Folha de S. Paulo

Bruno Boghossian: Com manobra no Senado, crescem chances de CPI não dar em nada

Mudança abre caminho distrações que podem acabar poupando Bolsonaro na pandemia

A missão número um de Jair Bolsonaro era "mudar o objetivo" da CPI da Covid. Com a ajuda do Congresso, o presidente conseguiu. O Senado ampliou o foco da investigação e incluiu o dinheiro federal repassado aos estados. De quebra, parlamentares começaram a criar empecilhos para a realização das sessões. Na prática, cresceram as chances de a comissão não dar em nada.

Bolsonaristas já trabalham para que a CPI só exista no papel. O líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB), quer que o colegiado só se reúna depois que a vacinação avançar. Ele espera ter o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM), que era contra o funcionamento da comissão agora.

Se não for possível segurar o andamento dos trabalhos, a base governista tem outras saídas. A decisão de transformar a CPI numa investigação abrangente, como pediu Bolsonaro, abre caminho para manobras diversionistas que podem acabar poupando o presidente.

Com a ampliação de escopo, a comissão passa a incluir as ações de estados e municípios “no trato com a coisa pública” durante a pandemia. Isso significa que a CPI pode investigar praticamente qualquer despesa com verba federal em qualquer lugar do Brasil. É o suficiente para distrair senadores que não estiverem interessados em investigar Bolsonaro.

Os integrantes da CPI também ganham poder para mirar adversários políticos e desafetos. Aliados de Bolsonaro estão de olho em rivais do presidente nos estados, enquanto outros senadores, interessados em concorrer a governos estaduais em 2022, querem aproveitar para desgastar concorrentes locais. O Planalto deve se beneficiar da confusão.

A blindagem de Bolsonaro vai depender do comportamento dos 11 titulares da CPI. O governo não conseguiu escalar uma tropa de choque fiel, mas a comissão terá uma minoria de oposicionistas convictos e uma maioria de senadores do centrão ou de partidos sem alinhamento político claro. O Planalto tem muito a oferecer para esse grupo.


Elio Gaspari: Bolsonaro quer pizza de limão

Em geral, as CPIs resultam em fábricas de vento e a da pandemia promete vendavais

Bolsonaro pediu ao senador Jorge Kajuru que o ajude a fazer “do limão uma limonada” na Comissão Parlamentar de Inquérito da pandemia. O que ele quer mesmo é uma pizza. Noves fora a ameaça de “porrada”, a fala do capitão é uma enciclopédia bolsonarista:

Mania de perseguição: “Se não mudar o objetivo da CPI, ela vai vir só pra cima de mim”.

Havendo um problema cria-se outro: “É CPI ampla, investigar ministro do Supremo”.

Num momento, Bolsonaro soltou uma frase intrigante: “Se não mudar a amplitude, a CPI vai simplesmente ouvir o Pazuello”.

Qual é o problema de se tomar o depoimento do general que ele colocou no Ministério da Saúde? De uma hora para outra “ouvir o Pazuello” virou uma fonte de ansiedade.

Quem viu o empreiteiro Marcelo Odebrecht sendo tratado como um príncipe ao depor na CPI da Petrobras em 2015 sabe quanto há de teatro nas comissões parlamentares de inquérito que buscam fatos y otras cositas más. Odebrecht estava preso, seus malfeitos eram conhecidos e, ainda assim, informou que “não respeito delator”. Meses depois estava colaborando com a Justiça.

Em geral, as CPIs resultam em fábricas de vento e a da pandemia promete vendavais. O comportamento de Bolsonaro é público e algumas de suas atitudes já foram narradas pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta em livro. Nesse aspecto, além do depoimento desse ex-ministro, será informativo o de seu sucessor, Nelson Teich —ele poderá revelar por que se foi embora em menos de um mês.

O grande quadro está escancarado: e é um retrato de corpo inteiro de Bolsonaro. Ele chamou a Covid de “gripezinha” e combate o isolamento por uma mistura de ignorância com oportunismo que estava no seu código político já ao tempo em que era vereador do Rio, rachando apoios e patrimônios.

Asmodeu virá nos detalhes, todos relacionados com a gestão do Ministério da Saúde. Mandetta já contou que semanas depois de sua posse o Planalto pediu a cabeça de quatro colaboradores. Seria o jogo jogado, mas “quem articulou as exonerações e impôs os novos nomes mirava o controle de mais de oitenta por cento do orçamento do Ministério da Saúde.” Quem?

O general Eduardo Pazuello assumiu o ministério com seu pelotão de militares e deu no que deu. Na sua despedida, insinuou que tem algo a revelar. Contou que “a liderança política que nós temos hoje que nos mandou uma relação para a gente atender e nós não atendemos”. Ele acrescentou: “A operação de grana com fins políticos acontece aqui”. Novamente, quem?

Essa fala de Pazuello teria caído mal no Planalto. Por quê?

O general chegou a falar de um “grupo dos oito”, formado por colaboradores que levou para o ministério e passou a orquestrar sua fritura. Quem?

A certa altura, tentaram “ empurrar uma pseudonota técnica ” defendendo um medicamento. Cadê a nota? Que medicamento era esse?

Pazuello disse a congressistas que não deveriam falar mais em isolamento, foi ao Amazonas oferecer cloroquina quando faltava oxigênio e sua equipe mandou as vacinas de Manaus para Macapá. Isso mostrou que seus conhecimentos de logística, aplicados no Dia D, em vez de levar os Aliados a Paris, levariam os alemães a Londres.

Ele é um asterisco no manifesto bolsonarista mas, como Mandetta e Teich, tem o que contar.


Joel Pinheiro da Fonseca: A ascensão do terrorismo bolsonarista

Temos o coquetel perfeito para novos surtos com consequências letais

Em 17 de março, um bombeiro ateou fogo à sede de um jornal no interior de SP. O motivo? O jornal defendia medidas de isolamento social. No fim de março, em Salvador, um PM teve um surto psicótico e passou a ameaçar cidadãos e colegas de trabalho. Imediatamente depois de sua morte, foi elevado à condição de herói nos meios bolsonaristas, inclusive pela deputada Bia Kicis. No domingo (11), no aeroporto de Guarulhos, outro PM em surto psicótico fez uma comissária de bordo refém. Casos como esses estão se tornando mais comuns.

E não são só militares. Também em março, um empresário do interior paulista fez um vídeo, armado, com ameaças ao ex-presidente Lula. O governador de SP, João Doria, decidiu se mudar de sua casa para o Palácio dos Bandeirantes depois das ameaças de manifestantes bolsonaristas.

A pandemia e o isolamento deixam todos nós sob estresse constante. Some-se a isso discursos extremistas e teorias da conspiração, e temos o coquetel perfeito para novos surtos com consequências letais.

Bolsonaro e seus cabos eleitorais não precisam incitar violência diretamente contra alguém. Se o fizessem, sofreriam um processo criminal. É o que ocorre quando um deles, como o deputado Daniel Silveira ou a militante Sara Winter, se exalta e perde a linha. A receita é mais difusa, mas o resultado é similar e conta com vistas grossas das autoridades.

Doutrine a cabeça de seguidores com teorias da conspiração, paranoia e maniqueísmo político. Eleja alguns adversários como alvos preferenciais do ódio. Conclame a uma atitude genérica de resistência, revolta, a alguma “ação” não especificada para levar à vitória; deixe tudo no ar. Boa parte do público alvo entenderá a mensagem. Uma minoria de desequilibrados irá colocá-la em prática. É só aguardar. Quando a tragédia previsível acontecer, faça cara de paisagem, lamente o ocorrido e siga adiante, na esperança silenciosa de que os fanáticos se encarregarão de intimidar qualquer crítico.

Em privado, Bolsonaro revela suas reais intenções sem medo. Na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, depois tornada pública pelo STF, disse com todas as letras que queria o povo armado para resistir às ordens de governadores. Seu sonho se aproxima da realidade com o decreto de armas que entraria em vigor nesta terça (13) e teve trechos suspensos pela ministra Rosa Weber.

No que depender de Bolsonaro, a produção e venda de armas e munições no país fica mais facilitada e menos rastreada. O laudo de capacidade técnica para se armar será emitido, não pelas autoridades, mas por clubes de tiro. O limite de armas e munições que cada um pode ter deve ser generosamente aumentado. Para atiradores, chega a 60 armas. E poderão ainda andar com elas carregadas por aí. Milicianos agradecem.​

Em post desta segunda (12), diz Bolsonaro: “Hoje você está tendo uma amostra do que é o comunismo e quem são os protótipos de ditadores”. Sim, no discurso bolsonarista, as medidas restritivas têm como objetivo implantar uma ditadura comunista.

Ao fim do post, conclui o presidente: “Pergunte o que cada um de nós poderá fazer pelo Brasil e sua liberdade e ... prepare-se”. O recado está dado, e os meios para se “preparar” também. População armada e alimentada com propaganda sediciosa em seus celulares. Policiais chamados ao motim. Quantos desses jovens PMs, por sinal, serão alunos de Olavo de Carvalho, que oferece seu curso —nada mais do que fanatização sectária— gratuitamente a policiais desde 2019? Como se não bastasse a Covid, agora temos que lidar também, e cada vez mais, com o terrorismo bolsonarista.


Hélio Schwartsman: O paradoxo de Bolsonaro

Quanto mais crimes de responsabilidade o presidente comete, mais nos acostumamos com a situação

Atribui-se a Eubulides de Mileto o paradoxo do monte (“sorítes”). Um grão de areia obviamente não constitui um monte. Se eu adicionar um segundo grão ao primeiro, ainda não tenho um monte. Nem com um terceiro. Mas, se eu continuar com esse processo, em algum momento eu chegarei lá. De quantos grãos eu preciso para fazer um monte?O diálogo entre Jair Bolsonaro e o senador Jorge Kajuru pode sem grandes pinotes interpretativos ser enquadrado como mais um crime de responsabilidade, ou até dois, se valorizarmos a linguagem chula.
Pelas contas da Folha, em janeiro já havia 23 situações que poderiam ser classificadas como crimes de responsabilidade do presidente. Nos últimos três meses, Bolsonaro adicionou novos itens à lista. Quantos delitos mais ele precisa cometer para que tenhamos um monte de ilícitos e o Congresso decida pará-lo?

Filósofos, matemáticos e linguistas estão há 2.500 anos propondo soluções engenhosas para paradoxos como os de Eubulides, que fazem recurso à indeterminação ou à vagueza dos termos. Numa delas, a filósofa Diana Raffman traz a noção de histerese e sustenta que os limites em que os termos serão usados são elásticos e se relacionam com a história dos objetos.

Assim, se um objeto já era reconhecido por todos como um “monte de areia”, poderá continuar a ser chamado de monte mesmo que perca uma quantidade de grãos que, fosse outro o objeto, levaria a um rebaixamento de monte para pilha.

Vincular a categoria à história, porém, pode ser diabólico quando lidamos com questões institucionais. É mais ou menos o que estamos presenciando. Quanto mais crimes de responsabilidade Bolsonaro comete, mais nos acostumamos com a situação e mais difícil fica estabelecer que ele já excedeu o limite que exige uma ação. Em suma, quanto mais ele viola a lei, menor a possibilidade de que venha a ser punido —o que nos leva a uma outra família de paradoxos.


Celso Rocha de Barros: CPI da Covid tem que ser início do julgamento de Nuremberg que bolsonarismo merece

Comissão instaurada meses atrás teria salvado milhares de vidas; talvez ainda dê para salvar algumas

ministro Luís Roberto Barroso determinou que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tome vergonha na cara e instaure a CPI que investigará os crimes de Bolsonaro durante a pandemia.

O requerimento para abertura da CPI é assinado por 32 senadores, 5 a mais do que o legalmente requerido. A CPI só não havia sido aberta ainda por mutreta, falcatrua e sacanagem.

O senador Pacheco alega que a instauração da CPI pode prejudicar a ação conjunta dos Poderes contra a pandemia. Ele está mentindo. Não há ninguém na esfera federal tomando qualquer providência contra a pandemia. Cerca de 80% das vacinas aplicadas no Brasil até agora são da Coronavac do Butantan (e de Doria).

O presidente da Câmara, Arthur Lira, disse que não é “hora de apontar culpados”. Disse isso porque Bolsonaro, que é o culpado, concedeu a Lira e a seus aliados no centrão acesso a cargos e verbas da administração federal.

A hora de apontar culpados, se entendi bem, será quando esse dinheiro acabar. Talvez já não dê mais para evitar uma única morte brasileira.

Se vocês quiserem entender a diferença que instituições minimamente funcionais fazem, deem uma olhada no noticiário um dia antes da decisão de Barroso e um dia depois.

Um dia antes, a Câmara aprovou um projeto de lei que possibilita que vacinas sejam desviadas do SUS para empresários utilizando o Ministério da Saúde como laranja. Essa aliança de Chicago Boys inspirados em Milton Friedman com Chicago Boys inspirados em Al Capone só foi possível porque o bolsonarismo estava funcionando sem controle nenhum.

No dia seguinte à decisão de Barroso, o próprio Bolsonaro autorizou, pela primeira vez desde o início da pandemia, que o Ministério da Saúde promovesse campanhas pelo isolamento social e pelo uso de máscaras. Foi medo da CPI.

Agora calculem quantas vidas teriam sido salvas se a CPI tivesse sido instalada no ano passado. Se no começo da segunda onda Bolsonaro já tivesse medo de cair, se o medo de cair o tivesse feito comprar vacinas, defender o isolamento, distribuir máscaras. Teriam sido muitas dezenas, talvez centenas de milhares de brasileiros mortos a menos.

No sábado (10), cruzamos a marca de 350 mil mortos. Segundo as projeções, já temos pelo menos mais cem mil mortes contratadas, isto é, inevitáveis pela conjunção do ritmo de disseminação da doença com as políticas adotadas por Bolsonaro.

Cem mil brasileiros adicionais vão morrer com certeza de Covid-19. Já estão condenados, só não sabem disso ainda. Talvez um deles seja você, leitor. Talvez um deles seja eu.

Mas o risco de que morramos, além desses todos, mais outros 100, mais outros 200 mil, também é alto. Talvez derrubar e prender Bolsonaro não impeça essas mortes, mas manter Bolsonaro confortável no poder as garante.

Quem não trabalha para que Bolsonaro seja responsabilizado por seus crimes trabalha para matar 100, 200 mil brasileiros além dos que já morreram.

A CPI tem que ser o início do julgamento de Nuremberg que o bolsonarismo merece. Não haverá volta ao normal sem isso. Se deixarmos passar os crimes da pandemia, o que teremos direito de criticar nos próximos governos “normais”, seja lá quando for que eles voltem? Corrupção? Inflação alta? Seria falta de senso de ridículo.


Financial Times: Amazon derrota movimento trabalhista e Biden nos EUA

Funcionários rejeitam sindicalização inédita no país; presidente fez campanha

Dave Lee, Financial Times

Trabalhadores em um centro de distribuição da Amazon em Bessemer, no estado do Alabama, votaram por larga maioria contra a sindicalização, num forte golpe contra o movimento trabalhista nos Estados Unidos e suas esperanças de conquistar uma base na gigante do comércio eletrônico.

A campanha para criar o primeiro sindicato da Amazon nos Estados Unidos atraiu a atenção do mundo todo e o apoio do mais alto cargo político do país, mas por final falhou em causar impacto onde realmente importava: nas urnas.

Cerca de 55% dos quase 6.000 trabalhadores do centro de distribuição votaram, pelo correio devido às restrições da pandemia. Em uma apuração realizada por videoconferência para um público de mais de 200 advogados, observadores e jornalistas, o "não" teve 1.798 votos, contra 738 em apoio à sindicalização.

Apesar da dura derrota, representantes do sindicato mantiveram uma posição firme, dizendo que o voto em si já foi uma conquista histórica, a primeira vez que toda uma instalação na terra natal da Amazon teve essa oportunidade.

O Sindicato de Varejo, Atacado e Lojas de Departamento disse que vai apelar do resultado, citando, segundo a entidade, esforços numerosos e flagrantes da empresa para influenciar a votação de forma ilegal.

"A Amazon sabia muito bem que a menos que fizesse o possível, até mesmo atividade ilegal, seus funcionários continuariam apoiando o sindicato", disse Stuart Appelbaum, presidente da entidade.

Em um comunicado, a Amazon agradeceu a seus empregados. "É fácil prever que o sindicato dirá que a Amazon ganhou esta eleição porque intimidamos os empregados, mas isso não é verdade", afirmou a companhia em um blog na sexta-feira (9).

"Nossos empregados ouviram muito mais mensagens anti-Amazon do sindicato, de políticos e canais de mídia do que ouviram de nós. E a Amazon não venceu —nossos empregados é que decidiram votar contra a entrada num sindicato."

Como quer que a caracterizem, a vitória da companhia dá continuidade a uma série de esforços para evitar a sindicalização nos EUA. O depósito em Bessemer foi a primeira instalação no país a chegar ao ponto de realizar uma votação formal e sancionada, depois de ter indicações de apoio suficientes no final do ano passado.

Apesar da derrota sindical, a batalha poderá se arrastar por muitos meses. A apelação será ouvida primeiro por um escritório local do Conselho Nacional de Relações Trabalhistas (NLRB na sigla em inglês) e poderá acabar sendo decidida pelos membros do conselho, indicados politicamente em Washington, disse John Logan, professor de estudos do trabalho e do emprego na Universidade Estadual de San Francisco.

"É concebível que quando chegar ao conselho completo do NLRB poderá ter uma maioria democrata", disse Logan. O mandato de William Emanuel, um nomeado republicano, deverá terminar em agosto.

Em março, o presidente Joe Biden indicou forte apoio aos trabalhadores, pedindo que a Amazon se afastasse para permitir que os trabalhadores fizessem uma "opção livre e justa". Logan descreveu os comentários como "a declaração mais pró-sindicatos já feita por um presidente em exercício".

O governo Biden está apoiando a Lei de Proteção ao Direito de se Organizar, que busca tornar ilegais muitas das táticas adotadas pela Amazon durante a campanha. A Lei PRO, como é conhecida por sua sigla em inglês, foi aprovada na Câmara dos Deputados no início deste ano.

"Os trabalhadores americanos não terão acesso constante a eleições sindicais livres, justas e seguras enquanto não reforçarmos as leis trabalhistas do nosso país", disse o deputado Bobby Scott, da Virgínia, presidente da Comissão de Educação e Trabalho da Câmara, depois da votação na Amazon.

"Não podemos continuar permitindo que os patrões interfiram na decisão dos trabalhadores de formar ou não um sindicato. O Senado precisa aprovar a Lei PRO."

A campanha também obteve o apoio do movimento Black Lives Matter e foi observada atentamente por outras importantes figuras de grupos de direitos civis. A força de trabalho do centro de distribuição de Bessemer é mais de 75% afro-americana.

"Os trabalhadores sentiam que não tinham voz e não sabiam como se manifestar", disse Marc Bayard, diretor da Iniciativa de Trabalhadores Negros no Instituto para Estudos de Políticas em Washington. "Esses trabalhadores mostraram um caminho para o sucesso."

A apelação do sindicato vai se concentrar no fato de que uma caixa de correio foi instalada no estacionamento do centro, à vista de câmeras de segurança, medida que, segundo representantes, se destinou a intimidar os empregados quando depositassem seus envelopes.

E-mails obtidos pelo sindicato pareciam mostrar que a Amazon tinha pressionado o Serviço Postal dos EUA para instalar a caixa antes do início da votação. Depois ela foi retirada.

A Amazon disse anteriormente que foi "uma maneira simples, segura e totalmente opcional de facilitar a votação pelos funcionários, nem mais nem menos".

Outras queixas do sindicato incluem uma campanha de reuniões de "audiência cativa", durante as quais a empresa advertiu os empregados contra a sindicalização, assim como a exibição de cartazes contra o sindicato no centro de distribuição —alguns nas cabines dos banheiros.

No início da campanha, o sindicato chamou a atenção para alterações nos semáforos de trânsito diante do edifício, que deram aos sindicalistas menos tempo para falar com os empregados quando saíam do trabalho. A Amazon disse que a medida visava reduzir o congestionamento.

O sindicato UNI Global, que representa mais de 900 sindicatos setoriais, disse que o esforço em Bessemer criou uma discussão de alto nível sobre as condições de trabalho na Amazon, cuja força de trabalho inchou em mais de 500 mil pessoas desde o início da pandemia, e hoje totaliza 1,3 milhão em todo o mundo.

"O 'efeito Bessemer' está eletrizando o movimento trabalhista, inspirando ações de Mianmar a Munique a Montevidéu", disse Christy Hoffman, secretária-geral do UNI.

"Enquanto a votação acontecia, houve greves na Alemanha e na Itália, e um novo esforço maciço para alcançar trabalhadores da Amazon foi lançado no Reino Unido. Ele continuará dando esperança aos trabalhadores, que exigem ter voz no trabalho e um emprego com dignidade.

"Os empregados no Alabama —e trabalhadores da Amazon em toda parte— devem manter suas cabeças erguidas e os olhos fixos na vitória. Unidos, ela é inevitável."

Traduzido originalmente do inglês por Luiz Roberto M. Gonçalves


Folha de S. Paulo: Julgamento de oficial que matou Floyd pode ser ponto de virada para polícias nos EUA

Americanos precisam ver que sistema funciona, diz ex-policial e professor de direito penal

Fernanda Mena, Folha de S. Paulo

Na avaliação assumidamente otimista de Kirk Bulkhalter, o julgamento de Derek Chauvin, o policial que sufocou George Floyd com o joelho diante de câmeras em maio do ano passado, pode ser o início de um processo de reconstrução da confiança dos norte-americanos em suas polícias.

“Nunca vi um chefe ou comandante de polícia testemunhar contra um de seus policiais num processo criminal. E esse pode ser um começo”, avalia Bulkhalter, que é professor de direito penal da New York Law School (NYLS) depois de 20 anos de experiência no departamento de polícia de Nova York (EUA), para onde foi seguindo os passos do pai.

“Mais do que ver Derek Chauvin punido, as pessoas precisam ver o sistema funcionando, a responsabilização e as mudanças sendo implementadas.”

Bulkhalter dirige o The 21st Century Police Project (projeto polícia do século 21), um programa de reforma policial e de aproximação entre departamentos de polícia e comunidades diversas às quais devem prestar serviço.

Ele participou nesta sexta (9) do webinar “Disparidades Raciais e Reforma Policial nos EUA e no Brasil”, promovido pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV Direito SP.

O encontro teve abertura do diretor da FGV Direito SP e colunista da Folha, Oscar Vilhena, e da adida cultural do consulado americano em São Paulo, Madelina Young-Smith. O debate, além de Bulkhalter, incluiu a coordenadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o pesquisador do núcleo, Marta Machado e Felipe Freitas. A mediação foi de Thiago Amparo, coordenador do Núcleo de Justiça Racial e Direito e colunista da Folha.

Desde 2012, a confiança da população americana nas forças de segurança e nos meios de sua responsabilização por abusos e crimes vem sendo traída. O ano marcou o início de uma triste série de escândalos envolvendo o assassinato de jovens negros por vigilantes e policiais, depois inocentados nos tribunais, e pavimentou o caminho para o surgimento do Black Lives Matter (BLM).

O movimento que denuncia a brutalidade policial contra pessoas negras tomou a dianteira na onda de protestos que eclodiram depois do assassinato de Floyd, apoiando pedidos de redução orçamentária para as corporações, o chamado “defund”.

“Hoje, os departamentos de polícia e o BLM estão mais apartados dos que nunca, e sem perspectiva de aproximação”, afirma Bulkhalten.

Para ele, o principal efeito dessa movimentação antirracista foi “tornar policiais mais paranóicos, achando que cada vez que saírem do carro alguém pode filmá-los e tentar puni-los”, o que teria criado um “efeito de recolhimento dos policiais nas ações em que o uso da força estaria respaldado em imunidade qualificada”.

“Distante das polícias, o BLM teve mais efeito nos processos políticos e em seus representantes, que agora colocam pressão aos departamentos de polícia do país”, aponta.

Desde junho de 2020 o congresso americano tenta aprovar a chamada Lei George Floyd, a maior reforma policial das últimas décadas. A lei, que foi aprovada na Câmara e ainda precisa passar pelo Senado, inclui medidas como a proibição de estrangulamentos durante a ação policial, o fim dos mandados de segurança que permitem que os agentes entrem em lugares sem se anunciarem —como na ação que matou Breonna Taylor— e o fim da “imunidade qualificada”, espécie de excludente de ilicitude aplicado a determinados casos.

Analistas têm evocado reduções orçamentárias e recolhimento das forças policiais como possíveis causas do aumento da criminalidade violenta no ano passado nos EUA. Chicago viu o número de homicídios dobrar em 2020. Em Nova York, os assassinatos cresceram 40%. Em Los Angeles, 30%.

“Sou totalmente a favor de mais transparência sobre os gastos nas corporações, mas a verdade é que talvez não estejamos gastando o suficiente nos itens certos”, afirma Bulkhalter.

“Em qualquer tipo de carreira é necessário aumentar os salários para atrair pessoas mais qualificadas. Então precisamos considerar isso quando falamos de gastos dos departamentos de polícia. O objetivo é ter uma polícia mais eficiente.”

Entusiasta da educação dos policiais, Bulkhalter gosta de ilustrar seu ponto de vista com um dado: “Hoje, um policial em Nova York recebe seis meses de formação e vai para as ruas. Já um barbeiro precisa de um curso de um ano para obter uma licença que permita a ele cortar cabelo”.

“A formação deveria durar dois anos e ser, depois disso, continuada. A polícia tem o poder de tirar a liberdade de uma pessoa e de usar a força contra ela. Misturar isso com a falta de educação e treinamento recebidos é algo tóxico.”

Negro, ele diz ter presenciado poucos episódios explícitos de racismo por parte de colegas policiais. “O que vi foram vieses raciais individuais, como quando um colega quis parar dois homens negros dentro de um Porsche com um rack para equipamento de ski porque tinha convicção de que negros não esquiavam”, lembra ele, rindo.

“Eu mesmo esquio desde pequeno! Fiz uma abordagem educada e tranquila que servisse de lição para o meu colega. E os esquiadores seguiram seu caminho.”

Para o professor e ex-policial, as corporações nos EUA são “clubes de meninos, quase todos brancos” desde sempre, e só depois do assassinato de George Floyd é que se viu “oficiais negros sendo promovidos para posições de chefia e de liderança”.

Ele avalia que o aumento da diversidade em posições de comando das corporações policiais é um passo importante para evitar que novos assassinatos de pessoas negras por policiais aconteçam nos EUA.

“Tudo emana das posições de comando. Alguém nessas posições de liderança tem que se levantar e dizer que determinadas atitudes simplesmente não são razoáveis.”


Folha de S. Paulo: Primeira biografia de Sueli Carneiro narra vida de lutas em prol da mulher negra

Obra de Bianca Santana sobre uma das maiores intelectuais brasileiras ganha data de lançamento

A Companhia das Letras marcou o lançamento da primeira grande biografia de Sueli Carneiro, uma das mais importantes ativistas do movimento de mulheres negras no Brasil. “Continuo Preta” sai daqui a um mês, em 11 de maio.

Escrita pela jornalista Bianca Santana, a obra mostra como a vida da intelectual, que é doutora em educação pela Universidade de São Paulo e fundadora do Geledés, o Instituto da Mulher Negra, se confunde com a história da luta contra o racismo e o machismo estrutural no país desde, pelo menos, os anos 1970.

Santana conta que, se dependesse de Carneiro, o livro seria todo sobre o ativismo político e a produção intelectual da época “e não falaria nada sobre ela”. “Além de não ter vaidade, a Sueli preza muito por dizer que tudo é coletivo, que mudanças só acontecem de forma coletiva, e que uma visão personalista reforçaria uma perspectiva neoliberal que não nos interessa.”

Em tom de brincadeira, Carneiro definia sua vida à biógrafa da seguinte forma —“entre uma luta e outra, eu comia um pouco, bebia um pouco...”. Mas prevaleceu a ideia de que narrar a própria existência é construir a memória e, conforme argumenta Santana, um meio de combater o racismo.

Afinal, a biógrafa acabou gravando mais de 160 horas de depoimento de Carneiro e ouviu companheiros e familiares da ativista para desenterrar histórias que ela insistia em guardar —como de quando passou anos abrigando um casal que fugia clandestinamente da ditadura.

RENASCIMENTO NEGRO
E a editora Escureceu, criada em novembro passado com projetos de financiamento coletivo para resgatar clássicos de autores negros, já tem confirmados seus dois primeiros lançamentos. Em maio, sai a primeira edição brasileira de “Não Tão Branca”, obra da americana Jessie Redmon Fauset escrita em 1928.

O TRISTE VISIONÁRIO
No mesmo mês, sai uma edição especial de “Clara dos Anjos”, de Lima Barreto, com capa dura e textos de apoio da crítica Fernanda Silva e Sousa, doutoranda em teoria literária e literatura na Universidade de São Paulo. Ao longo deste ano, a editora planeja ainda uma antologia de fábulas e lendas africanas e outras traduções do movimento conhecido como “Renascimento do Harlem”, do qual Jessie Fauset faz parte.


José Serra: Patentes - Um debate do Congresso Nacional

Legislação brasileira sobre o tema deve se alinhar a acordo internacional

Senador da República (PSDB-SP), ex-governador de São Paulo (2007-2010), ex-prefeito de São Paulo (2005-2006) e ex-deputado federal (1987-1991); doutor em economia pela Universidade Cornell (EUA)

Temos dois tipos básicos de leis: as que geram benefícios para a sociedade no curto e longo prazos, e as que impõem uma troca (a sociedade opta por perder agora para ganhar depois). Temos aqui um conflito que exige decisões políticas. Grupos de interesse perdem privilégios assegurados em lei para aumentar o bem-estar social, mas aos poucos a nova legislação passa a ser aceita por todos como legítima.

Conflitos dessa natureza ocorrem com frequência quando se trata de inovação e seu papel econômico e social. Por exemplo, a regulação de combate aos cartéis promove, a um só tempo, crescimento e eficiência. Oligopólios e monopólios tendem a não inovar, e a concorrência promovida pela legislação produz mais eficiência graças ao incentivo à inovação. O fim dos lucros extraordinários permite preços mais baixos, o que incentiva o consumo e, consequentemente, o crescimento econômico.

Leis referentes à exclusividade na exploração de direitos de propriedade intelectual geram uma troca a curto prazo. Para a sociedade obter um nível eficiente de inovação, foi criado o instituto da patente, que é um monopólio jurídico temporário para quem criar uma inovação, garantindo ao autor o retorno para os recursos investidos no processo de geração da nova tecnologia.

Como todo monopólio, a patente produz uma ineficiência: o inventor, por ter poder de mercado, pode estabelecer o preço de seu produto a um valor bem acima do que seria ideal para a sociedade. Esse poder de mercado é limitado pelo tempo de vigência da patente: quanto maior o prazo, mais incentivos para atuação monopolista ineficiente.

A patente é um direito do pesquisador garantido na Constituição Federal. A LPI (Lei de Propriedade Industrial) prevê o prazo mínimo de 10 anos —a contar da concessão da patente— e o prazo geral de 20 anos —a contar do depósito da patente— para o inventor gozar desse privilégio temporário.

A morosidade nos processos de concessão de patentes pelo Inpi (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual) faz com que o privilégio concedido às patentes ultrapasse o prazo de 20 anos devido à exigência do prazo mínimo de 10 anos previsto no parágrafo único do artigo 40 da LPI, que, por isso, está sendo agora questionado no Supremo Tribunal Federal.A demora do INPI para analisar patentes de medicamentos é tal que estudo da UFRJ concluiu que a União teve gasto adicional de cerca de 60% com medicamentos de alto custo, entre 2014 e 2018, devido à extensão do prazo concedida pela legislação. Ação da Procuradoria-Geral da República junto ao STF aponta pelo menos 74 medicamentos que tiveram prorrogação de prazo com fundamento nesse dispositivo da LPI, entre fórmulas para tratamento de HIV, diabetes e hepatites virais.Fórmula fabricada com exclusividade por um laboratório japonês, com potenciais efeitos contra o novo coronavírus, ainda aguarda patente que já deveria ter expirado no Brasil.

Esse dispositivo da LPI não está ancorado no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips), que inspirou a lei, pois amplia a proteção que prejudica a concorrência e dificulta o acesso aos medicamentos. O próprio Trips estabelece que nenhum Estado signatário é obrigado a adotar medidas mais rígidas.

A análise dos efeitos econômicos e sociais aí envolvidos precisa ser efetuada no Congresso Nacional, independentemente do pronunciamento do STF sobre o tema. Eu defendo um alinhamento da legislação brasileira ao acordo internacional. Por isso, em 2018 apresentei o Projeto de Lei do Senado 437, que, entre outras providências, revoga o parágrafo único do artigo 40 da LPI.

Ao meu ver, essa proteção ampliada prejudica a concorrência e restringe acesso aos medicamentos. O relatório do senador Rogério Carvalho (PT-SE) está pronto para a deliberação do Senado, que não haverá de se omitir nem deixar essa iniciativa morrer durante a maior crise sanitária da nossa história.

*José Serra, senador (PSDB-SP)


Cristina Serra: Fanatismo jurídico-cristão

Não é a liberdade religiosa que está em jogo, mas a vida dos brasileiros

A decisão do ministro do STF Kassio Nunes Marques a favor dos cultos religiosos presenciais sabota os esforços de prefeitos e governadores para controlar a pandemia, agride a ciência, empurra mais brasileiros para o cemitério e desrespeita o sacrifício dos profissionais de saúde, que estão trabalhando no limite da exaustão física, mental e emocional.O ministro atendeu a um pedido da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure). Não é uma entidade qualquer. Fundada em 2012, a associação já teve a delirante Damares Alves como sua diretora de assuntos legislativos. Tem 700 associados, entre advogados, juízes, procuradores e desembargadores.O advogado-geral da União e pastor, André Mendonça, era assíduo frequentador dos eventos da entidade, antes da pandemia. Aliás, foi Mendonça que, mais que depressa, pediu a intimação do prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, quando este anunciou que não cumpriria a decisão de Nunes Marques. Depois da ameaça, Kalil voltou atrás.

Reportagem da revista Piauí (edição 169) revela o intenso lobby da Anajure para emplacar em cargos importantes do poder público defensores da sua agenda cristã ultraconservadora. A associação trabalhou, por exemplo, pelos nomes do procurador-geral da República, Augusto Aras, do defensor público-geral federal, Daniel de Macedo, e do ministro da Educação, Milton Ribeiro, também pastor e apologista da "vara da disciplina" para corrigir os filhos.

A Anajure parece ter obsessão com o tema. Recentemente, saiu em defesa de uma escritora que tivera um livro proibido pela Justiça por preconizar castigos físicos na educação das crianças. Outras fixações são o aborto e a "ideologia de gênero".

Nesta quarta-feira (7), o plenário do STF decidirá sobre cultos e missas presenciais ou virtuais. Espera-se que recoloque a questão em sua real dimensão, afastando da discussão qualquer traço de fanatismo. Não é a liberdade religiosa que está em jogo, mas a vida dos brasileiros.


Hélio Schwartsman: Eles não sabem o que fazem

Kassio e milhões agem como se a epidemia fosse uma fatalidade imposta por Deus

liminar do ministro Kassio Nunes Marques, do STF, que liberava a presença do público em cerimônias religiosas é um contrassenso, sintomático de quem ainda não entendeu bem o que está acontecendo no país.

O raciocínio marquiano parte de um elemento de verdade. Os decretos anti-Covid-19 de governadores e prefeitos limitam a liberdade religiosa. Mas não só. Também limitam a liberdade de ir e vir, de reunir-se pacificamente etc. E é o que se espera que façam. Os decretos, afinal, estão baseados numa lei de emergência sanitária, que tem o propósito explícito de limitar temporariamente direitos para conter a epidemia.

Rezar é, de todas as atividades humanas, a mais facilmente adaptável para o “home office” —se Deus existe e é onipresente, como quer a tradição, ouve preces de qualquer lugar que sejam feitas. Diante de uma entidade assim tão poderosa, o papel que resta às igrejas é muito menos o de estabelecer a comunicação com o divino do que o de favorecer uma vida comunitária significativa para os fiéis.

Assim, os religiosos só teriam motivo para queixa se os templos estivessem recebendo das autoridades terrenas um tratamento menos favorável que o dispensado a outros negócios que promovem contatos sociais positivos, como clubes e grêmios recreativos. Não sendo esse o caso, a liminar só cria uma exceção injustificável para templos.

Nunes Marques, porém, não está sozinho. Ele e milhões de brasileiros continuam agindo como se a epidemia fosse uma fatalidade imposta por Deus e não a expressão matemática de interações sociais desprotegidas entre portadores do Sars-CoV-2 e suscetíveis. Como ainda permaneceremos meses sem vacinas nas quantidades necessárias, o único jeito de reduzir o contágio é reduzir essas interações.

Enquanto os brasileiros, em especial autoridades como Marques, não entenderem isso, continuaremos colecionando milhares de mortos por dia.


Vinicius Sassine: Braga Netto assume Defesa com Exército ressentido e crítico a gestos de Bolsonaro na pandemia

Cúpula militar volta a se incomodar com o presidente após anúncio de uso das Forças Armadas como reforço à vacinação

O general da reserva Walter Braga Netto toma posse no cargo de ministro da Defesa nesta terça-feira (6), na presença de Jair Bolsonaro e com parte expressiva da cúpula do Exército ainda ressentida com a troca dos principais postos de comando efetuada pelo presidente na semana passada. A ação detonou a maior crise militar já vista desde a redemocratização.

Generais que integram o Alto Comando do Exército (a maior das três Forças Armadas) criticam em conversas reservadas o mais recente discurso de Bolsonaro sobre a pandemia.

No sábado (3), ao lado do novo ministro da Defesa, o presidente afirmou que as Forças vão começar a participar da aplicação de vacinas contra a Covid-19 e que os quartéis têm condições de colaborar nesse sentido.

No mesmo contexto da fala de Bolsonaro, Braga Netto e o ministro Marcelo Queiroga (Saúde) discutiram no fim de semana a participação dos militares na vacinação. Queiroga afirmou que essa era uma determinação do presidente.

A fala incomodou a cúpula do Exército porque, segundo militares em postos de decisão, a Força já colabora há tempos com a vacinação, em parceria com instituições e governos locais.

Militares também defendem que, após ser demitido por Bolsonaro, o general Edson Leal Pujol não deve sair pela porta dos fundos do comando do Exército.

A recente crise militar começou quando o presidente demitiu o general da reserva Fernando Azevedo e Silva do cargo de ministro da Defesa, no começo da tarde da segunda passada (29). Braga Netto, então, foi deslocado da Casa Civil da Presidência para o ministério.

No dia seguinte, diante de um movimento dos líderes das três Forças para entregar os cargos, Bolsonaro demitiu os comandantes. Na quarta (31), os novos comandantes de Exército, Aeronáutica e Marinha foram escolhidos e anunciados pelo ministro.

Até agora, não há informações sobre quando e como serão feitas as trocas de comandos. “A data e outros detalhes de passagem de comando do Exército serão definidos após a avaliação e adequação das agendas das autoridades envolvidas no evento, sendo oportunamente informada”, disse o Exército, em nota.

A cúpula da Força quer que a troca de comando ocorra de maneira formal e conforme protocolos militares de eventos do tipo, dentro das limitações impostas pela pandemia, e não sem nenhum tipo de cerimônia.

Em 11 de janeiro de 2019, Pujol assumiu o cargo com pompa, no Clube do Exército em Brasília, com o ritual militar adotado tradicionalmente nessas cerimônias. Seu antecessor, o bolsonarista Eduardo Villas Bôas, hoje abrigado em um cargo no Palácio do Planalto, compareceu e levou um discurso de transmissão do posto. Bolsonaro e diversas autoridades estiveram presentes.

Um consenso também se formou entre integrantes do Alto Comando do Exército: o general da ativa Eduardo Pazuello, demitido do cargo de ministro da Saúde, não tem condições de retornar à Força, muito menos de voltar a comandar uma tropa.

Pazuello foi ministro de junho de 2020 a março de 2021. Exerceu o cargo e permaneceu na ativa do Exército, com o aval de Pujol. Foi demitido em meio ao descontrole da pandemia –no momento da demissão, o país se aproximava de 2.000 mortes por dia; agora a quantidade diária está perto de 4.000.

O general e ex-ministro é investigado pela Polícia Federal por supostos crimes ao se omitir diante da anunciada crise de escassez de oxigênio em Manaus, em janeiro. Pazuello era investigado em inquérito no STF (Supremo Tribunal Federal).

Ao perder o foro especial, o caso foi remetido à primeira instância da Justiça Federal em Brasília. Um processo ainda não foi formalizado.

Na avaliação de generais do Alto Comando, o cargo exercido por Pazuello foi essencialmente político. Tanto que o general encampou a política de “tratamento precoce” que é o carro-chefe de Bolsonaro no combate à pandemia. Medicamentos como a cloroquina não têm eficácia comprovada para Covid.

A cloroquina movimentou as estruturas do Exército e da Aeronáutica. Com aval de Pujol e intermediação do então ministro da Defesa, Azevedo e Silva, o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército fabricou 3,2 milhões de comprimidos da droga, a um custo de R$ 1,2 milhão. Aviões da FAB transportaram o medicamento a regiões isoladas na Amazônia.

Um ato do último dia 25, assinado por Pujol, “reverteu, a contar de 23 de março de 2021, ao respectivo quadro o general de divisão intendente Eduardo Pazuello”.

O ex-ministro ainda está sem destino definido. Antes de assumir um cargo da linha de frente do governo Bolsonaro, Pazuello comandou tropas da 12ª Região Militar, em Manaus.

Uma semana depois do começo da maior crise militar desde 1977, as relações ainda não estão integralmente pacificadas, ao contrário do que faz crer uma foto divulgada pelo Exército na quinta-feira (1º), dia seguinte ao anúncio do nome do novo comandante da Força, general Paulo Sérgio de Oliveira.

Aparecem na foto Oliveira, Pujol e Villas Bôas. É o registro de uma visita feita pelos dois primeiros ao ex-comandante, que ganhou um cargo de assessor especial no Planalto desde sua saída do comando do Exército.

Para tentar evitar um aprofundamento da crise, Bolsonaro decidiu respeitar critérios de antiguidade na escolha dos novos comandantes.

Oliveira era o terceiro mais antigo na lista de militares com quatro estrelas e na ativa. O novo comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, era o segundo em antiguidade. E o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, o primeiro da Aeronáutica.

A posse de Braga Netto estava prevista para as 9h no Planalto, sem presença da imprensa e com transmissão pelos canais oficiais do governo federal.

Também participam da cerimônia formal, na mesma ocasião, mais seis ministros anunciados por Bolsonaro no último mês: Flávia Arruda (Secretaria de Governo da Presidência), general da reserva Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), Anderson Torres (Justiça e Segurança Pública), Carlos Alberto França (Itamaraty), André Mendonça (AGU) e Marcelo Queiroga (Saúde).