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Resistência negra | foto: Shutterstock/Michal Urbanek

Revista online | Povos quilombolas: invisibilidade, resistência e luta por direitos

Vercilene Francisco Dias*, especial para a revista Política Democrática online (44ª edição: junho/2022)

A sociedade brasileira pouco sabe sobre a história e resistência negra quilombola no Brasil. Isso é fruto da invisibilidade da luta e resistência negra por direitos. Durante a colonização do país, milhares de pessoas negras foram trazidas da África para serem escravizadas aqui, tratadas como objetos, desumanizadas e submetidas a todos os tipos de maus-tratos. O povo negro resistiu. Uma das maiores formas de resistência, mas não a única, foram as formações dos quilombos, para manter e reproduzir seu modo de vida característico em um determinado lugar, com identidade cultural, espiritualidade e liberdade para a produção e reprodução de práticas inspiradas na ancestralidade.

Os quilombos ou remanescentes das comunidades dos quilombos são grupos sociais remanescentes de pessoas afrodescendentes com identidade étnica própria, ou seja, uma ancestralidade comum e formas de organização política e social, elementos linguísticos, religiosos e culturais que os singulariza, distinguindo do restante da sociedade (Decreto nº 4887/2003). Trata-se de um processo histórico de luta e resistência negra do qual pouco se ouve falar, tampouco é ensinado nas escolas.

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Com o fim formal da escravidão, pouco se mudou na realidade do povo negro aquilombado. Esquecidos, muitos negros se juntaram aos quilombos existentes. Outros foram trabalhar nas fazendas onde eram escravizados, pois o Estado brasileiro não se preocupou em implementar políticas que inserisse os negros na sociedade enquanto sujeitos de direitos. Ao contrário, leis foram criadas para perseguir a população afrodescendente e criminalizar nossa cultura. 

Somente após um século de esquecimento, os quilombolas foram lembrados na Constituição de 1988, devido às lutas do povo quilombola junto ao movimento negro urbano. A Carta Magna assegura, por meio do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), aos povos quilombolas, o direito ao título de suas terras. No entanto, passados mais de 33 anos de sua promulgação, esse direito ainda está pendente de efetivação. 

Estatua de Zumbi dos Palmares | Foto: Shutterstock/Joa Souza
África educação | Foto: Shutterstock/Boxed Lunch Productions
Vacinação Quilombolas | Foto: Igor Santos/Secom
Zumbi dos Palmares portrait1 | Foto: Reprodução
Estatua em Recife Zumbi dos Palmares | Foto: Shutterstock/Bruno Martins Imagens
Parcela de negros entre os inscritos do Enem saltou de 51% para 60% entre 2010 e 2016
Vidas negras importam | Foto: Shutterstock/ByDroneVideos
Estatua de Zumbi dos Palmares
África educação
Vacinação Quilombolas
Zumbi dos Palmares portrait1
Estatua em Recife Zumbi dos Palmares
Pela igualdade racial
Os negros seguem presos na corrente do branco
Grito pela igualdade racial
Parcela de negros entre os inscritos do Enem saltou de 51% para 60% entre 2010 e 2016
Vidas negras importam
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Estatua de Zumbi dos Palmares
África educação
Vacinação Quilombolas
Zumbi dos Palmares portrait1
Estatua em Recife Zumbi dos Palmares
Pela igualdade racial
Os negros seguem presos na corrente do branco
Grito pela igualdade racial
Parcela de negros entre os inscritos do Enem saltou de 51% para 60% entre 2010 e 2016
Vidas negras importam
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Segundo dados oficiais preliminares para o censo quilombola do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em abril de 2020, existem no Brasil 5.972 localidades quilombolas, dispersas por 25 unidades da Federação, em 1.672 municípios, o que representa 30% das cidades brasileiras. O levantamento por região evidencia que a maior quantidade de localidades quilombolas está no nordeste, concentrando 53,09% do total destas localidades. A porcentagem de localidades quilombolas é de 14,61%, no norte; de 22,75%, no sudeste; de 5,34%, no sul; e de 4,18%, no centro-oeste.

Apesar da garantia constitucional do direito às suas terras tituladas, o levantamento do IBGE mostra que, das 5.972 localidades quilombolas, 4.859 (81,36%) estão fora de territórios “oficialmente delimitados” e de qualquer etapa do processo administrativo de reconhecimento, delimitação e titulação considerados pelo instituto. São dados alarmantes da realidade quilombola sobre esse primeiro levantamento oficial, tendo em vista que, hoje, segundo a Fundação Cultural Palmares, existem 3.495 comunidades com certidão expedida. 

Porém, quando se olha os dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pela política de titulação dos territórios quilombolas, a realidade é pior. De 1995 até o ano de 2022, apenas 295 títulos foram emitidos, em 195 territórios. A maioria é formada por títulos parciais, ou seja, o órgão emite o título de uma gleba ou áreas específicas dentro do território, o que não é a titulação de todo o território da comunidade.

Desses 295 títulos, grande parte foi emitida por órgão de regularização estadual ou em parceria com o Inca. São números ínfimos diante da quantidade de comunidades levantadas hoje no Brasil. A maior parte delas está em situação de insegurança territorial, o que acirra ainda mais os conflitos dentro dos territórios quilombolas e tem comprometido a segurança e ceifado a vida de várias de suas lideranças.

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Em decorrência dessa demora em cumprir o mandamento constitucional, os povos quilombolas vem pagando a conta por violações dos seus próprios direitos e garantias fundamentais. Essas violações prejudicam, de forma sensível, o desenvolvimento digno desse povo fundador da identidade nacional. A titulação do território quilombola é passo fundamental para a efetivação de outros direitos e garantias fundamentais, a exemplo de políticas públicas de saneamento básico, saúde, educação, trabalho, acesso a crédito e produção agrícola.

A Constituição é nítida ao estabelecer o dever do Estado de agir para assegurar a reprodução física, social e cultural das comunidades quilombolas. Porém, para esse Estado, somos invisíveis, não bastando a garantia do direito, a obrigação do ente e o destinatário desse direito. Por isso, é necessário que os quilombolas travem disputas todos os dias para que seus direitos sejam respeitados e que suas vidas não sejam ceifadas, em decorrência de um Estado negligente e violento com seu povo.

Para se ter um mínimo de respostas e tentar assegurar a vida do povo quilombola nesse contexto de pandemia da covid-19, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) buscou o Poder Judiciário para denunciar e fazer cessar violações e omissões do governo ao não garantir a vida desse povo, no contexto de crise sanitária global, diante da realidade de violência estrutural enfrentada pelas comunidades. 

Por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) Quilombola 742, proposta em setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a vulnerabilidade estrutural dessa população e determinou à União que implementasse, no prazo de 30 dias, um Plano Nacional de Enfrentamento aos efeitos da pandemia nos quilombos, devendo, para tanto, constituir um grupo de trabalho paritário em 72 horas, para construção, discussão, implementação e monitoramento das ações determinadas. 

 A decisão do STF, no entanto, não foi o bastante. Para que a União cumpra seu dever constitucional, todos os dias é necessário que os quilombolas cobrem a implementação das determinações do Supremo, que, após mais de dois anos de pandemia, foram cumpridas apenas parcialmente. Nesse cenário, somos barrados a todo momento, devido a diversos empecilhos impostos pelo governo, para tentar justificar o não cumprimento da determinação, como a alegação da inexistência de orçamento para implementação da política quilombola.

Como bem ressalta Selma dos Santos Dealdina, no Livro Mulheres Quilombolas: Territórios de Existências Negras Femininas, não existe boa vontade política do Estado brasileiro, que se comporta como se estivesse fazendo um favor a nós, quilombolas. É como se fosse preciso bondade ou voluntarismo para cumprir nossos direitos constitucionalmente assegurados. Enquanto isso, o racismo estrutural, que se ramifica nas instituições públicas, formatando o Estado e a sociedade brasileira, faz com que o exercício do direito seja vivido enquanto conflito e violência imediatos.

Sobre a autora

*Vercilene Francisco Dias é quilombola do Quilombo Kalunga, advogada, doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Em 2019, tornou-se a primeira mulher quilombola com mestrado em Direito no Brasil. Graduou-se no mesmo curso pela UFG, três anos antes. É coordenadora do Jurídico da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ela também foi eleita pela revista Forbes como uma das 20 mulheres de sucesso de 2022.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de junho de 2022 (44ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.

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RPD || Zulu Araújo: Faremos Palmares de novo

Ações do governo Bolsonaro visam destruir a fundação que é símbolo histórico da luta e resistência pela igualdade racial no país, avalia Zulu Araújo

A criação da Fundação Palmares é parte indissociável da luta democrática ocorrida no Brasil pela derrubada da ditadura militar e retomada da Democracia. A Constituição Cidadã de 1988 é a consolidação dessas conquistas. Ou seja, a Fundação Palmares simboliza a um só tempo a luta pela igualdade racial, social e a defesa da diversidade cultural. Em seu primeiro artigo, está inscrito seu objetivo maior: “Promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira.”, para “promover e apoiar a integração cultural, social, econômica e política dos afrodescendentes no contexto social do país.”.  

A Fundação Palmares não é, pois, uma instituição qualquer, criada a partir do bolso do colete de um político sagaz, um burocrata esperto ou um ministro sensível. É fruto de um movimento amplo, diverso, um momento histórico. A Palmares é filha dileta da grande mobilização nacional que empolgou o país em 1988, no qual as mulheres, os movimentos dos direitos humanos, da defesa das crianças e combate à intolerância religiosa se uniram aos partidos políticos, para defender o retorno da Democracia ao nosso país.  

Por isso mesmo, a Palmares é a vitória mais importante do movimento negro brasileiro, no século XX. Teve origem na sociedade, foi aprovada pelo Congresso Nacional, e é a primeira instituição do Estado brasileiro incumbida de elaborar políticas públicas de combate ao racismo e promoção da igualdade, a partir da valorização, preservação e difusão das manifestações culturais de origem negra no país. Isto não é pouca coisa. Essa vitória sem precedentes contou com a participação de muita gente, artistas, políticos, religiosos/as, militantes do movimento negro. Lá estavam pretos, brancos, mestiços, indígenas. Gente de esquerda, direita, tais como Ana Célia do (MNU), Embaixador Alberto Costa Silva, Carlos Moura (Comissão de Justiça e Paz), João Jorge (Olodum), Deputados/a Abdias Nascimento, Benedita da Silva e Paulo Paim, Clóvis Moura (sociólogo), Gilberto Gil (artista), Martinho da Vila (artista), Marcos Terena (indígena), Mãe Stela de Oxóssi (Yalorixá) e Zezé Mota (atriz), dentre tantos outros.  

Ao longo de 32 anos de existência, a Fundação Palmares passou por muita dificuldade, superou inúmeros desafios e se firmou como a grande representação política/cultural da comunidade negra brasileira. Conquistas importantes foram alcançadas: o Parque Memorial Quilombo dos Palmares em Alagoas, (10 mil metros quadrados de área construída) o Decreto 4887/03 (certificação e regularização dos territórios quilombolas, com mais de 4.000 reconhecidos), a Lei de Cotas raciais para o Ensino Superior,  ( mais de 1 milhão de estudantes negros, beneficiados), além de apoio a milhares  de projetos, grupos culturais, intercâmbios e trocas de experiências com comunidades negras de todo o mundo, em particular do continente africano.  

A Palmares realizou ações memoráveis como a participação na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, (Durban/África do Sul/2001), a II Conferência dos Intelectuais ada África e da Diáspora, realizada em Salvador em 2006 e que contou com a presença de mais de 3.000 intelectuais afrodescendentes do mundo inteiro, assim como a participação no III FESMAN (Festival Mundial de Artes Negras /Senegal/2010), no qual contou com a maior delegação de artistas negros (465). Em que pese as dificuldades orçamentárias, financeiras e de recursos humanos, a Palmares tem cumprido com sua missão.   

Portanto, o que está ocorrendo hoje na Fundação Palmares é algo muito mais profundo do que a maldade de um dirigente mal-intencionado. É a destruição de um símbolo de luta e resistência, dos nossos sonhos de igualdade, diversidade, fraternidade e de respeito ao outro, à religião do outro. Essa destruição está ocorrendo em todos os setores da cultura: patrimônio, memória, linguagens, produção de conhecimento, literatura, enfim, tudo aquilo que signifique inteligência, civilidade, cidadania.  Por isso mesmo, nossa luta precisa ter foco e precisão. Não devemos cair na armadilha da fulanização. O combate é contra um sistema, o governo. E, para tanto, temos de estar juntos para fortalecer a luta democrática e defender a diversidade. E, por fim, incluir na agenda política nacional a luta pela promoção da igualdade racial como algo de todos que são democratas e progressistas, visto que a promoção da igualdade, além de um avanço civilizatório é uma necessidade humana.  

Toca a zabumba que a terra é nossa! 


Zulu Araújo é diretor geral na Fundação Pedro Calmon. É arquiteto, produtor cultural e militante do movimento negro brasileiro, ex-diretor da Casa da Cultura da América Latina/UnB e ex-presidente da Fundação Cultural Palmares.


MPT pede afastamento de Sérgio Camargo da Fundação Palmares

Investigação concluiu que atual gestor é responsável por perseguição político-ideológica, discriminação e tratamento desrespeitoso

MPT no Distrito Federal e Tocantins

Brasília - O Ministério Público do Trabalho no Distrito Federal (MPT-DF) foi à Justiça Trabalhista e pediu o afastamento imediato de Sérgio Nascimento de Camargo da Presidência da Fundação Palmares pela prática de assédio moral.

A Ação Civil Pública, ajuizada na última sexta-feira (27/8), também requer que a Fundação Palmares não permita, submeta ou tolere a exposição de trabalhadores a atos de assédio moral praticado por qualquer de seus gestores, além de cobrar, no prazo de 180 dias, diagnóstico do meio ambiente psicossocial do trabalho, realizado por profissional da área de psicologia social.

O MPT também pede que a Fundação Palmares e seu presidente, Sérgio Nascimento de Camargo, sejam condenados, a título de reparação por danos morais coletivos, no valor de R$ 200 mil, a serem pagos de maneira solidária.

Perseguição política-ideológica:

Após um ano de investigação e de ouvir 16 depoimentos, entre ex-funcionários, servidores públicos concursados, comissionados e empregados terceirizados, o procurador Paulo Neto, autor da Ação Civil Pública, concluiu que há perseguição político-ideológica, discriminação e tratamento desrespeitoso por parte do Presidente da Fundação Palmares, Sérgio Nascimento de Camargo.

Segundo o procurador, “os depoimentos são uníssonos, comprovando, de forma cabal, as situações de medo, tensão e estresse vividas pelos funcionários da Fundação diante da conduta reprovável de perseguição por convicção política praticada por seu Presidente e do tratamento hostil dispensado por ele aos seus subordinados”.

Os fatos apurados na investigação do MPT comprovam que Sérgio Camargo persegue os trabalhadores que ele classifica como “esquerdistas”, promovendo um “clima de terror psicológico” dentro da Instituição.

Para definir quem são os “esquerdistas” da Fundação Palmares, o presidente Sérgio Camargo monitora as redes sociais dos trabalhadores e até mesmo associa o tipo de cabelo com aparência típica de “esquerdista”.

Os relatos colhidos pelo MPT também confirmam o uso recorrente de palavrões e tratamento grosseiro contra os subordinados. A situação resultou no desligamento até mesmo de servidores concursados, que pediram para sair da Fundação em virtude do clima instalado a partir da chegada de Sérgio Camargo à presidência.

A Ação Civil Pública será julgada pelo juízo da 21ª Vara do Trabalho de Brasília.

Processo nº 0000673-91.2021.5.10.0021

Fonte: Ascom/MPT
https://mpt.mp.br/pgt/noticias/mpt-pede-afastamento-imediato-de-sergio-camargo-da-presidencia-da-fundacao-palmares-por-assedio-moral


Merval Pereira: Paradoxos da regressão

O formidável Tim Maia eternizou uma máxima brasileira que demonstra como, entre nós, o paradoxal acaba sendo normalizado, às vezes em decorrência de uma afabilidade presumida. “Prostituta tem orgasmo, traficante cheira e cafetão se apaixona”, repetia às gargalhadas. Eram tempos outros, em que ainda se acreditava que o país era abençoado por Deus. Bonito por natureza continua sendo, mas com um governo que não sossega enquanto não torná-lo feio, degradado, desesperançado.

André Trigueiro, meu colega da Globonews especialista em meio-ambiente, cunhou uma dessas frases que refletem o estado das coisas, com a amargura que a frase de Tim Maia não tinha. “Funai intimida indígenas. Fundação Palmares rechaça movimento negro. Ministério do Meio Ambiente intimida fiscais do Ibama”. É um retrato do país hoje, quando se distorce a função na medida dos interesses regressivos de setores da sociedade que não querem se enquadrar nos códigos modernizantes que regem o mundo ocidental.

No caso do desmatamento, o país, que já teve voz importante na questão, hoje é tido como vilão contra o meio-ambiente, a ponto de as exportações brasileiras estarem em xeque. Delegado da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva, que apreendeu toneladas de troncos arrancados ilegalmente, acabou sendo afastado da função, e a carga liberada.

Teve que recorrer ao Supremo Tribunal Federal com uma notícia-crime contra o ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, e presidente do Ibama Eduardo Bim, e o senador de Roraima Telmário Mota que, juntamente com outros deputados e senadores da região, pressionaram o ministério do Meio-Ambiente a favor dos madeireiros.

Já o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, um negro racista, desde que assumiu o cargo, vem dando declarações contra os movimentos negros, que seriam “uma escória maldita”, e classificou Zumbi como “um filho da puta que escravizava negros”. Tomou decisões polêmicas, como mandar retirar da lista de “personalidades negras” da Fundação nomes como Marina Silva, Benedita da Silva, Gilberto Gil, Madame Satã, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Elza Soares.

Sérgio Camargo foi considerado “inapto” para a função pela ONU, que enviou uma carta ao governo brasileiro questionando ações da Fundação, como a redução das áreas quilombolas. Já a Funai tem na sua origem o Serviço de Proteção ao Índio, criado pelo Marechal Rondon mas, no governo Bolsonaro, começou a ser desmontada.

Um dos primeiros atos do novo governo foi passar a demarcação de terras indígenas e de quilombolas para o ministério da Agricultura, o que não aconteceu porque o Congresso mudou a medida provisória para manter o controle no ministério da Justiça. A ação da Funai, porém, vem sendo muito criticada, inclusive nessa pandemia, por não ter lutado para que os indígenas e quilombolas tivessem prioridade para a vacinação.

Para completar, a própria Funai pediu à Polícia Federal que abrisse um inquérito contra a líder indígena Sônia Guajajara, que foi intimada a prestar depoimento sobre as críticas feitas contra o Governo federal em um documentário da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que ela coordena.

O documentário “Maracá” retrata, em episódios, a maneira como os índios estão sendo tratados nessa pandemia, e foi considerado pela Funai uma ação de “calúnia e difamação”, e não um protesto daqueles que deveria proteger. O juiz Frederico Botelho, de Brasília, mandou arquivar o inquérito e disse que houve uma tentativa de usar a Lei de Segurança Nacional contra a líder indígena.

Esses paradoxos regressivos têm provocado até mesmo problemas familiares. O pai de Sérgio Camargo é um tradicional e importante líder negro e, embora não o critique, diz que tem uma “distância de ideias, um valor bastante fundo”. A filha de Regina Duarte, a também atriz Gabriela Duarte, deixa claro que não compartilha as mesmas bandeiras ideológicas da mãe. E o embaixador aposentado Luiz Felipe Seixas Correa considerava que, à política externa que seu genro Ernesto Araújo comandava, faltava clareza.

Essa distorção dos organismos institucionais existentes tem provocado uma regressão cultural marcante nesses dois anos e meio de governo Bolsonaro, fazendo com que o país perca o papel de destaque que já teve nessas e em outras áreas, como a da cultura, cujo secretário, Mario Frias, diz que o governo não tem obrigação de “bancar marmanjo”, referindo-se à Lei Rouanet.

Fonte:


Bruno Boghossian: Governo dá mais um passo na destruição de políticas públicas

Novo presidente de fundação ligada ao movimento negro quer o fim do movimento negro

Depois de ter nomeado um ruralista para o serviço de proteção de florestas, uma antifeminista para elaborar programas para as mulheres e um professor que detesta universidades públicas para cuidar da educação, o governo Jair Bolsonaro deu mais um passo em seu projeto de destruição de políticas públicas.

Novo chefe da Secretaria de Cultura, o dramaturgo Roberto Alvim começou a aparelhar sua pasta com nomes que parecem se esforçar apenas para dilapidar as ações dedicadas à área. Ele escalou militantes ultraideológicos para uma cruzada ressentida contra o setor.

A escolha do time parece até zombaria. A secretária de Audiovisual nunca trabalhou na área e acha que o setor deve trabalhar pelo resgate dos "bons costumes". Já o presidente da fundação que promove a cultura afro-brasileira afirma que a escravidão foi "benéfica para os descendentes" dos africanos.

A frase foi publicada em agosto pelo jornalista Sérgio Nascimento de Camargo, que agora comanda a Fundação Nacional Palmares. O órgão foi criado em 1988 para preservar os valores e a influência negra na sociedade brasileira.

Sérgio Nascimento de Camargo, novo presidente da Fundação Palmares - Reprodução da internet
O instituto passou a ser chefiado, nesta quarta (27), por alguém que acredita que o movimento negro deveria ser "extinto". O jornal O Globo noticiou que Camargo já escreveu numa rede social que tem "vergonha e asco da negrada militante".

Se depender dele, o trabalho da fundação deve seguir essa linha. Numa nota publicada por uma amiga, o novo dirigente declarou que vai implementar "grandes e necessárias mudanças" e que sua atuação será norteada pelos princípios "que conduzem o governo Bolsonaro".

A nomeação segue à risca os planos do secretário do setor. Em vez de cuidar dos programas da área, Alvim se dizia mais interessado em "criar uma máquina de guerra cultural".

Depois do primeiro turno da eleição de 2018, Bolsonaro afirmou que queria dar "um ponto final em todos os ativismos do Brasil". Ele continua disposto a cumprir essa promessa.