente, vou até um pouco mais longe e acho que o Brasil deveria abdicar permanentemente de alcançar uma vaga permanente no CS. Ela serviria para inflar o ego de presidentes, ministros e diplomatas, mas não vejo que benefícios traria ao cidadão. Pelo contrário, implicaria mais despesas para os cofres públicos e nos levaria a fazer alguns inimigos no cenário internacional. Não há nada errado em ser uma nação "low profile".


Hélio Schwartsman: De Posto Ipiranga a Manjubinha

Economistas nem sempre estudam filosofia como deveriam

Paulo Guedes passou da condição de ministro que resolveria tudo na economia para a de petisco frito por imersão ("deep fried"). Até aí, não é tão surpreendente. Esse é um destino relativamente comum para ministros, sob governos de todas as ideologias.

Mais difícil de entender é como alguém que se proclama liberal tenha se envolvido com um dirigente autoritário como Jair Bolsonaro. Guedes se gaba de ter lido Keynes "três vezes e no original", mas me pergunto se leu Hayek, autor que, para ele, na condição de egresso da Escola de Chicago, deveria ter maior precedência.

E Hayek, melhor do que qualquer outro liberal moderno, compreendeu que não é possível desmembrar a economia das outras dimensões da vida. "Fins puramente econômicos não podem ser separados dos outros fins da vida", escreveu em "O Caminho da Servidão". Isso ocorre porque a economia é, no fundo, uma forma de ordenar nossas prioridades, algo que depende do valor que atribuímos individual e coletivamente às diferentes atividades e às coisas.

A crítica de Hayek ao socialismo é que este, ao contrário do livre mercado, exige a instalação de um planejador central para a economia, o que necessariamente diminui nossa liberdade existencial. E ampliar a liberdade existencial é, não só para Hayek como para Marx (não confundam o autor com o que fizeram em seu nome), o objetivo último.

Daí decorre que não faz sentido, para um liberal (o caso do marxista é um pouco diferente), trabalhar com um governante com tendências liberticidas. Guedes, reconheça-se, não foi o único a cair na armadilha. Milton Friedman e vários de seus associados flertaram com Pinochet, para recordar um único caso.

O problema, arrisco diagnosticar, é que economistas nem sempre estudam filosofia como deveriam, o que os faz perder a visão do todo. Desse pecado, Hayek, educado na Viena dos anos 20, não sofria. Já o Manjubinha…


Foto: Agência Brasil

Hélio Schwartsman: Experimentos eleitorais

Métodos de votação ranqueada são playground para matemáticos

A única vantagem do caótico sistema eleitoral norte-americano, que permite que estados, condados e municípios criem suas próprias regras para contar sufrágios, é que ele se presta a experimentos. Um deles, conhecido como voto preferencial, que já era utilizado havia décadas em poucas cidades, vem ganhando espaço.

O Maine vai estrear o sistema nas eleições presidenciais deste ano. No mais populoso Massachusetts, haverá um plebiscito para decidir se o estado também o adotará. A cidade de Nova York terá sua primeira eleição nesse modelo no ano que vem.

Há vários métodos de votação ranqueada —essa área é um verdadeiro playground para matemáticos. Um dos mais fáceis de explicar é aquele em que o eleitor ordena os candidatos segundo sua preferência. Caso nenhum dos postulantes seja a primeira escolha de mais de 50% dos votantes, procede-se a um returno virtual em que o candidato que ficou em último lugar é eliminado das cédulas e elas são recontadas. O processo segue até que alguém obtenha a maioria absoluta.

A vantagem indiscutível do sistema, ao menos nas localidades que se valem do segundo turno, é a economia de tempo e recursos, já que ele permite obter um resultado parecido com o do sufrágio em duas rodadas com uma só visita à urna. Especula-se, também, que ele favoreceria a moderação, já que interessaria aos candidatos tanto conquistar a preferência dos eleitores como também evitar a rejeição. Ainda não há consenso dos cientistas políticos sobre esse efeito.

Do lado negativo, contabilizam-se o custo de aprendizado —pode ser difícil explicar para o eleitor por que o candidato com mais primeiras preferências não levou o pleito— e a ausência de um embate direto entre os dois mais bem votados num segundo turno. A literatura, porém, sugere que debates e a própria campanha são bem menos decisivos do que parecem na narrativa dos candidatos e da imprensa.


Hélio Schwartsman: Jardim das delícias tributário

É difícil justificar é que a fé seja imune a impostos enquanto setores mais essenciais à vida são onerados

Depois da pejotização, a religiosização. Se a bancada da Bíblia e o presidente Jair Bolsonaro, agora atuando como um quinta-coluna contra o Ministério da Economia, tiverem êxito em seu intento de prover ainda mais vantagens tributárias a igrejas, poderemos assistir a um movimento de transformação de empresas em organizações religiosas, parecido com aquele que levou celetistas a se tornarem empresários.

Criar uma religião é um procedimento cartorial simples e barato. Como confessei aqui ainda outro dia, eu próprio já montei a minha, consubstanciada na Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio, com a qual tive acesso ao jardim das delícias tributário.

Dado que meu intuito era apenas mostrar quão fácil é a religiosização, limitei-me a fazer uma aplicação financeira de valor simbólico sem pagar impostos. Mas, se desse o salto de fé completo, poderia ter me livrado de IRPJ, ISS, IPVA, IPTU e, em alguns estados, até do ICMS embutido nas contas de luz, telefone e TV a cabo.

A única coisa de que não dava para escapar eram contribuições sociais, como CSLL e Cofins, e previdenciárias. É isso que está prestes a mudar, nem que seja via PEC. Ao que tudo indica, junto virá o perdão das dívidas passadas.

Até acho que imunidade tributária conferida a cultos fez sentido no passado. Era um jeito de evitar que o Estado criasse embaraços às religiões não oficiais impondo-lhes impostos especiais. Não penso, porém, que essa lógica ainda subsista. O poder público não tem mais condições de criar taxas que atinjam só minorias religiosas.

Nos dias de hoje, o que me parece difícil justificar é que a fé seja imune a impostos enquanto setores muito mais essenciais à vida, como alimentação e saúde, são às vezes pesadamente onerados. Já passa da hora de fazer prevalecer o princípio da solidariedade tributária, pelo qual todos pagam para que os impostos sejam menores para todos.


Hélio Schwartsman: Zumbis existenciais

Para o filósofo Martin Hägglund, são as incertezas e a precariedade da vida que lhe dão valor

Para o ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, a descrença em Deus transforma parte dos jovens brasileiros em zumbis existenciais. Segundo o religioso, a ausência de absolutos e de certezas faz com que vivam uma vida sem propósito nem motivações.

Será? Em “This Life” (esta vida), um dos melhores livros que li na pandemia, o filósofo Martin Hägglund (Yale) defende o avesso da posição do ministro. Para Hägglund, são as incertezas e a precariedade da vida que lhe dão valor. Se pessoas e coisas fossem eternas, aí sim é que não encontraríamos a motivação para nos ocupar delas ou nos importar com seu futuro. A própria ideia de futuro depende da possibilidade de corrupção. A eternidade seria um presente sem fim.

Há, sim, um elemento de fé, já que nos importamos com as coisas que nos são caras mesmo sabendo que elas desaparecerão, mas é o que Hägglund chama de fé secular, que não é compatível com a fé religiosa. Para o filósofo, a fé religiosa tenta nos fazer abandonar a fé secular, convencendo-nos de que nosso objetivo deve ser o de transcender à finitude. Como consequência, esta vida perde seu valor, convertendo-se em estado transicional do qual precisamos ser salvos.

Seria fácil desconstruir a tese de Hägglund como reflexões de um ateu. Mas o fascinante no livro é que ele chega a essas conclusões a partir de textos de autores insuspeitos para os religiosos, como santo Agostinho e C.S. Lewis, com pitadas de Charles Taylor e Paul Tillich.

O livro, aliás, é um banquete intelectual, que nos faz provar porções, às vezes generosas, às vezes só uma entradinha, de autores tão variados como Kierkegaard, Aristóteles, Dante, Proust, Marx e Knausgaard, além dos já citados.

Depois de ter fustigado os religiosos, Hägglund, na parte final da obra, bate forte no capitalismo. Ler “This Life” nos deixa com uma irresistível vontade de nos tornar zumbis existenciais.


Hélio Schwartsman: Voto febril

Quem não quiser votar neste ano nem morrer com os poucos reais da multa por ausência só precisa dizer que teve febre no dia do pleito

O próprio TSE já deu a senha. Está no Plano de Segurança Sanitária para as eleições municipais. Quem não quiser votar neste ano nem morrer com os poucos reais da multa por ausência só precisa dizer que teve febre no dia do pleito. Os juizados eleitorais aceitarão a declaração como justificativa.

Eu já me acostumei com quase todas as disfuncionalidades do sistema político brasileiro, que não são poucas, mas confesso que violações à lógica inscritas na legislação ainda me incomodam. E uma das que mais me causa revolta é o voto obrigatório.

Não ignoro os argumentos sociológicos em favor do instituto. Os números mostram que, quando o sufrágio é facultativo, são os mais pobres os que mais deixam de votar, adicionando mais uma camadinha de plutocracia a um processo que já é essencialmente favorável ao "statu quo".

Esse tipo de raciocínio, porém, não me convence. Nem sei se é bom para os pobres haver mais pobres votando. O papel dos grotões em eleições têm sido o de uma força conservadora, servindo de último bastião para todos os governos, desde a Arena até o PT. E agora já se voltam para Bolsonaro.

Por gosto, tendo a dar mais peso a questões filosóficas e lógicas, e, sob esses critérios, a obrigatoriedade do voto é uma excrescência. É absurda a ideia de que o eleitor esteja apto a escolher o dirigente máximo da nação e a selecionar as pessoas que escreverão as leis do país, mas seja considerado incapaz de tomar por conta própria a decisão sobre comparecer ou não à seção eleitoral. A liberdade de decidir em quem votar tem como pré-requisito a liberdade para decidir se vai votar, como, aliás, é a regra na esmagadora maioria das democracias do planeta.

É difícil explicar por que esse fóssil autoritário segue intacto entre as instituições do país. Minha aposta é uma combinação de paternalismo difuso com o oportunismo dos políticos que se saem bem no sistema.


Hélio Schwartsman: Réquiem para a Lava Jato

Não vejo como afastar a suspeita de que apoio de Bolsonaro nunca passou de uma farsa

Em 1972, Richard Nixon, talvez o mais anticomunista de todos os presidentes americanos, fez uma visita à "China vermelha" que marcou a retomada de relações diplomáticas entre Washington e Pequim, após 25 anos de isolamento. A viagem consagrou a expressão "It took Nixon to go to China" (foi preciso Nixon para ir à China), que designa situações em que só políticos muito identificados com alguma tese podem ir contra ela sem pagar um preço exorbitante.

"Mutatis mutandis", a metáfora se aplica a Bolsonaro no esvaziamento da Lava Jato. Só o candidato que tomara carona na operação para eleger-se poderia voltar-se contra ela sem sofrer um enorme desgaste por isso. Ironicamente, foi sob Bolsonaro, e não sob o PT ou o centrão, que se estancou a sangria, se é lícito usar a expressão imortalizada por Romero Jucá.

Não estou, obviamente, afirmando que a Lava Jato ocorreu sem máculas. Como sempre ocorre nesse tipo de movimento, houve abusos que devem ser corrigidos. Penso que há elementos que justificam nulidades parciais em alguns casos, mas receio que estejamos prestes a cair no extremo oposto, pondo a perder os bons serviços prestados pela operação.

Como já disse aqui, pagaremos um mico internacional se tentarmos devolver para os bancos suíços o dinheiro repatriado, a fim de que seja restituído às contas dos ex-condenados. Apesar das coisas erradas, a Lava Jato teve o inegável mérito de desbaratar esquemas bilionários de corrupção e de condenar até então intocáveis empresários e políticos do primeiro escalão.

Há uma diferença importante entre Nixon e Bolsonaro. A aproximação com a China não significou uma traição às ideias anticomunistas do americano. Ele quis explorar as desavenças entre Pequim e Moscou, pois julgava a URSS um inimigo mais poderoso. No caso de Bolsonaro, não vejo como afastar a suspeita de que seu apoio à Lava Jato nunca passou de uma farsa.