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Cristovam Buarque lista lacunas que entravam desenvolvimento

Ex-senador vai participar do primeiro debate da série de eventos on-line em pré-comemoração ao bicentenário da Independência, realizado pela FAP e Folha da Manhã

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O ex-senador Cristovam Buarque afirma que as políticas econômicas do Brasil foram marcadas pelo que ele chama de “lacunas”, como a incapacidade de perceber que a pobreza, os limites ecológicos, o planejamento de curto prazo e a falta da “educação de base como vetor do progresso” entravam o desenvolvimento do país.

Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e ex-governador do Distrito Federal (DF), Cristovam diz, em entrevista ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), que “o país trata a pobreza como assunto meramente social, uma questão de consciência ética para erradicá-la”.


Confira o vídeo!


“Não percebemos que o quadro de pobreza – pessoas sem saúde, sem saneamento, sem comida, sem educação – entrava no desenvolvimento. Tratamos de pobreza como se ela fosse solucionada pelo crescimento econômico, como agora estamos vendo que o fato de não termos superado a pobreza entrava em nosso desenvolvimento”, analisa.

Cristovam vai participar do primeiro debate da série de eventos on-line em pré-comemoração ao bicentenário da Independência, que será realizado, na sexta-feira (14/5), a partir das 16 horas, pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e Folha da Manhã. Veja mais detalhes do webinar ao final desta reportagem.

Foto: Reprodução/TV Senado
Maior lacuna contrária ao desenvolvimento é a falta de percepção sobre “a educação de base como vetor do progresso”, avalia Cristovam Buarque. Foto: Reprodução/TV Senado

Desenvolvimento sustentável

O ex-senador ressalta, ainda, que os limites ecológicos prejudicam o desenvolvimento nacional. Ele lembra que o Brasil iniciou o Proálcool, em 1975, em uma década na qual “deveria ter se pensado em desenvolvimento sustentável”. “Mas nossos economistas não pensaram nisso”, critica.

Depois de 17 anos, o país sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 92, mas, segundo o ex-governador do DF, não aproveitou a chance de se tornar o líder do desenvolvimento sustentável. “Agora a gente está percebendo que vai ter que mudar a orientação do processo produtivo”, alerta.

“Os combustíveis fósseis vão ser proibidos em questão de tempo. O Brasil poderia ser pioneiro em automóveis elétricos, mas não trabalhamos nisso. Foi uma lacuna não ter percebido o desenvolvimento”, ressalta.

Na avaliação dele, a maior lacuna contrária ao desenvolvimento é a falta de percepção sobre “a educação de base como vetor do progresso”. “Tratamos educação como serviço social, assim como saneamento, coleta de lixo, habitação. Educação é mais do que um serviço, é um vetor. Por isso, uma criança fora da escola é vista como problema da família e dela própria, não do país’, lamenta.

Além disso, de acordo com Cristovam, a falta de planejamento a médio e longo prazos prejudicam o desenvolvimento do país. “Nunca se pensou na perspectiva de 30 a 50 anos, o que iria acontecer no futuro. Chineses e sul-coreanos pensam assim, e deram certo”, compara ele.

“Mordomias, desperdícios”

Ele também chama a atenção para o “esgotamento do estado” como entrave para o desenvolvimento. “Há esgotamento financeiro, já que não dá mais pra aumentar imposto, e moral, como a corrupção entranhada. Os planos de desenvolvimento, como eram chamados, cederam a mordomias, desperdícios, ineficiências, tudo isso foi tolerado e continua”, assevera.

O professor emérito da UnB também avalia que economistas foram responsáveis por dar legitimidade aos populistas, esquecendo todas essas lacunas. “Quem toma decisão são os políticos, mas quem pensa para os políticos são os economistas, os quais nem chamo de ideólogos, são teólogos dessa religião”, afirma.

Ele lembra, também, que, desde a Independência até 1942, o Brasil teve só uma moeda. “De 42 a 94, seis moedas diferentes, isso foi o resultado da inflação, produzida por alianças entre políticos populistas e economistas que não perceberam os limites fiscais. Os economistas chamam de gastos os investimentos em educação e saneamento, por exemplo”, critica.

SERVIÇO
Webinar | Bicentenário da Independência: a política econômica do desenvolvimento, de Vargas aos nossos dias
Data:
 14/5/2021
Transmissão: a partir das 16h
Onde: Portal da FAP e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade
Realização: Fundação Astrojildo Pereira e Folha da Manhã

 

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Hamilton Garcia: A crise e suas raízes

A crise que vem estiolando a democracia brasileira ganhou novos contornos com a chancela do golpe judiciário de Fachin e sua consequência mais vistosa, mas não única, de livrar Lula de suas condenações na Justiça, tornando-o elegível. Com ela, o STF perde as credenciais para manter a disputa política no terreno da Constituição, pois não pode existir leis quando não existem instituições, no caso em tela, quando a corte suprema, intempestivamente, anula anos de trabalho árduo de suas instâncias decisórias, da primeira à última, fazendo tábula rasa de seu próprio sistema, o que só contribui para projetos autoritários que intentem transformar as instituições em meras ferramentas de poder.

Se chegamos até aqui sem maiores sobressaltos políticos, que não aqueles próprios da disputa pelo poder nas democracia liberais – no nosso caso agravada pela má formação/legislação política –, apesar da crise, é porque as instituições de controle foram capazes de impor algum limite ao modo como as elites usufruem do poder, como se viu em vários episódios no Legislativo (cassação de Collor e Dilma) e Judiciário (Mensalão e Petrolão).

A percepção das elites dominantes afetadas, todavia, é radicalmente oposta. O Petrolão, em particular, parece ter rompido todos os limites imaginados pelos donos do poder, depois de alcançar grandes empresários, bater às portas do sistema financeiro e detectar movimentações financeiras suspeitas em escritórios de advocacia de parentes de ministros do STJ e do STF. Do pânico à reação, tivemos a blindagem de Michel Temer na Câmara Federal, com a complacência de Rodrigo Maia, e no TSE (chapa Dilma&Temer), sob a batuta de Gilmar Mendes, que, já no Governo Bolsonaro, articulou com Dias Toffoli o famoso inquérito do fim do mundo dirigido por Alexandre de Moraes, tudo isso colaborando para aprofundar o fosso que separa a sociedade de suas elites dirigentes no Estado.

Os dois primeiros episódios, ofuscados pela poderosa máquina de narrativas do petismo, abriram caminho para a ruptura eleitoral de 2018, quando a extrema-direita chegou ao poder empunhando a bandeira da reação ao pacto corrupto plasmado no Governo Temer. Não é de espantar que tenha sido assim, afinal, o esforço de “estancar a sangria” uniu grande parte dos partidos, da direita à esquerda, deixando o campo livre para os aventureiros (“não políticos”), com o agravante que o lulopetismo, último bastião reformista a ser tragado pelo “mecanismo”, depois do PSDB e, de certa forma, do PMDB, arrastou consigo boa parte dos intelectuais que haviam sido capazes de forjar uma opinião pública democrática e inclusiva nas últimas décadas.

Mas, antes de falar das raízes da crise atual, devemos situá-la no plano das crises anteriores da República. O sistema neopatrimonial de dominação, constituído por blocos históricos erigidos em cada etapa do desenvolvimento capitalista do país, atravessou todo período republicano, sendo marcado por surtos de capitalismo de Estado – Estado Novo (1937-45) e Regime Militar (1964-84) – que se propuseram superá-lo sem lançar mão da mobilização social, como já ocorrera, em certa medida, em 1930.

Apesar das importantes transformações provocadas por estes surtos – sobretudo na promoção dos interesses das novas classes sociais ligadas à produção e aos serviços modernos –, o último deles, o bloco histórico militar-burguês-imperialista, não obteria êxito em superar o caráter neopatrimonial do sistema, já que seu caráter politicamente reacionário o impedia de ampliar o arco de alianças modernas necessário para virar definitivamente a página da República Velha e, em fim, alcançar os trabalhadores. Assim, mantida a natureza elitista do sistema, o ocaso do regime de 1964, naturalmente, ensejou expectativas de um novo bloco histórico democrático, que alteraria a lógica oligárquica do sistema dominante, o que, de novo, não aconteceria – talvez pela semi-estagnação que se seguiu –, não obstante o aprofundamento das concessões em termos do acesso de novos grupos populares ao poder, iniciadas ainda no período militar (vide chaguismo).

Importante assinalar que tal sistema oligárquico não foi uma era de estagnação, como sustentado pela esquerda até 1958 – o que teria levado o sistema ao colapso –, mas de crescimento acelerado, sobretudo a partir de 1930, embora voltado principalmente para os interesses da burguesia, dos setores corporativizados do trabalho e das classes patrimoniais situadas no seio do Estado, o que propiciou a formação de uma classe média robusta, não obstante aquém das possibilidades/necessidades, nos legando um país semi-dependente, com uma massa popular urbana ainda em boa parte marginalizada dos frutos do progresso.

As possibilidades de progresso no interior de tal sistema, todavia, parecem ter chegado a seu limite depois do regime militar, como percebemos ao olharmos para a sucessão de ciclos curtos de forte recessão, vôos de galinha e crescimento abaixo do potencial, sob a direção das mais variadas coalizões políticas – de Sarney à Bolsonaro, passando por Cardoso e Lula.

A Nova República, ao que tudo indica, passará para a história como a derradeira fase de nossa modernização passiva, onde a democratização, lenta, sinuosa e precária, não pode mais ser emulada à base da simples expansão do Estado, ao custo de serviços públicos precários (seviciados pelo patrimonialismo), sistemas previdenciário e tributário regressivos, e uma educação incapaz de reverter a histórica discriminação social-racial.

As margens para o endividamento do Estado, criadas pela prosperidade dos surtos anteriores de capitalismo de Estado, sobretudo o último, se estreitaram, restando agora, como paliativo, pegar carona na revolução industrial chinesa e seus efeitos sobre o agribusiness – o que não será de muita serventia se não formos capazes de reverter o desmonte de nossas cadeias produtivas, em meio à doença holandesa propiciada pela incerteza cambial (real apreciado).

Isto, em outros termos, implica conter a prática do endividamento público em prol do gasto improdutivo e reverter a política externa engajada – de Lula ou Bolsonaro –, que nos colocou de costas para os grandes mercados consumidores de nossos produtos manufaturados, nos afastando dos acordos globais que poderiam abrir portas para cadeias produtivas mais complexas. A fórmula ultra-liberal de Guedes, não obstante seu apelo eleitoral/empresarial e as importantes reformas que propõe, em função de ignorar, na prática, o papel estratégico do Estado como fomentador do progresso e a importância dos investimentos sociais para o desenvolvimento, em plena era do despertar da consciência popular – inclusive sobre o caráter parasitário do sistema em vigor (vide revolta de junho de 2013) –, pouco poderá contribuir para a retomada do desenvolvimento sustentável.

Desde a redemocratização de 1985, o bloco histórico financeiro-patrimonial-corporativo operou a sustenção do sistema oligárquico por intermédio de uma ampla gama de coalizões políticas governamentais: da direita (Collor e Bolsonaro) à esquerda (Silva-Dilma), passando pela centro-direita (Sarney e Temer) e a centro-esquerda (Franco e Cardoso). O que tais coalizões tinham em comum, era o fato de se apoiarem em forças sociais e econômicas hegemônicas, que operavam a política econômica (liberal) baseada no consumo das famílias, sustentada, principalmente, pelo controle inflacionário, pela desregulamentação comercial, a apreciação cambial (incentivo à importação), pelo imposto de renda negativo (bolsa família), pelas transferências assistenciais (LOAS) e de capital (incentivos fiscais), e pelo crédito direto ao consumidor (público–privado).

O ponto crítico desta circulação de elites em torno do bloco histórico, se deu, como sabemos, na coalizão lulopetista de governo, mais especificamente, no final do primeiro Governo Dilma, quando o PT, acossado pela inquietação popular, tentou reposicionar sua estratégia de poder revitalizando o apelo de partido de massa anti-sistema, em detrimento do “compromisso histórico” com as elites (Carta aos Brasileiros), por meio da “nova matriz econômica”.

A inconsistência da propositura, todavia, forçaria o PT a um retorno hesitante ao “compromisso histórico”, àquela altura consciente de que a restauração do equilíbrio econômico, por meio do tripé (câmbio flutuante, metas fiscais e metas de inflação), obrigaria um desenlace político diverso daquele de 2005, quando Cardoso desarmou, na partida, o movimento que poderia ter levado ao impeachment de Lula.

A incapacidade petista de administrar o tripé na perspectiva do desenvolvimento, tirando o país da crise estrutural em que se encontra desde os anos 1980, se explica pela política de distribuição de renda sem bases materiais sustentáveis (social-desenvolvimentismo), a par do notório sectarismo político, que os impediu de produzir um novo consenso em torno da reforma necessária, ou seja, a criação de um novo bloco histórico voltado para a produção e o trabalho, que substitua o atual bloco rentista/parasitário – que cooptou Lula e defenestrou Dilma quando seus crimes de responsabilidade atentaram contra seus interesses.

Temer, que a sucederia, recomporia a coalizão governamental em torno dos interesses do bloco, o que lhe permitiu sobreviver aos próprios crimes de responsabilidade, inclusive os eleitorais. Os mesmos interesses, até aqui, têm mantido Bolsonaro no poder, não obstante ter ele superado todos os padrões anteriores de estelionato eleitoral e crimes de responsabilidade – entre eles, os investigados pela CPI da pandemia.

A resiliência do Capitão vai muito além de seu poder de mobilização popular. Seu principal trunfo é o desmonte da operação Lava-Jato, que une o bloco dominante em todo seu espectro. O estancamento da sangria, articulado ao nível dos Três Poderes da República, demonstra cabalmente a capacidade de reação de um bloco dominante diante da ameaça de neutralização de seu principal instrumento de poder: no caso, a corrupção sistêmica.

É certo que a tragédia da COVID-19 e a inépcia governativa, por ela exposta, podem abalar as bases sociais e o pacto celebrado em torno do Capitão, mas o custo de sustentá-lo tem parecido menor, para os próceres do sistema, do que o de recolocar o bloco militar no poder com Hamilton Mourão, seu Vice.

De certo, outras coalizões se apresentam como alternativa eleitoral ao impasse, mas sem apresentar qualquer programa para substituir a ordem em derruição. A exceção é Ciro Gomes, que não esconde sua pretensão de constituir um novo bloco, baseado na retomada do desenvolvimento econômico, com ênfase na inclusão social, inspirado no contrato social empreendedor e sustentável, de Mangabeira Unger, e na aliança de classes pelo desenvolvimento (novo-desenvolvimentismo), de Bresser-Pereira. Todavia, carece ele, até aqui, de uma imagem positiva para atrair o voto popular e de alianças capazes de minimizar resistências.

Enquanto a coalizão bolsonarista pende, por motivos eleitorais, ao nacional-desenvolvimentismo militar, mantendo Guedes como fiador do compromisso com o Mercado (neoliberalismo) e seu bloco – em termos crescentemente instáveis –, o centro político tateia uma saída, aparentemente sem se dar conta de que a volta à normalidade não nos leva para muito além dos horizontes do Governo Temer.

Diante das incertezas que rondam o pais, em meio à pandemia e ao pandemônio governamental, é inequívoco o ganho que teríamos com a saída de Bolsonaro. Mas, isto, por si só, teria apenas o efeito de tirar o bode da sala de uma casa cujos cupins já corroeram os alicerces: se nada mais for feito, para reformar seus alicerces, em pouco tempo, tudo pode piorar ainda mais.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[i])

São João da Barra, 08/05/21.


[i] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.

Fonte:


Hamilton Garcia: A viagem redonda - De volta à política de vetos

Nossas instituições democráticas são frágeis, ao contrário da retórica corrente: os partidos mal representam os setores sociais afins, as eleições não refletem satisfatoriamente as inclinações populares – sobretudo no Legislativo – e não propiciam a formação de governos minimamente coesos, a Justiça é seletiva e tendente à proteção de casta, e, como resultado, o sistema político padece cronicamente de legitimidade, fragilizando-se nas crises: não precisa ser um especialista para perceber.

Todavia, nosso problema genético central (verticalismo/insolidarismo) está fora do alcance das ideologias em voga (nacional-populismo x liberalismo), se constituindo em um desafio para além de qualquer ortodoxia, da qual, infelizmente, nossa intelligentsia também se encontra prisioneira, como no mito da caverna (Platão).

A principal causa dessa fragilidade reside numa cultura política, social e institucional, que aparta Estado e sociedade de tal modo que, sob os auspícios das regras institucionais, o voto popular reitera o  afastamento, ao invés de superá-lo, por efeito de um alargamento democrático que não enseja aprofundamento, ou seja, não propicia ao eleitor canais de exercício de sua autonomia face ao poder econômico e burocrático, impelindo os agentes político-partidários à busca do bem comum em meio às inexoráveis diferenças político-ideológicas.

As razões estruturais/normativas de tal dificuldade foram abordadas/indicadas em artigos anteriores (vide Clientelismo, Cargos e Voto – a erosão oligárquica da democracia). Cabe agora apenas delinear o retrocesso precipitado pelo baluartismo das lideranças civis, de todos os quadrantes, diante dos inequívocos sinais emitidos pelas massas desde 2013, ao cabo capturados/interpelados pelo bolsonarismo.

Comecemos pelo mais novo episódio da longa lista de disparates cometidos por essas elites nos últimos anos: o golpe judicial do Ministro Edson Fachin, anulando as decisões do juízo de Curitiba sobre as ações penais que levaram Lula à prisão e inelegibilidade. Não interessa aqui discutir as razões político-jurídicas que motivaram o Ministro – há farto material para consulta sobre o tema –, apenas pontuar sua recepção pela sociedade e certas corporações (sociais e burocráticas) fundamentais para os destinos da nossa democracia.

Comecemos pelos eleitores. Segundo o instituto Paraná Pesquisas, 57,5% dos brasileiros discordaram da decisão de Fachin, contra 37,1% que concordaram; a única região destoante foi a Nordeste, onde 52,6% concordaram e 41,3% discordaram do magistrado. A pesquisa tem números próximos à outra do mesmo instituto, de junho de 2019, onde 58% se disseram favoráveis à manutenção da prisão de Lula, enquanto 36% se posicionaram contra. Fica claro que, para a maioria dos eleitores, ontem e hoje, Lula deve pagar pelos crimes que cometeu e que a tradicional impunidade brasileira parece ser a fonte da inesgotável credibilidade do ex-Juiz Sérgio Moro, reconhecido pela maioria (59,2%), em levantamento de março/21, como um juiz imparcial, mesmo entre os menos escolarizados (53,7%).

Também no topo da pirâmide, importantes empresários manifestam seu veto ao ex-Presidente, beneficiário imediato, embora não exclusivo, da medida judicial, e, crescentemente, também ao mandatário atual. O editorial do dia 9 do jornal Estado de São Paulo, que vocaliza o ponto de vista desta fatia da opinião pública, é taxativo: "Jair Bolsonaro está conseguindo fazer o que parecia impossível. Ao ignorar suas responsabilidades e debochar continuamente dos problemas do País e da saúde dos brasileiros, está abrindo caminho para o retorno político do sr. Luiz Inácio Lula da Silva, (…) agora que o ministro Edson Fachin anulou todas as condenações do demiurgo de Garanhuns (…). Bolsonaro, por palavras e omissões, ajudou a recriar o monstrengo que já atormentou em demasia este país”.

A duríssima sentença acrescenta um novo ingrediente à crise política, depois da manifesta assunção por parte do ex-Comandante do Exército, Gen. Eduardo Villas Bôas, do veto militar à postulação presidencial do petista; prossegue o editorial: "O assunto é da maior gravidade, pois traz de volta ao cenário político um grande perigo para o País (…): o ressurgimento do fantasma do lulopetismo. (…) O mais famoso ficha-suja do País, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro (…)”.

Coloca-se assim, em linha, de novo, dois vetos que, outrora, em momentos distintos, ao longo dos anos 1950-1960, produziram duas deposições presidenciais (1954, Vargas, e 1964, Goulart) e duas tentativas de deposição (1956, Kubistchek, e 1961, Goulart). Me refiro aqui ao veto militar, empresarial e da classe-média, à Vargas e seus sucessores, e também à Jânio Quadros, que, se aproveitando do primeiro veto, tentou tirar proveito dele ao renunciar à Presidência poucos meses depois de assumí-la, mandando o Vice Goulart para uma missão diplomática na longínqua China comunista, na esperança de assumir poderes excepcionais para governar. O tiro saiu pela culatra porque Quadros não percebera que o veto ao varguismo se estendia à toda forma de populismo, inclusive àquele representado pela direita, onde ele se inseria.

A condenação aos dois populismos está na ordem do dia, não só entre os eleitores e empresários, mas também entre os militares. É o caso do Gen. da Reserva e ex-Ministro Santos Cruz, que, em reação à decisão de Fachin, afirmou: “o Brasil não pode mais depender, nem viver, numa guerra de extremistas. (…) O fanatismo só está atrapalhando o Brasil. (…) A grande parcela da população não quer participar dessa novela sem fim”. Oficiais da Ativa do Exército, que costumam não se manifestar, também falaram, sob anonimato, que a decisão do Ministro do STF pode beneficiar “extremistas” de esquerda e de direita. Mas foi Cruz, involuntariamente, que acabou expondo o estado de espírito da caserna ao pregar moderação: "Tem de esperar, ainda há passos jurídicos. Ninguém tem de se precipitar”.

Até o reservado Gen. da Reserva Sérgio Etchegoyen, ex-Ministro do Governo Temer, se mostrou incomodado com a decisão ministerial, indagando: “Por que essa decisão monocrática que se sobrepõe a dois tribunais colegiados (TRF-4 e STJ) não é um risco à democracia? Ou é um risco para a democracia só quando um general fala?”, em alusão ao tuíte de Villas Bôas, em 2018, que ele justifica como um recado à tropa “para evitar que alguém da reserva dissesse alguma bobagem” – na verdade, alguém da Ativa fizesse alguma bobagem. Aqui, para além da condenação ao ato judicial, temos a volta do velho sentimento militar do Império – que precipitou seu fim – de que a elite civil os discrimina e hostiliza.

A ideia de fazer "alguma bobagem” está posta desde a prisão de Lula, mas agora, depois do indulto de fato que ele recebeu, aparece explicitamente nas falas de dois Gen.s da Reserva: Luiz Paiva, ex-Comandante da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, e Eduardo Barbosa, Presidente do Clube Militar, eleito como Vice na chapa de outro Gen. da Reserva, Hamilton Mourão, hoje na Vice-Presidência da República.

Paiva simplesmente afirma que Fachin "praticamente, arremessou no lixo a Operação Lava Jato e, com ela, a esperança da sociedade num futuro mais digno”, "colocando em risco”, junto com outras medidas tomadas pelo tribunal, "a paz, a harmonia e a própria unidade nacional”. Em sua perspectiva, "o que é supremo não é a lei e sim a Justiça e esta não existe quando a lei é usada contra o bem comum”, alertando que "a liderança nacional" deve ter em mente que as Forças Armadas "ficarão unidas e ao lado da Nação, única detentora de sua lealdade". Por seu turno, Barbosa, considerando a posição de Fachin como "a vitória do banditismo”, não só afirma ser Lula "o maior político criminoso que esse país já conheceu”, como sentencia que "lugar de ladrão é na cadeia”.

Como argumentei em artigo recente (O esgotamento da democracia de clientela), a forte presença do bolsonarismo no interior das médias e baixas patentes da Ativa das Forças Armadas, além das polícias estaduais, coloca Bolsonaro em situação especial nesta crise, distinta daquela vivida por Jânio Quadros, apesar de também ser um de seus pivôs: sua capacidade de dividir os quartéis e, efetivamente, agitar tropas ao arrepio dos Altos Comandantes. Outra diferença significativa entre os dois personagens, separados no tempo por mais de meio século, é que Bolsonaro costuma expressar francamente o que pensa, na linha oposta da astúcia dos velhos populistas do séc. XX, o que, todavia, não é suficiente para lhe garantir a simpatia da cúpula militar ou empresarial, ao contrário do que ocorre com as massas, dada sua dificuldade em exercer liderança positiva.

Gen. da Reserva Paulo Chagas, bolsonarista de primeira hora, é um vocalizador desta percepção de que Bolsonaro não é capaz de "tomar o rumo da harmonia, da União”, se revelando "um narcisista deslumbrado” com o poder, o "que faz com que ele se comporte pensando que é mais do que é na verdade”: um "trapalhão (…) que não cumpre o que promete”, fulmina. Sendo contra o processo de impeachment, Chagas defende, alternativamente, que alguém diga para ele que, "a partir de agora, tem que fazer assim”, o que pode ser entendido como a defesa de um ultimato das cúpulas militares à seu Chefe Supremo – o que, no caso, se parece com um "auto-golpe".

Nada disto nos autoriza vaticinar que marchamos para o mesmo desfecho de 1964, dado que as circunstâncias são outras e os atores também. Apenas sugere que voltamos a um ciclo de crises que parecia superado no séc. XXI, mas que na verdade não o foi. E isto não se deve exclusivamente à mentalidade militar, supostamente tutelatória da cidadania e monopólica do patriotismo, mas, sobretudo, a uma incapacidade crônica das elites civis em olharem para além do próprio umbigo, corporativo ou de domínio, engendrando soluções mais amplas e efetivas sobre os problemas do desenvolvimento, da desigualdade e da justiça no país, que nos enredaram numa teia de estagnação, pobreza e corrupção que parece não ter solução.

Persistir em ignorar tal realidade ou tentar mascará-la com as práticas do neopatrimonialismo/corporativismo ou as narrativas mágicas das velhas ideologias/ortodoxias dos "salvadores" de plantão, tem tudo para nos chafurdar ainda mais na crise, fechando o círculo de nossa mais nova viagem redonda – outra velha sina da civilização brasileira.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[i])


[i] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.


Hamilton Garcia: O esgotamento da democracia de clientela e os perigos que se avizinham

Falar no esgotamento da democracia de clientela após duas vitórias sucessivas do Centrão, nas eleições municipais de 2020 e nas mesas do Congresso Nacional, pode parecer totalmente despropositado, mas não é. Já há praticamente um consenso, entre muitos analistas políticos, de que a Nova República se esgotou, ela, que não obstante os sinais vindos da luta democrática dos anos 1970-1980, se desenrolou, a partir dos anos 1990, como um movimento transformista que, sob o impulso da luta pelo governo representativo (presidencialismo de coalizão), instaurou, de fato, um regime semi-representativo (presidencialismo de cooptação).

Mas é preciso discutir mais detidamente de qual esgotamento estamos falando. Não se trata apenas, pelo alto, de como a degeneração e a fragmentação partidária erodiram o sistema de representação, mas também, por baixo, de como o eleitorado foi levado a participar, por meio da velha cultura (coronelismo), da política de clientela – que, no nosso caso, apenas em parte se parece com a política de clientela norte-americana, baseada em ativismo social (grupos de pressão) e em modelo partidário horizontal (primárias/caucus) emulado por sistema eleitoral majoritário.

Não apenas isto, mas é preciso entender ambos os fenômenos em chave com o modo de produção predominante no país, no caso, um capitalismo reprimarizado, baseado em exportação de commodities e importação de manufaturados ou seus componentes, com forte participação do setor de serviços e baixa qualificação da mão de obra. Tal modelo, semi-estagnacionista e dependente, não é compatível com o Estado de Bem-Estar e, portanto, com a tão almejada equalização social, e por um motivo básico: sua cadeia de produção/valorização não gera renda compatível, na forma de lucros, impostos e salários, capaz de sustentar tal pretensão. Assim, só resta o endividamento público como viga de sustentação das amplas expectativas sociais e dos interesses privados, a par de porto seguro para o emprego da classe média e de auxílio aos miseráveis, em condições crescentemente gravosas, dado o pesado custo dos juros imposto pelo sistema financeiro nacional – setor hegemônico do bloco histórico em crise.

Claro está que, sem a mudança deste modo de produção – que só pode ser viabilizado por coalizão política ampla de forças político-sociais, o que não se confunde com bloco parlamentar ou simples coalizão eleitoral –, a crise atual não tem solução efetiva, quando muito pode ser rolada e sempre em condições mais críticas. Ocorre que, como historicamente sabemos, são muitas as rotas para a mudança, o que, por si só, não garante que ela seja de fato alcançada, nem mesmo em seu modo mínimo para não falar do ótimo.

O Governo Bolsonaro encarna a mais nova tentativa de mudança desde que o PT abdicou, de fato, desta postulação, em 2002, em prol de um “lugar ao sol” no sistema de domínio, com a diferença de que a extrema-direita sequer tinha um programa digno do nome e que chegou ao poder pela inusitada, embora prenunciada (junho de 2013), revolta de uma população apartada de instrumentos institucionais (partido político) para operar efetivas mudanças políticas.

Como não poderia deixar de ser, inclusive por suas idiossincrasias, tudo aconteceu de maneira mais rápida e atabalhoada com Bolsonaro, até mesmo se comparado à FCM. Já na largada, JMB expôs a fragilidade de sua coalizão eleitoral na crise com os Ministros Bebiano e Cruz, e embora tenha aprovado a Reforma da Previdência, esta se deveu mais a um consenso social, enquanto o Presidente iniciava sua luta desesperada pela própria sobrevivência. Em certa medida, o Governo foi "salvo" pela pandemia, que se transformou em álibi de sua anomia política, ao fim remediada pelo “porto seguro” do Centrão. É verdade que existem dúvidas fundadas sobre tal “segurança”, sobretudo diante de um governo tão frágil quanto atabalhoado. Mas é preciso olhar também para a crise do sistema, onde Bolsonaro se agarra.

Não se pode descartar que o liberalismo radical de Guedes tenha encontrado sua mediação clássica no Brasil neopatrimonial com a "nova" coalizão, o que possibilitará ao bolsonarismo, pelo menos em tese, por meio de sua ala militar, neutralizá-lo enquanto utopia burguesa e convertê-lo de obstáculo à catapulta de um novo arranjo nacional-desenvolvimentista, como já vislumbrado no PAEG em contexto histórico distinto, num cavalo de pau de difícil compreensão, inclusive para os observadores da história que ignoram as implicações da via prussiana em nosso longo processo de modernização.

O PAEG, é verdade, se desenvolveu sob a tutela militar, tutela que hoje seria esmaecida, o que pode comprometer o enquadramento dos atores políticos envolvidos na trama e, consequentemente, seus fins, caso não demonstrem a exata noção do que estão fazendo e em quais circunstâncias. Não obstante, a crise aguda força os atores a uma consciência diferenciada na luta pela própria sobrevivência, como nos ensinou Lênin, o que implica, hoje, em se observar e responder ao desespero social que se anuncia. Não apenas isto, será preciso também tratar da retomada econômica para garantir a renda do trabalho após a emergência, estimulando a esperança dos trabalhadores por dias melhores. Para que tal retomada aconteça, de outro lado, as reformas em discussão no Congresso deverão englobar medidas que contemplem a reindustrialização do país, a começar pelos setores que já dominamos e os que impliquem em enfrentamento da pandemia, como a indústria farmacêutica.

Se isto tiver sequência no âmbito do programa econômico da coalizão bolso-militar-centrista, restará observar a cena político-judiciária, ainda mais incerta em razão das pressões sociais que afetam os aparatos de justiça desde o Mensalão (2005). Mais especificamente, será preciso verificar se um eventual clima de otimismo econômico extra-Mercado será capaz de neutralizar o previsível aumento do mau humor dos cidadãos com seus representantes e a burocracia pública, em meio ao novo cenário de conforto projetado com o fim da Lava-Jato e a possível reabilitação jurídica de vários de suas "vítimas" de colarinho branco, que podem ensejar, a partir de agora, uma ida aos cofres com ímpeto represado, capaz de abalar a credibilidade que resta da reputação anti-sistêmica do bolsonarismo, além de acumular mais combustível sobre mata ressecada.

A própria blindagem de Bolsonaro pelas elites, em função, principalmente, do estancamento da sangria e seus supostos efeitos distensionistas sobre a política e a economia, é aposta inflamável no pior cenário. Nada disso deve passar desapercebido pelos estrategistas do bolsonarismo, que mantém na manga a carta do “auto-golpe", que, no caso do bolsonarismo, como se sabe, está longe do inverossímil e brancaleônico "exército do Stédile”, configurando, de fato, perigo tangível.

Diante disso e da incrível capacidade interpelatória das narrativas bolsonaristas – cuja diferença essencial em relação às narrativas lulopetistas reside tão somente em sua maior facilidade assimilatória pela massa –, é possível que o ônus deum eventual insucesso da coalizão bolsocentrista, em meio às frustrações econômicas e/ou o pipocar de escândalos de corrupção, possa ser jogado, com grandes chances de êxito, nas costas do STF, do próprio Centrão – da qual Bolsonaro conseguiu se distanciar pela ótica popular, não obstante as rachadinhas – e da esquerda, por conta das manobras de anulação processual que podem favorecer LILS  – sob o beneplácito de Bolsonaro, diga-se de passagem – e, em sequência, outros apenados, como Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, entre outros.

Tudo isto estará sobre a mesa na campanha eleitoral de 2022, que se inicia agora, fora do controle do TSE, não devendo haver dúvidas sobre a disposição, inclusive já insinuada, de Bolsonaro entrar neste jogo com a intenção de “fazer o diabo para se reeleger” (DR), o que, na prática, projeta sua intenção de aceitar apenas o resultado que lhe beneficie. Isto, naturalmente, não dependerá apenas de sua vontade, mas também exigirá conjuntura favorável, como uma crise que conjugasse colapso social com desespero econômico e desmoralização das instituições republicanas, abrindo caminho para greves de caminhoneiros, alguma inquietação nos quartéis e apelos para a restauração da ordem, cenário em parte visto no pré-1964.

Um conflito desta envergadura não só é possível, como pode acontecer antes da suposta “fraude eleitoral”, em meio ao desarranjo de seu "novo" governo. Outra variável importante a considerar, é como a radicalização política e a frustração das massas com as instituições vai se manifestar, inclusive nos meios militares, já que desde 1930, como nos ensinou José Murilo de Carvalho[i], as FFAA se movimentam na cena política com vistas a conter as ameaças de ruptura vindas de baixo – como a de Prestes, em 1930/1935, e a de Jango/Brizola, em 1964. No contexto atual, todavia, a ameaça potencial vem do baixo-clero bolsonarista, o que tornaria o desenlace ainda mais complexo e incerto.

Fator decisivo para tal evolução da situação é como as massas reagiriam ao caos social. Não se pode descartar a hipótese de que um descontentamento geral se misture à anomia já instalada nas periferias das metrópoles, que, embora de difícil assimilação pelas elites intelectuais (liberais e socialistas) – tendentes a traduzí-la como questão ética –, segue sendo vivenciada pela população sitiada como desafio à sobrevivência, a exigir solução de força (desarmamento) sob os auspícios da lei, que, não acontecendo, escancara as portas para o puro arbítrio da força ilegal, alimentada pelas facções bolsonaristas. Em tal contexto, a politização da crise pela extrema direita poderia catalizar o desejo geral de estabilização e ordem, o que praticamente forçaria uma ação convergente por parte do Alto Comando das FFAA, embora ainda dentro da lei (GLO). 

Tudo isto nos coloca questões para muito além da ideia de resistência democrática experimentada nos anos 1960-1970, ideias que fossem capazes de neutralizar a perspectiva tutelar dos militares sobre a República, perspectiva esta que é a pedra angular do intervencionismo militar desde 1889 e que teve no Gen. Góis Monteiro, nos idos de 1930, um arguto articulador que a traduzia como a expressão institucionalizada da nacionalidade, em cuja sombra poderiam "se organizar as demais forças da nacionalidade"[ii].

À rigor, na posologia deste velho remédio, Bolsonaro não teria lugar, mas tampouco estaríamos à salvo de seus conhecidos efeitos colaterais. O mais sábio, à luz da história, seria reconhecer tais riscos e buscar evitá-los pela franca assunção da crise de nossa democracia (clientelista), articulando, sob o signo da reconstrução nacional, uma saída democrático-desenvolvimentista para a crise em diálogo com os militares.

De novo, pode não ser o ideal, mas é o que nos cabe em meio aos perigos que se avizinham.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[iii])


[i] Forças Armadas e Política no Brasil, ed. Todavia/SP, 2019.

[ii] Apud Carvalho, p. 120.

[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.


Hamilton Garcia: Democracia em transe

A democracia, como sabemos, não é "coisa nossa”, como no samba de Noel; basta uma rápida olhada retrospectiva, da Independência (1822) aos estertores do regime militar-civil (1979), como tentei fazer em artigos passados (vide Por que somos assim?, A democratização do Estado, entre outros): encaremos os fatos para superarmos os obstáculos que continuam em seu caminho.

Naturalmente, isto não significa que não possamos perseguí-la (melhor dizer almejá-la, nas atuais circunstâncias). É isto, precisamente, o que fizemos a partir de 1889, quando a República inaugurou um período de aspirações democráticas frustradas pela "distância entre intenção e gesto”, como canta Chico, ou, como explica a Sociologia Política de Simon Schwartzman[i], pela "falta constante de correspondência entre as instituições formais do país e sua realidade social e econômica” – a primeira nos remete ao direito, a segunda ao capitalismo periférico (dependente) –, nos legando a instabilidade política crônica cujos ecos ainda se ouvem.

Depois de três mandatos presidenciais cassados, um deles moralmente (Temer), e outra cassação por vir, talvez tenha chegado a hora de encararmos as coisas livre das ilusões partidário-personalistas de outrora, indo ao seu nó górdio, que parece estar nas escolhas feitas na última das tantas redemocratizações que tivemos, quando o problema da não correspondência, acima aludida, foi negligenciado e encarado pelo viés escapista, mais funcional aos atores que almejavam o poder, do privilegiamento da forma do sistema político ao invés de sua substância, vala dizer, a base sócio-econômica onde se assenta o edifício estatal, como assinalara Victor Nunes Leal[ii].

Leal, aliás, ao definir o que chamava de coronelismo, acabou por descrever a essência de nossa democracia, baseada, à época, no privatismo rural como cimento de nossa modernidade: "(…) concebemos o coronelismo como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. (…) Uma forma peculiar de manifestação do poder privado, (…) em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa”, gerando "o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços públicos locais” – isto sim, “coisas nossas".

Tratava-se, pensava o autor em 1947, de uma política de transição entre o "poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”. Mas, à medida de seu transcurso, a transição evoluiu para um modelo, onde os chefes partidários, controlando o poder público, direta ou indiretamente, se apropriavam de parcela dos recursos para atender a todo tipo de interesse privado: quer dos eleitores, quer dos empresários, transformados em repassadores de verbas desviadas dos serviços e obras públicas estas últimas consistindo no investimento bruto de capital fixo, tão vital para o progresso do país.

Tal modelo deu nova vida a um conservadorismo destinado ao desaparecimento, mas que, ao invés disso, ajustou-se às demandas da transformação capitalista (expansão do mercado) sacrificando a economicidade, a impessoalidade e a idoneidade das agências públicas, embora não sua funcionalidade ao capital em seu processo de acumulação – mesmo que ao preço da baixa produtividade/inovação. Isto o tornou palatável ao liberalismo econômico e também ao positivismo militar, à pretexto do controle sobre a "subversão".

O processo transformista que ele encerrava, com seu instrumental adaptado às novas condições emergentes (urbanização), seria institucionalmente moldado por meio de reformas políticas pontuais e casuísticas que procuraram sempre potencializar o apoio popular comprado, em detrimento do conquistado, sem maiores preocupações com princípios liberais ou a tão propalada racionalidade do sistema (accountability). Foi isto que permitiu ao neocoronelismo sobreviver à ditadura militar e, pelos motivos contrários (ampliação da frente antiditatorial), engatar nova metamorfose no interior do MDB sob o beneplácito do PCB. Assim, a tradição maldita (o descompasso histórico), o nó górdio de nossa crise estrutural, conseguiria sua enésima vida, agora como a base de massa para surfar a onda reversa do efeito plebiscitário pró-ditadura de 1966-1972, acaixotando, no percurso, os incautos, mais tarde forçados a abandonar o emedebismo.

A transmutação propiciou ao neocoronelismo não só galgar novos espaços no sistema partidário, como abduzir o próprio MDB, reduzido ao quercismo/temerismo, e assim esterilizar o potencial reformista da luta democrática dos anos 1970-1980, de quebra, levando de roldão até mesmo as alternativas criadas para combatê-lo (PSDB e PT) – fenômeno ainda não suficientemente discutido e compreendido pelos que dele participaram.

A forma inelutável, e de certa maneira imperceptível, como tudo se deu, só pode ser entendida se levarmos em conta os elementos da estrutura, que passaram a atuar como freio ao processo de autonomização dos sujeitos a partir dos anos 1980, enfraquecendo a Nova República ainda no ventre.

O desenvolvimento econômico que, ao longo dos anos 1960-1970, nas palavras de Carlos Nelson Coutinho[iii], pôs abaixo a "torre de marfim" objetiva que separava os intelectuais "dos problemas explosivos da sociedade", relegando-os ao "intimismo à sombra do poder” (Thomas Mann), foi fragilizado pela recessão dos anos 1980 e a semiestagnação que se seguiu, e que perdura arrefecendo a pressão progressista da transformação humano-material sobre o regressismo histórico do escravismo (precarização), que a superestrutura, desde sempre, tratou de explorar metodicamente.

O agravamento das dualidades institucionais históricas que se seguiu, só podem ser entendidas à luz deste compromisso perverso entre as forças democráticas e o neocoronelismo e a reação que se seguiu. Se, por um lado, a esfera política foi esvaziada pela despolitização do MDB e, na sequência, de seus herdeiros (PSDB e PT) refratários a tal perspectiva, de outro, os avanços institucionais de 1988, que impulsionaram a autonomia da burocracia pública diante do poder político e econômico, e, de quebra, no vazio político, possibilitaram a transferência de certas funções tribunícias dos partidos para o STF e o Ministério Público. Transferência esta, é preciso lembrar aos desmemoriados, que, não obstante os efeitos colaterais, se mostraram tão necessárias para resguardar "o espírito das leis” (Constituição), quanto, nos anos 1920, o tenentismo, igualmente com efeitos colaterais, foi para restaurar a República em meio ao “café com leite” dos Governadores.

Foi deste modo que Executivo e, principalmente, o Legislativo, viram seu papel de elo de ligação entre a sociedade e o Estado minguar, com o fortalecimento do Judiciário e suas instituições auxiliares (MP e PF), tendo o combate à corrupção sistêmica como sua bandeira mais vistosa (vide A Justiça por um voto), embora não exclusiva. Como se não bastasse tudo isto, muita gente importante foi para a cadeia e os escritórios de advocacia que orbitam os tribunais superiores entraram na mira das investigações criminais das forças-tarefa – para não falar dos principais bancos do país –, disparando o alarme de pânico no poder e desencadeando a maré montante do moralismo de algibeira dos condenados/investigados que ameaça a Justiça, o MP, a PF e a própria Constituição.

Para nossa desgraça, diante disso, observa-se um reformismo democrático fragmentado e impotente, incapaz tanto de resistir ao estupro da Constituição como até mesmo de liderar a luta pela óbvia reforma política, implícita nas manifestações de junho de 2013. E o que é pior, em alguns casos repetindo o erro dos incautos de outrora.

Abandonadas à própria sorte, as massas arremessaram, nas eleições de 2018, a única arma de que dispunham para tentar se livrar de sua já longeva servidão, a auto-reforma eleitoral dos "não me representam!”, que tirou de cena expoentes da velha classe política no vagalhão surfado pelo bolsonarismo e seus sequazes. O grotesco espetáculo que se seguiu, do reencontro do bolsonarismo com o grand monder da velha política (vide Clientelismo, Cargos e Voto), agora não mais como o “cão de guarda”, mas em paridade de armas com a elite dominante, mostra o preço a se pagar pela confusão/omissão dos setores progressistas, paroquializados em seus cálculos eleitorais e incapacitados de entender as dificuldades histórico-estruturais presentes por falta de instrumental teórico.

O tempo – "um dos deuses mais lindos”, "compositor de destinos”, como poetizou Caetano –, não parece jogar aqui qualquer papel positivo. Ao contrário, a intelligentsia insiste em considerar os problemas do passado, da nossa formação nacional, como problemas passados, reduzindo questões fulcrais da nossa modernidade política a meras "incompreensões conjunturais" ou "injunções da maturação institucional”, supostamente passíveis de solução “sem refundações”, que julgam "catastróficas".

Em meio a tantas névoas, incompreensões e um certo cansaço, a vida – de fato, a morte – virou a mesa e forçou o atual (des)governo a se voltar para o "novo real": uma crise recessiva que pode sepultar de vez seu projeto de reeleição, o que, paradoxalmente, lhe propiciou a janela de oportunidade para a revalorização do papel do Estado na vida econômica, não apenas como provedor de renda-mínima, mas como agente de desenvolvimento capaz de alimentar o progresso humano-material para o bem-estar geral.

Pena que, de novo, a chance venha pelas mãos da direita, depois de mais uma tergiversação populista da esquerda – a primeira foi no Plano Trienal (1963), da melhor tradição celso-furtadiana – que, além da ética radical, também abandonou a luta pela produção do progresso, se contentando com a menos trabalhosa distribuição, como se isto fosse possível – depois de Marx!

Resta torcer e lutar por um impeachment com reforma eleitoral-partidária para que a possível saída pela economia (desenvolvimentismo), capaz de abrir novos horizontes para milhões de cidadãos que querem continuar vivendo numa democracia representativa, não se transforme em combustível para o demagogo de plantão.

*Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[i])


[i] Bases do Autoritarismo Brasileiro, ed. Campus/RJ, 1982, p.17.

[ii] Coronelismo Enxada e Voto o município e o regime representativo no Brasil; ed. Alfa-Ômega/SP, 1978, p.20.

[iii] Cultura e Sociedade no Brasil ensaio sobre idéias e formas; ed. Oficina de Livros/BH, 1990, pp.20-21.


Hamilton Garcia: Bolsonaro e Mourão - da pandemia ao pandemônio

O segundo Governo Dilma começou a desandar na largada, quando sua titular se viu obrigada a nomear um Ministro da Fazenda que pensava o contrário daquilo que havia defendido durante sua campanha (2014), um caso de estelionato eleitoral tão notável como o confisco da poupança por Collor (1990), que na campanha lançara tal acusação contra o rival petista no segundo turno.

Tentando remediar o desastre de sua incoerência/inconsistência, Dilma fez de tudo para manter as aparências, não só praticando crimes orçamentários e fiscais para evitar descontinuidade de seus programas sociais, como também abandonando à própria sorte o ministro que nomeara. O resultado foi desgoverno e perda de apoio parlamentar (Centrão), que abriu as portas para o processo de cassação.

Bolsonaro não só repete Dilma e Collor no estelionato eleitoral, abandonando a luta anti-corrupção que ameaça tragar seu clã pelas práticas tradicionais do baixo-clero parlamentar (rachadinha) e os vínculos com o crime organizado (milícias), como também no desgoverno, por sua omissão no enfrentamento da COVID-19 e a desastrada tentativa de intervenção na PF – por ora barrada pelas denúncias de Sérgio Moro e a pronta ação do Ministro Alexandre de Moraes, do STF –, que marca a retomada de seus laços de sangue com o Centrão.

A incapacidade presidencial em construir uma coalizão governamental de centro-direita, que lhe desse base mínima de apoio político e parlamentar, já se delineara desde as demissões dos ministros Bebianno e Santos Cruz, em 2019, ganhando nova dimensão com a demissão de Mandetta e a renúncia de Moro, este último desnudando o deslocamento do eixo de ação do Governo do programa para o projeto de poder – outro aspecto do estelionato eleitoral –, não obstante a retórica do cerco político (programático). As dificuldades político-programáticas são reais, mas não se pode conceber o Centrão como um remédio para isto.

De outro lado, há claros sinais da insuficiência do programa ultra-liberal de Guedes, abraçado por Bolsonaro, a partir da constatação da tíbia recuperação econômica pré-pandemia. De lá para cá, a generalização do medo em relação ao vírus e os decretos do fim do mundo, adotados na esteira da omissão presidencial, instauraram a certeza de uma profunda recessão, agravado pela percepção do colapso da economia mundial, vale dizer, entre outras coisas, da cessação dos fluxos financeiros internacionais que alimentam a (dependência da) periferia capitalista.

A mudança radical de conjuntura fez Bolsonaro voltar a cogitar o programa econômico nacionalista que, outrora, permitira aos militares forjar o “milagre brasileiro" à partir do compromisso entre o desenvolvimentismo em si (sem desenvolvimentistas) e o liberalismo em si (mercado) – que nada tem a ver com o liberalismo para si (político). Assim, Guedes se vê em situação próxima à de Moro – cuja intransigência liberal-republicana limitou as possibilidades de transação –, podendo ser o próximo a ter que ceder os dedos – para um nacionalismo que se supunha morto – para não perder os anéis da influência privada interna no Estado.

Enquanto o Governo, expurgado de suas ortodoxias (liberais e republicanas) de campanha, se insinua ao centrão político, em busca mais de blindagem do que de governabilidade – como fizera o regime militar ao criar a ARENA e o MDB –, a velha política vê nisto a possibilidade de uma dupla blindagem: em relação aos aparatos jurídico-repressivos do Estado, via controle do MP, PF, etc., e à sociedade, por meio do anteparo bolso-cristão.

Bolsonaro, além de ter coragem política – o que o povo aprecia, pois foi o único, depois do Petrolão, que soube utilizar o capital político amealhado pelos lavajatistas para atacar a velha política, nela englobando a degeneração tucano-petista –, demonstra ter capacidade tática (readaptação) além de ter tomado gosto pelo poder, elementos essenciais ao jogo político-estatal.

O problema aqui é que sua personalidade farisaica e sua história terrorista (vide “#ELE NÃO” ou “#ELES NÃO”?) parecem indicar altos níveis de desarranjo político associado à baixos níveis de solução de problemas, o que torna crítica a questão de saber até que ponto ele terá condições de tocar seu novo Governo, com o apoio das FFAA, dos liberais encabrestados, do bolso-cristianismo e do Centrão, em meio a tantos estelionatos acumulados, aos escândalos por desabrochar e sua flagrante inapetência para a gestão.

Até aqui, o Presidente conseguiu arrefecer a perda de credibilidade nos extratos médios e altos da sociedade com apelos ao retorno do comércio e a distribuição de dinheiro (corona-voucher) às camadas populares, mas tudo isso tem prazo de validade e daqui a poucos meses estará ele diante de um quadro bastante adverso, com a população muito atingida pela epidemia, o desemprego ainda mais alto, a recessão estabelecida e um forte descrédito político geral. Quando esta situação se instalar, difícil crer que o impeachment não se tornará inevitável.

É aqui que voltamos a observar a movimentação do Vice Hamilton Mourão; não se sabe, exatamente, se no centro do gramado, onde Bolsonaro atua como dono da bola, ou à sua margem, com visão nova/própria de jogo e vontade de entrar em campo, como se viu, afoitamente, no início do governo.

Em artigo recente no Estadão[i], Mourão apontou a anomalia institucional como um problema que está "levando o País ao caos”, podendo se tornar uma questão "de segurança”, o que classicamente justificaria uma intervenção militar – no caso, um autogolpe. Para ele, a causa principal desta anomalia residiria na "polarização que tomou conta de nossa sociedade” e que é revigorada por decisões judiciais e coberturas jornalísticas "sempre pelo mesmo viés”, o que nos lembra o pensamento de seu desafeto Olavo de Carvalho em relação à guerra contra o comunismo (vide Democracia, Idiotia e Facciosismo), mas também a crítica de Oliveira Vianna[ii] ao liberalismo do início do séc. XX, cuja inviabilidade, para o autor, estaria centrada no "conflito patente entre (…a) cultura das elites metropolitanas (idealismo constitucional) e a cultura política da (…) enorme massa (…), que é quase toda a nação”.

Não obstante seu firme posicionamento à direita, Mourão, ao contrário de Bolsonaro, defende "sentar à mesa, conversar e debater” como forma de impedir a continuidade da deterioração do "ambiente de convivência e tolerância que deve vigorar numa democracia”, uma postura totalmente contrária ao do titular do Governo, que não cansa de semear o pandemônio – uma de suas predileções políticas desde a juventude.

Mesmo sua crítica à ”degradação do conhecimento político por quem deveria usá-lo de maneira responsável”, que deixa de lado o próprio titular do Governo, principal promotor de balbúrdias da República neste momento, precisa ser vista diante da impossibilidade de fazer de outro modo, sob pena de atentar contra a própria compostura do cargo que exerce (Vice-Presidência), entre outras questões.

O fato é que Mourão, mesmo citando a "profusão de decisões de presidentes de outros Poderes, de juízes de todas as instâncias e de procuradores, que (…) intentam" exercer a função Executiva para o qual não foram eleitos, o que não faz jus a seu conhecimento de filosofia política moderna – deixando de lado Montesquieu –, afirma querer deter a marcha batida do enfrentamento, apostando haver ainda "tempo para reverter o desastre”: "basta que se respeitem os limites e as responsabilidades das autoridades legalmente constituídas”, o que só pode ser obtido pelo afastamento do Presidente da República do cargo – inclusive a tempo de impedí-lo de lançar-se em aventura putschista.

Pode parecer pouco, mas diante do que temos – um Presidente que goza de forte prestígio nas franjas subalternas das FFAA e nos aparatos policiais, sobretudo estaduais, e uma militância fanática que o apoia e se mostra crescentemente inclinada à ação prática –, não é de se desprezar, sobretudo quando as instituições democráticas se mostram divididas e vacilantes, eivadas de (falsas) lideranças com vistosos rabos-presos e dispostas a tudo para mantê-los intactos.

Mourão demonstrou vontade de pacificar o país quando fez gestos, logo no início do Governo, em direção ao espectro político-ideológico opositor – gestos que foram abortados por pressão do bolsonarismo –, o que ainda hoje parece refletir a visão majoritária das FFAA sobre o papel dos governos.

Neste momento, quando tudo parece ter se turvado diante da flagrante cooptação militar promovida por Bolsonaro, é mais importante do que nunca apoiar as lideranças militares que, seguindo a filosofia do General Villas-Bôas, não apostam na força como substituta da vontade social, mas tão somente como desobstruidora do caminho por onde ela quer fluir. O bolsonarismo, definitivamente, não parece representar este caminho.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[iii])


[i] Limites e responsabilidades, in. <www.gov.br/planalto/pt-br/conheca-a-vice-presidencia/discursos-pronunciamentos-artigos/limites-e-responsabilidades> em 18/05/20.

[ii] Instituições Políticas Brasileiras (vol. 1), ed. Itatiaia-USP-UFF/BH-SP-Niterói, 1987, p. 20.

[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.


Hamilton Garcia: A covid-19, os interesses e a política

Faz um mês estamos imersos em intensa discussão sobre a COVID-19, sob a ótica dos infectologistas e epidemiologistas, o que foi importantíssimo para aprendermos como lidar com a moléstia e sua propagação – não obstante as inevitáveis tolices, como a da ineficácia das máscaras para a proteção individual e coletiva. Aprendida a lição, cuja divulgação não pode cessar, é chegada a hora de abrirmos o leque da discussão sobre a pandemia, sobretudo em relação a seus efeitos de médio e longo-prazos.

Tornada pública em dezembro de 2019 pelas autoridades chinesas – depois de três semanas de abafamento por meio de prisões e censura[i] –, a epidemia está provocando, além de muitas mortes, um colapso nas economias, em escala mundial, cujos desdobramentos políticos ainda são incertos. O consenso é que sérias consequências sociais advirão do esforço de contenção da doença, embora se esteja longe de qualquer convergência programática de como lidar com o problema.

A crença ingênua de que a emergência faria cessar a disputa entre indivíduos e povos pela supremacia não resiste à simples observação da vida cotidiana. Ao contrário, o medo e as incertezas se constituem em ingredientes ainda mais picantes em meio aos dilemas e desafios políticos e econômicos que o mundo e o Brasil já vinham enfrentando, onde as fraturas entre sociedade e Estado apresentam cenários potencialmente explosivos de solução.

No caso brasileiro, o Governo Bolsonaro saiu em desvantagem ao menosprezar os sinais vindos do exterior e tentar minimizar os riscos e custos locais da epidemia – mesmo sendo observador privilegiado do erro dos governos europeus, enredados em querelas ideológicas sobre a globalização –, deixando seu Ministério sem rumo e o terreno aberto aos opositores acantonados nos Governos estaduais e no Congresso.

Já em fevereiro, a evolução da COVID-19 no Irã e na Itália chamavam atenção pelo crescimento rápido dos casos e mortes, e, embora o intercâmbio turístico entre Brasil e Itália fosse intenso, o Governo, por meio do Ministério da Saúde, se limitou a alterar a definição de casos suspeitos, incluindo pacientes provenientes destes países – no mesmo dia, o primeiro caso, importado da Itália, foi identificado em São Paulo[ii] –, deixando abertos portos e aeroportos sem qualquer alerta ou triagem sanitária, possibilitando a penetração livre do vírus no país.

A medida capital para frear o início da doença, em todos os países depois da China – e tempo, nesses casos, é vida, como se viu no bem sucedido caso alemão[iii] –, seria o confinamento temporário dos viajantes e/ou o fechamentos das fronteiras, o que, àquela altura, parecia inconcebível pelo perfil do público afetado (turistas e negociantes) e pelas políticas abusivas das empresas aéreas e hoteleiras, resistentes ao cancelamento/adiamento das viagens. A resistência também vinha dos devotos da globalização, que tachavam a medida de xenófoba e inócua, como fez o comentarista Demétrio Magnoli, na GloboNews, às vésperas do fechamento das fronteiras europeias, críticando os líderes da extrema-direita europeia nos seguintes termos: “o vírus não tem nação”.

As névoas ideológicas não cessariam, desde então, de prejudicar a discussão sobre o combate à pandemia e Bolsonaro não deixaria de se contrapor à torrente dominante (politicamente correta) com sua própria crença (politicamente incorreta), embora ambas, como dizia Marx&Engels[iv] há 174 anos, "de modo algum combatem o mundo real lutando contra a 'fraseologia' do mundo".

Os erros estratégicos do Governo e o desprezo do Presidente pela “gripezinha”, todavia, são apenas parte da explicação do problema. Em boa medida, ele e outros líderes mundiais se viram diante de poderosos interesses econômicos e de classe que os constrangeram no enfrentamento do problema ainda em fevereiro, quando os boletins epidemiológicos[v] já registravam sinais do poder de disseminação do vírus pelo mundo. China excetuada, dos 37 casos confirmados, no dia 04/02, em 11 países, sem óbitos, pulava-se para 216 casos confirmados, no dia 12/02, em 24 países, com um óbito, saltando-se para 1.200 casos confirmados, no dia 21/02, em 26 países, com oito óbitos.

Os interesses em questão giravam em torno das cadeias econômicas globalizadas, em particular o turismo que representa 10,4% do PIB mundial (US$8,8 trilhões) e emprega 319 milhões de pessoas, tendo os EUA a UE como principais destinos. No Brasil, embora menores, os números são igualmente significativos: 8,1% do PIB (US$152,5 bilhões) e 6,9 milhões de empregados[vi]. Tais interesses, contrários às medidas restritivas ao fluxo de viajantes, tiveram no Prefeito de Milão (Giuseppe Sala), do Partido Democrático, seu momento emblemático com sua malfadada campanha “Milão não para”, que chafurdou o Norte da Itália no caos hospitalar, para seus padrões.

O problema econômico seria uma explicação suficiente para o titubeio da maioria dos governos pelo mundo, mas deve-se acrescentar outra, não menos importante, de cunho ideológico e mesmo afetivo, que fez governos progressistas europeus, em guerra com a extrema-direita, verem o vírus como um estorvo às suas causas liberais, ao mesmo tempo que as classes altas faziam vista grossa às ameaças ao seu estilo de vida, baseado no consumo de luxo, da qual faz parte o turismo internacional. Neste quesito, a China se saiu bem melhor, não titubeando em fechar suas fronteiras assim que deixou de ser exportadora e se tornou importadora de casos.

Embaraçados por esses e outros constrangimentos, e com a proliferação da doença em meados de março, restou aos governantes correr atrás do prejuízo, inclusive no Brasil, impondo a quarentena horizontal como medida de emergência para por freio à avalanche prenunciada, sem planejamento ou medidas preparatórias para o fechamento de escolas, universidades, comércios, etc., tudo feito de supetão numa sexta-feira treze.

O problema pôde ser minorado, até aqui, por nossa condição de economia periférica, relativamente fechada, onde a população se distribui em vasto território por meio de precária rede de transporte, e cujas diferenças de classe produzem distanciamento social permanente sem a necessidade de decretos governamentais, para não falarmos na limitação da renda e das condições climáticas – a epidemia, aqui, teve início no verão –, fatores inicialmente inibidores do ritmo da proliferação viral, embora também potencializadores do tempo de sua duração.

O saldo final dos fatores, entre outros aqui não abordados (demográficos, comportamentais, políticos, etc.), aponta para um impacto da doença, até aqui, inferior aos padrões internacionais, em termos de mortes e hospitalizados.

Todavia, os mesmos fatores também indicam a probabilidade de um hiato entre as curvas, fazendo com que não só tenhamos curvas epidemiológicas mais socialmente segmentadas (classes altas, médias e baixas), como intervalos maiores entre elas, alongando a tensão temporal da crise e abrindo espaço para o esgotamento financeiro e psicológico dos setores mais vulneráveis, que entraram na quarentena em março quando só os mais ricos estavam sendo afetados, o que já impactou o isolamento/distanciamento social no momento em que ele é mais importante para os pobres.

Caso tal hipótese esteja correta, a quarentena precoce das classes populares, nas periferias urbanas e no interior, deverá entrar no rol dos erros estratégicos dos epidemiologistas, tanto pela ausência de modelos que levem em conta nossas especificidades, como pela subestimação de medidas cruciais como as barreiras sanitárias intermunicipais – que vêm se constituindo em freio importante à interiorização do vírus, onde foi implementada – e o próprio impacto da informação sobre os menos escolarizados.

Infelizmente, a vida é assim: aprendemos aos trancos e barrancos, muitas vezes a um custo acima do razoável se apenas a razão contasse – razão que, infelizmente, também foi infectada pelo vírus do sectarismo partidário. Mas, se pelo menos, ao final, tivermos aprendido a enfrentar a atual crise levando em conta nossos problemas concretos em meio às inevitáveis narrativas ideológicas e inexoráveis rinhas político-corporativas –, ouvindo nossas inteligências autênticas, em diálogo com o mundo, então talvez tenhamos forjado a chave para o enfrentamento de toda nossa imensa gama de problemas que, no passado, nos esmeramos por esconder debaixo do tapete.

Notas

[i] Vide Crusoé, in. <https://crusoe.com.br/edicoes/101/a-verdade-abafada/>.

[ii] Portal PEBMED, In. <https://pebmed.com.br/coronavirus-tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-a-nova-pandemia/>.

[iii] “A Alemanha reconheceu seu surto muito cedo. Duas ou três semanas antes do que alguns países vizinhos”, disse o virologista Christian Drosten; vide El Pais de 21/0320, Baixa letalidade do coronavírus na Alemanha: três hipóteses sobre o fenômeno; in. <https://brasil.elpais.com/brasil/2020/03/20/ciencia/1584729408_422864.html>, em 13/04/20.

[iv] A Ideologia Alemã – crítica da filosofia alemã mais recente nos seus representantes L.Feuerbach, B.Bauer e M.Stirner e do Socialismo Alemão nos seus diferentes profetas; Ed. Centauro/SP-2006, p.14.

[v] Do Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública para o Novo Coronavírus, vide Plataforma Integrada de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Boletins 1-3, in. <https://www.saude.gov.br/boletins-epidemiologicos>, em 13/04/20.

[vi] Vide Folha de Londrina, in. <https://www.folhadelondrina.com.br/economia/turismo-movimenta-roda-da-economia-no-brasil-e-no-mundo-1028761.html>


Hamilton Garcia: Democracia, idiotia e facciosismo

Na medicina, a idiotia é descrita como "atraso mental e/ou intelectual caracterizados pela ausência de linguagem”. Por sua vez, a idiotice é comumente definida como o contrário da perspicácia e da inteligência. Entre ambas as definições existe um leque de arranjos e combinações à disposição da criatividade. É certo, porém, que a contínua revolução das comunicações – da impressa à falada – e da educação escolar foram desenvolvendo um novo idiota: não só apto à linguagem, como possuidor de certa inteligência.

O problema reside justamente no paradoxo: a linguagem e a comunicação encerram, desde seu nascedouro, o desafio do entendimento que, conforme evoluímos, vai se tornando cada vez mais difícil para todos, o que pode nos levar a sérios mal-entendidos. Assim, a idiotice, numa sociedade cada vez mais complexa, informada e democrática, onde todos são instados a se posicionar sobre tudo e todos em tempo real o problema do tempo não deve ser subestimado –, é o fantasma que nos assombra.

No que tange à idiotia política, no caso brasileiro, as coisas ficam sensivelmente piores em meio ao baixo nível da educação formal, o mesmo acontecendo com a idiotice quanto ao mérito funcional da escolarização. Em ambos os casos, as péssimas instituições republicanas que nos governam e deseducam – sobretudo os partidos políticos – nos levam a um desarranjo ainda pior. Caberia ao partido político um papel de antídoto, pelo menos à idiotice, que entre nós é quase desconhecido, selecionando os quadros que irão constituir os vários níveis da elite política dirigente (legislativa e executiva) do Estado.

Fora os partidos de esquerda radical – que, mesmo assim, caíram na idiotice pelo dogma – ou moderada, todos os outros tem graus variados de anomia institucional onde pululam regras discricionárias em benefício de oligarquias (fechadas ou semifechadas) que não toleram o debate de ideias, ignoram o desenvolvimento pessoal e cultivam o desprezo pelo pensamento sistemático (filosófico ou científico); o que também afeta, de alguma maneira, a direita radical e seu (re)aparecimento tardio (olavismo e bolsonarismo) em ruptura com a tradição integralista (Plínio Salgado) e com a crítica ao espírito de clã (Oliveira Vianna) – tão cara ao positivismo militar.

Em tais condições, os quadros políticos são formados fora do sistema político (stricto sensu), o que afeta tanto sua quantidade quanto sua qualidade. Quanto ao primeiro aspecto, não porque sejam poucos os formados no campo associativo, mas porque são poucos aqueles que se dispõem a transitar para a esfera mais complexa e incerta do Estado (poder político). Quanto ao segundo, a formação associativa (corporativa ou particular-expandida) é insuficiente para habilitar o engajado à esfera da política (geral-superior).

No caso da esquerda, tal problema é contornado pelo fato de a esfera corporativa ser intensamente habitada pela partidária, de modo que o militante (sindical, estudantil ou social) já recebe treinamento partidário em paralelo ao seu próprio – como se pode notar no número de políticos provenientes do movimento estudantil, sindical e identitário.

Não é por outro motivo que liberais e conservadores vêm lançando mão de institutos próprios de formação de quadros políticos, alguns deles se posicionando em leque variado de partidos – como fazem os evangélicos. Neste segmento, situado à extrema-direita, o olavismo se coloca como movimento vocacionado para a formação de um bloco histórico de poder em combate aberto com o campo progressista, como outrora, em forma e direção radicalmente diversos, o catolicismo de esquerda (teologia da libertação) pretendeu, na época de ouro do petismo, sem êxito.

O olavismo, em especial, vem sendo associado à idiotice reinante no debate político do país, embora não se possa, quanto ao método, acusá-lo de pioneirismo: a histeria e, pior, a violência verbal – muitas vezes disfarçada de “performance” –, dois aspectos constitutivos da idiotice reinante, foram usadas e abusadas pelo campo progressista muito antes, na época em que "bolsonarismo" não passava de um xingamento assacado contra qualquer crítico do PT depois do Mensalão. A imensa avenida pavimentada pelos petistas – aberta em priscas eras pelos stalinistas – encontra-se hoje tomada por bolsomínions (e seus antípodas siameses) inspirados ou formados pelo “Professor Olavo".

A fonte histórica deste aprendizado da “política de massas”, de onde se origina a explosão participativa  que veio a redimensionar o fenômeno em tela, foi o jacobinismo (francês) do séc. XVIII e o movimento operário (inglês) do XIX, otimistamente percebidos por Marx e Engels como rudeza do aprendizado. É dessa fonte, mais particularmente de Lênin, que Olavo de Carvalho pretende derivar seu método de ação, a partir de sua experiência no PCB dos anos 1970, onde conheceu tais autores.

Lênin, na Russia dos anos 1910, em meio a uma sociedade esmagadoramente camponesa, impactada pelo capitalismo europeu, entrou em rota de colisão com a ortodoxia marxista da II Internacional, de base urbana e sindical, passando a valorizar o protagonismo das massas camponesas exploradas, sob a liderança do operariado, inaugurando uma inédita aliança operário-camponesa-estudantil que derrubaria o regime liberal que sucedera o czarismo e abriria caminho para o socialismo (comunismo de guerra, 1918-1920).

O uso de métodos autoritários e heterodoxos, por parte dos leninistas, para impulsionar tal projeto revolucionário, rendeu à Lênin críticas, tanto à direita (K.Kautsky) como à esquerda (R.Luxemburgo) da social-democracia, em relação ao abandono da perspectiva democrática do movimento operário. Os desdobramentos da vitoriosa Revolução Bolchevique (1917) e sua consolidação pós-Lênin (stalinismo), não deixaram dúvidas quanto ao acerto de tais críticas.

Foi este aspecto da eficiência da técnica do atraso, como nos mostra Thaís Oyama[i], que fascinou Olavo de Carvalho e o fez sustentar seu método na guerra político-cultural contra a esquerda. Argumentando que os adversários ascenderam se valendo da manipulação e da desonestidade intelectual, concluía ele que seria justo que a direita recorresse aos mesmos métodos para derrotá-los.

Daí os ataques abaixo da linha da cintura e as investidas destinadas a desmoralizar os adversários preconizados por ele – que também caracterizaram o terror stalinista na URSS, tendo sido copiado e refinado pelo nacional-socialismo alemão: “Não puxem discussão de ideias”, dizia Carvalho em dezembro de 2018, “investigue alguma sacanagem do sujeito e destrua-o. Essa é a norma de Lênin: nós não discutimos para provar que o adversário está errado. Discutimos para destruí-lo socialmente, psicologicamente, economicamente”[ii].

A batalha cultural do professor de filosofia on-line vem gerando um número surpreendente de militantes fanatizados (idiotas), é verdade – embora não exclusivamente. Mas, isto não se deve ao método, tomado isoladamente. Hoje, como outrora, os riscos derivam do encontro desses métodos com sistemas de dominação em crise, fato que vem sendo sistematicamente negligenciado por setores democráticos do conservadorismo, liberalismo e socialismo, deixando o tema da crítica e das reformas (quase) exclusivamente aos cuidados dos adeptos do método-totalitário.

Persistir em, simplesmente, apontar o dedo contra os agentes idiotizantes ou os próprios idiotas, sem buscar cessar o fomento proporcionado pelo quadro geral onde a idiotia medra – vale dizer, no caso brasileiro, elites despreparadas, instituições (historicamente) carentes de legitimidade, baixa eficiência e altíssimo custo , não deve nos levar a porto seguro.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[iii])

São João da Barra, 09/03/20.

[i] Tormenta – o governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos, ed. Companhia das Lestras, sd, p.198.

[ii] Apud Oyama Idem, p.199.

[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.


Hamilton Garcia: O Brasil não é para principiantes

Ao longo de nossa história tivemos muitos exemplos de como a tentativa de nos igualar a europeus e norteamericanos ou mesmo russos, cubanos e chineses, fazendo tábula rasa de nossas especificidades históricas – que não podem ser confundidas com singularidades, pois comuns a países da periferia capitalista –, foi politicamente desastrosa, além de teoricamente estéril. O problema é que o tempo e os modismos intelectuais acabam por diluir este singelo aprendizado, forçando-nos a voltar a velhos temas que se pensavam superados.

A dificuldade teórica básica para se entender o Brasil e todos os países de modernização hipertardia (Índia, China, etc.) – para não dizer a própria modernização capitalista –, para além dos antolhos ideológicos e dos interesses de sempre, deriva, como alertava Marx[i], da inclinação a "tomar o conceito de progresso na forma abstrata habitual”: "O ponto propriamente difíçil (…) é discutir (…) de que modo as relações de produção, como relações jurídicas, seguem um desenvolvimento desigual” – que Trotsky, observando a Rússia, adendaria, “e combinado". Seguindo a mesma trilha, Robert Boyer[ii], da escola regulacionista francesa, asseveraria que "não seria possível conceber uma economia pura, isto é, desprovida de toda e qualquer instituição, (…) de direito e de (…) política”, já que é "da interação entre a esfera econômica e (a) esfera jurídico-política que resultam os modos de regulação”.

A modernização, portanto,  é um processo compósito que se desenvolve simultaneamente ao nível econômico, social e político, encontrando no Estado seu momento decisivo, de alavancagem ou contenção, à depender da direção dominante no Governo. Em nosso caso, até o séc. XIX, o governo esteve sob o comando da Dinastia de Bragança, cujo etos, como é sabido, é o do Estado patrimonialista lusitano, ramo pioneiro do colonialismo europeu (séc. XV-XVI) que se caracterizou pela capacidade pioneira de combinar a centralização política com o capital mercantil, possibilitando a Portugal – junto com a Espanha –, por bom tempo, a liderança na expansão comercial ocidental.

O patrimonialismo português se forma sob condições muito especiais, que não cabe discutir aqui, mas cujas características são análogas àquelas descritas por Trotsky[iii] em relação ao czarismo russo: um sistema que não foi fruto do “equilíbrio das classes economicamente dominantes (…) mas (…)(de) sua fraqueza(,) que tornou a autocracia burocrática (…) uma organização independente", representando uma forma intermediária entre o absolutismo (centro-oeste) europeu e o despotismo asiático embora mais próximo do último para nosso autor.

O mesmo fenômeno foi percebido por Raimundo Faoro[iv], embora à partir de base teórica diversa (weberiana), o que o levou a caracterizar o sistema político patrimonial como estatólatra, onde o capitalismo assumiria a forma de um capitalismo politicamente dirigido, cujo aparato burocrático obtém a lealdade por meio da imantação de grupos politicamente escolhidos e o liberalismo o pode desempenhar qualquer papel positivo. Por isso, continua ele, no lugar da história que revolve seu passado, o que temos é um eterno “revival" em meio a certos "aggiornamentos".

Em tal sistema, prossegue Faoro, ”a racionalidade obedece (…) a valores” (éticos, religiosos e principalmente políticos), em contraste com a "dominação racional” própria do capitalismo (centro-oeste) europeu, onde prevaleceria "a ação social orientada por meios e fins”, propiciando, via mercado, o desenvolvimento do sistema jurídico igualitário e a perspectiva da liberdade individual, que se constituiriam, com a emergência operária, na antessala da democracia-liberal moderna.

Enquanto isso, no Brasil e em Portugal, a regulação da atividade econômico-social pelo Estado assumiria caráter tutelar e autoritário, relegando a sociedade civil a uma menoridade crônica na esperança de manter a sociedade política a salvo das incertezas e turbulências da modernidade. Portanto, fenômeno que vai muito além da mera reprodução de uma “herança cultural” avessa à separação das esferas pública e privada, com impactos nas instituições e na formação dos atores políticos[v], embora não se possa menosprezar tais efeitos.

É certo que a contenção da sociedade civil não é atributo exclusivo das formações patrimonialistas. Também os liberais, mundo afora, temerosos do avanço do movimento socialista, intentaram o mesmo[vi]. Ocorre, todavia, que as condições sob as quais operavam eram bem distintas, partindo de um Estado reformado à sua imagem e semelhança – assim como (em parte) a religião –, de modo que já no séc. XIX a classe operária – ao custo de enormes conflitos e sofrimentos[vii] – havia conquistado tanto o direito político, como iniciado a conquista dos direitos sociais, que mudariam a face do capitalismo lhe permitindo resistir ao assédio revolucionário dos socialistas, o que em nosso modelo (semirreformado) só foi possível por meio de ditaduras (1937 e 1964).

Em nosso modelo de regulação capitalista, no séc. XX – mais adequadamente chamado de neopatrimonialista[viii] –, a manutenção de posições de poder pelas velhas oligarquias – atuando como forças auxiliares nas fases bonapartistas – é fundamental, como nos ensina Ernest Mandel[ix], para entender a natureza e a mecânica das restrições ao ritmo e alcance do processo de incorporação da acumulação primitiva ao modo capitalista, principalmente por meio da exclusão do aldeão da economia monetária e do circuito de produção de mercadorias, que, no caso brasileiro, assumiu a forma do monopólio de fato da terra por uma classe que, embora declinante, era capaz de manter-se dominante através de um aparato cartorial de legalização do roubo de propriedades e de votos, também conhecido como sistema coronelista de inclusão política, no campo, e clientelismo, na cidade (vide Clientelismo, cargos e voto – como as oligarquias erodem a democracia). Fenômenos que, tampouco, podem ser reduzidos a "idealismo moralista” em sacrifício da "realidade empírica”, por qualquer ângulo que se olhe.

Este é o intrincado cenário de nossa transição à modernidade, onde não se pode falar nem de ausência, nem de plena realização do moderno, mas, como disse Mandel, da "permanente troca metabólica" do moderno com as formas tradicionais de acumulação, num processo direcionado à limitação da forma primitiva pelo capital, "numa unidade dialética” onde o moderno tende a absorver a produção do setor arcaico para se apropriar de seus fatores (Marx) e mercados.

O mesmo vale para a esfera política, embora em ritmo e caminhos próprios, como percebeu Gramsci[x] olhando para a transição italiana: “a questão nacional e a questão de classe” foram resolvidas por “um tipo intermediário" de poder, onde a burguesia obtinha o governo econômico-industrial e as velhas classes feudais parasitárias conservavam seu poder de casta no exército, na burocracia e na grande propriedade rural, tudo conspirando contra a extensão da hegemonia burguesa às amplas camadas sociais.

A resultante desta solução intermediária é igual em todos os lugares: atrofia e instabilidade econômico-política crônicas. Em contraste, seu antípoda histórico, o liberalismo inglês, traduzido no modelo competitivo de massas inaugurado pelo americanismo no século passado, é vitorioso em diversos aspectos, inclusive no que tange à democracia e ao trabalho, que alcançou, no capitalismo avançado do séc, XX, o pleno emprego e o bem-estar social.

A razão de tal trajetória vitoriosa não é outra que não o oposto da nossa: a formação de um Estado revolucionário, como ato político de ruptura e reinvenção institucional a partir do primado racionalizador da nova classe dirigente como na Revolução Inglesa (1688) e Francesa (1789) –, rasgando os termos da dominação tradicional/colonial, no caso dos EUA, em dois atos, a Guerra da Independência (1776) e a Guerra Civil (contra os Confederados, 1865).

Enquanto isso, entre nós, como nos mostrou Florestan Fernandes[xi], o capitalismo se implantou por meio de uma revolução passiva contínua, que garantiu nossa incorporação ”ao espaço econômico, sócio-cultural e político da Europa (…) industrial” em meio à decadência do modo de produção escravista, cuja função colonial e pré-capitalista de acumulação originária (1808-1888) se esgotara, abrindo caminho – em meio à forte opressão político-social – para uma transformação sem mudanças, vale dizer, sem participação popular direta ou grandes concessões ao mundo do trabalho; o que só recentemente veio a acontecer.

Não é por outro motivo  que, desde a República, conservadores, liberais, populistas e socialistas, por motivos diversos – e mesmo antagônicos –, buscam resolver a alteridade equiparando nossos problemas e desafios aos do vizinho do Norte, agarrando-se às simetrias produzidas por nosso capitalismo dependente avançado na ânsia de respostas fáceis e ascensão política. Tal esforço, como nos mostrou Paul Baran[xii] – criticando a ortodoxia econômica liberal –, concentrando-se sobre partes isoladas do sistema para extrair suas verdades simples e desconexas do todo histórico e de suas determinações concretas, quer para deslegitimar a propositura de uma política econômica nacional, quer para decretar, utópica e abstratamente – como se fazia antes do Manifesto de 1848 –, o fim do capitalismo, está fadado ao fracasso.

Hoje, mais do que nunca, o verdadeiro complexo de vira-latas, que nos aflige há séculos, é o do mimetismo dos modismos intelectuais vindos do centro, e a crença em modelos abstratos e ahistóricos de desenvolvimento, concatenados em narrativas de variadas colorações ideológicas, onde nossos problemas reais – a miséria, a semiestagnação, a ignorância e a corrupção institucionalizada – são escamoteados em prol de exortações vazias como a defesa da "política real e possível”, às vezes interpretada como adesão ao centrão, outras, na perspectiva fetichista do messianismo/jacobinismo setecentista, como "um avanço direto ao centro do poder”, que quase sempre resulta em derrotas acachapantes (1935, 1964 e 2016) ou à capitulação dissimulada à "lógica das oligarquias políticas”[xiii].

Melhor seria assumir o que somos e levar em conta as duras lições da história, como o fez Celso Furtado[xiv], e sua heterodoxia, deixada de lado na polarização dos anos 1960, que propunha o desenvolvimento tecnológico e humano do país em conexão com o influxo externo, fazendo nosso parque produtivo – devidamente incentivado por um Estado racionalizado (não-corrupto) – atender parte importante da demanda interna e externa de modo a propiciar a estabilização em escala da acumulação produtiva, o que nos possibilitaria internalizar a dinâmica econômica do país sem isolacionismo, regressismo ou crenças perniciosas no poder demiúrgico de tiranos imantados por intelectuais portadores de pretensiosas doutrinas redencionistas, cujos resultados históricos são por demais conhecidos.

 

[i] Vide, Para a Crítica da Economia Política, ed. Abril Cultural/SP, 1982, p. 20.

[ii] Vide Teoria da Regulação os fundamentos, ed. Estação Liberdade/SP, 2009, p. 48.

[iii] Vide A Revolução de 1905, ed. Global/SP, sd., pp. 29-30.

[iv] Vide A Aventura Liberal Numa Ordem Patrimonialista; in. Revista da USP nº 17, vol.2, 1993, <http://www.usp.br/revistausp/17/02-faoro.pdf>, em 25/04/2011, p. 16-18.

[v] Vide Roberto Dutra, Brasil, Bolsonaro e tradição patrimonialista? São as contradições, estúpido!, in. <http://opinioes.folha1.com.br/2019/08/31/roberto-dutra-brasil-bolsonaro-e-tradicao-patrimonialista-sao-as-contradicoes-estupido/>.

[vi] Vide Domenico Losurdo, Contra História do Liberalismo, ed. Idéias&Letras/SP, 2006.

[vii] Vide Friedrich Engels, A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, ed. Global/SP, 1986.

[viii] Vide Simon Schwartzman, Bases do Autoritarismo Brasileiro;  ed. Campus/RJ, 1982.

[ix] Vide O Capitalismo Tardio; ed. Abril Cultural/SP, 1982, pp. 37 e, abaixo, 29-32.

[x] Apud Vito Santoro, in. Liguori&Voza, Dicionário Gramsciano, ed. Boitempo/SP, 2017, p. 668.

[xi] Vide A Revolução Burguesa no Brasil ensaio de interpretação sociológica; ed. Zahar/RJ, 1976, p. 7.

[xii] Vide A Economia Política do Desenvolvimento; ed. Abril Cultural/SP, 1984, p. 196.

[xiii] Vide nota 5.

[xiv] Vide Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico, ed. Abril Cultural/SP, 1983, p. 146.

[xv] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).


Hamilton Garcia: costeando o alambrado - rumo à “normalidade"?

O clã político de Bolsonaro, como se sabe, tem origem no que se convencionou chamar de “baixo-clero” de alcance regional, não obstante as pautas corporativas nacionais (segurança e defesa) e o anticomunismo radical, que acabou por lhe facilitar o caminho ao poder em meio aos desatinos petistas.

Os vícios que acumularam os Bolsonaro são quase nada diante do modus operandi do "alto clero” no "presidencialismo de coalizão" – conceito genérico onde se enquadra nosso presidencialismo de cooptação –, que impera desde a redemocratização. Na ausência de um sistema efetivo de partidos, nossa experiência democrática estagnou na semirrepresentação e degenerou no patrimonialismo ampliado (democratizado), cujo ápice foi o “modo petista de governar". A reação, gostemos ou não, veio com o Capitão.

Bolsonaro, todavia, aferrado no terreno ético do familismo, tende a desidratar a imagem contestatória e destemida que o levou ao atual mandato. A alta política brasileira, eivada dos vícios de origem de nossa aristocracia agrária – o principal deles a indistinção entre público e privado –, tem, por meio do filhotismo, uma oportunidade de ouro para se conectar ao Presidente, cujo clã, em seus mandatos parlamentares, ao que parece, chafurdou nas ilegalidades de praxe dos legislativos locais e regionais. Ao usar seu Governo para blindar o clã, o Presidente excede a tradição, que teve em Sarney um patrono, circunscrevendo seu familismo explícito ao plano estadual.  

Há que se considerar também que o atavismo oligárquico de Bolsonaro surge em meio a indícios de que o “Pacto pelo Brasil”, proposto pelo Governo em maio, pode ter sido apenas o biombo do Pacto pelo Poder – tão ansiada por alguns –, que levaria ao fim do palanquismo e a “volta da normalidade política”, unindo a banda patrimonialista do STF à do Parlamento em prol de “estancar a sangria" aberta pelo “tenentismo de toga” – que, justiça seja feita, nos livrou, com a punição ao Mensalão e ao Petrolão, de uma dominação criminosa à moda venezuelana.

No caso de Flávio, Bolsonaro compactua com um freio nas operações na qual surfou para chegar ao poder, em troca de um improvável abafamento dos malfeitos do filho na ALERJ. O golpe aplicado na Lava-Jato, e habilmente debitado na conta do Capitão, é justificado pelos donos do poder como fundamental para manter a “harmonia entre os poderes”, o "Estado democrático de direito" e as "garantias individuais”, mas, na verdade, visa apenas manter os privilégios estamentais da Corte republicana, vale dizer, do sistema de poder patrimonialista e sua comunidade de domínio[i], que nunca digeriu plenamente o liberalismo anglo-saxão, com seu Estado democrático e seu direito igualitário, preferindo sempre, ao longo de nossa história, o Estado oligárquico e o direito estamental.

A prática das trocas de informações entre órgãos de controle do Estado democrático, para o fim de sufocamento do crime de colarinho branco, sempre os repugnou e agora, tanto a alta magistratura, ainda não investigada em suas redes parentais de escritórios de advocacia – onde se suspeita, segundo a revista Crusoé, que circulem milhões de reais vinculados à processos julgados por pais, tios e maridos –, como o sistema financeiro, conivente com depósitos ilegais em seus cofres – cuja Justiça já levou à prisão um punhado de gerentes de grandes bancos, segundo a mesma revista –, como era de se esperar, ao entrarem na mira do MPF, desencadeiam a “resistência democrática” de fancaria que se vê.

Mas, ao contrário do que afirmou Toffoli, os cidadãos que, afinal, arcam com os custos de tal sistema e não se distraem com ideologias de boteco, anseiam pelo Estado democrático de direito verdadeiro, que Bolsonaro encampou com êxito depois das frustrações das expectativas de mudança com o PT, cuja degeneração – antecedida pela do MDB e do PSDB –, acoplada ao patrimonialismo, tornou o sistema insustentável por sua inclusão, num “ganho de escala” da ineficiência e da despoupança do Estado que esterilizaram as políticas de bem-estar social.

Já no caso de Eduardo, o esforço de aprovação no Senado de sua nomeação à embaixada nos EUA, terá, para além do oxigênio à velha política, o agravante de tensionar as FFAA na medida em que pode atrelar a política externa do país às diretivas norte-americanas, tendente ao envolvimento militar na Venezuela entre outros conflitos capitaneados pelos EUA na busca da manutenção de sua supremacia internacional, posta em cheque pela reaproximação geopolítica entre China e Rússia.

As FFAA brasileiras, como se sabe, concebem seu projeto de potência com base na dissuasão e na superação do subdesenvolvimento econômico-social, não no parti pris ideológico e na economia de guerra. É com base nisto que os militares mantêm seu apoio ao Governo, não obstante a declaração de guerra dos olavistas aos Generais da Reserva no Governo (Mourão, Cruz e Heleno), prontamente rechaçada pela maior liderança da caserna (Villas-Bôas) e pela cúpula militar, que vetou a promoção do Porta-Voz do Governo (Barros) ao Alto Comando do Exército.

Focados em sua missão, de viabilizar o sucesso dos projetos de desenvolvimento nas áreas sob seu comando – o que, naturalmente, é convergente com a perspectiva estratégica da corporação, com a valorização de seus quadros especializados e seu projeto de nação –, os militares buscam o centro político, desde a redemocratização, e não parecem abrir mão disso, como o indica a movimentação recente do Vice Mourão – rechaçada pelo clã como "golpista" –, vista pela caserna como garantia última de continuidade de seu projeto.

Voltando ao Presidente, é sabido que sua popularidade, em nosso sistema político, afeta diretamente a governabilidade, fazendo pender a balança do equilíbrio entre os poderes. No caso de Bolsonaro, o fato é mais acentuado em função do problema estrutural de seu mandato, baseado no ataque à velha política, que tem o condão de reunir toda a velhacaria contra si, ao mesmo tempo que ativa as naturais forças opositoras.

Embora se possa ter dúvidas acerca do significado da nova política pregada pelo Governonão da velha, sobejamente conhecida –, o fato é que, com todas as suas contradições, dificuldades e incongruências, o Presidente, até aqui, foi capaz de cumprir a agenda, mantendo o Congresso e o STF sob pressão de modo a não só aprovar uma reforma da previdência de proporções significativas, como de promover a Operação Lava-Jato à política de Estado; estratégia posta em risco diante do inusitado pacto espúrio.

No caso de refluxo do poder mobilizatório-popular do Presidente, a mudança conjuntural ensaiada pela Câmara, no sentido do enfrentamento das grandes pautas nacionais – praticamente ignoradas pelo Legislativo nas últimas duas décadas –, pode refluir ou arrefecer, agravando a percepção social do déficit de representatividade do sistema e de seu sequestro pelas oligarquias de sempre.

O jogo de Maia, flertando à direita e à esquerda, na tentativa de construir um "novo centro político" capaz de ocupar o espaço deixado vago por PT, PSDB e o próprio Bolsonaro, depende, em grande medida, da disposição do Centrão de agir programaticamente – milagre até aqui possível graças, paradoxalmente, à mobilização bolsonarista. A “normalização" política de seu Governo pode pôr tudo a perder, a não ser que risco maior suceda, como no período Itamar, depois do impeachment de Collor, quando se temia o caos e a volta do protagonismo militar na política.

Talvez Bolsonaro, o mais improvável de todos os Presidentes desde Collor, não perceba, em meio às brumas do poder, mas o mesmo movimento que o catapultou ao poder pode agora dilapidá-lo ou defenestrá-lo, à depender do impacto de seu pacto sobre a opinião pública, sobejamente intolerante com estelionatos eleitorais.

Com Bolsonaro costeando o alambrado em proveito de seus interesses privados, e sem condições simbólicas e materiais de compensar o desalinho programático por via espúria (assistencialista) ou corporativa (desonerativa) – pois a crise impõe a solução radical pelo bem público –, as chances de fracasso político aumentam, a não ser que o crescimento econômico o acuda em meio ao descrédito público.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF[ii])

São João da Barra, 11/08/19.

[i] Expressão usada por Raimundo Faoro para diferenciar a camada parasitária dominante no Brasil, da elite dirigente dos países liberais; vide Os Donos do Poder – formação do patronato político brasileiro (vol. I), ed. Publifolha, SP/2000, pp. 103-104.
[ii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).

 


Hamilton Garcia: Clientelismo, Cargos e voto – a erosão oligárquica da democracia

Em artigo de setembro do ano passado (Os candidatos e suas estratégias para superação da crise política), eu dizia: "Até que ponto e em qual momento a ingovernabilidade sistêmica, contratada pela ausência de reforma político-eleitoral, vai se apresentar ao candidato vitorioso, não é possível determinar, mas é certo que o fará em algum momento (…); naturalmente, a depender do grau de resistência que seu programa encontre na sociedade e no Estado”.

O problema da disfunção eleitoral do nosso sistema político foi discutido em outro artigo (Accountability e Reforma Política), onde argumento que o sistema proporcional de lista aberta agrava e amplifica a dificuldade histórica em instituir um governo representativo. Em perspectiva diversa, a escola institucional-formalista[i] desloca a tensão para o plano das escolhas políticas, considerando que o sistema eleitoral atual "gera incentivos para o multipartidarismo” diminuindo as chances "de o partido do presidente alcançar sozinho a maioria (…) do Congresso". Sendo assim, a escolha mais eficiente seria a de "montar e gerenciar coalizões pós-eleitorais” ofertando "recursos políticos e financeiros (…) (aos) potenciais parceiros em troca de apoio político”, processo que, em tese, requereria "negociação, não necessariamente corrupção".

Que tal tese se tornou marginal em face do desenvolvimento mais recente de nossa tradição política, frente aos problemas estruturais conhecidos, e da puerilidade do quadro partidário, avesso ao etos programático das poliarquias estáveis, restam poucas dúvidas.

Por isso mesmo, a descrição dinâmica do modelo, de que lançam mão os formalistas, aparece sob a forma fotográfica ideal da Nova República sob FHC, como se as "escolhas do presidente” hoje estivessem postas nos mesmos termos dos anos 1995-1998, quando a crise de representatividade estava em seu início e sua solução aparentava estar no eixo paulistano do PSDB-PT: "Coalizões com um menor número de parceiros (…) ideologicamente homogêneos", compartilhando "poder e recursos de forma proporcional com os aliados”, que espelhem "a preferência mediana do Legislativo”, produziriam "um governo de coalizão eficiente, com uma taxa de sucesso legislativo muito alta e um custo de governabilidade muito baixo”.

Como as preferências medianas do Legislativo, todavia, sofreram sensível agravamento depois de 13 anos de governos petistas e do aprofundamento da fragmentação partidária – dos 20 partidos com representação congressual em 1998 (FHC), passamos a 30 em 2018 (Bolsonaro) –, depois que o STF, em 2006, considerou inconstitucional qualquer restrição ao Fundo Partidário e ao tempo de propaganda dos partidos, é crível que os resultados da "melhor escolha”, garantidos pelo modelo, podem não ser mais satisfatórios.

O problema dessa abordagem é, precisamente, seu déficit de concretude, que permite ao analista não só desconsiderar os elementos sincrônicos da complexidade histórico-estrutural, como os diacrônicos do seu contínuo desenvolvimento, tornando, assim, sua análise pouco efetiva. Como frisava Montesquieu (1689-1755)[ii], as leis políticas (e da política) são forjadas em meio ao "gênero de vida dos povos”, vale dizer, suas relações econômicas, espirituais e costumeiras, que ele considerava o "espírito das leis” – que "consiste nas diversas relações que as leis podem ter com diversas coisas”.

Portanto, a aproximação com a realidade exige a agregação, aos modelos explicativos do funcionamento do "presidencialismo de coalizão”, dos elementos constitutivos de nossa difícil e irresoluta democratização (vide, A Democratização do Estado), calcada numa cidadania marcada pelas mazelas da disparidade moral e material deixadas pelo regime servil-escravocrata[iii] em seus 300 anos de dominação – mal superados por quase 100 anos de modernização sob a marcada do liberalismo de Casa-Grande. Mais especificamente, é preciso entender como o Parlamento, que, no momento, se arvora em antídoto ao autoritarismo bolsonarista, na verdade, consiste em um de seus importantes combustíveis – como outrora ocorreu, mesmo que por omissão, nos momentos críticos que antecederam a República (1889), a República Nova (1930) e a Revolução Redentora (1964). O DNA do nosso parlamento, associado a seu desenvolvimento, sobretudo na Primeira República (1889-1930), nos dá pistas preciosas da questão.

Entre nós, as Câmaras surgem no período colonial pela necessidade da Corte portuguesa de controlar o processo de ocupação do território, na prática levado à cabo por colonos privados escolhidos e apoiados pela Metrópole. Com o desenvolvimento da ocupação e da empresa agrário-exportadora, as Câmaras vão se transformando em aparelhos de dominação senhorial sem perderem suas características de ligação com o poder central, dando origem, na república, ao coronelismo, "sistema político (…) dominado por uma relação de compromisso entre o poder privado decadente e o poder público fortalecido”[iv].

É sob tal compromisso que os latifundiários renovam seu poder sobre a grande massa, utilizando o voto para captar recursos públicos que reforçariam a "sujeição de uma gigantesca massa de assalariados, parceiros, posseiros e ínfimos proprietários”, "quase sub-humanos (…) no trato de suas propriedades”. A "superposição de formas desenvolvidas do regime representativo (…)(a) uma estrutura econômica e social inadequada”, ao invés de produzir a emancipação dos indivíduos, como rezava a cartilha liberal, "havendo incorporado à cidadania ativa um volumoso contingente de eleitores incapacitados para o consciente desempenho de sua missão política, vinculou os detentores do poder (…) aos condutores daquele rebanho eleitoral. (…) Despejando seus votos nos candidatos governistas nas eleições estaduais e federais, os dirigentes políticos do interior fazem-se credores de especial recompensa, que consiste em ficarem com as mãos livres para consolidarem sua dominação no município"[v].

Foi por meio de tal sistema de "aparelhamento do Estado” que as oligarquias foram capazes de "conter qualquer rebeldia do poder privado”[vi], aprisionando nossas instituições e nossa cidadania nas velhas práticas coloniais-imperiais do favor. Tendo hoje caducado a necessidade de cabrestear a sociedade civil – papel desempenhado hoje pelo PT, em chave diversa (“correia de transmissão”) –, resta ainda à tradição, embora claudicante, a vital função de manter o controle sobre as instituições, impedindo-as de se republicanizar na dimensão exigida pelas modernas sociedades, ou seja, por meio do governo representativo, em oposição ao clientelismo forjado na fome de cargos e na sede de erário, que substituem o programa e o partido na livre competição pelas cadeiras legislativas.

Até aqui, conservadores, liberais, social-democratas e populistas, conseguiram manusear o modelo com maior ou menor eficiência, não importa, mas sempre apoiados numa carga disfuncional de impostos e de ordenamento burocrático-administrativo, cuja externalidade (o subdesenvolvimento) sufoca cíclica e continuamente nossa economia até a apoplexia, quando aí se faz necessário algum tipo de choque institucional para reverter a paralisia.

Os bolsonaristas estão convencidos de que este momento chegou, mas parecem presos a outro modelo que caducou: o velho autoritarismo de caserna, que, em seus vinte anos de plena vigência, não foi capaz de desatar o nó histórico, não obstante o tremendo avanço material obtido.

O viés autoritário do bolsonarismo, bafejado pelo neointegralismo olavista e suas invectivas anti-institucionais, todavia, não deveriam nos iludir quanto ao ponto nevrálgico da crise, que não está nas inclinações plebiscitárias do Presidente – que são só a consequência –, mas no anacronismo de nosso sistema político, que alimenta um “pacto oligárquico” que se tornou insustentável pela sociedade e pelo Estado.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF[vii])

São João da Barra, 04/06/19.

[i] Vide Carlos Pereira, Coalizão x presidencialismo plebiscitário, O Estado de S.Paulo, 02 de junho de 2019, in. <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,coalizao-x-presidencialismo-plebiscitario,70002853544>.

[ii] Charles-Louis de Montesquieu, O Espírito das Leis, in. Francisco Weffort, "Os Clássicos da Política", vol. 1, ed. Ática/SP, 1993, p. 126.

[iii] Vide Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo, ed. Publifolha/SP, 2000, p.4.

[iv] Víctor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto o município e o regime representativo no Brasil, ed. Alfa-Omega/SP, 1975, p. 252.

[v] Idem, pp. 20/56/253.

[vi] Idem, p. 252.

[vii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).


Hamilton Garcia: Crônica de uma “revolução" anunciada

Os cem primeiros dias do Governo Bolsonaro deixam clara sua estratégia de poder. Montado num ministério tecnocrático, complementado por pastas ideológicas e de costas para o fisiologismo político, ele oferece ao país reformas a serem votadas no parlamento sem a prévia constituição de uma base parlamentar. Faz sentido.

Na geleia geral dos partidos brasileiros, o PT governou com o Centrão, de centro-direita, para se perpetuar no poder com um ajambrado “social-desenvolvimentismo", e quando Temer assumiu o governo, sob os auspícios do mesmo grupo, a “ponte para o futuro”, de sentido radicalmente distinto, passou a ser seu Norte – logo se transformando numa “pinguela" no esforço prioritário de salvar o Presidente (e a si próprios) de uma investigação criminal. Fazendo tábula rasa de tudo isso, PSDB e PPS embarcaram nessa canoa na expectativa de convencer o eleitorado de que se tratava de uma "frente democrática para tirar o país do atoleiro”: resultado, o PSDB ficou fora do páreo, onde tinha lugar cativo desde 1994. Bolsonaro não teria destino melhor se resolvesse governar com eles – embora a alternativa seja uma pirambeira de pedras.

O fato é que as elites tradicionais (neopatrimoniais) dominam o Congresso, em especial a Câmara Federal, e nem os deputados liberais e bolsonaristas juntos podem com elas somadas à oposição. A oposição surfa nessa onda sem se importar com os efeitos sobre o sistema democrático, como é de praxe desde o PT. Seus setores mais consequentes chegam a apostar que a chicana parlamentar do Centrão, tomando como reféns a reforma da previdência e a Lei anticrime, são parte do “jogo democrático” e um freio ao autoritarismo bolsonarista. Sob a liderança de Rodrigo Maia, acreditam que se pode chegar a um ponto de equilíbrio que salvaguarde a Constituição. Bolsonaro agradece por mais este tiro n’água.

A aposta do Centrão e da oposição tem, a seu favor, a tradição: desde Collor, todos os Presidentes, vendo suas pautas ameaçadas, cederam às pressões. Bolsonaro, apoiado pela maioria da opinião pública, até aqui, reage pelas redes sociais reforçando seu compromisso eleitoral com a “refundação da República” – termo cunhado na campanha pelo Senador Álvaro Dias, mas encarnado pelo Capitão em sua oposição radical ao petismo. A resistência governamental procura se valer dos interesses sociais em jogo para confrontar a maioria parlamentar. Neste primeiro embate, deu certo: o mercado e o empresariado forçaram Maia à correção de rumo quanto à reforma da previdência.

De seu lado, não obstante a narrativa da imprensa de "acerto mútuo", Bolsonaro não piscou: recebeu os dirigentes partidários de seu campo, mas manteve a Lei Anticrime e não revogou as normas que impôs para ocupação de cargos públicos: ficha limpa, perfil condizente com o cargo e admissibilidade pelo dirigente do setor, sinalizando que este não é um "governo normal”, como crêem muitos analistas políticos, convictos de que ele é prisioneiro de uma narrativa que o impediria de governar.

Mesmo perdendo popularidade no intrincado processo de negociação com a elite parlamentar, Bolsonaro segue sustentando seu objetivo “revolucionário” – expressamente assumido nos bastidores da recente visita à Trump – de recompor a racionalidade burocrática perdida pelo Estado brasileiro desde o fim do regime militar, e, assim, reanimar a economia e o emprego.

Nesta fase “paz&amor”, o Capitão torce para que as patacoadas parlamentares e judiciárias não só superem as de sua gestão – o que não é pouco! –, como convença os recalcitrantes da frente liberal-conservadora que o elegeu – com suas convicções democrático-procedimentais à moda de Schumpeter[i] – que este dois poderes, tal como estão hoje divididos, não serão capazes de contribuir com o país naquilo que deles o povo exige: desprendimento para recolocar a nave na rota do desenvolvimento. Esta conclusão só pode amadurecer, no seio da própria coalizão governamental, na travessia deste rubicão parlamentar, por meio da tática das “aproximações sucessivas” – já mencionada pelo Gen. Hamilton Mourão como sua perspectiva de superação dos impasses numa institucionalidade claudicante.

Tal aposta, pressupõe, naturalmente, que a soberania legislativa e a arbitragem judiciária se esvaiam no espetáculo deprimente da pequenez política e do particularismo corporativista que o Centrão não cansa de dar – agora secundado pelos torquemadas do STF –, e que só tende a adensar o apoio popular à “refundação”, abrindo caminho para iniciativas plebiscitárias de Governo que podem, inclusive, culminar na própria reforma do sistema político, cujo déficit de representatividade foi desnudado em 2013 e continua à espera da solução que evite seu colapso total – o que, em parte, não acontece porque a atual legislação político-partidária que enfraquece o poder de arbitragem dos eleitores, é a mesma que empoderou as oligarquias capitalistas até aqui (vide, Reforma Política e Governo Representativo).

A eventual emasculação das reformas, assim, é mais provável que seja debitada, pelo povo e o próprio empresariado, na conta do sistema político esgotado, não de Bolsonaro, como esperam as oposições mirando suas caneladas. O único elemento capaz de embaraçar este cenário, parece ser a ofensiva olavista contra o generalato, que pode levar a seu exato oposto: enfraquecimento do Presidente em proveito do Vice, num processo tão desgastante quanto o de Dilma. Para que este cenário se estabeleça, todavia, seria necessário que capitalistas e militares, junto com boa parcela da opinião pública, se convençam que Bolsonaro e seus filhos são o verdadeiro empecilho às reformas.

Uma solução sem Bolsonaro, porém, teria também seus riscos, podendo precipitar o agravamento da crise econômica no curto-prazo e deixando o cenário bastante nebuloso, não só pela reação bolsonarista, mas, principalmente, pela combustão espontânea que o agravamento da estagnação econômica e seus possíveis efeitos inflacionários podem produzir sobre um tecido social já esgarçado pelas drogas, violência, desemprego e aumento da pobreza.

Neste caso, a solução da crise não se daria pela simples assunção constitucional do Vice, um General da linha dura, mas pela provável decretação do estado de exceção (defesa ou sítio) para conter eventuais distúrbios e ameaças, cuja extensão e profundidade tornaria impossível controlar seus desdobramentos, em meio à polarização política e à desmoralização institucional (Legislativo e Judiciário).

Ademais, diante de um parlamento burocratizado[ii], com alta insensibilidade social – vide Maia e seu desdém pela Lei anticrime, que não foi capaz de propor antes de Moro – e crônica disfuncionalidade institucional, plasmada na assimetria entre o poder de veto e sua (ir)responsabilidade governamental, não é possível cravar que as mesmas medidas já apresentadas seriam aprovadas pelo Congresso apenas porque o Presidente mudou.

A esta altura do jogo, em que a caixa de Pandora parlamentar se encontra escancarada – com o Centrão cogitando vetar até os mais simples decretos presidenciais pela singela motivação de afrontar o Governo, com o apoio de setores liberais temerosos das tendências autoritárias do bolsonarismo – e que o Judiciário é comandado por personagem que se sente acuado por simples matéria jornalística, parece não haver dúvidas que as instituições, com ou sem Bolsonaro, precisam ser reparadas, institucional e eticamente.

De um legislativo dominado pelo Centrão, só se pode esperar o agravamento da anarquia gerencial/orçamentária, com pautas-bomba sendo detonadas em série, à moda dos aumentos salariais ao alto funcionalismo e magistratura, das PECs onde os recursos públicos são investidos sem planejamento, ao sabor dos interesses locais imediatistas, de anistias amplas às infrações políticas, etc. De um STF que rasga a constituição para implantar a censura em proveito próprio, e faz cara de paisagem, a mesma coisa: só novos casuísmos na mesma direção.

Oxalá, tal barafunda seja revertida pela razão e a força das vontades populares expressas nas recentes eleições, caso contrário, a refundação da República trilhará, inexoravelmente, por caminhos tortuosos, onde, pelo menos num primeiro momento, a poliarquia[iii] pode não sair ganhando – o que não se constituiria numa exceção histórica.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF[iv])

São João da Barra, 25/04/19.

[i] Vide Joseph Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia; ed. Fundo de Cultura/RJ, 1961, passim.

[ii] Vide Max Weber, Parlamentarismo e Governo numa Alemanha Reconstruída, in. Max Weber – textos selecionados (Os Pensadores), ed. Abril Cultural/SP, 1985, passim.

[iii] Vide Robert Dahl, Poliarquia participação e oposição; ed. USP/SP, sd, passim.

[iv] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).