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Hamilton Garcia: O nacional e o democrático como desafios históricos

A nova direita mundial marca sua ascensão pela revalorização do nacional com base no cristianismo conservador, em meio à crise do globalismo capitalista, e é ridicularizada por isto. Não deveria.

Um dos alvos prediletos da zombaria, entre nós, é o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que, em um artigo que se tornou célebre, afirma que “a nação não é uma escolha, mas um fato indelével e fundacional na vida do indivíduo como o próprio nascimento”, e que o "niilismo", a "desidentificação de si mesmos" e a “desaculturação, pela substituição da história viva pelos valores abstratos, absolutos, (e) inquestionáveis” – que Marx chamava de fetichismo –, são o plano inclinado da “decadência ocidental”[i].

Embora os fatos sociais se distingam dos naturais por seu caráter histórico – permeado pelas vontades em meio às circunstâncias, nos ensinou o mesmo Karl –, Araújo não está nos falando de simples fábula, mas de experiências concretas cujo desprezo, outrora, custou caro ao mundo.

As nações modernas nasceram na Europa, à partir do séc. XIV, impulsionadas pelas transformações econômico-sociais operadas pelo crescimento comercial, na retomada das rotas ocidentais com o Oriente após a reconquista da Península Ibérica pelos cristãos. Tal processo desencadeou mudanças políticas significativas, Europa adentro, forjando a centralização político-administrativa que ficaria conhecida como absolutismo, de onde podemos destacar dois modelos típicos de Estado-nação: o lusitano e o inglês.

No primeiro, o nacional – centralização do poder numa nobreza controladora das fronteiras e dos impostos – se sobrepôs ao democrático – campo das classes sociais em processo de autonomização pela disseminação da ética comercial (burguesia) – catapultando a parceria público-privada que consagraria o mercantilismo. Não obstante o sucesso inicial, na etapa seguinte (revolução manufatureira), a fórmula lusitana, que subordinava a sociedade ao Estado, compelia a livre-iniciativa à dependência de mercês e incentivava o consumo de luxo em detrimento do investimento produtivo, entrou em decadência à medida que o segundo modelo se desenvolvia.

Neste (modelo inglês), o nacional enfrentaria desde o início a resistência do democrático (local) dando início a um conflito que impulsionaria, com o passar do tempo, a livre-iniciativa econômica e o movimento pela emancipação dos indivíduos, acabando por democratizar o Estado (liberalismo) depois de sangrentos conflitos ao longo do séc. XVII. A nova combinação entre Estado (nacional) e sociedade (democrático) se plasmaria no pacto político da Monarquia Constitucional sob a égide do Parlamento, de onde nasceria o moderno capitalismo industrial que rege os destinos mundiais até os dias de hoje.

O triunfo inglês, todavia, se significou a vitória da ideologia liberal, não implicou em sua disseminação como modelo político na Europa, e isto por uma razão simples: o liberalismo, em sua origem, foi um movimento social, que, na maioria dos países europeus, não teve o mesmo desenvolvimento. Isto possibilitou à Inglaterra tirar vantagem das dificuldades alheias, em detrimento de sua própria ideologia como postulado universal, por meio da economia política do livre-comércio internacional, que, na prática, transformava a periferia de então em vassalo da Inglaterra.

A reação à esta metamorfose do liberalismo foi marcada na França de 1789, onde a revolução democrática acabou assumindo um caráter anticapitalista (jacobinismo) cuja superação seria bonapartista (1799) – onde o nacional se arvorava à tutela do democrático em nome de seu desenvolvimento ordenado –, ao invés de liberal.

Já na Alemanha, o bonapartismo – cuja tradução germânica foi Bismarck – seria a mola propulsora da unificação hípertardia (1871), onde o Estado burguês vem à tona sem o povo (democrático), produzindo crises explosivas que poriam abaixo o Reich (1918) em proveito de um governo liberal-democrático apoiado por sindicatos que, no contexto do pós-guerra, sucumbiria ao caos, abrindo caminho ao nacional-socialismo (nazismo) com sua promessa de ordem social, pleno emprego e bem-estar. Somente após a derrota dos nazistas, em nova guerra insana, a Alemanha, finalmente, sepultaria o bonapartismo em prol do pacto democrático-nacional, que unificaria o país em 1991.

No caso dos países periféricos, que sofreram dominação colonial europeia ou nasceram sob ela, os contrastes do processo de modernização não foram menores. Nos EUA, o Estado-Nação nasceria liberal e democrático no séc. XVIII, depois de uma guerra pela independência (1775-1783) contra a Inglaterra, inaugurando modelo inédito de Estado sem nobreza (federalismo), cujas arestas seriam resolvidas por outra guerra (civil), quase um século depois (1861-1865), que impôs o democrático do Norte sobre o escravista do Sul.

No Brasil, ao contrário, o Estado-Nação foi extraído da espinha dorsal aristocrática lusitana, no séc. XIX (1822), sob a égide de um liberalismo de fachada apoiado no escravismo, subjugando a sociedade até o total esgotamento do modelo (1888).

Isto para não falarmos do Oriente, onde o Estado manteria as características patriarcais (China) e de casta (Índia), de origem milenar, até meados do séc. XX – com exceção do Japão (Revolução Meiji, 1868) –, quando um bonapartismo específico resolveria a transição moderna.

Olhando em conjunto tais experiências, são óbvias as desvantagens do modelo bonapartista em face do liberal no que diz respeito aos benefícios da modernização – não aos custos, altíssimos em ambos. Ocorre, porém, que, fora os anglo-saxãos, como observara Samuel Huntington[ii], a maioria das grandes civilizações se modernizaram pela via bonapartista, em variados graus/formatos, o que indica que tal opção está longe de poder ser atribuída a mero “equívoco estratégico", devendo ser entendida como tendência diante das resistências características destas formações sociais ao moderno, em meio a um mundo dominado pelo capitalismo inglês/norteamericano.

Para entendermos isso, em especial o Brasil, é preciso distinguir capitalismo politicamente orientado – usado por Raimundo Faoro[iii] para descrever o fracasso do mercantilismo lusitano diante do capitalismo inglês – de bonapartismo (franco-germânico), no qual o Brasil se espelhou em dois momentos depois de 1930 (1937 e 1964). Confundí-los, apenas por conta da hipertrofia do Estado-nação sobre a sociedade civil, é não levar em conta que o Estado português expressava uma transição primitiva do feudal ao mercantil, enquanto a Revolução Francesa – e ainda mais a alemã – já operava sob a era manufatureira, em meio às dores da urbanização e da emergência da contradição entre seus atores modernos, prometendo conciliá-los a partir do intervencionismo racionalizante do Estado – o que implicava num grau de controle do patrimonialismo inimaginável em Portugal e no Brasil.

Entre nós, o bonapartismo teve que enfrentar um liberalismo de fachada guarnecido por um Estado neopatrimonial fortemente ancorado na formação agrária e comercial do país, de tal modo que os impulsos democratizantes que se oporiam ao autoritarismo bonapartista, em 1945 e 1984, acabariam por ser fagocitados pelo etos patrimonial e sua extraordinária capacidade de adaptação, caracterizando um movimento pendular de modernização-autoritária e democratização-restauradora (revolução passiva) que impediu, até aqui, a plena modernização do Estado e da sociedade.

Do lado do "capitalismo de Estado”, o problema reside em sua relativa incapacidade de romper com a carapaça patrimonial, que envolve o Estado-nação desde sua origem (“capitalismo politicamente orientado"), truncando sua plena racionalização e evolução democrática. Isto se deve às características dos grupos dirigentes, nos dois períodos aludidos, por cima (militares, oligarquias dissidentes e burguesias) e seus apoiadores por baixo (pequena-burguesia e trabalhadores).

No que toca aos trabalhadores, é notória sua incapacidade histórica em resisitir ao neopatrimonialismo por baixo (proletariado), enquanto, por cima (camadas médias), facilmente se deixa seduzir pelo liberalismo de plantão, que segue sendo liberista para usar a categoria de Merquior –, basta ver sua subserviência às práticas neopatrimoniais – mesmo no PSDB – e seu ressurgimento no DEM/Centrão, onde o programa segue sendo a cereja do bolo.

O fracasso das revoluções jacobinas, desde o séc. XVIII, mostrou que não há solução democrática sem o nacional. Mas, em todos os lugares, tal encontro exigiu o abandono do etos patrimonialista, que corrói as bases do edifício democrático. Este é o desafio maior do Brasil ainda hoje.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF[iv])

São João da Barra, 16/03/19.

[i] Vide Trump e o Ocidente, in. Cadernos de Política Exterior, ano III, nº 6, 2017, IPRI-FAG-MRE/DF; pp. 339/348.

[ii] Vide A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, EDUSP/São Paulo, passim.

[iii] Vide Os Donos do Poder formação do patronato político brasileiro (vol. I), ed. Publifolha/SP, 2000, pp.96-97.

[iv] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).


‘Bolsonaro está longe da questão democrática’, diz Hamilton Garcia no 3º Encontro de Jovens Lideranças

Professor universitário e membro do conselho curador da FAP avalia que presidente “é uma aposta tecnocrática”

Cleomar Almeida
Enviado especial a Padre Bernardo (GO)

“É preciso que haja democracia responsável, que leve em conta os problemas reais, e não a demagogia”. A afirmação é do professor universitário e membro do conselho curador da FAP (Fundação Astrojildo Pereira) Hamilton Garcia. Em palestra ministrada, nesta quarta-feira (27), aos participantes do 3º Encontro de Jovens Lideranças, em Padre Bernardo (GO), ele disse ser otimista em relação ao governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL), apesar de considerá-lo “longe da questão democrática”.

Realizado pela FAP com apoio do PPS (Partido Popular Socialista), o encontro começou no domingo (24) e segue até esta quinta-feira (28), no Hotel Fazenda Mestre D' Armas, no município de Padre Bernardo, no Leste de Goiás e a 115 quilômetros de Brasília. A cobertura jornalística do evento também é realizada pelas redes sociais da fundação. Nos três primeiros dias do evento, os participantes debateram temas como democracia, votos facultativo e obrigatório, sistemas políticos, tecnologia, sustentabilidade, educação, economia e desenvolvimento humano.

» Acesse aqui a programação completa do evento

De acordo com Garcia, Bolsonaro é “uma promessa tecnocrática”. “Ele vai colocar ordem no galinheiro que estava desorganizado”, ironizou o professor. “Galinheiro diz respeito ao sucateamento dos ministérios, como ocorreu nos governos anteriores, e à política de toma lá da cá”, afirmou, acrescentando que a tecnocracia militar, ao menos até agora, ficou “preservada” da corrupção que atingiu parte da sociedade civil. “A tecnocracia civil foi fortemente corrompida”, criticou. “Existe corrupção no Exército? Claro que existe, mas o nível de corrupção faz toda a diferença”, amenizou.

As “rachadinhas” feitas pela família Bolsonaro na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) e os casos de laranjas do PSL, partido do presidente, “são sinais de que o governo tem elementos patrimonialistas”, na avaliação de Garcia. “Mas eles [do governo Bolsonaro] não vão poder fazer um grande esquema de corrupção como ocorreu no governo do PT”, disse, ressaltando que os aparatos de fiscalização da administração pública estão mais fortalecidos no país.

O presidente Bolsonaro, segundo o professor, terá de fazer reformas estruturais, porque, conforme acrescentou, “o país chegou ao fundo do poço”. “Não há outra opção. Sou a favor da Reforma da Previdência. Para mim, ela vai vir pela lei ou na marra”, destacou o palestrante. Ele disse, ainda, que a transformação política “não depende da direita ou da esquerda”. “Dependente de como os atores compreendem e interpelam o jogo. Compreender é saber diagnosticar e interpelar é mostrar o caminho da porta da saída. Bolsonaro mostrou a necessidade de ordem e progresso, mas não fala da disseminação dela”, assinalou.

Ainda de acordo com Garcia, o presidente não investe em políticas públicas de ascensão da camada da população “de baixo”. “Aposta como decorrência natural, mas não está disposto a promover isso como elemento central de seu governo”, afirmou o professor. Ele acrescentou, ainda, que partido político é fundamental, pois junta conhecimento prático ao teórico. “Mas se estiver lendo a realidade com os óculos da conveniência, não funciona”.

 

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Hamilton Garcia: A esquerda e a resistência

Logo depois da contrarrevolução de 1964, a esquerda se dividiu em duas alas visceralmente opostas: uma que apontava para a saída cubana, com mobilização popular em torno de ações armadas das vanguardas revolucionárias – tendo a guerra popular prolongada, de inspiração chinesa, peso menor neste espectro – e outra que buscava uma frente ampla (democrática) com os setores descontentes com o crescente autoritarismo militar. A profunda divergência entre elas não impediu que fossem, ambas, esmagadas pelo aparato repressivo montado pela ditadura, nem tampouco a visão estratégia dos reformistas lhes garantiu a liderança da esquerda na redemocratização. A história é assim.

À época, falava-se de resistência contra o “entreguismo”, a manutenção da pobreza e a perda das “liberdades políticas”. O “entreguismo" saiu pela culatra, pois os militares, não obstante o alinhamento anticomunista (feroz) com os norte-americanos, fizeram uma política de desenvolvimento nacional junto a uma diplomacia pragmática, que buscou oportunidades econômicas inclusive no bloco comunista/nacionalista do terceiro mundo.

Já a pobreza foi reduzida de quase 70% para menos de 40%, entre 1970-1980*, e radicalmente transformada de pobreza rural (invisível e dispersa) para pobreza urbana (exposta e concentrada), com todo o corolário de desagregação social conhecido – portanto, dialeticamente agravada, não obstante reduzida. Na mosca mesmo só a previsão da perda das liberdades políticas, que muito provavelmente estaria em situação ainda pior se a revolução tivesse vencido – como demonstra o exemplo cubano e seus 60 anos de regime fechado.

Hoje, volta-se a falar de “resistência”; por incrível que pareça, da mesma. Acredita-se que Bolsonaro vai entregar as riquezas do país aos EUA (e Israel!), que a pobreza vai se aprofundar e as liberdades serão novamente tolhidas. Nada disso pode ser descartado, é verdade, mas tais expectativas parecem fazer tábula rasa dos desafios presentes na realidade brasileira, que tiveram poder determinante sobre o voto popular (vide, A Democracia na Furna da Onça).

Falar em “entreguismo" depois de quase 24 anos de desindustrialização regada à corrupção globalizada (nos 13 anos petistas), incentivo cambial aos gastos no exterior e às importações, sugere certa desorientação – se não pura desfaçatez – e elude a questão central: a retomada da industrialização de modo a sustentar, via aumento da renda interna, a economia, os empregos e a diminuição da pobreza, foi possível no regime militar com o aludido alinhamento geopolítico aos EUA, ao passo que se frustrou tanto com o globalismo liberal-democrático dos tucanos, quanto com o alinhamento “anti-imperialista” dos petistas.

Do mesmo modo, falar em "aprofundamento da pobreza” depois da brutal recessão provocada pelo estelionato eleitoral petista – que precipitou o esgotamento do Estado de compromisso (neopatrimonial) e da inclusão financista pelo consumo – mostra a vocação prestidigitadora deste tipo de esquerda. O processo de redução da pobreza ocorreu tanto por políticas de esquerda, quanto de direita e, olhando-as retrospectivamente, percebe-se que, se combinadas, teriam tido seus efeitos positivos maximizados.

Se nos anos 1970 vimos a inclusão pela aceleração econômica produtiva, sem a devida promoção social dos mais pobres, nos anos 2000 observamos exatamente o inverso, sem a devida qualificação educacional – a bolha econômica de commodities, por sua sazonalidade, por mais prolongada que seja, não pode sustentar tal processo. Em outros termos, se a diversificação das cadeias produtivas e a promoção das populações historicamente marginalizadas, por meio da escolarização e do trabalho, se conjugarem, no futuro, teremos mais chances de solucionar o problema da abissal desigualdade.

Até mesmo o tema da liberdade política fica comprometido no olhar da esquerda anacrônica. Não só pelas relações carnais dela com as ditaduras “populares" do Ocidente e do Oriente – como, de resto, já sucedera aos comunistas no século passado, embora de maneira menos constrangedora –, mas também por sua simbiose com as classes neopatrimoniais, que acabou levando seu maior líder para a cadeia. O fracasso do Governo Bolsonaro, neste quesito, ou seja, sua capitulação ao “jogo democrático” em voga, está longe de significar a vitória da "resistência democrática”, sendo mais provável que signifique a vitória do MDB-Centrão – naturalmente em parceria com sua “esquerda".

Esta tendência farsesca em relação à história e sua repetição, é ainda mais explícita nas alas “revolucionárias” do petismo, para as quais as transformações ocorridas ao longo dos séculos, no capitalismo, não afetaram nem sua composição de classe – proletariado e burguesia permanecem como classes originais em sua constituição –, nem suas relações com o Estado – “comitê executivo da burguesia”, no dizer do Manifesto Comunista de 1848(!). Um prodígio de teoria sem fatos, que nos faz compreender plenamente as razões da famosa frase do velho Marx: “tudo o que sei é que não sou marxista”.

A ideia predominante entre estes setores mais radicais, é que a derrota do PT não foi tática, mas estratégica: "depois de treze anos e meio no governo”, nos diz Valério Arcary[i], "a principal lição (…) é que não será possível transformar a sociedade brasileira através de negociações de um projeto de reformas com a classe dominante”, que "tolerou o PT no contexto da conjuntura, muito excepcional e inédita, de um mini-boom de crescimento econômico, turbinado pela (…) ascensão chinesa”. Ou seja, a revolução volta ao proscênio, à semelhança do ocorrido na Venezuela de Chaves – que é apoiada pelos petistas apesar do desastroso resultado.

"A estratégia da burguesia brasileira para retirar o capitalismo semiperiférico da estagnação prolongada, prossegue o autor, é atrair investimentos externos e impor padrões de superexploração 'asiáticos'. Portanto, não está disposta à concessão de reformas ‘europeizantes’” – que o PT, diga-se de passagem, tentou fazer em patamar de produção muito inferior ao “europeu”, fadando-as ao fracasso, sem  que o autor disto se aperceba.

Este pequeno detalhe se agrega a outro, que também passa despercebido, não obstante seu caráter histórico, impedindo um olhar mais profundo sobre o real equívoco estratégico do PT e da esquerda bolivariana em geral, que é o de continuar considerando, mesmo depois do fracasso cubano e do colapso soviético, que a simples eliminação da burguesia e a formação de Estados socialistas seria o suficiente para colocar as economias nacionais em graus mais avançados de produtividade e as liberdades em níveis interditados ao capitalismo (vide, A Que Herança Renunciamos — do socialismo cientítico ao socialismo mítico). Mesmo no caso da China, onde a NEP pôde se desenvolver plenamente, ao contrário da URSS, as liberdades continuaram circunscritas ao Estado-partido, não obstante o sucesso econômico.

Estamos, de fato, "diante de um projeto de reposicionamento global do Brasil no mercado mundial e no sistema de Estados”, como diz Arcary, mas reduzir este processo à dimensão conotativa da denúncia do "neoliberalismo” e de ode ao "proletariado internacional”, é apenas reiterar a impotência político-intelectual do “marxismo-leninismo".

Seria melhor que a esquerda voltasse ao pensamento (auto)crítico de Marx&Engels e se preparasse para a hipótese de um novo arranjo entre a direita e os militares, diverso do liberalismo anacrônico oitocentista, pleiteando para si a melhor forma de atender as demandas da modernidade social, que, entre nós, passa pela questão republicana (superação do neopatrimonialismo) e a valorização do desenvolvimento para todos, nos moldes de uma NEP democrática, que nada teria a ver com o “politicamente orientado” que conhecemos, onde a questão social é residual e os grandes interesses reinam sobre o conjunto das classes sociais impedindo a consolidação e o progresso democrático.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF[ii])

São João da Barra, 11/01/19.

*Vide gráfico abaixo[iii]:

[i] Vide Valério Arcary, Esquerda Online, 16 de dezembro, in. <https://esquerdaonline.com.br/2018/12/16/as-revolucoes-tardias-sao-as-mais-radicais/>, em 09/01/19.

[ii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).

[iii] Apud José Eustáquio Diniz Alves, Aumenta a pobreza e a extrema pobreza no Brasil, in. <https://www.ecodebate.com.br/2018/08/13/aumenta-a-pobreza-e-a-extrema-pobreza-no-brasil-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/> em 30/12/18.


Hamilton Garcia: A democracia na furna da onça

O risco à democracia num país é comumente atribuído ao comportamento dos agentes políticos e seu grau de comprometimento com suas práticas e instituições, e à resistência delas às crises. Por este prisma, os riscos podem ser bem menores do que realmente são, sobretudo quando não se tem em conta a natureza das crises que ela enfrenta.

Em nosso caso, as crises vividas desde 1988 (impeachments, megaesquemas de corrupção, etc.), foram todas contornadas, mas seu legado foi, até aqui, irrelevante em termos de modificações institucionais/culturais efetivas, capazes de evitar a repetição dos problemas.

De outro lado, tanto o extremismo petista, quanto o bolsonarista, foram tolhidos, até aqui, pelo resultado das urnas: no primeiro caso, por uma derrota que isolou a esquerda nas regiões periféricas do país, enquanto, no segundo, a vitória obrigou à formação de uma coalizão de governo com forças não extremistas.

Não obstante estes sinais positivos, o problema das interpretações funcionalistas, seja de viés voluntarista ou institucionalista, é que elas não costumam dar conta dos problemas estruturais de nossa dinâmica política, em especial aqueles que historicamente vinculam a modernização a uma ação política por cima, por meio de um Estado de compromisso que articula e seleciona interesses presentes na sociedade, quer do capital ou do trabalho, em benefício de elites neopatrimonialmente orientadas cuja degradação evolutiva desembocou na "furna da onça”, paradigma cabralino (1995-2018) do uso da corrupção como instrumento de emulação da harmonia de poderes.

À partir desta perspectiva histórico-estrutural, podemos entender melhor como nossa República foi a expressão de um pacto de poder onde o "estamento burocrático” (Faoro) – quer sob a hegemonia agrarista (República Velha, 1889-1930), quer industrialista (República Nova em diante, 1930-1989) e financista (Nova República, 1990-2018[i]) – comprimia e arbitrava a disputa política em prol de seus interesses vitais, como elite político-burocrática, e de suas conexões com as classes fundamentais (dominantes e dominadas), de modo tal que nem as semirrupturas do Estado Novo e da Contrarrevolução de 1964 foram capazes de superá-la, em meio à conformação de novos blocos históricos, depois de esgotados os instrumentos de subordinação explicitamente autoritária da sociedade civil ao Estado.

Desnecessário dizer que tal presidencialismo de cooptação, de inspiração liberal, foi, desde sempre, responsável tanto pela manutenção do déficit crônico de democracia e estabilidade ao longo da República (vide, A democratização do Estado), como de racionalidade burocrática – à exceção dos períodos de semirrupturas mencionados –, visto seu compromisso figadal com os privilégios corporativos encerrados em sua própria constituição de classe e o modo como tendia, e tende, a traduzir o interesse como privilégio o posto do imperativo funcional de qualquer sociedade moderna.

Por isso, ela foi e segue sendo fator de instabilidade política, não só por tirar proveito das distorções institucionais que dificultam a representação política (vide, Accountability e Reforma Política), mas porque administra seu domínio do Estado e, através dele, sobre a sociedade, por meio do uso abusivo de recursos públicos (orçamentários e institucionais) – seja pela corrupção, pelo desvio de função ou perversão das políticas públicas – que produzem falsos consensos ao custo do desperdício do crescimento econômico, obstaculizando o verdadeiro desenvolvimento.

Não foi por outro motivo que o modelo neopatrimonial de dominação entrou em crise seguidamente quando diante de crises recessivo-inflacionárias, levando à radicalizações políticas, como em 1930 e 1964, quando a capacidade estatal de amortecimento dos conflitos sociais, via cooptação, diminuiu drasticamente.

É precisamente isto que vivenciamos agora, com o colapso da direção social-patrimonial sobre o bloco histórico (vide, Os perigos que se avizinham e o antídoto e O Brasil que emerge das urnas), quando a brutal recessão do período petista (Dilma) se encontra com o esgotamento ético e fiscal do modelo de inclusão social-financista, com níveis inéditos de consciência política advindos da escolarização associada aos novos meios de mobilização/informação – que a direita soube utilizar de maneira eficiente à partir de 2015 (movimento pró-impeachment).

A resistência da ordem patrimonialista à mudança apontada pelas urnas, que se ensaia pela aliança do lulopetismo com o emedebismo-centrismo, já começou bem antes da posse do novo governo, na forma de medidas legislativas (“pautas-bomba"), como os aumentos salariais das corporações estatais – com apoio maciço dos tucanos – ao arrepio da situação financeira do Estado, e a volta da ameaça de indulto natalino aos corruptos, acrescida da proposta legislativa de abrandamento das penalidades judiciais.

Tais medidas mostram o potencial explosivo da relação entre um Presidente eleito por uma pauta de ruptura com tal modelo e a capacidade deste de reagir, inclusive se travestindo de oposição legítima, ameaçando bloquear o exercício do governo eleito caso este impeça a apropriação espúria do Estado federal por seus interesses particularistas.

O imbroglio, que pode ser evitado pelo isolamento, no novo Congresso, destes segmentos presentes na situação e na oposição, tende a se defrontar com uma situação inédita, extremamente desvantajosa para a tradição derrotada: a de ter que enfrentar um Presidente que dispõe não apenas de apoio parlamentar, mas, sobretudo, de uma sociedade civil renovada à direita, com potencial para expressar a vontade geral recém-saída das urnas, além de uma ligação inédita e orgânica com as forças militares – fortemente representadas no novo governo.

A possibilidade de embates radicais, verticais e horizontais, não podendo ser descartada, deve culminar em algum pacto de governabilidade que incluiria a reforma política em troca de espaços de poder. Todavia, não se pode desprezar a ocorrência de um impasse que force a reforma política por meio de referendo ou plebiscito – cuja convocação é privativa do Congresso e depende de maioria simples, presente mais da metade dos parlamentares – e, no interregno, abra caminho à governabilidade por meio de outras medidas excepcionais com o apoio das bancadas parlamentares, contra as lideranças da Câmara e do Senado, a partir da pressão social.

A desarticulação de um eventual bloqueio espúrio da bancada neopatrimonial, no Congresso, contra o Executivo, é decisivo não só para a solução democrática do governo recém-eleito, mas para o enfrentamento dos gargalos que impedem o desenvolvimento econômico-social e o próprio aperfeiçoamento do sistema representativo, sem a qual a reiterada vontade de respeito à Constituição corre o risco de virar letra-morta

Nenhuma constituição, em abstrato, pode garantir o bom resultado de um sistema democrático. Como alertava Max Weber[ii], ainda antes do fim da I Guerra (1914-1918), somente a articulação efetiva entre Estado e sociedade, por meio de partidos socialmente sustentáveis que disputem sua direção de modo a produzir consenso verdadeiro, por meio de interesses bem constituídos – derivação autêntica de organizações livres – e seus respectivos programas, com as mais diversas inspirações ideológicas – mas jamais reduzidos a anteparo de práticas fraudulentas e exclusivistas –, pode garantir a sustentação de governos legítimos, capazes de absorver os inevitáveis choques provenientes das contradições existentes nas sociedades modernas.o recém-eleito, mas para o enfrentamento dos gargalos que impedem o desenvolvimento econômico-social e o próprio aperfeiçoamento do sistema representativo, sem a qual a reiterada vontade de respeito à Constituição corre o risco de virar letra-morta.

Nosso caminho até lá poderá ser tortuoso, como atesta a eleição do Capitão, mas é preciso que seja efetivo em seu objetivo primordial, independentemente das conotações ideológicas em disputa – cujos corolários indesejáveis poderão ser purgados por um sistema efetivamente representativo.

Notas

[i] Que se inaugura politicamente com a volta dos civis ao poder (Tancredo-Sarney) em 1985, mas cuja expressão acabada é o Bloco Histórico liberal-financista inaugurado por Collor (1990-1992), e depois estabilizado por FHC (1995-2002) e alargado por LILS (2003-2016).

[ii] Vide, Parlamentarismo e Governo numa Alemanha Reconstruída (uma contribuição à crítica política do funcionalismo e da política partidária), in. Os Pensadores, ed. Nova Abril/SP, 1985, passim.

[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).


Hamilton Garcia: O brasil que emerge das urnas

A vitória de Bolsonaro começou a se delinear em abril de 2017, quando, pela primeira vez, o candidato suplantou, por um ponto percentual apenas, seus competidores mais proeminentes na oposição ao desgastado PT, cujo candidato (LILS) ocupava a primeira colocação nas sondagens[i]. A partir daí, o candidato da direita se afirmaria, crescentemente, na primeira colocação, sem o petista preso em Curitiba ou concorrentes outsiders (J.Barbosa e L.Huck), enfrentando uma Marina Silva fragilizada por seu isolamento, um Ciro Gomes reestreante no protagonismo político e candidatos tucanos tisnados pelas escandalosas relações entre seu ex-candidato (Aécio Neves) e o megaempresário Joesley Batista – que o PSDB, apesar dos esforços de seu Presidente interino (Tasso Jereissati), tratou de minimizar.

Além do isolamento da Rede, do vácuo de alternativas e da desmoralização do PSDB, Bolsonaro também se beneficiou da rigidez fisiológica do centrão-MDB e ideológica da esquerda, que manteve-se atada ao partido (PT) que capitaneou os megaesquemas de corrupção desnudados, à exaustão, no Mensalão e no Petrolão. Mas, nem a tibieza oposicionista da centro-esquerda, nem a crise da velha política associada à canonização de LILS, podem explicar o desenlace eleitoral. Concorreu de maneira decisiva para tal, mesmo que a compreensão geral não seja muito clara a respeito, o esgotamento do bloco histórico responsável pela redemocratização do país (vide “Os perigos que se avizinham e o antídoto”).

É neste contexto crítico que deve ser visto o futuro governo e sua oposição. O bloco histórico em agonia, da inclusão consumista-financista, impõe duas tarefas básicas, de dificuldade assimétrica, ao novo governo: o fim do compromisso neopatrimonial, que marca a modernização conservadora brasileira e veio a se constituir em pilar central de variados arranjos políticos ao longo do séc. XX – com importantes inflexões no Estado Novo (1937-1945) e no período militar (1964-1984), sem maiores resultados por conta do infantilismo de esquerda que os antecedeu –, e a reindustrialização do país, cujo ápice foi o “milagre brasileiro” (1967-1979) – cujo retrocesso se deveu à incapacidade do regime de superar o caráter elitista de seu bloco histórico.

A indicação do Juiz Sérgio Moro para o (super)Ministério da Justiça coloca o novo governo em posição privilegiada para enfrentar tal desafio histórico, na busca da racionalização da máquina de Estado – objetivo acalentado desde o DASP (1938) e levado à cabo marginalmente, ao sabor das conveniências políticas, com os resultados conhecidos, na média: Estado grande, com baixa eficiência, perdulário e refém de corporações (privadas e públicas) que atrofiam seu desempenho enquanto parasitam seus recursos em benefício próprio.

A persistência do neopatrimonialismo, uma versão avançada e urbana do velho patrimonialismo mercantil lusitano[ii], se liga a uma modernidade cujos atores foram tragados pelo Estado ao longo de sua constituição – caso dos sindicatos de trabalhadores e patrões a partir de 1930[iii] –, quer pelas assimetrias institucionais dos primeiros (déficit de representatividade), quer pela vontade ativa do Estado de manter controle sobre a sociedade esmagando os que dele tentavam escapar. As desigualdades regionais, no imenso território, e a resiliência das antigas práticas coronelísticas – urbanização adentro, mesmo sem “coronéis” –, ajudaram na sobrevivência do modelo nos interstícios da Constituição de 1988.

O desmonte desta herança maldita, que desde a Primeira República (1889-1930) conecta a base eleitoral municipal ao governo central, por meio da “política de governadores” e suas casas legislativas, terá forte impacto sobre a eficiência e universalidade das políticas públicas, mas ainda assistirá a uma árdua resistência, dada sua capilaridade federativa, que exigirá, para ser suplantada, não da mera descentralização, mas dela acompanhada da instituição de núcleos qualificados de gestão, com a obrigatoriedade de contratação de pessoal técnico especializado para as funções administrativas regionais e municipais – algo que não se ouviu falar até o momento.

Seja como for, a ruptura, evitada por todas as coalizões governistas na Nova República, se eficazmente concluída, tem potencial para alçar Jair Bolsonaro ao rol dos estadistas nacionais, forçando o centro e a esquerda a repensar suas estratégias para não serem varridos para a margem da disputa política, como foi a direita no fim melancólico do regime militar (Governo Figueiredo, 1979-1985).

Mas, mesmo que obtenha sucesso na agenda de modernização do Estado, com impacto ao nível econômico mais básico, é certo que o novo governo não poderá prescindir do suporte econômico de setores estratégicos, capazes de sustentar a renda agregada, suportar o consumo (privado e público) e os investimentos (idem). Para isso, a indústria, setor por excelência da propulsão tecnológica e da economia de escala, capaz de sustentar amplas cadeias produtivas e estabilizar a modernização no longo-prazo – problema estrutural do Brasil ao longo do séc. XX, que foi posto em segundo plano desde a redemocratização em proveito da distribuição (consumo) –, terá que reassumir a centralidade perdida, na agenda econômica e política, desde a crise do modelo militar-autoritário.

As tensões que se prenunciam no âmbito da nova coalizão dirigente (do velho bloco histórico), portanto, vai muito além daquela que desafiará Sérgio Moro, na Justiça, em relação à máquina estatal e os três poderes, avançando decisivamente na disputa entre Paulo Guedes (liberais) e Onyx Lorenzoni/militares (desenvolvimentistas), que, embora também guarde relação com a pauta racionalizaste do Estado, não se esgota nela, desafiando a mediação do Presidente eleito com resultados imprevisíveis.

O certo é que a ameaça de tudo se desmanchar no ar, sob a crise do bloco histórico, poderá levar a um rearranjo de forças ainda mais forte do que o verificado nas urnas. Ao centro político, ao que tudo indica, caberá um papel de apoio crítico ao novo governo sob a égide do liberalismo (mercado e instituições), funcionando como um freio à radicalização (popular) da pauta antineopatrimonial no que ela implica em "refundação da república” – pretensão tida por alguns como "ataque dissimulado à democracia” –; o mesmo com relação à problemática do desenvolvimento retardatário, que encerraria em alguma forma de revalorização da regulação econômica – tida como antípoda ao mercado e à democracia.

Por tudo isso, o centro-democrático, que agrupa os fundadores do PSDB, o PPS e a Rede, entre outros, tende a um oposicionismo parlamentar e intelectual moderado, de escassa repercussão social, podendo oscilar, à esquerda e à direita, em pautas específicas.

Já à esquerda, a cisão representada por Ciro Gomes e sua pauta desenvolvimentista, explicitamente vocacionada para a construção de um novo bloco histórico centrado no trabalho e na indústria, necessitará, para ser bem sucedida, do esgotamento da pauta liberal-econômica do novo governo, sem alternativa consensual na agenda governativa vitoriosa. Ao mesmo tempo, precisará o pedetista suplantar o protagonismo petista, aferrado ao neocorporativismo de minorias e ao socialdesenvolvimentismo de compromisso (neopatrimonial) como estratégia de viabilização do "Estado popular”. Não será fácil, dada nossa tradição populista.

Todavia, o novo dinamismo político inaugurado pela novíssima frente radical de direita promete, além das incertezas, grandes oportunidades às forças políticas capazes de entender a natureza da crise e dispostas a interpelar, a seu modo, os desejos da maioria dos brasileiros.

Notas:

[i] Vide Gazeta do Povo, in. <https://especiais.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2018/pesquisas-eleitorais/datafolha/pesquisa-datafolha-abril-2017/> em 3/11/18

[ii] Vide Raimundo Faoro, Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro (vol.2); ed. Publifolha/SP, 2000, cap. III.

[iii] Vide Armando Boito, O Sindicalismo de Estado no Brasil, ed. Unicamp/Campinas, 1991.

[iv] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).


Hamilton Garcia: Os perigos que se avizinham e o antídoto

Fala-se muito na campanha em fascismo e bolivarianismo, mas se o segundo expressa um objetivo explícito da política petista (vide “#EleNão! ou #ElesNão!”) – não obstante sua eludição tática por Haddad neste segundo turno –, o primeiro diz algo de potencial sobre o candidato mais bem cotado ou como ele pode vir a se tornar realidade a depender da marcha dos acontecimentos, se vitorioso for.

Olhando-se para a frente de direita que se formou em torno de Bolsonaro no rastro da crise do impeachment, vê-se um amálgama de convicções conservadoras cristãs e liberistas associadas ao antipetismo, ao par de um desenvolvimentismo lastreado no positivismo, ideologia basilar do Exército Brasileiro. Em condições normais de temperatura e pressão, não obstante o currículo e a vontade do Capitão, o novo governo teria, para ter sucesso, que se desenrolar dentro da normalidade democrática, e, para tal, contaria com grande respaldo social, popular e empresarial, e perspectiva de governabilidade no Congresso, não obstante a sombra neopatrimonialista da bancada do Centrão.

Ocorre, porém, que a falência do sistema político e a crise estrutural do modelo liberal-rentista de democratização, a par da elevada temperatura política bafejada pelo PT como tática de sobrevivência ao Petrolão, conspiram contra essa normalidade, junto com a falta de concatenação programática da frente bolsonarista e a perspectiva bolivariana da “resistência ao fascismo” – ambas podendo suscitar movimentos violentos na sociedade.^

Para tornar mais sombrio o quadro, enquanto na fase lulopetista foi possível “distribuir" os ganhos econômicos com a exuberância comercial do protagonismo chinês e da bolha ocidental – desperdiçando as chances de um “salto à frente”, em termos produtivos, com uma inclusão social pelo trabalho/aprendizado –, na fase bolsonarista o Brasil estará obrigado a enfrentar seus velhos e novos problemas e dificuldades, o que exigirá sacrifícios até aqui não admitidos pelos grupos dominantes – inclusive os aninhados nas altas esferas do Estado e nas corporações financeiras.

É certo, por outro lado, que algo se pode fazer na frente econômica com resultados positivos no curto-prazo para o governo – dois anos talvez –, seja simplificando os procedimentos normativos arrecadatórios, abrindo novas possibilidades de comércio com os países ricos, sustentando um câmbio de maiores possibilidades comerciais para a indústria e mesmo surfar na esperada onda da retomada econômica adiada pelo naufrágio precoce do Governo Temer. Ocorre que tal agenda, sem tocar nos problemas estruturais de longo-prazo da economia, pode propiciar apenas um fôlego, um novo vôo de galinha dentre tantos já vistos desde a recessão dos anos 1980.

No médio e longo-prazos, os gargalos estruturais tenderão a amplificar as fraturas existentes no seio da coalizão de direita, que, uma vez no governo, se transformará numa coalizão mais ampla, incluindo o liberalismo pragmático e mesmo o neopatrimonialismo, derrotado em sua dúplice aliança com o PSDB e o PT. Neste caso em especial, as perdas vitais dos segmentos neopatrimoniais, impostas pelos fatos, tenderá a afastá-los do governo na perspectiva de voltarem ao poder numa aliança com o lulopetismo que, para ser viável, teria que ser precedida de uma nova maquiagem moderadora dos “companheiros".

Bolsonaro se mantém à proa da disputa flertando com uma ruptura com o sistema – como ficou claro em seu último pronunciamento às manifestações verde-amarelo –, mas parece fadado, por suas alianças liberais e a correlação de forças no interior do aparato militar, a, por enquanto, inaugurar apenas uma ruptura com o mecanismo (neopatrimonial) – o que não é pouco, nem fácil! –, o que significaria, de fato, uma troca na direção do bloco histórico em crise, responsável pela transição democrática desde 1985, e cuja hegemonia é detida pelo capital financeiro, que conheceu, até aqui, dois formatos: o liberal-patrimonialista de Sarney&Collor e o social-patrimonialista de LILS, com um híbrido em Itamar&FHC.

A nova direção liberal-conservadora sobre o velho pacto democrático teria como objetivo pôr ordem no modelo, revertendo a bagunça deixada por Mantega&cia e, de quebra, despejando as oligarquias neopatrimoniais do poder, abrindo assim espaços para maior racionalização do Estado e ajudando a reverter as expectativas negativas sobre o país, recompondo o ambiente propício ao crescimento e à retomada do emprego.

Operar tal mudança, necessária mas não suficiente para nos recolocar na rota do desenvolvimento, além do custo político elevado, pode não surtir os efeitos esperados pela população, o que a levaria ao desencanto e consequente fortalecimento da oposição, o que poderia animar os bolsonaristas, apoiados no setor desenvolvimentista de sua coalizão, a uma tournant no sentido de um novo bloco histórico, o que exigiria um programa econômico voltado para a produção e não simplesmente para o consumo, deslocando o sistema financeiro global de seu papel atual de fiador principal de nossa estabilidade macroeconômica e política.

A hipotética viragem, a depender do contexto político em que ocorra e do álibi que o lulopetismo poderá lhe fornecer, no curto-prazo, provocaria forte inquietação nos mercados e, por consequência, abalaria a frente governativa de centro-direita, podendo levar, inclusive, à suspensão das garantias constitucionais (estado de sítio) ou até mesmo a medidas mais graves no caso da ausência de consenso no Estado de como lidar com a crise.

Paradoxalmente, a previsível resistência petista ao “fascismo" pode render bons frutos à nova política, quer em termos do isolamento das oposições na sociedade, quer do alinhamento defensivo do Estado contra a ameaça de caos que ela pode encerrar, abrindo espaços para uma uma reforma política conservadora, inclusive com mudanças constitucionais para restringir o pluralismo político e aumentar a estabilidade governamental (voto distrital puro).

No caso de não se conseguir produzir tal consenso no âmbito do Estado, o prolongamento do cenário caótico, em meio a conflitos de rua entre esquerda e direita, pode assistir ao aparecimento de milícias paramilitares em ambos os extremos, abrindo espaços para a emergência de um inédito movimento fascista no país – cujos braços armados, diga-se de passagem, já se encontram virtualmente constituídos, embora ainda não plenamente politizados.

Neste cenário sombrio (hipotético), tal como na eleição em curso, nos fará falta uma terceira via capaz de suplantar o petismo e impedir, de novo, a vitória da extrema-direita. O problema aqui é que a desorientação da centro-esquerda é ainda mais forte que as perdas parlamentares sofridas pelo PSDB, PPS e Rede, ao fim do primeiro turno das eleições, o que compromete seu protagonismo na oposição – qualquer que seja o resultado do segundo turno.

O antídoto ao perigo que se insinua está numa frente política capaz de enfrentar o virtual desafio do novo bloco histórico autoritário, de extrema-direita, colocando, à semelhança deste, o foco da inclusão na retomada da produção industrial como resposta ao esgotamento da fórmula financista, baseada em consumo e endividamento das famílias, ao mesmo tempo que procura restaurar a governabilidade e preservar a democracia por meio de uma reforma política que racionalize o sistema partidário (representação) por meio de um modelo eleitoral misto, com listas pré-ordenadas, e medidas punitivas efetivas aos partidos cujos representantes se envolvam em crimes tipificados contra o bem público.

Seja como for, é chegada a hora de se enfrentar a crise política e econômica que o oportunismo político e a incompetência intelectual,varreram, desde 1988, para debaixo do tapete.

Não está escrito nas estrelas que o bolsonarismo derivará em fascismo – isto não faz parte da nossa tradição republicana e para tal existem freios conhecidos, embora não infalíveis –, mas é certo que entre as variáveis propícias para tal está a natureza da oposição que se fará ao (provável) novo governo, e, nela, Ciro Gomes se constitui numa esperança de solução democrática. Torçamos para que ele se coloque à altura da tarefa, nesta fase delicada de nossa vida republicana.


Hamilton Garcia: "#ELE NÃO" ou "#ELES NÃO"?

Ao que tudo indica, o segundo turno das eleições, fora alguma virada extraordinária no posicionamento dos eleitores, será decidida entre dois partidos antagônicos em seus ideais, porém próximos em seu desapego pela liberal-democracia, por razões também opostas. Mas não é isto que a campanha, supostamente apartidária, “#Ele Não” quer nos fazer crer, apontando seu dedo para apenas um dos lados da contenda.

A indignação encarnada por Bolsonaro é velha conhecida, remonta ao período da decadência do regime militar, quando os assassinatos brutais de dois militantes (pacíficos) do PCB, Vladimir Herzog (1975) e Manoel Fiel Fº (1976), fizeram cair a máscara da justificação do AI-5 pela violência da guerrilha. A partir daí, em especial depois das eleições de 1982, o campo da direita sofreria forte abalo, apenas revertido pela reabilitação recente das Forças Armadas (FFAA) como instituição republicana e a ascensão política de Bolsonaro, ambas vinculadas à degeneração do PT no poder, mais precisamente aos escândalso do Mensalão e do Petrolão, que puseram a nu as práticas criminosas do partido e seus aliados, abrindo espaços extraordinários para a rearticulação da direita (vide Os conservadores avançam ) que as forças tradicionais não souberam aproveitar.

De um lado, o PSDB, prisioneiro do corporativismo empresarial e useiro de métodos semelhantes – como se comprovou mais tarde –, abriu mão, junto com seus aliados, de propor o impeachment de Lula em 2005 acreditando que o Brasil se comportaria como SP – que deu a Geraldo Alckmin 54,2% dos votos válidos nas eleições de 2006. De outro, o Centrão fisiológico aproveitou a crise para se fortalecer no rastro da associação PT-PMDB, o que permitiu a Lula não só se reeleger como se blindar de investigações parlamentares contra suas práticas predatórias do setor público (inclusive Petrobras).

É nesse contexto de putrefação do sistema político e de acovardamento/cooptação da oposição, que o petismo fincou raízes nas classes populares por meio de um crescimento econômico expressivo, não obstante ilusório, pois fruto de uma dinâmica externa exuberante que anulou por certo tempo nossas desvantagens competitivas. É nele também que surge uma nova militância liberal, de centro e de direita – órfã dos partidos tradicionais –, que, após 2013, encontraria no antipetismo e na agenda econômica liberal sua plataforma de oposição ao mecanismo petista.

Tal encontro, em si importante para a democracia pela renovação do campo liberal e conservador em chave orgânica com a sociedade – que o elitismo tucano-democrata foi incapaz de realizar –, se dá, todavia, sob a égide eleitoral de uma direita neointegralista, de um lado, e, de outro, prisioneira da ala terrorista do regime militar – representada pela chapa puro-sangue Bolsonaro&Mourão.

O Integralismo, em nossa história, nos anos 1930, foi uma reação ético-cristã à sociedade liberal-urbana que tomava corpo no país. Embora próxima do fascismo, ela recusava a perspectiva da Razão absoluta (hegeliana) no Estado – de caráter desenvolvimentista –, afirmando a dimensão subjetiva e o predomínio da tradição cristã (antimaquiaveliana) na administração dos negócios públicos (fusão entre ética pública e privada). Hoje, o neointegralismo parece uma versão urbana (liberista) da mesma concepção.

Quanto à ala terrorista, trata-se de uma corrente instrumental sem maiores chances de disputar a direção do Estado. Seu perigo, todavia, reside na possibilidade de se transformar em tenentismo civil-militar com base na fórmula hegeliana; o que a não assimilação da ativista liberal Janaína Paschoal à chapa, como vice, parece evidenciar. Aqui entram, em chave positiva, as FFAA e os militares moderados da coalizão, como o Gen. Heleno, que podem servir de freio a esta tendência, ao mesmo tempo que acicates para a recuperação do sentido de missão das elites políticas, desbloqueando a governabilidade capturada pelo neopatrimonialismo parlamentar (vide artigo anterior).

Já quanto ao PT, as incertezas são bem menores pois ele chega às eleições amadurecido por quase 40 anos de trajetória sem seu freio natural, o lulismo, destrambelhado desde o impeachment de Dilma e levado à radicalização como estratégia de sobrevivência.

Neste sentido, a agenda de curto-prazo do petismo, com sua constituinte e "controle social” dos poderes republicanos e da mídia, tem tudo para afastar o país do enfrentamento de seus grandes problemas histórico-estruturais e mergulhá-lo em um nível de polarização política até aqui desconhecido; tanto ao tentar reparar a “injustiça" cometida contra seu líder, quanto para reverter a desigualdade por meio do “aprofundamento da distribuição de renda” – como se fez recentemente na Venezuela, com os resultados catastróficos conhecidos.

O PT radicalizado retoma sua perspectiva revolucionária – como outrora fizera o PCB depois da cassação de seu registro e mandatos, em 1947 – na tentativa de sair das cordas, com isso contribuindo para embaraçar sua própria identidade histórica, construída em oposição ao comunismo totalitário, e a imagem moderada de seu candidato (Haddad), colocando seu futuro governo sob o dilema de trair os seus para governar ou governar traindo seu eleitorado, chafurdando o país na desordem política e institucional.

Para os céticos em relação à nova inclinação petista, o 6º Congresso (2017) não deixa dúvidas quanto aos objetivos que o partido se diz obrigado a perseguir para evitar um “novo golpe”: “(…) apenas a radicalização da democracia, no curso de uma revolução política e constituinte, poderá sedimentar o processo de mudanças que almejamos”, sendo "a via de aproximação para (…) o nascimento do Estado popular, nas condições históricas atuais, (…) a retomada da Presidência da República e a formação de uma maioria parlamentar defensora das reformas estruturais” .

Como tal "maioria parlamentar” não é possível, os petistas vislumbram a solução do impasse não numa ampla aliança de forças (união nacional pela democracia) – que eles só valorizam para obter votos, não para pactos programáticos que possam inibir seu poder – , mas na "intensificação da disputa por hegemonia” – não em sentido persuasivo, mas de imposição de uma vontade eleitoral-majoritária – “a partir de medidas político-administrativas que ampliem o poder popular, de pressão permanente e organizada das ruas", acompanhada, naturalmente, do "desmonte dos monopólios de comunicação, (…) e do desaparelhamento do sistema jurídico-policial”, o que significa, à luz da tradição (stalinista), pensamento único (Pravda) e perseguição política permanente (NKVD) – o que exigiria também ”democratizar o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal", além, é claro, da "reformulação do papel das Forças Armadas” .

Tudo isso apoiado no empoderamento da Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo, como antídoto à Operação Lava Jato, que "desempenha papel crucial na escalada golpista” como "instrumento político para a guerra de desgaste contra dirigentes e governantes petistas, atuando de forma cada vez mais seletiva quanto a seus alvos” e funcionando "como mecanismo de contrapropaganda para mobilização das camadas médias” e do "campo reacionário” .

Para quem foi às ruas, no último sábado, exorcizar as trevas do autoritarismo, acreditando que ela tem apenas um lado, o Governo Haddad seria um choque.

 


Hamilton Garcia: Os candidatos e suas estratégias para a superação da crise política

A quinze dias do primeiro turno, faço uma pequena pausa nas reflexões acerca dos desvãos da esquerda ("A que herança renunciamos" e "A evolução da esquerda"), para discutir os projetos que se descortinam nas eleições presidenciais-congressuais que se aproximam visando superar o impasse aberto por um Congresso Nacional dominado por interesses corporativos que ameaçam a própria governabilidade do país.

A crise política que estamos vivenciando tem múltiplos aspectos e determinantes, mas nenhum deles associado ao protagonismo da extrema-direita ou dos militares – pelo menos até aqui. Na verdade, o fenômeno político do bolsonarismo-olavismo e a reemergência do militarismo, fazem parte dos corolários da crise, embora prometam, a partir de agora, ter um papel ativo no jogo armado pelo eleitor em 2019.

Tampouco a crise por vir deriva exclusivamente das características do presidenciável a ser ungido pelas urnas, como alguns analistas insistem em afirmar – geralmente por falta de empatia com algum candidato. Ela afetará a todos – não obstante assuma diferentes contornos e desdobramentos à depender do eleito – e isto por um motivo conhecido. O parlamento a ser eleito, de acordo com as normas conhecidas, num cenário político anômico (gestado nos 13 anos de desmandos do lulopetismo no poder), em presença de uma cultura política não reformada – pautada no favor –, tende a produzir o mesmo efeito político observado desde 2003: uma crescente autonomização do parlamento com base no protagonismo dos “trezentos picaretas”, no qual Lula se apoiou para surfar a onda chinesa das commodities e ressuscitar o mito do “pai dos pobres” – que o PT tanto penou, nos anos 1980-90, para sepultar.

A crise, da qual falo, não tem nada a ver com a refração natural de uma assembleia democrático-pluralista tendente a moderar as exacerbações plebiscitárias da eleição presidencial – como a literatura internacional prescreve nas democracias-liberais avançadas –, mas com um corpo de representantes desnaturados, baseados em partidos majoritariamente esvaziados de significado próprio, que substituem os laços orgânicos com a sociedade por laços mecânicos, por meio da corrupção ativa/passiva e do aparelhamento (debilitante) da máquina pública, tornando-se, assim, incapazes de representar e processar adequadamente as demandas eleitorais.

É sob tal superestrutura que a super-coligação de Alckimin não serve como antídoto para a crise de governança que vivemos, que tende a se desdobrar em ingovernabilidade em face do esgotamento do modelo parasitário (neopatrimonial) de governo. Ao contrário, a solução tucana – na difícil hipótese de chegar ao segundo turno – pode ser vista como mais propensa a agravar a crise dada, justamente, as características de sua coalizão eleitoral, cujos partidos, em sua grande maioria, se nutrem da manipulação irracional do gasto público.

Seu antípoda natural, Haddad – este com chances de chegar à próxima etapa –, atado à “Ideia”, se eleito, será prisioneiro dela sem a margem (desperdiçada) por Dilma, o que tende a colocá-lo no mesmo pântano de Alckimin, embora em termos bem menos orgânicos, dado que seu partido (PT) é de inserção ainda mais recente no sistema neopatrimonial de poder que o PSDB – o que eleva seu pedágio de aceitação, como se viu no Mensalão-Petrolão. Claro, ele poderá enfrentar o "golpismo" da sua "base aliada” com os poderes hipnóticos do Osho (1) petista, no ministério e na mobilização popular, mas, para tal, precisará da ajuda do STJ e do STF – o que pode não ser suficiente para evitar uma crise ainda mais grave.

A novidade em termos do enfrentamento do impasse anunciado está, na verdade, nos outros três candidatos competitivos, Bolsonaro, Ciro e Marina, que apresentam alternativas ainda não testadas para superar o escolho parlamentar do neopatrimonialismo.

Marina, em trajetória cadente mais uma vez, postula a construção de uma frente ampla de forças republicanas vocacionada para enfraquecer o poder do centrão, diminuindo os custos do governo e abrindo brechas para a autorreforma do Estado. Mas, seu ponto fraco foi a falta de protagonismo pré-eleitoral, desperdiçando as oportunidades abertas pelo cismo popular de 2013 para fincar os fundamentos de seu projeto frentista, deixando-se consumir na tarefa endógena de construção da REDE – aparentemente entendida por seu grupo como uma operação não-integrada à luta política geral.

Já Ciro, cerceado pelo mito que ajudou a cultivar, flerta com a ideia do novo bloco histórico dispondo-se a formar coalizões de classe (de caráter desenvolvimentista) articuladas a projetos políticos nacionais, mas, assim como Marina, não soube traduzir este propósito em ação efetiva pré-eleitoral no contexto acima apontado – o que também pode lhe custar caro na disputa pelo segundo turno.

Por fim, Bolsonaro, consolidado em primeiro lugar, exatamente por ter feito seu dever de casa pré-eleitoral, denunciando, desde 2003, a esquerda golpista (bolivariana), os devaneios identitários e a cumplicidade tucana, pretende enfrentar o centrão empunhando a espada de Dâmocles do intervencionismo militar. Ocorre, porém, que esta espada, pode ter dois gumes, como nos mostram os desencontros observados na própria campanha do Capitão depois do atentado por ele sofrido: pode tanto servir para domesticar a bancada fisiológica do congresso, como para podar seu próprio poder em proveito dos generais do Alto Comando Militar. Das candidaturas competitivas, é a dele que apresenta o maior grau de imprevisibilidade – vide o efeito ilusivo de Paulo Guedes sobre o “mercado" –, não obstante ser também aquela que melhor proveito pode tirar do poder dissuasório dos militares, se conseguir apaziguar sua própria retaguarda.

Até que ponto e em qual momento a ingovernabilidade sistêmica, contratada pela ausência de reforma político-eleitoral, vai se apresentar ao candidato vitorioso, não é possível determinar, mas é certo que o fará em algum momento – Ciro fala numa janela de seis meses de sincronismo parlamentar com o Presidente eleito –; naturalmente, a depender do grau de resistência que seu programa encontre na sociedade e no Estado.

O fato, contudo, é que o tempo político foi encurtado pela crise econômica e não há pela frente nada que se assemelhe à bolha econômica providencial do período Lula (2003-2008), muito pelo contrário, como nos mostra a disputa comercial entre EUA e China. Isto faz com que o próximo presidente tenha que jogar suas fichas no curto-prazo, como Ciro tem defendido, torcendo para que elas sejam capazes de neutralizar o poder de veto do parlamento para uma virada em direção a um novo patamar de desenvolvimento que sustente os gastos públicos racionais e os anseios de prosperidade da maioria da população pelo trabalho.

Notas
1 Mestre indiano que, nos anos 1960, desenvolveu, nos EUA, uma técnica de relacionamento com a espiritualidade sem que fosse necessário negar os hábitos e vícios do mundo material, como o sexo livre e o dinheiro; vide <www.nexojornal.com.br/expresso/2018/03/30/Quem-foi-Osho.-E-por-que-est%C3%A3o-fazendo-uma-s%C3%A9rie-sobre-sua-vida> em16/09/18.

2 Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).


Hamilton Garcia: A que herança renunciamos? IV - A Miséria do social-desenvolvimentismo

Se, como vimos no artigo anterior, a tradição de esquerda implica em alguma forma de regulacionismo econômico, de modo a redirecionar as políticas públicas em prol das necessidades sociais – o que propicia a sustentabilidade do desenvolvimento (pleno emprego) em proveito também da estabilidade democrática e social –, é certo que não é qualquer improvisação política oportunista, feita em seu nome, que pode garantir tal resultado.

A fórmula lulopetista de superação do nacional-desenvolvimentismo – quer de viés furtadiano (CEPAL), quer nacional-democrático (PCB) –, que ficou conhecida como “social-desenvolvimentismo”, tinha como objetivo priorizar o desenvolvimento social (inclusão) em contraposição ao mero desenvolvimento econômico do passado – concentrador de renda e difusor de miséria urbana –, além de libertar as classes populares da tutela do "Estado burguês", historicamente conservador e "comprometido com o capitalismo".

Como se sabe, a tutela teve apenas uma mudança de titularidade, em prol de um novo personagem cuja fórmula política é velha conhecida: o caudilhismo benfeitor (populismo). A operação, fadada ao sucesso entre as camadas mais pobres, em função da persistência das desigualdades sociais e políticas, também encontra eco na intelectualidade, como outrora (Estado Novo), dada sua marginalização em face do poder, além de funcionar como poderoso anteparo para o sistema de dominação via concessões, no dizer de Pedro Bastos , de um "mercado interno ativado pelo aumento imediato do salário real acima da produtividade" e “gastos correntes e em infraestrutura de cunho mais social do que vinculados ao mercado externo” (produção de ponta), provocando, no médio-prazo, o desencontro, verificado no Governo Dilma, entre consumo aquecido e gastos públicos elevados, e o crescimento da renda e da riqueza associada à produção interna capaz de financiá-los.

A estratégia sedutora, misto de idealismo utópico-socialista com oportunismo neopopulista, fizeram a festa de amplos setores sociais – do bolsa-família ao bolsa-rentista, passando pelo bolsa-Miami – às expensas do desenvolvimento, possibilitando ao PT manter-se no poder por 13 anos ininterruptos sem ameaçar os alicerces da dominação neopatrimonial e, ao contrário, promovendo sua renovação e reempoderamento na esfera burocrática, parlamentar, empresarial e sindical.

O logro – reconhecido, mesmo que por um lapso, por Frei Beto –, edulcorado pelo "combate à pobreza”, impulsionou a mais ampla e legitimada aliança neopatrimonialista desde Sarney, de olho fixo no voto dos mais pobres, para cativá-los sem elevá-los a formas sustentáveis de autonomia, ao mesmo tempo em que comprou a aquiescência dos mais ricos (rentistas e associados), instituindo uma ordem consumista/concentracionista ampliada que se apresenta como importante obstáculo, por cima e por baixo, para a efetiva mudança política.

A alternativa à armadilha lulopetista não conta, como seria de se esperar dada a falta de tradição, com um caminho compartilhado – sequela da morte prematura da ANL em 1935 (a evolução da esquerda – II) e da fragmentação da frente democrática em 1979 (a evolução da esquerda – IV) –, nem tampouco com instituições partidárias adequadamente constituídas – dada as deformações conhecidas do sistema político-eleitoral –, o que torna o desafio atual bastante complexo. É certo, porém, que ela pode se impor, apesar da impotência e deformações existentes, dada a gravidade da situação criada pelo esgotamento do Estado neopatrimonial ampliado inaugurado em 1985 (Nova República).

Os pródomos desta saída já se vislumbram, fragmentariamente, nas dissidências partidárias do petismo (Marina Silva), do lulismo (Ciro Gomes) e do peessedebismo (Álvaro Dias); a primeira se destacando na propositura frentista, o segundo na explicitação de um programa econômico consistente e o terceiro realçando a necessidade de refundação ético-institucional do país.
Cada um deles acrescenta um tijolo fundamental para a construção de uma alternativa democrática para crise, mas terão que se coligar no futuro para dar competitividade a seus propósitos. O cimento desta coalizão em germe, todavia, está, como se sabe de longa data, na variável infraestrutural do programa, onde se assentam as classes sociais fundamentais em meio à multiplicidade de determinantes e grupos de variadas origens. É nele que se ancoram as diversas perspectivas do progresso social desde o alvorecer do capitalismo.

É por esta razão que o candidato do PDT (Ciro Gomes), não obstante suas graves ambiguidades políticas e de seu partido, vem se destacando como uma possibilidade vigorosa para virar a página do anacronismo político que dominou a esquerda até aqui, eludindo a necessidade urgente (há 16 anos!) das reformas para a retomada do progresso econômico-social do país.

A pregação de Ciro Gomes, em linha com o pensamento do Prof. Bresser-Pereira , converge para "a formação de uma coalizão de classes desenvolvimentista que associe empresários empreendedores, trabalhadores e a burocracia pública”, cujo principal desafio seria o de reverter a asfixia do setor público causada pelo descontrole dos gastos ordinários, das isenções tributárias, da predação rentista sobre a dívida pública e privada, da armadilha corporativista sobre o setor público e do parasitismo patrimonialista arraigado na federação – gerador de corrupção e de desvios de função –, que compõem o sistema dominante que desestabiliza o país desde a Segunda República (1930) e que o PT tratou de totemizar na figura de um líder condenado e preso pelos crimes correlatos ao atraso.

Notas

Social¬-desenvolvimentismo (carta ao Prof. Bresser), in. <www.bresserpereira.org.br/Works/Letters/10.Pedro-Z-Bastos-Social-des.pdf>, em 31/08/18.

Definida por Simon Schwartzman como "uma forma de dominação política gerada no processo de transição para a modernidade com o passivo de uma burocracia administrativa pesada e uma sociedade civil (….) fraca e pouco articulada”; Bases do Autoritarismo Brasileiro, ed. Publ!t/RJ, 2007, p.11.
Que criticou o amigo LILS, ainda no poder, por ter trocado "um projeto de nação por um projeto de poder"; vide Estadão, 09/03/2009, in. <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,para-frei-betto-bolsa-familia-e-projeto-de-poder,335703>, em 27/06/16.

Reflexões sobre o Novo Desenvolvimentismo e o Desenvolvimentismo Clássico, in. Revista de Economia Política, vol. 36, nº 2 (143), abril-junho, 2016, pp. 240-241.
Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).


Hamilton Garcia: Da social-democracia ao liberalismo-social

Se, como vimos no artigo anterior, os comunistas adulteraram o socialismo crítico de Marx&Engels em prol do socialismo mítico das mais variadas tendências — do stalinismo ao bolivarianismo, passando pelo petismo —, os socialdemocratas fizeram o mesmo em prol de um realismo político de resultados incertos: infecundos quando as crises do sistema capitalista polarizavam a sociedade, fecundo quando a normalidade política adversa (guerra fria) obrigou concessões aos trabalhadores.

No primeiro caso, o alinhamento nacionalista do pré-I Guerra (1914-1918) — motivado, entre outras coisas, por conquistas econômico-sociais, no âmbito nacional, derivadas da institucionalização ocorrida nas décadas anteriores — levaria à divisão do movimento dos trabalhadores entre reformistas e revolucionários, no segundo, o pacto social-liberal (welfare state) possibilitou o funcionamento de um sistema semirregulado que levou as sociedades ocidentais ao maior nível de igualdade desde o advento do capitalismo. O novo pacto funcionaria bem até os anos 1970, quando os sucessivos choques do petróleo, os avanços tecnológicos e a aceleração da globalização das cadeias produtivas — com intensa participação nipônica, entre outras —, criaram as condições para a poderosa fuga de capitais oriundos dos EUA e da Europa, que agora ameaçam sua prosperidade.

Se Eduard Bernstein (1850-1932) iniciara a formulação de suas teses revisionistas, a partir do exílio londrino de 1888, sob as vistas de Engels, tentando manter os liames da política social-democrática com uma teoria socialista não-utópica, propondo o debate público, a partir de 1899[i], acerca das evidências de que o capitalismo não só era capaz de superar suas crises, como também de alcançar graus ainda mais elevados de desenvolvimento — ao contrário da previsão de Marx&Engels, o que apontava novos desafios ao movimento operário, agora no sentido do reformismo —, a reação do PSD alemão e de Karl Kautsky (1854-1938) — principal teórico marxista depois da morte de Engels — fora, antes, de garantir, respectivamente, uma prática sem teoria (empirismo) e de manter a “doutrina marxista” relativamente protegida da prática socialista — concepção que Lênin adotou em direção oposta, ou seja, assentando a ação numa “doutrina” com ares de crença.

Se com Bernstein, malgrado as divergências possíveis, temos a tentativa de manter a teoria viva guiando a ação política — a grande inovação marxista fora, exatamente, como já se disse, a de situar a ação socialista no âmbito do desenvolvimento histórico objetivo revelado pelo materialismo-histórico —, na resistência ortodoxa de Kautsky e na abstinência intelectual sindical, o mal, que amoleceria a racionalidade crítica na social-democracia desde então, seria de pensar as conquistas populares no seio do capitalismo como mera forma de ampliação do Estado, sem levar em conta que a manutenção de sua configuração capitalista tornaria as conquistas obtidas não apenas relativamente superficiais, como essencialmente provisórias, à depender das injunções do capitalismo internacional e dos rearranjos geopolíticos.

Não obstante, a pax social-democrática se impôs no pós-II Guerra (1939-1945), apesar da associação difícil com um liberalismo até então liberista — exclusivamente guiado pelo mercado —, e beneficiado pelo fato de que a tragédia civilizatória do stalinismo na Rússia desarmou qualquer possibilidade de uma alternativa comunista no Ocidente, levando os movimentos comunistas de resistência ao fascismo a se desarmarem em benefício do novo pacto democrático, onde eles comporiam uma oposição partidária ativa, embora minoritária, e um movimento sindical de maioria comunista fadado a reforçar a legitimidade do novo regime.

De fato, o único país onde os comunistas foram capazes de superar o tímido papel de coadjuvantes, a que o novo sistema os condenara, foi na Itália, onde, sob a liderança de Palmiro Togliatti (1893-1964) e a inspiração de Antonio Gramsci (1891-1937), o PCI foi capaz de desenvolver uma política de assimilação da democracia-liberal mantendo seus laços com o sindicalismo e uma relativa distância — não obstante insuficiente — da URSS, mesmo tendo seu caminho ao poder obliterado pelo veto branco à participação em governos ao preço, como mostrou posteriormente a Operação Mãos Limpas, de uma corrupção generalizada no âmbito do Estado.

Nada disso, porém, serviu como anteparo à social-democracia quando a crise econômica corroeu as bases de seu pacto social a partir dos anos 1980, levando à onda neoliberal que não apenas abalou seu prestígio eleitoral, mas levou-a a adotar políticas econômicas semelhantes à dos conservadores, contra os interesses sindicais, na tentativa de não perder as bases pluriclassistas conquistadas nas três décadas anteriores.

Ao cabo, o aprofundamento da crise fez emergir novas forças políticas de esquerda dos escombros do comunismo e da SD, mas elas têm manifestado, até aqui, alguns dos velhos cacoetes irracionalistas já conhecidos — em nova roupagem (“pós-moderna”) — que, em pleno revival da crise no seio do capitalismo ocidental, os obriga a um certo retomo aos temas do socialismo de Marx&Engels, embora sem qualquer compromisso com sua teoria crítica, que implicaria esquadrinhar as razões do malogro da esquerda até aqui, seja da experiência soviética ou do esgotamento da fórmula social-democrática, o que abre margem não só para a repetição de velhos métodos esquerdistas (a doença infantil), como também para a reaparição de equívocos políticos que sinalizam grave incompreensão da história e abrem margem para o transformismo das forças políticas tradicionais, inclusive a reemergência da extrema-direita adormecida desde a derrota do nazifascismo.

O apoio de grande parte desta neoesquerda ao chavismo e ao orteguismo — para não falar do lulopetismo — lança sombras tenebrosas sobre nossa capacidade de aprender com a história, visto que estes movimentos da periferia ocidental nada mais são que manifestações atávicas de um século de modernizações periféricas dependentes do imperialismo, que nos legou a atrofia do desenvolvimento político e econômico não só da burguesia, como do operariado e das camadas médias tecno-industriais, encetando os modelos capitalistas híbridos da América-Latina com seu vasto cabedal de desigualdades combinadas, hipostasiadas em ampla carência econômica e profunda dualidade civilizatória.

Neste sentido, a adesão tardia a uma social-democracia em declínio não oferece à esquerda brasileira nenhum antídoto à trágica realidade do “socialismo do século XXI”; antes, oferece-lhe ainda mais espaços para reproduzir-se em meio a um pensamento social prisioneiro de utopias resilientes às duras lições da história.

 

[i] Vide Socialismo Evolucionário, ed. Zahar-ITV/RJ, 1997, passim.


Hamilton Garcia: A que herança renunciamos? (Do socialismo científico ao socialismo mítico)

O título principal do artigo é uma referência ao texto do revolucionário socialista russo Vladimir Lênin escrito em 1897, onde ele, à semelhança de Marx e Engels n'A Ideologia Alemã (1846), procurava situar a luta socialista nos marcos do realismo empírico (socialismo científico) – ou seja, da modernidade fundada, a duras penas, nas révolutions citoyens dos séculos anteriores –, em oposição ao idealismo romântico (socialismo utópico) predominante na esquerda da época.

Se no trabalho de Marx&Engels1 o foco era o idealismo crítico da esquerda alemã, que acreditava ser possível combater "o mundo real lutando contra a 'fraseologia' do mundo’”, numa "luta filosófica contra as sombras da realidade” – de novo em voga no séc. XXI –, no de Lênin2 o alvo é a crítica populista ao capitalismo, que se transformara em repulsa ao desenvolvimento e apologia à comunidade rural originária russa.

Enquanto nossos autores alemães3 refutavam seus filósofos por não terem se lembrado "de procurar a conexão da filosofia alemã com a realidade alemã, a conexão de sua crítica com o seu próprio ambiente material", nosso russo4 condenava os populistas por ignorarem as mudanças causadas pelo capitalismo na realidade rural da Rússia, mantendo uma visão romântica do campo e, assim, fazendo "o jogo da estagnação e de toda a sorte de asiatismos” ao comparar "sempre a realidade do capitalismo com a ficção do regime pré-capitalista”, daí concluindo pela superioridade do segundo – o que hoje fazemos em benefício dos povos naturais e das populações vulneráveis.

O que animava a corrente realista da esquerda, desde o Manifesto Comunista (1848), era a ideia de que "(…) não é possível conseguir uma libertação real a não ser no mundo real e com meios reais; (…) não é possível abolir a escravatura sem a máquina a vapor e a mule-jenny (fiação automática), nem a servidão sem uma agricultura aperfeiçoada (…). A 'libertação' é um fato histórico, não um fato intelectual, e é efetuada por condições históricas, pelo nível da indústria, do comércio, da agricultura”5.

Deriva disso que a revolução socialista só poderia ser obra de uma sociedade evoluída, onde a divisão do trabalho estivesse suficientemente avançada, o acúmulo de riqueza e cultura elevado e a forma de existência há muito tenha deixado de ser local. Do contrário, diziam nossos alemães, "só a penúria se generaliza, e (…) a miséria recomeçará a luta pelo necessário e se cairá de novo na imundície anterior”6.

Foi precisamente a não observância desse limite real à mudança social (revolução), levando longe demais a ideia de "revolucionar o mundo existente”7, que levou o socialismo crítico8 ao colapso. Se, na Comuna de Paris (1871), Marx apoiara os trabalhadores por se tratar de um gesto extremo numa situação extrema – sabendo da impossibilidade de qualquer socialismo naquelas condições –, Lênin, ao provar a possibilidade (e necessidade) da revolução popular na Rússia (outubro de 1917) para garantir qualquer progresso democrático ao país, creu ser possível, por isso mesmo, estender o poder popular à esfera econômica sem maiores considerações acerca da capacidade da classe trabalhadora – já em pleno taylorismo – em gerir a moderna empresa, com as desastrosas consequências sabidas, entre elas: a guerra civil, o colapso da produção industrial e agrícola, e a consequente anomia social que levou à hipertrofia do Estado e à supressão das liberdades públicas.
Desde então, já sob o stalinismo – que foi a reação da nomenklatura soviética à tentativa de Lênin, com a NEP, de reverter a tragédia –, o racionalismo socialista foi posto a serviço da mais perversa das formas idealistas de todos os tempos: o marxismo-leninismo, ideologia do super-Leviatã despótico para a realização da utopia comunista, capaz de fazer tábula rasa de qualquer abordagem empírica honesta e, pior, usando, para tal, os maiores inimigos da utopia (Marx, Engels e Lênin), em nome dos quais – com o uso arbitrário e abusivo de seus textos, sacralizados – se constituiu a mais fantástica máquina de narrativas fraudulentas da história, à guisa de redenção revolucionária, representada pelo jornal Pravda (Verdade).

Iludem-se os que pensam que este cruel processo degenerativo do socialismo-científico, transmutado em socialismo-mítico, tenha se esgotado junto com seu mais célebre idealizador-protagonista (Stálin) ou sua mais iminente criatura (Estado-partido). Na verdade, seu ocaso inaugurou uma nova era de mistificações na esquerda, agora não mais sob a roupagem do comunismo, mas do humanitarismo, que, aditivado pelas interpelações pós-modernas de matiz norteamericana (identidades, lugares de fala, etc.), nos levam, sem mais mediações, da razão à emoção e, dependendo do contexto, à comoção, num agir comunicativo que não só prescinde da análise histórica rigorosa e da própria ciência natural, como exige seu abandono em nome de um novo puritanismo ético, de caráter laico-utópico, muito mais amplo e persuasivo do que o comunismo.

É impossível separar o homem de sua natureza histórica e de sua história natural – natureza esta que é a base de sua própria existência –, já haviam nos ensinado os alemães9, mas a "nova esquerda" não se contentou em suplantá-los – aniquilando, por tabela, o legado de Morgan e Darwin – , libertando também a própria ideia humanitária de qualquer determinação complexa para torná-la apanágio exclusivo de uma “vontade política” personificável.

Não é por outro motivo que complexas antinomias se transformaram em simples paradoxos na verve de lideranças prestidigitadoras, capazes de, em frases curtas e penetrantes ao nível do subconsciente, ressignificar a conexão entre economia e política de modo a possibilitar a mais ampla e discricionária liberdade da última sobre a primeira – maximizando o pecado original leninista.

"Se, ao final de meu mandato, cada brasileiro puder se alimentar três vezes ao dia, terei realizado a missão de minha vida”10, disse LILS, a maior liderança política da esquerda brasileira desde a redemocratização, ao tomar posse em 2002, sem maiores preocupações com o fato de que o capitalismo nativo havia sido capturado pela "doença holandesa" (rentismo) e que a realização de seu sonho – mais do que justo, inadiável – não seria sustentável sem reformas econômicas que visassem, mais que o consumo das famílias – perspectiva de curtíssimo-prazo dos liberistas –, os investimentos produtivos capazes de criar empregos e produtos, além de reformas políticas que pusessem fim ao domínio neopatrimonial sobre o Estado, que, junto com o setor financeiro, se constituem em verdadeiros “devoradores de mais-valia”11 ou, em outras palavras, parasitas dos excedentes que deveriam sustentar a economia pública e privada de todos.

1 A Ideologia Alemã – crítica da filosofia alemã mais recente nos seus representantes Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner e do Socialismo Alemão nos seus diferentes profetas, ed. Centauro/SP, 2006, pp. 11-12, 15.
2 ¿A Que Herencia Renunciamos?, in. Obras Escogidas Vol.1, ed. Progreso/Moscú, 1979, passim.
3 Op. cit. p. 15.
4 Op. cit. pp. 96-97.
5 A Ideologia Alemã, p. 29, grifo meu.
6 id. p. 45, grifo meu.
7 Id. p. 31.
8 No lugar de “socialismo científico”, como preferia Bernstein, apud. Paulo Paim, in. Eduard Bernstein, Socialismo Evolucionário, ed. Zahar/RJ, p. 11.
9 Id., pp. 32-33.
10 Luís Inácio da SIlva, apud. Bernardino Furtado e Ronald Freitas, Cruzada Contra a Fome, in. <http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT432696-1659,00.html>, edição 233 de 04/11/02, em 20/07/18.
11 Gramsci, apud. Giuseppe Vacca, Modernidades Alternativas – o século XX de Antônio Gramsci, ed. FAP-Contraponto/DF-RJ, 2016, p.190.
12 Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).


Hamilton Garcia: Por que somos assim? A evolução da esquerda IV - A Era Petista

Às vésperas de seu ocaso político, o PCB, ainda não atingido em sua espinha dorsal pela repressão e tentando reconquistar a liderança perdida na sociedade civil depois da dura derrota de 1964 – vide artigo anterior –, produziu um documento que, não obstante o linguajar anacrônico e os resquícios canônicos do marxismo-leninismo, apontou com precisão a direção da luta política a uma esquerda envolta nas brumas do mito revolucionário: “mobilizar, unir e organizar (…) (as) forças democráticas (…) contra o regime ditatorial (…) e a conquista das liberdades democráticas" .
Nesta resolução, a unidade democrática ainda não havia assumido a fórmula rígida do MDB: "As formas concretas que assumirá a unidade (…) serão ditadas pelo desenvolvimento da luta. Por ser uma reunião de forças heterogêneas, a frente (...) desenvolve-se simultaneamente com a luta entre os seus próprios componentes. (...) Os comunistas defenderão sempre, no seio da frente (...) a necessidade (...) de organizar (...) o povo (…)” .

Tampouco a frente tinha seu foco principal nas forças liberais – como aconteceria a partir de 1978: "A batalha antiditatorial exige um cuidado prioritário pela unidade das forças mais avançadas da frente única. Os comunistas obrigam-se, por isso, a dirigir sua atenção (...) para a aproximação com as diversas correntes que se incluem no movimento de esquerda (…)" .

O realismo político pecebista, envolto na bandeira já rota do bolchevismo, não foi suficiente para neutralizar a atração que o guevarismo exercia sobre os jovens militantes, o que os impeliu a usar as primeiras grandes manifestações sociais contra o regime, convocadas por eles – a mais famosa delas a Passeata dos Cem Mil, em julho de 1968 –, numa mobilização em prol não da constituição da frente democrática, mas da frente popular articulada à guerrilha urbano-rural; o que acabaria por reforçar a ditadura, limpando o terreno para a institucionalização do arbítrio, em dezembro (AI-5), e o esmagamento da oposição, que esboçava seus primeiros atos ampliados de resistência, não só com base nos intelectuais e nos estudantes, mas também com o apoio do operariado e da Igreja (católica).

Como já vimos, os comunistas, fortemente perseguidos, deixaram escapar a forma concreta com que a frente democrática se apresentaria à partir do ressurgimento dos movimentos sociais – estudantil (1977) e operário (1978). Mas, como em política não há vácuo, as forças progressistas aninhadas nos movimentos sociais, na imprensa alternativa (Opinião e Movimento) e no MDB-autêntico – inclusive as bases do PCB –, passaram a discutir a criação de um partido popular, que, todavia, esbarraria na pretensão das lideranças exiladas em reconstruir/legalizar seus próprios partidos.

O impasse intraoposicionista, que opunha lideranças internas e exiladas, só se resolveria após a segunda greve operária do ABCD (março de 1979), em favor das forças internas, quando a intervenção policial projetou Lula como liderança política nacional autônoma, sem vínculos com as forças tradicionais da esquerda (neostalinistas, castristas, maoístas e nacionalistas) e em rota de convergência com os teólogos da libertação – nova tendência assumida pelo catolicismo de esquerda depois da desagregação da Ação Popular (1962).

É daí que surge o Movimento Pró-Partido dos Trabalhadores (1979) que, sem conseguir atrair as velhas lideranças em vias de retornar do exílio (Prestes, Brizola e Arraes), é bem sucedido em atrair os resquícios da diáspora esquerdista – excetuando os stalinistas –, os ambientalistas, a juventude progressista e uma miríade de novos movimentos sociais oriundos da urbanização dos anos 1960-70.

O PT vem à tona operando uma série de rupturas necessárias à sobrevivência da esquerda radical no novo contexto. No plano da composição social, a classe trabalhadora deixa o segundo plano que ocupava no PCB, cujos quadros históricos eram de origem militar, e passa a ser a principal fonte política de impulsionamento da nova agremiação; não obstante a preponderância castrista na esfera organizava (máquina partidária) e dos intelectuais marxistas no âmbito da luta ideológica.

No plano da estrutura interna, o PT também inovaria assumindo um caráter federativo e pluralista, típico dos partidos socialistas ocidentais, em oposição ao centro único dos partidos comunistas. Isto fez com que os petistas, no curto e médio-prazo, tivessem dificuldades competitivas com os partidos centralistas que disputavam o controle dos movimentos sociais, mas tais dificuldades acabariam superadas pela capacidade da nova formação política em atrair militantes e simpatizantes em diversos segmentos sociais, e campos ideológicos – em particular entre os cristãos –, além de votos.

No plano ideológico, de novo, a inovação aproximou o PT do paradigma socialdemocrático – sem adesão efetiva ao campo –, onde predominava uma acepção ampla de classe trabalhadora e ideais socializantes vagos o suficiente para comportar uma ampla diversidade de crenças organizadas numa luta interna pactuada.

Todas estas inovações, porém, ocorreram à moda transformista, sem efetivo revisionismo político-ideológico e acalentando boa dose de utopismo, tornando o PT um feixe de forças sociais e ideologias contraditórias, amalgamadas pelo carisma de um líder pragmático que perseguia o poder externo (Estado) com base no controle do poder interno (aparato partidário) por meio de lideranças unicistas de viés totalitário, e amparado em discurso de fundo místico-libertador que aliava utopia e pragmatismo numa perspectiva classista singular, baseada no neocorporativismo identitário.

Tal combinação mostrou-se poderosa fórmula para se chegar ao poder, eclipsando e contornando o espinhoso debate acerca do papel da democracia política, e suas instituições, na construção de uma sociedade mais justa e menos desigual – para não falarmos das instituições econômicas necessárias para tornar sustentável tal propósito. Mas, ao mesmo tempo, se mostrou insuficiente para fundar uma nova tradição apta a renovar a política brasileira, construir um novo modelo de desenvolvimento (sustentável) e resistir aos perigos do carisma e do poder – inclusive à sedução do dinheiro.

A nova esquerda radical – de feições "ornitorrínticas" – atravessou o rubicão do poder, depois de treze anos à frente da União, mostrando toda sua incompetência política e programática, não só para manter a sustentabilidade econômica de seu projeto – afundando o país na maior recessão de sua história –, mas para reverter o lento e persistente esgarçamento dos valores e das instituições públicas/privadas parasitadas pelo etos neopatrimonial das elites dominantes desde a redemocratização; às quais, finalmente, se rendeu e se converteu, em cabal demonstração da esterilidade da fórmula radical convencional no Brasil democratizado.